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Distinção e classe social no acesso ao ensino superior brasileiro

Distinction and social classes in the access to higher education

Resumo

Este artigo tem como objetivo estratificar e configurar as classes sociais e suas distinções no acesso ao ensino superior brasileiro. A pesquisa adota técnicas estatísticas para investigar essas relações por meio dos dados do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Com base no capital cultural, econômico, social e linguístico, identificamos uma classe superior que tem acesso a todos os cursos; uma classe intermediária heterogênea, cuja fração privilegiada tem acesso a 35,8% dos cursos, mas não aos de prestígio; e uma classe inferior, cujo baixo desempenho permite acesso a menos de 5% dos cursos. Assim, o Enem opera como um elemento que reproduz a diferenciação e hierarquização, ao manter o ensino superior como uma distinção social.

Palavras-chave:
Classe social; Distinção; Enem; Bourdieu

Abstract

The objective of this article is to stratify and configure the social classes and its distinctions in the access to higher education. The research uses statistical techniques to investigate these relations by the Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) data. Based on cultural, economic, social and linguistic capital, we identified an upper class which has access to all of the courses. a heterogeneous intermediate class, which a privileged fraction has access to 35.8% of the courses, but not the prestigious ones; and a lower class, whose low performance allows access to less than 5% of the courses. Thereby, Enem acts as an element that reproduces the differentiation and hierarchization, by maintaining higher education as a social distinction.

Keywords:
Social class; Distinction; Enem; Bourdieu

As desigualdades sociais no ensino superior brasileiro

Neste estudo temos como objeto a configuração e a reprodução das classes sociais no sistema educacional brasileiro, especificamente no acesso ao ensino superior. Pensando na relação entre práticas e classe social, vinculando condições objetivas e classificações sociais, entendemos o ensino superior no Brasil como uma forma de se distinguir socialmente. Como demonstraremos nesta introdução, apenas uma pequena parcela da sociedade brasileira tem acesso a esse nível de ensino, e o diploma universitário representa uma forma de diferenciação e hierarquia social.

Historicamente o ensino superior é um espaço destinado às classes altas. Devido às políticas públicas de democratização de acesso, paulatinamente, esse tem deixado de ser um espaço exclusivo dessa classe. Em contrapartida, as classes médias e superiores encontram novas formas de marcar sua distância em relação à classe popular, desenvolvendo outras práticas distintivas e estratégias para acumular capital. Para Nogueira (2021Nogueira, Maria Alice. (2021), “O capital cultural e a produção das desigualdades escolares contemporâneas”. Cadernos de Pesquisa , São Paulo, 51 (e07468). ), ao superarmos uma perspectiva minimalista ou restrita de capital cultural, que considera características predefinidas de práticas (como alta cultura e escolaridade dos pais) como vantagens culturais, se reconhece a relevância desta noção que está associada a novas formas de capital cultural (como o capital de mobilidade, digital e internacionalizado) valorizadas pela escola. Nesse sentido, segundo a autora, algumas famílias têm empregado novas estratégias cada vez mais sofisticadas e diversificadas para aumentar as chances de sucesso escolar de seus filhos (como a opção por escolas bilíngues, intenso monitoramento da vida escolar, atividades extraescolares etc.). Como boa parte dessas estratégias requerem mais capital econômico do que cultural, reforça-se o favorecimento econômico como um elemento central do sucesso escolar (Nogueira, 2021Nogueira, Maria Alice. (2021), “O capital cultural e a produção das desigualdades escolares contemporâneas”. Cadernos de Pesquisa , São Paulo, 51 (e07468). ).

Apesar da expansão do ensino superior em todo o país nas últimas três décadas e da implementação de diversas políticas públicas para diminuir a desigualdade de acesso, a escolha por um curso superior ainda é marcada por profundas distinções sociais (Almeida e Ernica, 2015Almeida, Ana Maria F. & Ernica, Maurício. (2015), “Inclusão e segmentação social no Ensino Superior público no Estado de São Paulo (1990-2012)”. Educação & Sociedade, Campinas, 36 (130): 63-83.; Borges e Carnielli, 2005Borges, José Leopoldino das Graças & Carnielli, Beatrice Laura. (2005), “Educação e estratificação social no acesso à universidade pública”. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, 35 (124): 113-139. ; Carvalhaes e Ribeiro, 2019Carvalhaes, Flávio & Ribeiro, Carlos Antônio Costa. (2019), “Estratificação horizontal da educação superior no Brasil: Desigualdades de classe, gênero e raça em um contexto de expansão educacional”. Tempo Social , São Paulo, 31 (1): 195-233. Disponível em https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2019.135035.
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; Marteleto, Marschner e Carvalhaes, 2016Marteleto, Letícia; Marschner, Murillo & Carvalhaes, Flávio. (2016), “Educational stratification after a decade of reforms on higher education access in Brazil”. Research in Social Stratification and Mobility, 46 (part B): 99-111. ; Mont’alvão Neto, 2014Mont’alvão Neto, Arnaldo Lopo. (2014), “Tendências das desigualdades de acesso ao ensino superior no Brasil: 1982-2010”. Educação & Sociedade , 35 (127): 417-441. Disponível em https://doi.org/10.1590/S0101-73302014000200005.
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; Neves, Raizer e Fachinetto, 2007Neves, Clarissa Eckert B.; Raizer, Leandro & Fachinetto, Rochele Fellini. (2007), “Acesso, expansão e equidade na educação superior: novos desafios para a política educacional brasileira”. Sociologias, Porto Alegre, 17: 124-157. Disponível em https://doi.org/10.1590/S1517-45222007000100006.
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; Ristoff, 2014Ristoff, Dilvo. (2014), “O novo perfil do campus brasileiro: uma análise do perfil socioeconômico do estudante de graduação”. Avaliação: Revista da Avaliação da Educação Superior, Campinas, 19 (3): 723-747.; Salata, 2018Salata, André. (2018), “Ensino Superior no Brasil das últimas décadas: redução nas desigualdades de acesso?”. Tempo Social , São Paulo, 30 (2): 219-253. Disponível em https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2018.125482.
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). Em 2019, a taxa de escolarização líquida que expressa as matrículas na educação superior de estudantes entre 18 e 24 anos era de apenas 21,4% (Brasil, 2020Brasil, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). (2020), Censo da Educação Superior 2019. Brasília. ). Na interpretação de Ristoff (2014)Ristoff, Dilvo. (2014), “O novo perfil do campus brasileiro: uma análise do perfil socioeconômico do estudante de graduação”. Avaliação: Revista da Avaliação da Educação Superior, Campinas, 19 (3): 723-747. com esta taxa o Brasil ainda está longe de ter um sistema de educação superior de massas e continua oferecendo acesso basicamente a uma elite.

Como mostrou Salata (2018Salata, André. (2018), “Ensino Superior no Brasil das últimas décadas: redução nas desigualdades de acesso?”. Tempo Social , São Paulo, 30 (2): 219-253. Disponível em https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2018.125482.
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), a expansão do número de vagas não levou, necessariamente, a uma democratização no acesso; considerando o período entre 1995 e 2015, apenas na última década foi possível observar uma tendência de redução das desigualdades com mudanças no perfil social dos universitários. A origem social dos estudantes ainda exerce forte efeito nas chances de ingresso no ensino superior, de modo que jovens de famílias de classes mais altas, pelo elevado acúmulo de capital econômico e cultural, têm chances muito maiores de acessar esse nível de ensino do que jovens da classe trabalhadora (Ristoff, 2014Ristoff, Dilvo. (2014), “O novo perfil do campus brasileiro: uma análise do perfil socioeconômico do estudante de graduação”. Avaliação: Revista da Avaliação da Educação Superior, Campinas, 19 (3): 723-747.; Salata, 2018Salata, André. (2018), “Ensino Superior no Brasil das últimas décadas: redução nas desigualdades de acesso?”. Tempo Social , São Paulo, 30 (2): 219-253. Disponível em https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2018.125482.
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).

Mont’Alvão Neto (2014)Mont’alvão Neto, Arnaldo Lopo. (2014), “Tendências das desigualdades de acesso ao ensino superior no Brasil: 1982-2010”. Educação & Sociedade , 35 (127): 417-441. Disponível em https://doi.org/10.1590/S0101-73302014000200005.
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analisou as tendências das desigualdades de acesso ao ensino superior entre 1982 e 2010, com base nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) e dos Censos Demográficos, e constatou uma redução nas desigualdades para estudantes trabalhadores, pretos e pardos e com pais de alcance educacional limitado; além do aumento das vantagens para mulheres e da estabilidade do efeito de classe social e da estrutura familiar. Há ainda uma enorme diferença em relação à escolaridade dos pais: estudantes com pais que completaram o ensino fundamental têm duas vezes mais chances de ingresso que estudantes cujos pais não são escolarizados; para pais com ensino médio, as chances são quatro vezes maiores; e para pais com ensino superior, dezesseis vezes (Mont’alvão Neto, 2014Mont’alvão Neto, Arnaldo Lopo. (2014), “Tendências das desigualdades de acesso ao ensino superior no Brasil: 1982-2010”. Educação & Sociedade , 35 (127): 417-441. Disponível em https://doi.org/10.1590/S0101-73302014000200005.
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).

Carvalhaes e Ribeiro (2019Carvalhaes, Flávio & Ribeiro, Carlos Antônio Costa. (2019), “Estratificação horizontal da educação superior no Brasil: Desigualdades de classe, gênero e raça em um contexto de expansão educacional”. Tempo Social , São Paulo, 31 (1): 195-233. Disponível em https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2019.135035.
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), ao analisarem dados do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade) de ingressantes e do Censo do Ensino Superior de 2010, constataram uma evidente estratificação horizontal, entre os cursos, em relação à origem socioeconômica dos estudantes, ao gênero e à raça. Almeida e Ernica (2015Almeida, Ana Maria F. & Ernica, Maurício. (2015), “Inclusão e segmentação social no Ensino Superior público no Estado de São Paulo (1990-2012)”. Educação & Sociedade, Campinas, 36 (130): 63-83.) investigaram o nível socioeconômico de ingressantes em quatro universidades paulistas em 2012 e notaram que as famílias de renda mais baixa estão menos presentes nessas universidades do que na população em geral, além disso, parte expressiva dos estudantes é composta por pais com diploma de ensino superior. Ao relacionarem a origem social e a escolha do curso em diferentes campi de uma dessas universidades, Almeida e Ernica (2015)Almeida, Ana Maria F. & Ernica, Maurício. (2015), “Inclusão e segmentação social no Ensino Superior público no Estado de São Paulo (1990-2012)”. Educação & Sociedade, Campinas, 36 (130): 63-83. verificaram uma significativa diferenciação social entre cursos mais ou menos prestigiosos. O campus que oferece cursos de alto prestígio (Medicina, Enfermagem, Fonoaudiologia e Ciências Biológicas) recebe, em sua maioria, estudantes de origem social elevada (pais com ensino superior e alta renda). Em contraste, os estudantes de um outro campus que oferece cursos “mais profissionais” (Filosofia, Letras e Ciências Humanas - Bacharelado e Licenciatura) são, preferencialmente, oriundos de famílias com baixa renda e cujos pais não cursaram o ensino superior (Almeida e Ernica, 2015Almeida, Ana Maria F. & Ernica, Maurício. (2015), “Inclusão e segmentação social no Ensino Superior público no Estado de São Paulo (1990-2012)”. Educação & Sociedade, Campinas, 36 (130): 63-83.).

Nesse contexto, é importante destacar que o vestibular pode ser pensado com Bourdieu (2015Bourdieu, Pierre. (2015), “A escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura”. In: Bourdieu, Pierre; Nogueira, Maria Alice & Catani, Afrânio (orgs.). Escritos de educação. Petrópolis, Vozes.) como um dos mecanismos de limitação operados pelo sistema escolar para regular as oportunidades de acesso ao ensino superior a determinados grupos, beneficiando os favorecidos. Esse exame marca as diferenças entre os candidatos de diferentes classes sociais ao se aproximar de um exercício retórico e tradicional “favorável à exibição de qualidades imponderáveis, tanto no estilo quanto na sintaxe do pensamento ou nos conhecimentos mobilizados”, trata-se de um “teste das maneiras cultivadas e distintas” (Bourdieu, 2015Bourdieu, Pierre. (2015), “A escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura”. In: Bourdieu, Pierre; Nogueira, Maria Alice & Catani, Afrânio (orgs.). Escritos de educação. Petrópolis, Vozes., p. 63). O vestibular opera, então, como um filtro de diferenciação que seleciona alguns mais aptos a acessar o espaço universitário, elegendo os eleitos (Bourdieu, 2014Bourdieu, Pierre. (2014), “A escolha dos eleitos”. In: Bourdieu, Pierre & Passeron, Jean Claude. Os herdeiros: os estudantes e a relação com a cultura. Florianópolis, Ed. da UFSC, pp. 15-46.), e exclui a maioria que não dispõe dos recursos exigidos para ocupar esse espaço. Esse panorama aponta para as relações de distinção no acesso ao ensino superior, embora nem todos os estudos aprofundem a investigação sobre estratificação social brasileira, adotem a perspectiva bourdiana de interpretação desse fenômeno ou investiguem especificamente esse momento de transição para o nível superior.

Estratificação social brasileira e classes sociais bourdianas

Segundo Silva (1981Silva, Graciette Borges da (1981), “Critérios de estratificação social”. Revista Saúde Pública, São Paulo, 15 (1): 38-45.), as classes sociais podem ser entendidas como grupos ou camadas de indivíduos diferenciadas pela posição objetiva que ocupam na organização social da produção. Logo, “o sistema de classes constitui uma hierarquia” podendo ser considerado “uma forma histórico-social de estratificação” (Silva, 1981Silva, Graciette Borges da (1981), “Critérios de estratificação social”. Revista Saúde Pública, São Paulo, 15 (1): 38-45., p. 39). Como explica Guimarães (1999Guimarães, Antônio Sérgio A. (1999), “Classes sociais”. In: Miceli, Sérgio (org.). O que ler nas Ciências Sociais brasileiras (1970-1995). São Paulo, Brasília, Editora Sumaré/Anpocs; Capes, pp. 13-56., p. 15), as classes sociais foram fundamentais no processo histórico de constituição da sociologia brasileira, uma vez que a própria disciplina foi associada ao “conhecimento de uma estrutura (a estrutura social) regida por leis científicas e, portanto, racionalmente compreensível, mas totalmente opaca ao entendimento dos indivíduos qua atores sociais”. Nesse contexto, dos anos 1950 e 1960, as teorias de classes foram fortemente influenciadas pela corrente marxista, sendo posteriormente priorizados estudos sobre as classes trabalhadoras, dando origem a preocupações com as práticas sociais e culturais cotidianas. Nos anos 1970 e 1980, as perspectivas marxistas foram sendo revigoradas “integrando as esferas cotidianas de construção de interesses, valores e identidades ao mundo da produção” (Guimarães, 1999Guimarães, Antônio Sérgio A. (1999), “Classes sociais”. In: Miceli, Sérgio (org.). O que ler nas Ciências Sociais brasileiras (1970-1995). São Paulo, Brasília, Editora Sumaré/Anpocs; Capes, pp. 13-56., p. 29). Nesse contexto insere-se a contribuição de Pierre Bourdieu, embora até hoje o autor não seja uma referência nos estudos de estratificação. Em seguida, a sociologia se dedicou à compreensão de grupos específicos que se confundem com a sociologia das profissões. Assim, as pesquisas sobre classes sociais são entendidas por Guimarães (1999)Guimarães, Antônio Sérgio A. (1999), “Classes sociais”. In: Miceli, Sérgio (org.). O que ler nas Ciências Sociais brasileiras (1970-1995). São Paulo, Brasília, Editora Sumaré/Anpocs; Capes, pp. 13-56. como um universo amplo de estudos que adotam o conceito de modo mais descritivo ou imediato, como prestígio, carisma ou estigma.

Atualmente as principais vertentes que se dedicam ao estudo das classes sociais são a weberiana ou neomarxista, que defendem ser possível agregar um conjunto de ocupações a partir de critérios estabelecidos como fundamentais, ou a neodurkheimiana das microclasses ou teoria da estruturação desagregada, recolocando as ocupações no centro da análise (Carvalhaes e Souza, 2014Carvalhaes, Flávio & Souza, Pedro. (2014), “Análise de classe e a queda da desigualdade de renda do trabalho no Brasil”. Plural, São Paulo, 21 (2): 77-107. Disponível em https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099.pcso.2014.97213.
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). Contrariamente a essas tendências, Brandão (2008Brandão, Zaia. (2008), “Os jogos de escalas na sociologia da educação”. Educação & Sociedade , Campinas, 29 (103): 607-620. ) questiona a perspectiva macrossociológica dos estudos de estratificação social e defende a mudança da escala de observação para captar as percepções individuais dos sujeitos sobre sua condição de classe. Apesar disso, a autora não nega a legitimidade de estudos sobre estratificação obtidos em escala ampliada.

Em geral, percebemos uma recorrência da ocupação como principal fator de diferenciação entre as classes nos estudos brasileiros, variando parcialmente apenas a classificação. Segundo Quadros e Maia (2010Quadros, Waldir José de & Maia, Alexandre Gori. (2010), “Estrutura sócio-ocupacional no Brasil”. Revista Economia Contemporânea, Rio de Janeiro, 14 (3): 443-468., p. 445), a ocupação define “a probabilidade de geração de renda dos indivíduos” e o “prestígio social e a influência política proporcionada pela posição ocupacional: o prestígio das relações sociais”. Carvalhaes e Souza (2014Carvalhaes, Flávio & Souza, Pedro. (2014), “Análise de classe e a queda da desigualdade de renda do trabalho no Brasil”. Plural, São Paulo, 21 (2): 77-107. Disponível em https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099.pcso.2014.97213.
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) dividem as ocupações em classes não manuais não proprietárias urbanas (incluindo profissionais e administradores e profissionais não manuais de rotina de escritório e serviços); classes proprietárias urbanas (pequenos proprietários com ou sem empregados); classes proprietárias rurais (pequenos proprietários rurais com ou sem empregados); classes de trabalhadores manuais qualificados e não qualificados (técnicos e supervisores, manuais qualificados da indústria e manuais não qualificados da indústria, serviços, serviços domésticos e ambulantes); e classes rurais (trabalhadores manuais rurais). Scalon (2013Scalon, Celi. (2013), “Social stratification and its transformation in Brazil”. In: Peilin, Li et al. (ed.). Handbook on social stratification in the Bric Countries: change and perspective, World Scientific Publishing Co., pp. 3-20.) e Scalon e Salata (2012Scalon, Celi & Salata, André. (2012), “Uma nova classe média no Brasil da última década? O debate a partir da perspectiva sociológica”. Revista Sociedade e Estado, Brasília, 27 (2): 387-407.) adotam as categorias weberianas egp (Erickson, Goldthorpe e Portocarrero) para dividir doze estratos sociais que podem ser reunidos em seis grupos: profissionais e administradores (de alto e baixo grau); trabalhadores não manuais de rotina (de alto e baixo grau); pequenos proprietários (com ou sem empregados); trabalhadores manuais qualificados (técnicos e de ofício); trabalhadores manuais não qualificados; rural (proprietários e empregados). Os autores identificam uma possível classe média entre duas categorias, sendo a primeira os profissionais e administradores, como engenheiros, advogados, diretores, gerentes, e a segunda os trabalhadores não manuais de rotina, como secretários, professores de ensino fundamental, delegados de polícia, escritores, jornalistas, vendedores de lojas. Quadros e Maia (2010Quadros, Waldir José de & Maia, Alexandre Gori. (2010), “Estrutura sócio-ocupacional no Brasil”. Revista Economia Contemporânea, Rio de Janeiro, 14 (3): 443-468.) também trabalham com seis grupos ocupacionais, que agregam diversas ocupações, distribuídos nesta ordem decrescente na pirâmide social: empregadores, colarinhos-brancos, massa trabalhadora agrícola, trabalhadores não remunerados não agrícolas, trabalhadores agrícolas não remunerados.

Poucos estudos no contexto brasileiro adotam a noção de classe social bourdiana para pensar a estratificação a partir de práticas sociais. Para Bourdieu:

Levar a sério a noção de estrutura social supõe que cada classe social, pelo fato de ocupar uma posição numa estrutura social historicamente definida e por ser afetada pelas relações que a unem às outras partes constitutivas da estrutura, possui propriedades de posição relativamente independentes de propriedades intrínsecas como por exemplo um certo tipo de prática profissional ou de condições materiais de existência (2007bBourdieu, Pierre. (2007b), “Condição de classe e posição de classe”. In: Bourdieu, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo, Perspectiva, pp. 3-26. , p. 3, grifo do autor).

Seu entendimento de classe implica uma ruptura com as perspectivas weberianas e marxistas, negando a associação de uma classe teórica com uma classe real e a existência de um espaço social unidimensional reduzido ao campo econômico (Bourdieu, 2009Bourdieu, Pierre. (2009), “Espaço social e gênese das classes”. In: Bourdieu, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, pp. 133-162. ). Bourdieu (2009Bourdieu, Pierre. (2009), “Espaço social e gênese das classes”. In: Bourdieu, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, pp. 133-162. ) entende a sociologia como uma topologia social, em que cada agente ou seu grupo é definido pela posição relativa que ocupa neste espaço. Logo, sua concepção de classe também significa não se limitar às categorias socioprofissionais, como identificado nos estudos sobre estratificação social brasileira, mas compreender como essa posição se relaciona com outras propriedades secundárias (Bourdieu, 2007a Bourdieu, Pierre. (2007a), A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo, Porto Alegre, Edusp; Editora Zouk.). A classe objetiva inclui, então, identificar grupos de agentes em condições homogêneas de existência, com condicionamentos e disposições homogêneas, com propriedades objetivadas comuns e sistemas de esquemas classificatórios (Bourdieu, 2007a Bourdieu, Pierre. (2007a), A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo, Porto Alegre, Edusp; Editora Zouk.).

Ainda que complexa e não dominante na literatura, a concepção bourdiana de classe social foi adotada em trabalhos contemporâneos, como o de Pereira (2016Pereira, Virgílio Borges. (2016), “Classes sociais e simbolização na cidade do Porto: Elementos teóricos e resultados de pesquisa empírica”. Tempo Social , São Paulo, 28 (2): 183-206. Disponível em https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2016.110722.
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), Michetti (2019Michetti, Miqueli. (2019), “Atualizações da ‘boa vontade cultural’: internacionalização e diversidade no ensino superior brasileiro”. Estudos de Sociologia, Araraquara, 24 (46): 65-88. Disponível em https://doi.org/10.52780/res.12327.
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) e Bertoncelo (2010Bertoncelo, Edison Ricardo. (2010), Classes sociais e estilos de vida na sociedade brasileira. 261 p. São Paulo, tese de doutorado em Sociologia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2010., 2013Bertoncelo, Edison Ricardo. (2013), “Classes e práticas sociais”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, 28 (81): 186-258., 2015Bertoncelo, Edison Ricardo. (2015), “Social classes in Brazil: time, trajectory and immaterial inheritance”. The Sociological Review, 63 (2): 451-479. , 2016Bertoncelo, Edison Ricardo. (2016), “O espaço das classes sociais no Brasil”. Tempo Social, São Paulo, 28 (2): 73-104. Disponível em https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2016.110534.
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). Pereira (2016Pereira, Virgílio Borges. (2016), “Classes sociais e simbolização na cidade do Porto: Elementos teóricos e resultados de pesquisa empírica”. Tempo Social , São Paulo, 28 (2): 183-206. Disponível em https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2016.110722.
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) estudou as distinções simbólicas e de classe social no Bairro do Amial na cidade do Porto em Portugal. Utilizando variáveis indicadoras de origem social, capital econômico (posse de residências, automóveis etc.), capital cultural (anos de escolaridade e número de livros) e capital social, Pereira (2016Pereira, Virgílio Borges. (2016), “Classes sociais e simbolização na cidade do Porto: Elementos teóricos e resultados de pesquisa empírica”. Tempo Social , São Paulo, 28 (2): 183-206. Disponível em https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2016.110722.
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) pôde relacionar os posicionamentos sociais e estilos de vida dos residentes com as lógicas sociais e simbólicas do espaço social definido pela cidade. Michetti (2019)Michetti, Miqueli. (2019), “Atualizações da ‘boa vontade cultural’: internacionalização e diversidade no ensino superior brasileiro”. Estudos de Sociologia, Araraquara, 24 (46): 65-88. Disponível em https://doi.org/10.52780/res.12327.
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investiga as modulações contemporâneas dos capitais culturais distintivos de frações de classes específicas em uma instituição brasileira de ensino superior de prestígio. No contexto brasileiro, destacamos os trabalhos de Bertoncelo (2010Bertoncelo, Edison Ricardo. (2010), Classes sociais e estilos de vida na sociedade brasileira. 261 p. São Paulo, tese de doutorado em Sociologia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2010., 2013Bertoncelo, Edison Ricardo. (2013), “Classes e práticas sociais”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, 28 (81): 186-258., 2015Bertoncelo, Edison Ricardo. (2015), “Social classes in Brazil: time, trajectory and immaterial inheritance”. The Sociological Review, 63 (2): 451-479. , 2016Bertoncelo, Edison Ricardo. (2016), “O espaço das classes sociais no Brasil”. Tempo Social, São Paulo, 28 (2): 73-104. Disponível em https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2016.110534.
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), que mobilizaram a noção bourdiana de classe para entender como as práticas culturais estruturam a topologia do espaço social nacional. Ao investigar os padrões de diferentes domínios da prática, Bertoncelo (2010Bertoncelo, Edison Ricardo. (2010), Classes sociais e estilos de vida na sociedade brasileira. 261 p. São Paulo, tese de doutorado em Sociologia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2010., 2013Bertoncelo, Edison Ricardo. (2013), “Classes e práticas sociais”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, 28 (81): 186-258.) encontrou, como hipótese, a formação de classes sociais baseadas em três principais regiões do espaço social: i) a região superior demarca uma classe executiva profissional composta por profissionais mais escolarizados, com cargos hierárquicos elevados ou administradores de grandes empresas, possuidores de bens materiais escassos e altamente engajados em atividades culturais ou lazer; ii) a região inferior caracteriza uma classe manual formada por profissionais manuais, autônomos e não qualificados, destituídos de bens materiais valorizados e desengajados culturalmente; iii) a região intermediária, de difícil caracterização, contempla os pequenos ou médios empregadores menos capitalizados e escolarizados, que, em geral, são administradores em níveis hierárquicos inferiores e/ou em organizações de pequeno porte, trabalhadores não manuais de rotina, técnicos e professores não universitários. Dessa forma, as classes sociais brasileiras parecem estar estruturadas sobre alguns fatores chaves como a categoria socioprofissional, a escolarização e o engajamento cultural (Bertoncelo (2010Bertoncelo, Edison Ricardo. (2010), Classes sociais e estilos de vida na sociedade brasileira. 261 p. São Paulo, tese de doutorado em Sociologia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2010., 2013Bertoncelo, Edison Ricardo. (2013), “Classes e práticas sociais”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, 28 (81): 186-258., 2015Bertoncelo, Edison Ricardo. (2015), “Social classes in Brazil: time, trajectory and immaterial inheritance”. The Sociological Review, 63 (2): 451-479. , 2016Bertoncelo, Edison Ricardo. (2016), “O espaço das classes sociais no Brasil”. Tempo Social, São Paulo, 28 (2): 73-104. Disponível em https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2016.110534.
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).

Neste estudo buscamos reconstituir o espaço social brasileiro, com base nos microdados do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), para explorar, sob uma perspectiva bourdiana, as relações entre classes sociais e acesso ao ensino superior. Para isso, aproximamos nossos dados aos utilizados por Bertoncelo (2010Bertoncelo, Edison Ricardo. (2010), Classes sociais e estilos de vida na sociedade brasileira. 261 p. São Paulo, tese de doutorado em Sociologia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2010., 2013Bertoncelo, Edison Ricardo. (2013), “Classes e práticas sociais”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, 28 (81): 186-258., 2015Bertoncelo, Edison Ricardo. (2015), “Social classes in Brazil: time, trajectory and immaterial inheritance”. The Sociological Review, 63 (2): 451-479. , 2016Bertoncelo, Edison Ricardo. (2016), “O espaço das classes sociais no Brasil”. Tempo Social, São Paulo, 28 (2): 73-104. Disponível em https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2016.110534.
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) para mapear as regiões do espaço social e caracterizar as classes sociais nacionais. Assim como Bourdieu (2009Bourdieu, Pierre. (2009), “Espaço social e gênese das classes”. In: Bourdieu, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, pp. 133-162. , p. 150), entendemos que esse esforço se justifica, pois trabalhar com as classes construídas objetivamente, a partir de um espaço de posições mapeado por meio do Enem, “permite compreender o princípio e a eficácia das estratégias classificatórias pelas quais os agentes têm em vista conservar ou modificar este espaço”.

O Enem e o tratamento dos dados pela teoria dos capitais

O Enem foi criado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) em 1999 como uma avaliação da qualidade do ensino médio e em 2009 se transformou em um processo único de acesso para algumas universidades públicas. Hoje o Enem é o maior exame de acesso ao ensino superior no Brasil e o segundo maior no mundo (Ministério da Educação, 2015Ministério da Educação. (2015), “A segunda maior prova de acesso ao ensino superior do mundo”. Portal Mec, 05/10. http://portal.mec.gov.br/ultimas-noticias/418-enem-946573306/31151-a-segunda-maior-prova-de-acesso-ao-ensino-superior-do-mundo
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). Compõe-se de uma prova objetiva que avalia os conhecimentos de ciências da natureza, matemática, linguagens, humanidades e uma redação que infere sobre o domínio da língua portuguesa e da argumentação. O questionário socioeconômico, preenchido na inscrição para a prova, permite relacionar as condições de existência dos agentes com os seus desempenhos nos testes objetivos e na redação. Entendendo o Enem como um representante da disputa pelo ensino superior brasileiro, selecionamos os microdados da prova de 2019 para esta pesquisa. Essa escolha considerou os dados mais atuais e o fato de esse questionário conter informações suficientes para os objetivos desta pesquisa. Entretanto, há limitações nessa escolha, como a significativa redução na quantidade de questões em 2019 em comparação com 2009 (Nascimento, 2019Nascimento, Matheus Monteiro. (2019). O acesso ao ensino superior público brasileiro: um estudo quantitativo a partir dos microdados do Exame Nacional do Ensino Médio. Porto Alegre, 292 p. Porto Alegre, tese de doutorado, Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. ) e o fato de que tal questionário não foi planejado para este estudo. Destacamos também que existe uma parcela de brasileiros que não fazem o Enem, mesmo este sendo o maior exame nacional.

Os microdados do Enem de 2019 Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, Inep. (2019), Dicionário dos microdados do Enem 2019. Disponível em https://www.gov.br/inep/pt-br/acesso-a-informacao/dados-abertos, consultado em 20/06/2021.
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(5 095 270 concorrentes) foram analisados com o software livre rstudio (versão 1.4.1106) (R Core Team, 2018R CORE TEAM. (2018), “R: A language and environment for statistical computing”. R Foundation for Statistical Computing, Viena, Austria.), utilizando a linguagem R. Aplicamos filtros aos dados para manter apenas os indivíduos que compareceram à prova, que eram concluintes do ensino médio em 2019, que não apresentaram problemas em suas redações (como cópia do texto motivador, redação em branco, fuga ao tema, anulação, não atendimento ao tipo textual, texto insuficiente e/ou parte desconectada) e excluir os treineiros, resultando em um total de 853 862 candidatos. A exclusão de indivíduos que assinalaram “Não sei” ou não responderam às questões do questionário socioeconômico utilizadas na análise resultou em uma amostra de 670 350 candidatos.

Após os filtros, executamos uma análise de clusters que agrupou a média das notas de cada uma das provas objetivas em cinco grupos. Denominamos esses grupos como níveis de desempenho geral, sendo: Muito alto (de 615,43 até 818,53 pontos), Alto (de 552,78 até 615,40 pontos), Médio (de 498,80 até 552,75 pontos), Baixo (de 448,23 até 498,78 pontos) e Muito baixo (de 182,15 até 448,20 pontos). Em seguida, com o objetivo de mapear o espaço social dos agentes selecionados para configurar as classes sociais e suas distinções no acesso ao ensino superior brasileiro, realizamos uma Análise de Correspondência Múltipla (ACM). Para isso, selecionamos no questionário socioeconômico aquelas variáveis que pudessem indicar o volume global de capital desses agentes. A identificação de variáveis do questionário socioeconômico do Enem como possíveis indicadores de capitais bourdianos já foi objeto de pesquisa de Nascimento (2019Nascimento, Matheus Monteiro. (2019). O acesso ao ensino superior público brasileiro: um estudo quantitativo a partir dos microdados do Exame Nacional do Ensino Médio. Porto Alegre, 292 p. Porto Alegre, tese de doutorado, Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. ) e serve de referencial para nossas análises. As questões do questionário socioeconômico, assim como suas alternativas, estão disponíveis no dicionário dos microdados do Enem 20191 1 Disponível em https://www.gov.br/inep/pt-br/acesso-a-informacao/dados-abertos, consultado em 20/06/2021. . As variáveis selecionadas do questionário e suas categorias estão apresentadas no Quadro 1.

Quadro 1
Variáveis, categorias, siglas e indicadores usados na análise

Como possível indicador de capital econômico, selecionamos as variáveis renda mensal familiar total, número de carros, número de empregados e número de computadores em casa. Apesar de a variável número de computadores em casa estar relacionada também a uma possível cultura digital, nova forma de capital cultural cada vez mais associada com os mecanismos de distinção escolar (Nogueira, 2021Nogueira, Maria Alice. (2021), “O capital cultural e a produção das desigualdades escolares contemporâneas”. Cadernos de Pesquisa , São Paulo, 51 (e07468). ), optamos por mantê-la como um indicador de capital econômico.

Na dimensão cultural, selecionamos as variáveis nível de instrução dos pais e ocupação profissional dos pais. As categorias da variável ocupação profissional foram reinterpretadas com base nas discussões de estratificação social (Carvalhaes e Souza, 2014Carvalhaes, Flávio & Souza, Pedro. (2014), “Análise de classe e a queda da desigualdade de renda do trabalho no Brasil”. Plural, São Paulo, 21 (2): 77-107. Disponível em https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099.pcso.2014.97213.
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; Scalon, 2013Scalon, Celi. (2013), “Social stratification and its transformation in Brazil”. In: Peilin, Li et al. (ed.). Handbook on social stratification in the Bric Countries: change and perspective, World Scientific Publishing Co., pp. 3-20.; Scalon e Salata, 2012Scalon, Celi & Salata, André. (2012), “Uma nova classe média no Brasil da última década? O debate a partir da perspectiva sociológica”. Revista Sociedade e Estado, Brasília, 27 (2): 387-407.), entendendo-as como parte fundamental das condições de existência dos agentes (Bourdieu, 2007a Bourdieu, Pierre. (2007a), A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo, Porto Alegre, Edusp; Editora Zouk.) que serão mobilizadas de forma relacional às outras categorias, como feito por Pereira (2016Pereira, Virgílio Borges. (2016), “Classes sociais e simbolização na cidade do Porto: Elementos teóricos e resultados de pesquisa empírica”. Tempo Social , São Paulo, 28 (2): 183-206. Disponível em https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2016.110722.
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) e Bertoncelo (2010Bertoncelo, Edison Ricardo. (2010), Classes sociais e estilos de vida na sociedade brasileira. 261 p. São Paulo, tese de doutorado em Sociologia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2010., 2013Bertoncelo, Edison Ricardo. (2013), “Classes e práticas sociais”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, 28 (81): 186-258., 2016Bertoncelo, Edison Ricardo. (2016), “O espaço das classes sociais no Brasil”. Tempo Social, São Paulo, 28 (2): 73-104. Disponível em https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2016.110534.
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). Dessa forma, entendemos o Grupo 1 como as ocupações rurais, por envolver profissões manuais e não qualificadas que ocorrem, em geral, fora do ambiente urbano. O Grupo 2 representa as ocupações urbanas manuais e não qualificadas, pois é composto por profissões que não requerem uma qualificação específica e, em geral, podem ser executadas de maneira informal, como diarista, motorista particular, carteiro etc. O Grupo 3 abrange as ocupações industriais manuais-qualificadas, reunindo profissões que demandam uma qualificação mínima (torneiro mecânico, eletricista etc.) com um trabalho de caráter manual, geralmente no ambiente industrial. O Grupo 4 representa as ocupações não manuais qualificadas de rotina, envolvendo desde professores e policiais até pequenos proprietários de empresas. O Grupo 5 agrupa as ocupações qualificadas de gestão representadas por profissões com alto grau de escolarização (médicos, advogados, professores universitários etc.) e por proprietários de empresas médias ou grandes (mínimo de dez funcionários).

Visando a buscar um indicador de capital cultural alargado, não restrito à posse de bens culturais e relacionado com as disposições culturais distintivas no mundo escolar contemporâneo (Nogueira, 2021Nogueira, Maria Alice. (2021), “O capital cultural e a produção das desigualdades escolares contemporâneas”. Cadernos de Pesquisa , São Paulo, 51 (e07468). ), como certas disposições cognitivas e linguísticas, incluímos nas análises o domínio da escrita formal dos candidatos, medido pela nota da primeira competência da redação, que é estruturada na forma de seis níveis categóricos. De acordo com a cartilha do participante (Brasil, 2019Brasil, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). (2019), A redação no Enem 2019: cartilha do participante. Brasília. , p. 6), a competência 1, avaliada por dois professores diferentes, usa como critério: “Demonstrar domínio da modalidade escrita formal da língua portuguesa”. A nota atribuída à competência é categórica, já que a redação pode se enquadrar apenas em um dos seis níveis de desempenho presentes no Quadro 1. Contudo, quando a nota de dois avaliadores difere por um valor igual ou inferior a 80, a nota final da competência é a média aritmética das notas atribuídas pelos dois (Brasil, 2019Brasil, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). (2019), A redação no Enem 2019: cartilha do participante. Brasília. ), o que implica valores intermediários. Para nossas análises, recodificamos essas notas de forma que os valores intermediários fossem agrupados sempre um nível acima. Por exemplo, os indivíduos que receberam 20 pontos foram alocados na categoria referente a 40 pontos, pois entendemos que esses casos não se enquadram no nível que “Demonstra desconhecimento da modalidade escrita formal da língua portuguesa” (Brasil, 2019Brasil, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). (2019), A redação no Enem 2019: cartilha do participante. Brasília. , p. 12).

Para Bourdieu (2015Bourdieu, Pierre. (2015), “A escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura”. In: Bourdieu, Pierre; Nogueira, Maria Alice & Catani, Afrânio (orgs.). Escritos de educação. Petrópolis, Vozes.), a língua não é um simples instrumento do pensamento, mas uma sintaxe, um sistema de categorias mais ou menos complexo, útil para decifrar e manipular estruturas complexas. O domínio da língua, valorizado e requerido pela escola, é função direta do nível de complexidade da língua falada no seio familiar, isto é, uma herança cultural transmitida pela família (Bourdieu, 2015Bourdieu, Pierre. (2015), “A escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura”. In: Bourdieu, Pierre; Nogueira, Maria Alice & Catani, Afrânio (orgs.). Escritos de educação. Petrópolis, Vozes.). Além disso, para Bourdieu (2008Bourdieu, Pierre. (2008), A economia das trocas linguísticas: o que falar quer dizer. São Paulo, Edusp.), a capacidade de falar é universal e essencialmente não distintiva, mas a competência necessária para falar a língua legítima revela distinções sociais. Por isso, ao considerarmos uma das competências avaliadas pela redação do Enem, a de “Demonstrar domínio da modalidade escrita formal da língua portuguesa”, estamos, indiretamente, analisando o capital linguístico que é transmitido desigualmente segundo as classes sociais.

Assim, construímos uma ACM considerando um total de 10 variáveis (as nove expostas no Quadro 1 mais o desempenho na prova objetiva do Enem) e 46 categorias. Todas as variáveis e categorias foram tratadas como ativas, decisão inspirada em Lebaron e Bonnet (2019Lebaron, Frédéric & Bonnet, Philippe. (2019). “Class-specific analysis: Methodological and sociological reflections”. In: Blasius, Jörg; Lebaron, Frédéric; Le Roux, Brigitte & Schmitz, Andreas (orgs.). Empirical investigations of social space. Paris, Springer, pp. 363-380.), que classificaram como passivas apenas as categorias problemáticas, referentes a respostas como “outros” ou então as de baixa frequência. Como os filtros que aplicamos previamente nos dados excluíram as categorias que entendemos como problemáticas (não respostas e respostas do tipo “não sei”), decidimos por manter todas as categorias e variáveis ativas.

As classes sociais e as chances de sucesso no Enem

Para investigarmos como a classe social está relacionada com as chances de sucesso do Enem e, consequentemente, com o acesso ao ensino superior, elaboramos uma ACM que buscou construir um espaço social baseado na renda familiar, escolaridade dos pais, categoria profissional dos pais, bens duráveis, domínio da norma culta da língua e desempenho. A análise revelou que o eixo 1 (autovalor 0,49953) apresentou 13,9% da inércia total e o eixo 2 (autovalor 0,267785) 7,4%, gerando uma inércia acumulada de 21,3%. Os eixos seguintes apresentaram inércias menores que 5%, o que nos levou a restringir a análise às duas primeiras dimensões. O resultado gráfico da ACM está na Figura 1.

Para caracterizar as categorias que contribuíram para cada eixo, consideramos aquelas com massa relativamente alta e com contribuição acima da média (Le Roux e Rouanet, 2010Le Roux, Brigitte, & Rouanet, Henry. (2010). Multiple correspondence analysis. Thousand Oaks, CA, Sage. ). Para o eixo 1, horizontal, as principais contribuições compõem o par de oposição entre a maior e menor renda (Renda: > 8982R$ e Renda: até 1497R$), profissão dos pais (Grupo_5 e Grupo_1), escolaridade parental (Pos_grad e ef_inc) e posse de bens materiais (n_pcs: 2 ou + e n_carros: 2 ou + vs n_pcs: zero e n_carros: zero). O desempenho (Desemp: Muito_Alto e Desemp: Muito_Baixo) e domínio da norma culta da língua (Dom_nc: Alto e Dom_nc: Médio) também apresentaram pares de oposição com alta contribuição para esse eixo. Vale destacar que possuir empregados que trabalham na casa (Empregados: Sim) carrega alta contribuição, mas não representa um par de oposição. Dessa forma, o eixo horizontal separa principalmente os grupos de agentes dos extremos relacionados com a posse econômica (renda, profissão e bens materiais), sendo que a performance escolar (desempenho e domínio da norma culta) tende a acompanhar essa polarização.

O segundo eixo, vertical, apresenta principalmente elevadas contribuições em categorias de caráter semelhante às da primeira, mas em níveis diferentes. No polo superior temos contribuições elevadas para as categorias de pais com níveis intermediários de escolarização (Ed_Pai: emedio e Ed_pai: efund), profissões (Grupo_2, 3 e 4), renda (Renda: até 2994 R$, Renda: até 5988R$) e posse de bens materiais (n_carros:1 e n_pcs:1). Em oposição estão as categorias de maior e menor: renda, categoria profissional, escolarização e posse de bens materiais. O desempenho na prova também segue esse padrão, desempenhos intermediários (Desemp: Alto e Desemp: Muito Alto) estão em posição oposta aos extremos dessa variável. Embora o segundo eixo também apresente uma separação em função de aspectos econômicos, essa oposição é distinta do eixo 1 ao opor as categorias médias de seus maiores e menores extremos. Tal oposição contribui para revelar também que uma fração média social pode não ter as maiores chances de sucesso escolar, porém estão fortemente opostas às menores chances (Desemp: Muito Baixo), fato confirmado pela elevada contribuição dessa categoria para esta dimensão.

Para avançar na interpretação, é importante destacar também que o comportamento da distribuição das categorias ao longo dos dois eixos e o quadro visual da ACM parecem indicar que ocorreu um Efeito Guttman ou ferradura na análise (Hjellbrekke, 2019Hjellbrekke, Johs. (2019), Multiple correspondence analysis for the social sciences. Oxford, Routledge.). Esse efeito, como explica Hjellbrekke (2019Hjellbrekke, Johs. (2019), Multiple correspondence analysis for the social sciences. Oxford, Routledge.), não é necessariamente ruim ou problemático, ocorrendo em situações em que o eixo 1 separa os extremos das categorias e o eixo 2 separa os níveis intermediários dos extremos. Contudo, esse comportamento também indica certa unidimensionalidade nos dados, o que direciona a interpretação para uma leitura do plano geral, não mais dos eixos individuais (Hjellbrekke, 2019Hjellbrekke, Johs. (2019), Multiple correspondence analysis for the social sciences. Oxford, Routledge.). Reconhecendo a predominância da dimensão econômica e o formato de ferradura em nosso resultado, decidimos interpretar as oposições presentes em ambas as dimensões do espaço social apresentado na Figura 1 em relação a quadrantes do espaço e não a cada eixo.

A distribuição das variáveis na Figura 1 revela uma primeira distinção entre os lados esquerdo e direito, o que é mais evidente na região inferior. Como principais oposições estão os dois extremos do desempenho (Desmp: Muito Baixo vs Desemp: Muito Alto), que acompanham, por proximidade, os extremos de escolaridade (Ed_mae e Ed_pai: nao_est vs Ed_mae e Ed_pai: Pos_grad), de categorias profissionais (Grupo_1 vs Grupo_5) e de renda (Renda: até 1497 R$ vs Renda: > 8982 R$). Essa oposição entre uma região destituída de capitais e outra completamente privilegiada desses recursos fornece indícios de dois conjuntos distintos de condições de existência, apontando classes prováveis (Bourdieu, 2009Bourdieu, Pierre. (2009), “Espaço social e gênese das classes”. In: Bourdieu, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, pp. 133-162. ) distintas pelo volume total de capitais (Bourdieu, 2007a Bourdieu, Pierre. (2007a), A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo, Porto Alegre, Edusp; Editora Zouk.).

Figura 1
ACM com renda familiar, escolaridade dos pais, categoria profissional dos pais, bens duráveis, domínio da norma culta da língua e desempenho no Enem (em vermelho) - todas categorias ativas

Na região inferior esquerda temos um agrupamento dos menores níveis das categorias analisadas. Essa região contempla pais com escolaridade máxima de ensino fundamental incompleto (ef_inc e nao_est), com profissões rurais manuais e não qualificadas (Grupo_1) e com renda familiar máxima igual à R$1497,00. A baixa posse de bens duráveis acompanha essas baixas categorias, com uma ausência total de carros (n_carro: zero) e de computadores pessoais (n_pcs: zero). Uma agregação entre baixa escolaridade dos pais, baixa renda familiar, privação de bens duráveis valorizados e categorias profissionais manuais e não qualificadas também foi encontrada por Bertoncelo (2010Bertoncelo, Edison Ricardo. (2010), Classes sociais e estilos de vida na sociedade brasileira. 261 p. São Paulo, tese de doutorado em Sociologia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2010., 2016Bertoncelo, Edison Ricardo. (2016), “O espaço das classes sociais no Brasil”. Tempo Social, São Paulo, 28 (2): 73-104. Disponível em https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2016.110534.
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) ao investigar o espaço social brasileiro. Essas características representam frações de classe mais destituídas de recursos devido, principalmente, ao baixo volume de capitais (em especial, de capital escolar) e ao trabalho manual pouco ou não qualificado (Bertoncelo, 2016Bertoncelo, Edison Ricardo. (2016), “O espaço das classes sociais no Brasil”. Tempo Social, São Paulo, 28 (2): 73-104. Disponível em https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2016.110534.
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, 2013Bertoncelo, Edison Ricardo. (2013), “Classes e práticas sociais”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, 28 (81): 186-258.). Em relação às categorias escolares, estão nessa região o menor desempenho (Desempenho: Muito baixo) e um baixo domínio da norma culta da língua portuguesa (Dom_nc: Baixo). Embora o domínio mínimo (Dom_nc: Minimo) e não domínio (Dom_nc: Nenhum) também apareçam, a interpretação dessas categorias pode ser imprecisa devido ao posicionamento próximo do encontro dos eixos, ponto que representa uma força compartilhada por todos os agentes e impede sua distinção (Klüger, 2018Klüger, Elisa. (2018), “Análise de correspondências múltiplas: fundamentos, elaboração e interpretação”. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais - Bib, São Paulo, 86 (2): 68-97.). Sobre a dimensão escolar, Bertoncelo (2016Bertoncelo, Edison Ricardo. (2016), “O espaço das classes sociais no Brasil”. Tempo Social, São Paulo, 28 (2): 73-104. Disponível em https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2016.110534.
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, p. 84) argumenta que “o baixo capital escolar do domicílio reproduz o baixo capital escolar ‘herdado’”, o que se associa ao nosso resultado de que o menor desempenho se encontra nessa área, semelhante ao constatado por Almeida (2007Almeida, Ana Maria F. (2007), “A noção de capital cultural é útil para se pensar o Brasil?”. In: Paixão, Lea Pinheiro & Zago, Nadir (orgs.). Sociologia da educação: pesquisa e realidade. Petrópolis, RJ, Vozes, pp. 44-59.), Matos et al. (2017Matos, Daniel Abud S. et al. (2017), “Impactos das práticas familiares sobre a proficiência em Língua Portuguesa e Matemática no Ensino Fundamental”. ProPosições, 28 (1): 33-54. ) e Windle e Nogueira (2014Windle, Joel & Nogueira, Maria Alice. (2014), “The role of internationalisation in the schooling of Brazilian elites: distinctions between two class fractions”. British Journal of Sociology of Education, 36 (1): 174-192. ). Sobre o baixo domínio da norma culta, notamos a ausência de capital linguístico (Bourdieu, 2008Bourdieu, Pierre. (2008), A economia das trocas linguísticas: o que falar quer dizer. São Paulo, Edusp.) como reflexo do baixo engajamento cultural, característico das frações de classe menos privilegiadas (Bertoncelo, 2015Bertoncelo, Edison Ricardo. (2015), “Social classes in Brazil: time, trajectory and immaterial inheritance”. The Sociological Review, 63 (2): 451-479. ). Com isso, reconhecemos essa região como uma classe inferior, marcada por um baixo volume em relação aos capitais, à renda, escolaridade parental, posse de bens duráveis, domínio da norma culta e desempenho e por profissões de caráter rural, manual e pouco qualificado.

Como mostra Nogueira (2021Nogueira, Maria Alice. (2021), “O capital cultural e a produção das desigualdades escolares contemporâneas”. Cadernos de Pesquisa , São Paulo, 51 (e07468). ), a literatura sociológica ainda evidencia que as práticas de leitura e escrita, associadas às competências linguísticas, são fundamentais para o desempenho escolar, sendo transmitidas e requeridas pela escola e altamente rentáveis no mercado escolar. Embora o papel do conceito de capital cultural para entender as desigualdades escolares tenha sido reformulado na atualidade, para Nogueira (2021) ele continua sendo decisivo. Segundo a autora, é imperioso notar que permanece uma forte correlação entre o sucesso escolar e os modos de socialização familiar mais ou menos favoráveis no desenvolvimento de disposições cognitivas, linguísticas e comportamentais valorizadas pela escola (Nogueira, 2021).

Nesse sentido, o sucesso escolar, aqui representado pela aprovação no vestibular, é fortemente condicionado pela socialização familiar, de modo que o baixo domínio da norma culta e a ausência de capital linguístico, típicos das classes baixas, influem no baixo desempenho do estudante no exame, que vai se materializar na baixa probabilidade de acesso ao ensino superior. Sabendo que o desempenho mais provável dos estudantes da classe inferior é Baixo ou Muito Baixo, podemos compará-lo com as notas de corte do Sistema de Seleção Unificada (Sisu)2 2 Nota de corte é a nota mínima para ingressar em um curso específico a partir do desempenho no Enem. A lista completa com as notas de corte de 2020 pode ser acessada em: https://portalpne.com/sisu-enem/notas-de-corte-sisu-2020-veja-pontuacao-de-todos-os-cursos/. . Dos 5850 cursos disponíveis em 2020, apenas sete (0,12%) tiveram nota de corte menor do que 500 pontos, na faixa de desempenho Baixo e Muito Baixo. Isso significa que é muito difícil que estudantes das classes baixas ingressem no ensino superior público brasileiro via acesso por ampla concorrência, e menos ainda em cursos de maior prestígio social. Segundo o estudo de Mont’alvão Neto (2014Mont’alvão Neto, Arnaldo Lopo. (2014), “Tendências das desigualdades de acesso ao ensino superior no Brasil: 1982-2010”. Educação & Sociedade , 35 (127): 417-441. Disponível em https://doi.org/10.1590/S0101-73302014000200005.
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), os filhos de pequenos proprietários rurais têm 30% a mais de chance em relação aos filhos de trabalhadores rurais não qualificados, essa vantagem aumenta para 80% para filhos de trabalhadores não manuais de rotina e 250% para filhos cujos pais são profissionais de alto nível. Nesse sentido, valorizam-se ainda mais as políticas de ações afirmativas que possibilitam a atenuação desse cenário. Os estudantes das classes baixas de nossa pesquisa concluíram o ensino médio, o que já configura um avanço em termos de escolarização quando comparamos o nível de instrução dos pais. No entanto, não captamos o quantitativo de jovens das mesmas classes que abandonam a escola antes de concluírem os estudos básicos.

A região espelhada a essa, quadrante inferior direito da Figura 1, é marcada pelos maiores níveis medidos. Os pais tendem a ter o Ensino Superior completo (Ed_mae e Ed_pai: esuperior) ou uma Pós-Graduação (Ed_mae e Ed_pai: Pos_grad), e a renda familiar é maior que R$ 8982,00, maior valor medido, essas famílias também tendem a contratar serviços como diaristas (Empregados: Sim). As categorias profissionais qualificadas de gestão (Grupo_5) são caracterizadas pela alta qualificação e caráter não manuais. A posse de bens culturais é marcada pelo maior nível, a posse de dois ou mais carros (N_Car: 2 ou +) e computadores (N_pcs: 2 ou +). A Figura 1 mostra uma proximidade entre agentes de famílias com profissões não manuais qualificadas, renda per capita superior a dois salários mínimos e empregados diaristas, o que também foi encontrado nos trabalhos de Bertoncelo (2010Bertoncelo, Edison Ricardo. (2010), Classes sociais e estilos de vida na sociedade brasileira. 261 p. São Paulo, tese de doutorado em Sociologia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2010., 2013Bertoncelo, Edison Ricardo. (2013), “Classes e práticas sociais”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, 28 (81): 186-258., 2016Bertoncelo, Edison Ricardo. (2016), “O espaço das classes sociais no Brasil”. Tempo Social, São Paulo, 28 (2): 73-104. Disponível em https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2016.110534.
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), que descreveram essa associação como características de uma fração de classe possuidora de um elevado volume de capitais, com alto engajamento cultural e posse de bens duráveis. O melhor desempenho (Desemp: Muito alto) e o completo domínio da norma culta língua (Dom_nc: Total) seguem o padrão das outras categorias e são possíveis indicadores de sucesso na transmissão familiar de capital cultural e escolar (marcado pela elevada escolarização dos pais) e de engajamento cultural. Essas marcas culturais levam a reconhecer essa região como uma fração de classe com altos privilégios, volumes elevados de capitais e relativo sucesso na reprodução de seus capitais (Bertoncelo 2015Bertoncelo, Edison Ricardo. (2015), “Social classes in Brazil: time, trajectory and immaterial inheritance”. The Sociological Review, 63 (2): 451-479. , 2016Bertoncelo, Edison Ricardo. (2016), “O espaço das classes sociais no Brasil”. Tempo Social, São Paulo, 28 (2): 73-104. Disponível em https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2016.110534.
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), fração que chamaremos de classe superior.

Almeida (2007Almeida, Ana Maria F. (2007), “A noção de capital cultural é útil para se pensar o Brasil?”. In: Paixão, Lea Pinheiro & Zago, Nadir (orgs.). Sociologia da educação: pesquisa e realidade. Petrópolis, RJ, Vozes, pp. 44-59.) examinou os elementos avaliados na redação do vestibular da Unicamp, verificando de que forma eles são definidores da cultura valorizada e legitimada pela seleção. De modo semelhante percebemos uma relação entre o domínio da norma culta da língua e o bom desempenho no exame, marca de uma socialização familiar privilegiada cuja herança é a incorporação de capital cultural valorizado pelo sistema de ensino. Assim, os agentes da classe superior têm todos os cursos superiores como possíveis escolhas. Em específico, essa faixa de desempenho é a mínima exigida para aproximadamente 4 mil dos 5850 cursos disponíveis, grupo que abriga os cursos de alto prestígio como Medicina (menor nota de corte 753,19) e Engenharia aeronáutica (menor nota de corte 761,8). Carvalhaes e Ribeiro (2019Carvalhaes, Flávio & Ribeiro, Carlos Antônio Costa. (2019), “Estratificação horizontal da educação superior no Brasil: Desigualdades de classe, gênero e raça em um contexto de expansão educacional”. Tempo Social , São Paulo, 31 (1): 195-233. Disponível em https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2019.135035.
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) também encontraram que os cursos com alto retorno financeiro e mais prestígio são o destino mais comum para estudantes com nível socioeconômico mais alto, e geralmente, para homens e brancos. Isso reforça que essa região da classe superior apresenta os maiores volumes de capitais, uma vez que os capitais herdados (relacionados à escolarização e posse de bens duráveis familiar) são capazes de se reproduzir, aqui pela dimensão escolar, e, consequentemente, conservar ou até expandir os privilégios e prestígios já possuídos.

A região superior ao eixo horizontal da Figura 1 parece desenhar uma fração intermediária, pois carrega as oposições entre níveis intermediários e seus extremos presentes no eixo 2. Mais à esquerda temos pais com o ensino fundamental completo (Ed_pai e Ed_mae: efund) e com profissões urbanas manuais e não qualificadas (Grupo_2) e industriais manuais-qualificadas (Grupo_3). Essas profissões têm uma exigência de qualificação relativamente maior que as dos rurais manuais e não qualificadas, o que, junto à maior escolaridade, poderia justificar a distinção entre os quadrantes superior e inferior esquerdo. Esse argumento é reforçado pelos resultados de Bertoncelo (2016Bertoncelo, Edison Ricardo. (2016), “O espaço das classes sociais no Brasil”. Tempo Social, São Paulo, 28 (2): 73-104. Disponível em https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2016.110534.
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) que mostraram uma distinção entre uma zona marcada por trabalhadores do campo e frações manuais urbanas fragilizadas; a escolaridade e renda também agiam para essa distinção. Ainda há um baixo desempenho e um médio domínio da norma culta da língua nesse espaço. Essa região parece caracterizar uma espécie de classe inferior urbana, que se distingue pela sua ligeira melhora na escolaridade dos pais e no tipo de trabalho manual, o que pode representar um relativo aumento no volume de capitais em função da melhora no desempenho e domínio da norma culta da língua. Esse ligeiro afastamento da classe inferior também se manifesta nas possibilidades de ingresso no ensino superior; o médio desempenho e domínio da norma culta permitem que esses agentes atinjam a nota de corte de quase 230 cursos. Contudo, essas possibilidades representam menos de 5% do total, e ressaltam outras dificuldades de acesso ao ensino superior, como o deslocamento e gastos, caso o estudante tenha de mudar de cidade ou estado. Isso foi relatado por Silveira, Barbosa e Silva (2015Silveira, Fernando Lang da; Barbosa, Márcia Cristina B. & Silva, Roberto da. (2015), “Exame Nacional do Ensino Médio (Enem): uma análise crítica”. Revista Brasileira de Ensino de Física, São Paulo, 37 (1): 1101-1105.), estudantes de estados mais pobres são praticamente impossibilitados de estudar em estados mais ricos, devido às condições socioeconômicas.

Ao avançarmos para a direita, percebemos um aumento na renda, três níveis dessa categoria (Renda: até R$ 2994,00, até R$ 5988,00 e até R$ 8982,00) encontram-se neste quadrante superior direito. Contudo, a renda de até R$ 2994,00 parece caracterizar uma estreita região de interface entre essas possíveis frações de classe. Essa região está às margens do eixo vertical e aproxima esse nível de renda aos pais com Ensino Médio completo (Ed_pai e Ed_mae: emedio) e a um desempenho intermediário no Enem (Desemp: Médio). A renda de até R$ 5988,00 parece ser deslocada no espaço em função da categoria profissional não manual qualificada de rotina (Grupo_4) e de uma posse média de bens duráveis (N_carros: 1 e N_pcs: 1). Próximo a essas características também está o alto desempenho (Desemp: Alto) no Enem e o alto domínio da norma culta da língua. Entretanto, esse nível de domínio da norma está mais perto da renda de até R$ 8982,00 que, por sua vez, está próxima aos pais com Ensino Superior. Nesse sentido, esses últimos três níveis parecem compor outra região de interface, desta vez entre os quadrantes superior e inferior direto. Além dos valores medianos, para Bourdieu (2009Bourdieu, Pierre. (2009), “Espaço social e gênese das classes”. In: Bourdieu, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, pp. 133-162. , p. 136) os agentes em posições intermediárias “[…] devem um certo número das suas características mais típicas ao fato de estarem situadas entre os dois polos do campo […]”. Assim, essa região superior representa uma classe intermediária que, embora heterogênea, está posicionada entre polos. A região superior direita representaria, então, uma classe intermediária mais privilegiada, que nutre algumas proximidades com a classe superior. Tal aproximação se manifesta na ampliação das possibilidades de ingresso no ensino superior, pois essa fração atinge a nota de corte de mais de 2100 (35,9%) cursos, um significativo aumento em relação à outra fração intermediária. Contudo, esses agentes ainda não conseguem ingressar nos cursos de maior prestígio, como Medicina. Semelhante à observação de Carvalhaes e Ribeiro (2019Carvalhaes, Flávio & Ribeiro, Carlos Antônio Costa. (2019), “Estratificação horizontal da educação superior no Brasil: Desigualdades de classe, gênero e raça em um contexto de expansão educacional”. Tempo Social , São Paulo, 31 (1): 195-233. Disponível em https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2019.135035.
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), de que pessoas com origem socioeconômica mais baixa se encaminham com mais frequência para cursos de menor prestígio, como os de formação de professores, serviço social, administração, tecnológicos e outros.

Implicações e limitações

Ao construirmos um espaço social brasileiro com base nos dados do Enem, encontramos configurações de classes semelhantes àquelas relatadas por Bertoncelo (2010Bertoncelo, Edison Ricardo. (2010), Classes sociais e estilos de vida na sociedade brasileira. 261 p. São Paulo, tese de doutorado em Sociologia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2010., 2013Bertoncelo, Edison Ricardo. (2013), “Classes e práticas sociais”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, 28 (81): 186-258., 2015Bertoncelo, Edison Ricardo. (2015), “Social classes in Brazil: time, trajectory and immaterial inheritance”. The Sociological Review, 63 (2): 451-479. , 2016Bertoncelo, Edison Ricardo. (2016), “O espaço das classes sociais no Brasil”. Tempo Social, São Paulo, 28 (2): 73-104. Disponível em https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2016.110534.
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). Adicionamos a essa configuração a possibilidade de ingresso no ensino superior, na forma do desempenho e do domínio da norma culta da língua, considerando uma visão alargada do conceito de capital cultural, conforme discutido por Nogueira (2021Nogueira, Maria Alice. (2021), “O capital cultural e a produção das desigualdades escolares contemporâneas”. Cadernos de Pesquisa , São Paulo, 51 (e07468). ). Assim, as desigualdades nas condições de existência, interpretadas aqui como elementos que podem compor estudos mais amplos de estratificação das classes sociais, também abrangem a dimensão das chances de sucesso no ingresso ao ensino superior. Encontramos uma classe superior com elevado volume de capitais e relativo sucesso na sua reprodução, o que lhe confere altos privilégios e a possibilidade de ingressar em qualquer curso via Enem, sendo a única classe capaz de ingressar nos cursos de maior prestígio. Uma classe inferior, marcada por um baixo volume de capitais representado pela precariedade em relação à renda, à escolaridade e à profissão parental, à posse de bens duráveis, ao domínio da norma culta e pela quase impossibilidade de ingresso no ensino superior. Seus desempenhos atingem a nota de corte de menos de 5% dos cursos disponíveis. Além de uma classe intermediária, relativamente heterogênea, marcada por níveis intermediários de capitais: uma fração mais privilegiada (ocupações não manuais e qualificadas e maior escolarização e renda familiar), que nutre algumas proximidades com a classe superior, sendo capaz de ingressar em 35,8% dos cursos superiores, mas ainda excluída dos cursos de alto prestígio; e uma fração intermediária inferior que se distingue da classe inferior pelo seu caráter urbano e uma possibilidade ligeiramente maior de ingressar no ensino superior. Essas relações indicam que o Enem pode estar atuando como um elemento de reprodução social, via educação, ao refletir e produzir condições que mantêm a estrutura do espaço social nacional. Esse caráter excludente do Enem foi criticado por Nílson José Machado, um de seus idealizadores, que afirma que a prova, ao se transformar em um vestibular, perdeu seu objetivo principal, o de avaliar a qualidade do ensino médio (Terra, 2013Terra. (2013), “Ranking do Enem: exame não mede qualidade do ensino, diz professor”. Portal Terra, 25/10. https://www.terra.com.br/noticias/educacao/enem/ranking-do-enem-exame-nao-mede-qualidade-do-ensino-diz-professor,a9dad2204afe1410VgnVCM5000009ccceb0aRCRD.html
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). Com base em Bourdieu (2015Bourdieu, Pierre. (2015), “A escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura”. In: Bourdieu, Pierre; Nogueira, Maria Alice & Catani, Afrânio (orgs.). Escritos de educação. Petrópolis, Vozes.), podemos afirmar que ao tratar todos como iguais, por mais desiguais que sejam os estudantes, o vestibular sanciona as desigualdades frente à escola e à cultura e reproduz as estruturas de dominação e distinção social. Isso reforça a tese de que há uma profunda estratificação social e hierarquização entre os cursos desse nível de ensino no Brasil, como aponta a literatura.

A originalidade deste estudo consiste no tratamento dos dados, buscando uma compreensão alargada do capital cultural (Nogueira, 2021Nogueira, Maria Alice. (2021), “O capital cultural e a produção das desigualdades escolares contemporâneas”. Cadernos de Pesquisa , São Paulo, 51 (e07468). ), de modo a incluir elementos como o capital linguístico na análise; além de dialogar com a literatura de estratificação social que adota a perspectiva bourdiana e outros referenciais no sentido de construir as posições distintivas na estrutura social sem considerar a primazia de nenhuma característica e identificando suas relações na topologia social produzida pela ACM. Desta forma, esperamos contribuir para os estudos sobre a distinção no contexto nacional contemporâneo em relação ao sistema educacional, especificamente sobre o acesso ao ensino superior, demonstrando a fecundidade da interpretação bourdiana para explicar as marcas da origem social na escolarização dos sujeitos. Os resultados apresentados reforçam a necessidade de investir em medidas como políticas de ações afirmativas que sejam efetivas e abrangentes, para reduzir as profundas desigualdades de acesso ao ensino superior e ampliar as possibilidades de ingresso para estudantes de classes sociais desfavorecidas. Outra implicação relevante diz respeito à estratificação horizontal na escolha dos cursos: com esta pesquisa constatamos que os cursos de maior prestígio, isto é, os mais distintivos, são acessíveis a uma minoria, e resta à maior parte dos estudantes a opção por cursos menos seletivos, ou seja, as carreiras com menor chance de ascensão social.

Apesar disso, reconhecemos limitações nas análises realizadas, particularmente em termos metodológicos, por utilizarmos dados secundários, quais sejam, os microdados do Enem. Outra limitação, junto à utilização de um questionário não planejado para esta pesquisa, foi não contemplarmos nas análises discussões de gênero, etnia e idade. Além disso, nossa amostra é composta por estudantes concluintes do ensino médio em 2019 que prestaram o Enem, excluindo muitos jovens da mesma idade que não realizaram o exame. No entanto, pela importância da prova e sua abrangência, ainda assim conseguimos reunir um elevado número de representantes em cada uma das classes. Entendemos que a perspectiva relacional, objetiva e multidimensional do espaço social, pautada na concepção de classe bourdiana, revelou novas características estruturantes e estruturadas das classes, com detalhes mais sutis e maior poder explicativo sobre as práticas sociais quando comparada a um modelo de estratificação a priori e generalista.

Diante destes resultados, acreditamos ter contribuído com o debate acadêmico contemporâneo que parte das considerações de Bourdieu (2007a Bourdieu, Pierre. (2007a), A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo, Porto Alegre, Edusp; Editora Zouk.) para enfrentar o desafio de desenvolver novas análises teóricas e empíricas sobre gosto, cultura e práticas das diferentes classes sociais. Empiricamente pudemos explorar dados de um grande volume de estudantes brasileiros, embora tenhamos enfrentado limitações quanto à natureza das questões presentes no Enem. Além disso, entendemos que a problemática da estratificação social brasileira persiste e, embora tenhamos buscado estabelecer um diálogo com essa literatura, reconhecemos a permanência de diversos desafios para a literatura sociológica brasileira no que tange ao reconhecimento de hierarquias sociais que configuram classes em relação ao campo do poder e ao campo das classes sociais, de acordo com a perspectiva bourdiana. O próprio Bourdieu (2013)Bourdieu, Pierre. (2013), “Séminaires sur le concept de champ, 1972-1975”. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, Paris, 5 (200): 4-37. reconheceu a dificuldade de operacionalização do conceito de campo, e quando nos propomos a investigar campos tão abrangentes quanto o das classes sociais os desafios são ainda maiores. Em nosso grupo, temos nos dedicado à compreensão e à mobilização deste conceito, explorando desenvolvimentos empíricos e estatísticos das proposições bourdianas que nos ajudem a captar a realidade social hodierna. Entendemos que estudos mais amplos, mobilizando o conceito de campo das classes sociais, são necessários e exigiriam a mobilização de dados empíricos nacionais mais amplos e com questões que permitissem superar a substancialização de elementos classicamente entendidos como capitais ao identificar, de forma relacional, quais são os capitais efetivamente em disputa e como eles se materializam no nosso contexto social e histórico. Por outro lado, consideramos que os elementos mobilizados em nosso estudo têm grande potencial para compor essas análises mais amplas sobre a estratificação social brasileira, contribuindo principalmente para as questões que concernem à sociologia da educação.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Set 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    31 Jul 2021
  • Aceito
    08 Fev 2022
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