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Coleções colaborativas. Um espaço de dois universos

Collaborative collections: a space of two universes

Resumo

Neste artigo estudamos a produção de fronteiras simbólicas e sociais valendo-nos das coleções de roupas realizadas entre marcas de luxo e de fast fashion. Elas são divulgadas como democratização do luxo, já que supostamente facilitam o acesso a esses tipos de bens. Nossa análise sobre as colaborações entre a fast fashion Riachuelo e as marcas de luxo Versace e Karl Lagerfeld mostra, contudo, que essas colaborações não embaralham esses universos e seus consumidores. Identificamos uma unificação simbólica do mercado de luxo, a consequente expansão transclasse do reconhecimento de elementos estabelecidos como distintivos e o estabelecimento de hierarquias que mantêm as fronteiras sociais entre as classes.

Palavras-chave:
Consumo; Distinção; Luxo; Fast fashion; Moda

Abstract

In this article we study the production of symbolic and social boundaries from the collections of clothing made between luxury and fast fashion brands. They are publicized as the democratization of luxury since they supposedly facilitate access to these types of goods. Our analysis of the collaborations between fast fashion Riachuelo and the luxury brands Versace and Karl Lagerfeld shows, however, that these collaborations do not confuse these universes and their consumers. We have identified a symbolic unification of the luxury market, the consequent expansion across the recognition of elements established as distinctive, and the establishment of hierarchies that maintain social boundaries between classes.

Keyword:
Consumption; Distinction; Luxury; Fast fashion; Fashion

Introdução

Este artigo1 1 Aproveitamos o espaço para registrar nossos agradecimentos, pelas trocas, ideias e debates, aos colegas do Grupo de Estudos em Bourdieu da Unicamp (Gebu), do qual o autor e a autora deste artigo fazem parte. reflete acerca da produção de fronteiras simbólicas e de seus efeitos no espaço social, com base na análise das coleções colaborativas (CCs) na moda. As CCs são uma categoria de co-branding, termo utilizado pelo marketing para descrever a aliança pontual de duas ou mais marcas na criação de um produto ou serviço. As marcas envolvidas podem ser de setores diferentes, como foi por exemplo, a aliança entre a plataforma de streaming de música Spotify e o serviço de transporte por aplicativo Uber na criação de um serviço no qual o usuário poderia controlar a música ao longo de sua viagem; ou de um mesmo setor, como é a parceria entre a marca de chocolates Kopenhagen com a rede de fast-food McDonald’s na venda de sorvetes. Neste texto analisaremos uma categoria de co-branding que envolve marcas do setor do vestuário: as coleções colaborativas entre fast fashions e marcas de luxo.

Ainda que estejamos falando de marcas que produzem e comercializam peças de roupas, é notável que suas respectivas posições no campo da moda são praticamente opostas. As marcas de luxo detêm historicamente o poder de legislar em matéria de vestuário e de “bom gosto”, estabelecendo definições sobre o que seria uma moda “legítima” e de como “se vestir bem”. Para tanto, estabelecem uma série de estratégias (Kapferer, 1993Kapferer, Jean-Noël. (1993). Luxes, marques et griffes, confusion préjudiciable. La Revue des marques/Prodimarques, 1.) para tornar seus produtos raros, exclusivos e altamente disputados. As fast fashions não disputam essa legitimidade, nem se preocupam com a raridade dos produtos que comercializam. Desde que surgiram, na década de 1990, voltam-se para a confecção e a venda de peças de roupas de forma massificada e rápida, com distribuição em larga escala, por um preço baixo. Ou seja, enquanto as marcas de moda garantem sua legitimidade na rarefação de seus produtos, as fast fashions buscam sua massificação. É nessa diferença que reside o improvável das CCs: na co-branding que analisamos vemos a aproximação do que deveria estar absolutamente separado na produção de peças de roupa. Para falarmos como Durkheim (1996Durkheim, Émile. (1996), As Formas Elementares da Vida Religiosa. São Paulo: Martins Fontes.), as CCs parecem estabelecer a mistura do sagrado (o luxo, o ordinário acrescido de valor) e o profano (o fast fashion).

Essa oposição é percebida na primeira parceria do tipo, entre a fast fashion sueca H&M e o criador (e, na época, responsável pelas criações de moda de três marcas de luxo) Karl Lagerfeld, de 2004. Em seu vídeo publicitário2 2 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=9NYGtjVXcmw. Consultado em 10/03/2021. vemos dois homens conversando sobre o anúncio da CC em questão. Enquanto eles trocam frases como “é difícil acreditar que ele está fazendo isso” e “mas é mesmo verdade?”, algumas cenas são entrepostas. Todas elas representando, de diferentes formas, pessoas de alto poder aquisitivo completamente perplexas, quando não desesperadas, a respeito de tal coleção. O efeito de tal aliança, até então interdita pelas regras do campo da moda, adquire ares cômicos no vídeo: pessoas chorando, vendendo suas casas, gritando com outras e pulando de pontes ao ficarem sabendo da existência da CC. No Brasil, onde a H&M não tem nenhuma loja, as CCs tiveram início alguns anos depois, encabeçadas por duas fast fashions. A C&A, que, apesar de ser uma empresa holandesa, possui muitas lojas no país, já se aliou a nomes considerados relevantes no campo da moda, como Stella McCartney (2010) e Roberto Cavalli (2013), além de marcas de estilistas brasileiros como Reinaldo Lourenço (2009), Iódice (2014) e Alexandre Herchcovitch (2016). A outra, que possui um histórico maior de coleções colaborativas, e que, portanto, terá nossa atenção no presente artigo, é a brasileira Riachuelo. Suas CCs com marcas de luxo e estilistas passaram a ser mais regulares a partir de 2010, ano da coleção realizada com o estilista Oskar Metsavath, da marca brasileira Osklen. Sua primeira parceria internacional, com a marca de luxo italiana Versace (que também se aliou com a H&M em 2012), ocorreu em 2014; enquanto a segunda, de 2016, contou com a participação daquele que foi pioneiro nesse movimento, Karl Lagerfeld.

Na medida em que pretendem vender o luxo e o fast fashion ao mesmo tempo, os promotores desse tipo de colaboração afirmam que o fato de haver uma expansão de classe consumidora do luxo (da elite para as classes médias e populares) denotaria uma democratização do luxo. Tais parcerias demonstrariam que o luxo se tornou acessível e, como tal, independente da classe a que o indivíduo pertence. O vídeo publicitário que mencionamos acima também deixa isso claro em duas cenas: ao afirmar, no início, que é muito mais valioso se ter uma “floresta” (melhor ter muitos consumidores) do que um “jardim” (do que um número restrito); e ao concluir que na CC o importante não é o preço (que é, como veremos, bem menor em relação ao praticado normalmente pelas marcas de luxo), mas sim o “bom gosto”.

Contudo, se essas colaborações aproximam marcas de universos opostos, elas não embaralham esses universos. Veremos aqui como as diferenças entre marcas de luxo e de fast fashion são firmemente mantidas, assim como os consumidores de luxo e aqueles das coleções colaborativas. Assim, se as tradicionais fronteiras que opunham as classes em relação ao consumo são desfeitas, outras imediatamente são postas, mantendo a diferenciação de marca e de classe relacionada. Isso leva a dois efeitos que analisamos neste artigo: em primeiro lugar a unificação de um mercado da moda, que inclui pessoas de várias classes no reconhecimento de símbolos de distinção; em segundo lugar, a separação e a hierarquização desses símbolos, o que recoloca fronteiras entre as classes sociais.

Este artigo é o encontro das pesquisas dos autores sobre cultura, distinção e classe social e tem como fundamento empírico a pesquisa3 3 “Da griffe ao fast fashion: uma análise das estratégias de produção de coleções colaborativas” (Ábile, 2019), tese defendida na Universidade Estadual de Campinas, sob orientação do Prof. Dr. Renato Ortiz. Na banca esteve a Profa. Miqueli Michetti, a quem agradecemos pelas contribuições fundamentais. realizada por uma de suas autoras. O referido trabalho envolveu a pesquisa de dados produzidos na área da história da moda, do mercado de luxo e do marketing. Somado a isso, foi feita a análise de arquivos, estatísticas e relatórios das marcas que foram objeto do trabalho. Ainda, foram realizadas entrevistas com alguns agentes, mais especificamente com a responsável pela direção de marketing da marca Riachuelo, em dezembro de 2016, e com um dos estilistas que colaboraram com a fast fashion brasileira nos anos 1990, em agosto de 2017. As informações recolhidas foram trabalhadas com materiais recolhidos na mídia, como relatos e entrevistas com esses mesmos agentes, bem como outros igualmente relevantes para o objeto. As reportagens e editoriais realizados pela mídia especializada da área de moda e marketing foram utilizados, principalmente no que se refere às coberturas de lançamento das coleções colaborativas.

O objeto de nossa análise são duas das colaborações da fast fashion Riachuelo com marcas de luxo: Versace (de 2014) e Karl Lagerfeld (de 2016). Com base nelas, demonstraremos a existência de novas fronteiras simbólicas entre o luxo e as fast fashions e seus efeitos no estabelecimento de fronteiras sociais, ou seja, na divisão de grupos sociais em razão de suas práticas de consumo e gostos. Na primeira parte, apresentamos a crença do campo em uma suposta “democratização” do luxo presente nos discursos dos agentes da moda e do marketing. Supõe-se, com esse termo, que o luxo não mais estabelece fronteiras entre as diferentes classes sociais, sendo as CCs a comprovação disso. Argumentamos, ao contrário, que as colaborações só são possíveis porque as fronteiras entre luxo e fast fashions são rígidas e intransponíveis. Na segunda parte, entramos nas próprias lojas de fast fashion para analisarmos como nelas novas fronteiras são formadas, separando as CCs e as coleções regulares da Riachuelo. Na última parte observamos que a suposta democratização é, na verdade, uma unificação do mercado da moda e do luxo, o que significa uma expansão pelas classes sociais do reconhecimento dos valores estabelecidos pelo luxo. Ao mesmo tempo há uma hierarquização entre os símbolos presentes neste mercado, sendo que as marcas de luxo continuam detendo o monopólio do estabelecimento do “bom gosto”. Isso reverbera em fronteiras sociais bem estabelecidas, de maneira que os consumidores das diferentes classes continuam não se misturando.

As fronteiras entre o luxo e as coleções colaborativas

É marcante a expansão do luxo nas últimas décadas e como ela se dá em diversos níveis. Seja pelos canais de tv a cabo ou aberta, seja pelas revistas, redes sociais, sites de estilos de vida etc., o luxo, ao menos virtualmente, invade nosso cotidiano. Se há alguns anos seus produtos eram pouco conhecidos - ao menos pouco vistos - por uma grande parcela da sociedade, hoje os resultados de uma busca na internet com termos tão vagos quanto “produto de luxo” nos oferecem uma ampla gama de vídeos, reportagens e imagens sobre o processo de compra, o preço, as especificações, a embalagem, entre outros detalhes dessa categoria de objeto. O luxo também se torna mais global. Como mostrou Renato Ortiz, se há uma expansão geral do consumo de objetos de luxo, ela tem maior destaque em novos centros, em especial a China, a Índia e as Américas (Ortiz, 2019Ortiz, Renato. (2019), O Universo do luxo. São Paulo: Alameda., pp. 15-16). Como diria Appadurai (1996Appadurai, Arjun. (1996), Modernity at Large. Minneapolis: University of Minnesota.), as marcas de luxo se inserem em um “fluxo cultural global” formando uma paisagem de símbolos compartilhada globalmente.

Esse conjunto de formas de expansão é utilizado por alguns autores e agentes do próprio universo do luxo como justificativa para uma suposta “democratização”, que surge vinculada à ideia de um “novo luxo”. Como mostramos em outro lugar (Nicolau Netto e Miraldi, 2017Nicolau Netto, Michel & Miraldi, Juliana Closel. (2017), “Turismo de luxo: a produção do destino e a denegação do social”. Revista Pós Ciências Sociais, 14(28): 191-218. http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/rpcsoc/article/view/7300. Consultado em 10/03/2021.
http://www.periodicoseletronicos.ufma.br...
), esse é um discurso comum entre tais agentes. Uma autora da área, por exemplo, afirma que:

O velho luxo era sobre atributos, qualidades e características do produto, e muito de seu apelo derivava do status e do prestígio. O novo luxo define a categoria a partir do ponto de vista do consumidor. Os consumidores do novo luxo de hoje focam na experiência do luxo incorporada nos produtos e serviços que compram, não na propriedade ou posse em si. Assim, o novo luxo é sobre a experiência do luxo a partir da perspectiva do consumidor, onde o velho luxo permanece focado no tradicional status e prestígio ideal do luxo (Danziger, 2005Danziger, Pamela. (2005), Let them eat cake: marketing luxury to the masses - as well as the classes. USA: Dearborn Trade Publishing., p. 7).

A respeito de nosso objeto, a referência ao luxo como algo voltado para além da elite é algo recorrente: tal ponto foi explorado não só na publicidade da coleção Karl Lagerfeld for H&M, como nos próprios anúncios das parcerias da Riachuelo. No caso da Versace, a CC foi considerada por alguns jornalistas como uma das “maiores revoluções da moda brasileira” exatamente por comercializar as criações de uma marca de luxo dentro do espaço físico das fast fashions, com uma média de preço mais próxima àquela praticada por essas redes, do que àquelas praticadas pelas marcas de luxo. Da mesma forma, a coleção com Lagerfeld teve a seguinte manchete em uma revista de grande circulação entre o público jovem: “Sim, você vai poder comprar peças desenhadas pelo todo-poderoso da Chanel a partir de R$ 49,90!”4 4 Ver em: https://capricho.abril.com.br/moda/veja-todos-os-looks-da-colecao-do-karl-lagerfeld-para-a-riachuelo/. Consultado em 10/03/2021. Mesmo quando a empresa inaugurou uma filial na Rua Oscar Freire, em São Paulo, endereço conhecido por reunir as maiores marcas de luxo na cidade, seus representantes afirmaram que assim eles davam “mais um passo rumo à verdadeira democratização da moda”5 5 Em 2013 a Riachuelo abriu uma loja na rua Oscar Freire, em São Paulo, conhecida como um dos endereços que concentram as maiores lojas de luxo da cidade. .

Essa narrativa de democratização da moda pressupõe a não existência de uma relação direta entre consumo e classe, ou seja, o consumo de determinado bem não seria mais determinado pela classe de origem do consumidor, tampouco seria forma de produção de diferença entre as classes. É isso que notamos na fala de nossa entrevistada, responsável pelas coleções colaborativas da Riachuelo com marcas de luxo6 6 Entrevista realizada em dezembro de 2016. :

Eu acho que hoje bolso não define cabeça mesmo, antigamente era tudo muito segmentado, classe A gostava de uma coisa, queria tal coisa, classe B, C, tal. Hoje em dia a mesma informação está aí para todo mundo e isso é maravilhoso! Então as pessoas conseguem se alimentar da mesma fonte de informação e terem as mesmas demandas. (informação verbal).

Em outro momento, a entrevistada afirma que:

Aí a gente percebeu realmente que o mundo mudou totalmente, que existe essa quebra muito grande, principalmente do bolso não definir as pessoas. A gente encara isso muito como nossa missão assim, de trazer um design acessível, fazer uma moda acessível, fazer aquela mulher que não tem o dinheiro para se vestir dos pés à cabeça com uma marca, ou nem com uma peça de marca, mas ela está bem, ela está linda, ela está se sentindo bem. E acho que essa é muito nossa missão […] (informação verbal).

Nossa entrevistada entende que há a passagem de um mundo no qual o gosto se baseava na segmentação das classes, para um no qual o gosto, como do luxo, pode ser compartilhado por pessoas de diferentes classes. Ou seja, não haveria mais uma fronteira que separaria os consumidores, que agora se misturariam como se vivessem em uma grande feira livre. Se o dinheiro pode ser um entrave para a realização desse gosto, a Riachuelo propõe que o obstáculo seja ultrapassado pelas coleções colaborativas (CCs). Seriam elas que levariam o luxo para as classes mais baixas. De fato, as CCs permitem que pessoas que talvez nunca teriam condições econômicas de comprar uma roupa de Karl Lagerfeld possam adquirir uma peça Lagerfeld for Riachuelo. Seria isso, contudo, bem traduzido pela palavra democratização? Tal consumo significaria mesmo que os indivíduos não são mais separados pelo que podem ou não comprar? Caso isso seja verdadeiro, as CCs não representariam somente o acesso dos consumidores ao luxo, mas também o apagamento das distinções entre os consumidores de tais coleções e aqueles que consomem objetos das próprias marcas de luxo. Em outras palavras, as fronteiras entre luxo e fast fashion, e entre seus consumidores, estariam deixando de existir.

Figura 1
Comparação de Karl Lagerfeld for Riachuelo com as peças originais da marca de luxo. Montagem realizada com imagens de arquivos da Riachuelo (à esquerda) e imagens publicadas pelo site da marca Karl Lagerfeld (à direita).

Mas a própria divisão de trabalho entre as marcas em colaboração já permite perceber as fronteiras simbólicas entre elas. Ela funciona da seguinte forma: (i) a marca de luxo é a responsável por toda a criação e desenho das peças. A inspiração e/ou o tema da coleção, por sua vez, são sempre autorreferenciados, isto é, é a própria marca de luxo que é representada. Isso se nota pelo ostensivo uso do nome da marca nas peças, ou de seu logo, ou de referências facilmente identificáveis por quem já está familiarizado com a marca de luxo, como cores, modelos, estampas e materiais, e até mesmo releituras das peças mais famosas (Figura 1). A proposta para cada peça é então (ii) entregue a uma equipe de marketing e de estilismo da fast fashion que, baseando-se em suas pesquisas internas, (iii) indica possíveis mudanças nos desenhos das roupas que a marca de luxo propôs. O objetivo não é interferir no desenho da peça, mas baratear seus custos e torná-la um produto comercial7 7 Tal categoria nativa é utilizada para descrever produtos que são considerados de “venda fácil”, ou seja, produtos que chamam a atenção dos consumidores devido a uma mistura de características específicas, dentre as quais podemos citar o preço e a estética, por exemplo. . Nota-se, portanto, que entre a entrega do desenho e a confecção das roupas existe uma tentativa de tradução das peças originais dessas marcas para as possíveis peças das CCs. Isto é, existe uma linguagem estética a ser seguida que consiste no deslocamento de símbolos específicos de uma peça para a outra, e é isso que torna a tradução possível. Finalmente, uma vez chegado em um acordo, (iv) a fast fashion responsabiliza-se pela produção, provas e finalização da peça (que envolve uma cadeia de atividades terceirizadas, que não será tratada aqui), que será vendida em algumas de suas lojas. Nessa fase de conclusão, é (v) acoplada na peça uma etiqueta que faz referência à marca de luxo, normalmente através de menções que seguem o padrão marca de luxo for fast fashion, como Versace for Riachuelo ou Karl Lagerfeld for Riachuelo por exemplo (Figura 2).

Figura 2
Comparação de Versace for Riachuelo com as peças originais da marca de luxo. Montagem realizada com imagens de arquivos da Riachuelo (à esquerda) e imagens publicadas pelo site Vogue France (à direita).

Essa divisão do trabalho é rígida e não poderia existir com funções invertidas entre as marcas. As marcas de luxo detêm a autoridade de criar peças de roupas que são lidas como socialmente distintivas - algo que a fast fashion não consegue fazer e nem tem a intenção. Portanto, seria inconcebível que a marca fast fashion ocupasse a função (i), ou seja, fosse responsável pelo desenho da roupa. Também seria inconcebível que a etiqueta acoplada nas peças colaborativas marcasse o processo invertido e fosse uma coleção especial da fast fashion for a marca de luxo. Com isso se nota que a marca de luxo se especializa em todo trabalho simbólico (ou seja, tudo o que acresce valor à roupa é consequência do trabalho da marca de luxo) da parceria, enquanto a marca fast fashion se especializa no trabalho material, de produção e comercialização das peças. Como as CCs se diferenciam de produções regulares das fast fashions pelo trabalho simbólico, a própria intenção da marca de fast fashion é apagar seu trabalho, dando-se a impressão de que todo o trabalho foi conduzido pela marca de luxo. Observa-se que não há mistura entre o trabalho da fast fashion e da marca de luxo. Em termos simbólicos não há colaboração: não se propõe em nenhum momento que a peça da cc teve qualquer contribuição estética da fast fashion, mas apenas da marca de luxo. O seguinte trecho da entrevista com a responsável pelas CCs na Riachuelo reafirma esse ponto: “[…] A gente realmente respeita o dna, recebe aquilo [o desenho] e vai fazer da forma mais próxima possível. […] realmente a gente se mete o mínimo possível, deixa fluir e procura executar exatamente o que recebeu.” (informação verbal, grifos nossos).

Dessa forma percebemos que as colaborações são possíveis não porque misturam fast fashion e luxo, mas, ao contrário, porque as mantêm rigidamente separadas. Não há confusão entre as marcas envolvidas e as fast fashions só conseguem mobilizar o repertório simbólico do luxo (seja suas marcas, seus designs, o formato dos desfiles, o visual merchandising da loja ou sua estratégia comercial) porque as fronteiras entre elas e as marcas de luxo continuam evidentes. Se houvesse o apagamento das fronteiras e as peças das CCS de fato se misturassem com aquelas de luxo, sequer haveria a possibilidade do ganho simbólico transferido do luxo para o fast fashion. Afinal, tal ganho se dá porque o luxo se encontra em outro lugar, distante, onde se valoriza como o inacessível e o exclusivo. É lá que se produz sua valorização e ela só pode ser momentaneamente transferida para a fast fashion porque aquele lugar - o universo do luxo, como chama Ortiz (2019Ortiz, Renato. (2019), O Universo do luxo. São Paulo: Alameda.) - permanece do lado de lá.

Também notamos que não há o embaralhamento das marcas - de luxo e de fast fashion - quando observamos como elas se posicionam no mercado e o público a que se dirigem. Tomando a Versace como exemplo, a empresa se posiciona como um “símbolo do luxo italiano em todo mundo”8 8 Ver em: https://www.versace.com/international/en/about-us/company-profile.html Consultado em 10/03/2021. e “se orgulha em ser uma marca elegante que comercializa para os grupos de consumidores privilegiados”9 9 Ver em: https://issuu.com/mollierobinson/docs/mollie_robinson_ Consultado em 10/03/2021. . Isso está no campo oposto da Riachuelo, que afirma ter como “objetivo democratizar a moda, vendida a preços acessíveis”10 10 Ver em: https://www.riachuelo.com.br/a-empresa/historia Consultado em 10/03/2021. e define que seu posicionamento de marca é trabalhar

[…] o conceito de democratização da moda, oferecendo para as diversas classes sociais todos os atributos da moda a preços competitivos, com o intuito de atrair o consumidor do mercado informal para o formal, além de disponibilizar condições de pagamento específicas para o nível de renda de seus clientes (Guararapes, 2018Grupo Guararapes. (2018), Formulário de Referência.).

É possível, contudo, se pensar que a colaboração entre as duas marcas aproxima seus consumidores? Se olharmos para quem é o público das CCs e o público da marca de luxo envolvida na cc percebemos o grande abismo. Como exemplo, peguemos apenas a forma como a Versace anuncia seu consumidor alvo. Em primeiro lugar, a marca mira “mulheres de 25 a 44 anos”. Dentro desse grupo, elas são segmentadas para que a marca enfoque “mulheres de classe média alta [upper middle class] com rendas discricionárias entre US$100.000 e US$150.000, com rendas familiares de até US$450.000”. No mesmo relatório, a marca traça um consumidor modelo. “Nosso consumidor é Emília Eckhardt. Ela é uma mulher de 38 anos, casada e com carreira. Ela trabalha como diretora de arte e seu marido é cirurgião plástico. Eles moram em Nova Iorque. O salário dela é de US$150 mil anuais. Seu marido ganha um pouco mais de US$600.000 anuais”11 11 Ver em: https://issuu.com/cherishriley/docs/versace_brand_extension_final Consultado em 10/03/2021. . Se convertermos os ganhos de Emília e marido para reais, temos que em 09/02/2021 ela ganharia R$815 mil anuais e o casal teria uma renda de mais de R$4,5 milhões. O casal está entre o 1% mais rico em quase todos os países do mundo: com sobras nos EUA (mais de US$485 mil) e ainda mais no Brasil (mais de US$176 mil)12 12 Ver em: https://www.bloomberg.com/news/features/2020-02-07/how-to-be-in-the-richest-1-around-the-world Consultado em 10/03/2021. .

Como ponto de comparação, coloquemos tal renda em escala de classe por rendimento, pois é assim que a Riachuelo foca seu público. A classe A no Brasil é definida pelo IBGE como aquela cujas rendas de todos os membros de uma família somam mais de 20 salários-mínimos por mês, ou seja, 240 SMs por ano. Em 2021, isso significa uma renda anual de R$264.000. Ou seja, até a mulher solteira mais “pobre” do público-alvo da Versace (a que ganha US$100.000 anuais, ou seja, R$543.000) estaria no topo da classe A brasileira. Isso difere radicalmente do público da Riachuelo e das CCs. Segundo nossa entrevistada, a maior parte do público da loja e das CCs está na classe C (confirmaremos isso abaixo com informações do relatório da Riachuelo), o que significa que suas famílias possuem renda entre R$52.800 e R$132.000 por ano. Ou seja, o topo do público-alvo da Riachuelo possui uma renda 35 vezes menor que a do casal Eckhardt.

Figura 3
Orientação de visual merchandising da Riachuelo a respeito da exposição das peças de sua coleção com a Versace.

Apenas pela observação da renda tem-se que os públicos das CCs e das marcas de luxo se distanciam radicalmente, algo que certamente se radicalizaria se fôssemos observar estilos de vida. Isso significa que as pessoas que adquirem as peças colaborativas são aquelas que não têm acesso às peças da marca de luxo. Da mesma forma, contudo, as peças da CCs não entram no circuito dos consumidores de luxo. Se encontramos a Versace na Riachuelo, é impossível encontrar a Riachuelo em uma loja da Versace. Isso significa que quem adquire Versace for Riachuelo tende a não ser a pessoa que adquire a “Versace for Versace”. A fronteira, assim, está estabelecida e os públicos das CCs e das marcas de luxo rigidamente separados. O trânsito entre os públicos seria a profanação do luxo e é interditado. E é justamente a não confusão de público entre um universo e outro, junto de outras estratégias, que garante que a marca de luxo não perca seu poder simbólico (seu mana) ao se juntar à marca de fast fashion. Ao contrário do discurso da democratização, a aquisição de peças de coleções colaborativas não leva à inserção no luxo, mas denota, na verdade, a continuidade da exclusão daquele que a adquire de fazer parte do núcleo do universo do luxo.

Fronteiras internas nas fast fashions

Além de não significarem a superação das fronteiras entre as marcas de luxo e de fast fashion, as CCs produzem fronteiras internas nas próprias fast fashions. Se é fundamental que não haja confusão entre fast fashion e luxo, também as CCs não podem ser confundidas com as coleções regulares das fast fashions. Uma série de estratégias é empreendida para tanto.

A primeira é a seleção das lojas que receberão as CCs. De fato, as coleções não estão presentes em todas as lojas, mas especialmente nas filiais estrategicamente escolhidas pelos responsáveis da marca. Os números a esse respeito são reveladores. Na época de sua coleção com a Versace, a Riachuelo contava com 257 filiais. Dessas, 170 foram selecionadas para receber as peças da parceria. Ou seja, 34% das lojas não entraram no circuito. Em 2016, já com 290 lojas, a coleção ficou restrita a 139 endereços diferentes; mais da metade das lojas, portanto, foram excluídas. A escolha das lojas que recebem as coleções, segundo a direção da Riachuelo, se relaciona com o histórico de volume de vendas das filiais. Contudo, também é fácil notar que entre suas razões está a localização desses pontos de venda: o circuito mais próximo de um consumo de alto padrão tende a ter mais lojas com a presença das CCs, com destaque para as filiais em Shoppings Centers e ruas de comércio de luxo. Para se ter uma ideia, 11 lojas receberam as duas CCs da Riachuelo (Versace e Lagerfeld) na cidade de São Paulo; nove delas em Shopping Centers, uma na Rua Oscar Freire e outra na Avenida Paulista13 13 A filial da Oscar Freire foi inaugurada em 28/11/2013, ou seja, no ano anterior da CC com a Versace. É evidente que o histórico de venda não explicaria sua escolha. .

Quando entramos nas lojas em que há as CCs, notamos novas separações relativas à exibição e à permanência das peças das CCs e das coleções regulares das fast fashions. As peças regulares são exibidas de acordo com uma lógica de expectativa de consumo: supõe-se que o consumidor de uma peça possa tender a comprar outra peça e, por isso, elas estão próximas no cabide. Ainda que haja uma preocupação com a estética da exibição nessas lojas, é frequente encontrarmos roupas de cores e estampas muito diferentes figurando juntas em um mesmo aparelho expositor. O contrário ocorre com as peças das CCs. Como a Figura 3 nos mostra, a coordenação entre cores e estampas não só é previamente estudada pelas equipes de visual merchandising da empresa, como também sua manutenção é uma prioridade.

Nas palavras de nossa entrevistada:

[As coleções colaborativas designam] um momento que você consegue apresentar aquela coleção de uma vez, com força, porque no dia a dia do varejo é assim […], [se] está faltando isso aqui na loja, você tinha um coordenado de 4 estampas, mas se está precisando de vestido, manda o vestido e quebra o coordenado. Isso acontece todos os dias, é difícil […] você conseguir manter aquela história que foi concebida no começo… ou então […] uma peça atrasou, você vai segurar o coordenado? Não vai. E quando é uma coleção [colaborativa] assim, em um ponto de venda, você segura, né? Então acho que ela chega com muita força, é uma coleção feita com muito cuidado, tem muitas provas de roupas, algo que claro que o ritmo do varejo nem sempre permite, né? (informação verbal, colchetes nossos).

Essas diferenças são complementadas por outras estratégias: as CCs ganham materiais especiais que são usados durante o lançamento e venda da coleção, como cabides específicos, adesivos, sinalizações da loja, etiquetas promocionais, códigos de autenticidade, sacolas etc. Da mesma forma, a localização das peças na loja se difere. As peças regulares das fast fashions estão espalhadas pela loja, em várias combinações entre si e não possuem uma localização fixa. Já as peças das CCs devem permanecer agrupadas, concentradas em um determinado lugar que, na maioria das vezes, é a vitrine e a entrada da loja. Ou seja, desde a estética de exposição até a disposição na loja, tudo é feito para que as CCs e as coleções regulares não se misturem (afinal, elas não fazem parte de um mesmo universo), ao mesmo tempo em que as CCs ganhem maior destaque (elas representam universos não apenas diferentes, mas hierarquizados).

Outra separação entre as coleções se refere à própria disponibilidade. As peças regulares da fast fashion seguem uma dinâmica de reposição diretamente ligada à demanda. Ou seja, assim que um produto alcança uma quantidade mínima em estoque de uma loja, a matriz é acionada para enviar novos exemplares. O mesmo não ocorre com as CCs, em que a reposição é pensada de forma estratégica para produzir escassez. De fato, o número de peças produzidas para as CCs é consideravelmente menor do que o produzido nas coleções regulares. Mas há algumas regras adicionais que buscam a rarefação. Uma delas se refere ao tempo de permanência das peças na loja. Ao contrário das peças regulares, que ficam expostas até serem vendidas, as peças das CCs são exibidas por um tempo determinado no contrato com a marca parceira. Após esse período, as peças são retiradas da loja e não podem mais ser comercializadas. A diferença de tempo entre os eventos de pré-venda e o período da venda em si demonstra como a disponibilidade das CCs é propositalmente reduzida: no caso de Karl Lagerfeld for Riachuelo, a coleção foi anunciada dia 13 de janeiro de 2016, as peças foram expostas nas vitrines em 18 de abril e suas vendas só foram permitidas em 27 do mesmo mês, o que significou quase 10 dias de exposição de uma peça que não podia ser vendida. O término da venda, por sua vez, foi previsto para dia 16 de maio, mesmo que o estoque não tivesse acabado, podendo terminar antes se não houvesse mais estoque. Ou seja, apesar dos mais de três meses de intensa divulgação, as roupas só ficaram disponíveis para compra durante 20 dias. Algo similar ocorreu na coleção Versace for Riachuelo, cujos “boatos” da colaboração (difundidos pela maior publicação de moda do país, a Vogue Brasil) surgiram em janeiro de 2014, mas o início das vendas foi dia 7 de novembro de 2014, com término em 31 de dezembro do mesmo ano.

Dessa forma, a incitação ao que é restrito é uma estratégia central de tais coleções; inclusive, algumas CCs permitem a compra de somente uma peça por pessoa. O jogo de divulgar a disponibilidade e depois restringir o acesso ao produto é, portanto, um padrão. Por exemplo, logo no lançamento de Karl Lagerfeld for H&M, ao se esgotar grande parte do estoque, a fabricação de mais peças foi completamente descartada pelos executivos da fast fashion (e, mais tarde, pelo próprio Lagerfeld). Esse jogo é explicado pela diretora de marketing da Riachuelo. Segundo ela, a empresa percebeu que as coleções colaborativas só dão certo quando há um equilíbrio entre o oferecimento de um produto “bom”, isto é, que venda facilmente, que tenha também um preço “acessível”, mas que também seja extremamente pontual, bastante exclusivo e limitado, com uma divulgação “agressiva”. Sua explicação define o termo masstige - junção, em inglês, das palavras massa e prestígio - que é comumente usado pelos agentes aqui pesquisados para definir esse tipo de co-branding.

Esses aspectos denotam que tudo é feito para que haja a produção de uma rígida fronteira entre as peças regulares e as das CCs. Elas coabitam um mesmo espaço, mas não um mesmo universo. Elas quase se encostam, mas nunca se misturam. E na verdade, a não mistura, ou seja, a fronteira que as separa, é a própria condição de existência de ambas. Caso a fronteira não existisse, não existiria CC, uma vez que tudo seria a coleção regular da fast fashion. Dessa forma, as características entre ambas não “colaboram”, mas se opõem radicalmente, como se percebe em um quadro classificatório binário (Quadro 1):

peças regulares peças colaborativas Em todas as lojas Em algumas lojas selecionadas Abundantes e rapidamente repostas Estratégias de rareamento Expostas de forma espalhada pela loja Expostas de forma concentrada Expostas em locais aleatórios Expostas em vitrine e na entrada Sem ordem estética ou de cor Com ordem estética e de cor Fonte: Elaboração própria.

Esse quadro representa uma fronteira interna às lojas que permite que não haja a mistura entre as CCs e as coleções regulares da Riachuelo. Ao mesmo tempo, contudo, é também a fronteira que permite resguardar às CCs todo seu poder simbólico capaz de gerar valorização da marca Riachuelo e das próprias peças regulares. Em outras palavras, é pela manutenção das fronteiras que as CCs podem gerar uma nova classificação à Riachuelo. Começamos a perceber isso quando olhamos para a importância das CCs para a economia das fast fashions. Uma coleção entre a Target - oitava maior varejista dos Estados Unidos - e o estilista Isaac Mizzrahi, no início dos anos 2000, “gerou US$ 300 milhões no ano, segundo o New York Times reportou em uma matéria de 2008”. No mesmo período, a Target faturou apenas com roupas e acessórios US$13,5 bilhões. Ou seja, uma bem sucedida cc gerou em vendas 2,2% do faturamento total da empresa14 14 Ver em: https://ffw.uol.com.br/noticias/business/fast-fashion-as-moedas-que-estao-em-jogo-nas-colecoes-assinadas-por-estilistas/ Consultado em 10/03/2021. . As CCs da Riachuelo tampouco representam mais de 2% de seu faturamento, segundo o presidente da marca15 15 Ver em https://www1.folha.uol.com.br/saopaulo/2016/09/1813977-em-tempos-de-crise-redes-de-fast-fashion-se-transformam-em-vedetes-de-shoppings.shtml Consultado em 10/03/2021. . Ao mesmo tempo, os momentos de aumento do faturamento da empresa são atribuídos por seus gestores, ao menos em parte, às CCs. Quando em 2016 a receita líquida aumentou 10,3%, a Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo afirmou que a cc com Karl Lagerfeld “ajudou a companhia a ampliar as vendas no segundo trimestre”16 16 Ver em: http://sbvc.com.br/riachuelo-grife-luxo/. Consultado em 10/03/2021. . Ao justificar o ganho econômico em 2013 - o lucro da Riachuelo aumentou 17% no ano - o relatório da empresa aponta que o “desempenho dessas parcerias comerciais vai além do enorme sucesso alcançado em suas vendas. O ganho de imagem de moda junto a um público jovem é o trunfo gerado por tais estratégias”. O desencontro entre os dados - o aumento de lucro muito maior do que impacto direto da venda dos produtos das CCs - revelam que as CCs geram ganho econômico apenas indiretamente. Seu trabalho é, de fato, centrado no ganho simbólico. É ao valorizar a marca Riachuelo e suas peças, e não por sua venda direta, que as CCs geram ganhos econômicos.

A unificação do mercado simbólico e as hierarquias

A operação desse lucro simbólico produz ao mesmo tempo uma unificação de um mercado simbólico e novas hierarquias baseadas nas fronteiras que se estabelecem nesse mercado. Para demonstrar esse movimento complexo, primeiro notemos que as empresas de fast fashion negam qualquer separação entre seus públicos consumidores. Nós já vimos como as CCs são discursadas como uma forma de democratização, levando o luxo para as classes mais baixas. Contudo, há também o movimento contrário, no qual a democratização significaria levar as roupas da Riachuelo para as classes mais altas. O depoimento do presidente da marca é elucidativo. Perguntado sobre seu público-alvo:

Resolvemos chutar o balde desse dogma da segmentação. […] O nosso modelo de negócios permite alargar infinitamente esse universo porque, apesar de os bolsos serem diferentes, as aspirações são cada vez mais homogêneas. Simplesmente tiramos isso do nosso mapa. […] Pela primeira vez, estamos liderando com larga margem na classe A e na classe D. Passamos a Renner. Estamos empatados com ela na classe B. Na classe C, a Renner está um pouquinho na frente. Isso confirma o que um fato já apontava em 2013, quando a gente quebrou um recorde com 35 inaugurações. A 34ª inauguração foi na rua Nova de Recife, que é um formigueiro humano, talvez uma das ruas de comércio popular de mais baixa renda do Brasil. Aquela loja é belíssima. São três mil metros de área de venda. Quebrou o recorde de vendas em inaugurações. Uma semana depois, inauguramos outra na esquina da Oscar Freire com a Haddock Lobo, em São Paulo. Uma loja com metade da área, 1,5 mil metros, no ponto mais “high end” do mercado brasileiro, arrebatou o recorde da rua Nova17 17 Flavio Rocha - CEO grupo Guararapes - Riachuelo. (Revista The President dez\jan\fev\2017). Ver em: https://www.nelsonleite.com.br/assuntos/riachuelo-forca-de-um-empreendedor-qual-e-o-seu-publico-alvo/ Consultado em 10/03/2021. .

Se no discurso público a Riachuelo afirma que não diferencia as classes sociais - seus gostos são homogêneos e a marca estaria presente em todas as classes, em todas as regiões da cidade - em seus relatórios internos a situação se mostra diversa. Um estudo de 2011 demonstra que, ao contrário de uma oferta homogênea de produtos, há uma intensa divisão dos clientes (Avelar Junior, 2011Avelar Junior, Odilardo Viana de. (2011), “Estratégia de marcas próprias nas lojas de departamentos”. Rev. Ciênc. Admin. Fortaleza, 1(17): 146-179. https://periodicos.unifor.br/rca/article/view/3233. Consultado em 10/03/2021.
https://periodicos.unifor.br/rca/article...
). Por exemplo, os cartões Riachuelo, além de oferecerem crédito - o que permite às empresas lucrarem com os juros pagos pelos clientes, uma vez que elas são também financeiras - possuem justamente a função de “gerar informações de segmentação”. Em primeiro lugar, os clientes são divididos por “renda, ocupação, educação e classe social”, tendo em vista o objetivo de “desenvolver uma estratégia de segmentação em harmonia com o que [as pessoas de acordo com os critérios de segmentação] representam”. Em segundo lugar, os critérios acima atribuídos a cada cliente são reunidos com dados de “segmentação psicográfica”, ou seja, uma busca ativa para caracterizar cada fração por “personalidade, atitudes e estilo de vida”. A reunião desses dados permite que “os segmentos [sejam] identificados de acordo com características específicas de cada produto”. Em outras palavras, os produtos não são pensados indiscriminadamente para todas as classes, mas especificamente para cada classe social, reafirmando a relação entre classe e tipos/bens de consumo. Tal segmentação é identificável na própria variedade de submarcas existentes na Riachuelo, cada uma direcionada para um “tipo” de cliente. A título de exemplo, no setor feminino as submarcas da Riachuelo são separadas por sete diferentes lifestyles (estilos de vida): Pool Trendy, Pool Street, ak Urban, ak Casual, ak Glamour, Dript e Body Work.

Ao mesmo tempo em que as classes são segmentadas, os gestores das fast fashions comemoram na mídia a conquista das classes mais altas, como quando a Riachuelo atingiu, entre as lojas varejistas, a preferência de 18% da classe A, contra 15% da Renner. Contudo, seu relatório de 2017 aponta qual é seu grande público consumidor: “A Riachuelo possui como mercado-alvo os segmentos de renda C e D uma vez que a renda média mensal de seus 28 milhões de clientes é de aproximadamente R$1.700,00 (mil e setecentos reais)”18 18 Conforme http://ri.riachuelo.com.br/Download.aspx?Arquivo=ohh6/eh9jhqVKa2+hTZ9pw⇒ Consultado em 10/03/2021. .

Há uma série de contradições nas informações que demonstramos. Elenquemos para seguirmos à análise: a) há um aumento de faturamento que se atribui às CCs, mas as CCS em si representam uma parte mínima do faturamento; b) há um discurso de que a Riachuelo vende para todas as classes, mas a renda média de seu consumidor o localiza nas classes C e D; c) há a divulgação de que a Riachuelo oferta produtos homogeneamente para todas as classes, mas se esforça em segmentar a oferta pelas próprias classes.

Mas se entendemos o trabalho simbólico desempenhado pela Riachuelo e como as CCs e as classes consumidoras se relacionam, tais contradições se dissolvem. Para tanto, vamos retomar a análise de Bourdieu (1996Bourdieu, Pierre. (1996), A economia das trocas linguísticas. São Paulo: Edusp.) sobre o mercado linguístico, pois nos serve de perfeita analogia. Segundo o autor, a adoção de uma língua nacional padrão, inculcada pela escola, produz um mercado linguístico unificado, em que todos se sentem parte em igualdade, uma vez que compartilham a mesma língua. Contudo, segundo ele, isso é parte de uma crença que vela a existência de formas mais ou menos legítimas de uso da língua, sendo que o fato de a elite utilizar a forma mais legítima a permite exercer um poder sobre as outras classes. Assim, enquanto nas classes populares há uma série de restrições, mesmo inconscientes, sobre o que se pode falar, a elite se sente à vontade e livre para o uso legítimo da língua. Ou seja, uma vez unificado o mercado, internamente ele é hierarquizado, justamente porque uma hierarquia só pode ser feita se todos compartilharem a crença naquilo que a gera.

O mesmo ocorre com nosso objeto. O que observamos é que de uma língua exclusiva da elite, o luxo agora aparece como uma língua franca e, na qualidade de língua, igualmente disponível a todas as classes sociais. Se a elite sempre teve o monopólio dessa língua, observamos com as CCs que ela agora alcança as classes consumidoras de fast fashion. Outros estudos notam que ela mesmo alcança - em suas declinações - classes sociais ainda mais baixas. Ana Lúcia de Castro pesquisou os hábitos de consumo no Jardim Santo André, em Santo André, Grande São Paulo. Nove mil famílias habitavam nesse bairro entre 2009 e 2010, sendo 5799 em “núcleos de favelas” e outras 3031 em unidades habitacionais financiadas pela cdhu. Dentre os participantes da pesquisa (365 famílias moradoras em favelas e 385 em prédios do cdhu), apenas 0,5% declarou uma renda superior a três salários-mínimos (Castro, 2016Castro, Ana Lúcia de. (2016), “Sentidos do consumo e fronteiras simbólicas: uma etnografia entre grupos de baixa renda em um município da Grande São Paulo”. Etnográfica [Online]. Brasil, 1(20): 101-117. http://journals.openedition.org/etnografica/4216. Consultado em 10/03/2021.
http://journals.openedition.org/etnograf...
). Nessa população, Castro percebeu que não existe conhecimento das marcas de roupa consideradas de maior prestígio. “Quando expusemos os logos de grifes mundialmente reconhecidas e prestigiadas, apenas aquelas ligadas ao universo esportivo foram reconhecidas e identificadas pelo nome. Louis Vuitton, por exemplo, era chamada como ‘aquela bolsa’” (Castro, 2019Castro, Ana Lúcia de. (2019), “Mídia e mercado: mediações na construção de sentidos do consumo das ‘roupas de marca’”. Política & Sociedade. Florianópolis, 43(18): 224-241. https://periodicos.ufsc.br/index.php/politica/article/view/2175-7984.2019v18n43p224/42772. Consultado em 10/03/2021.
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, p. 233). Isso não significa, contudo, que a ideia distintiva de marca estivesse ausente dessa população. Contudo, para ela “roupa de marca é a da C&A e da Renner” (Castro, 2019Castro, Ana Lúcia de. (2019), “Mídia e mercado: mediações na construção de sentidos do consumo das ‘roupas de marca’”. Política & Sociedade. Florianópolis, 43(18): 224-241. https://periodicos.ufsc.br/index.php/politica/article/view/2175-7984.2019v18n43p224/42772. Consultado em 10/03/2021.
https://periodicos.ufsc.br/index.php/pol...
, p. 224).

Isso significa que se as marcas de roupa das famílias do Jardim André e as da Rua Oscar Freire não são as mesmas, essas famílias compartilham a noção de que a marca da roupa representa formas de distinção. Assim, das classes altas às baixas se torna necessário o conhecimento de um consumo que podemos chamar de estetizado. Isso nos leva a repensar as atribuições de gosto que Pierre Bourdieu fez às diferentes classes sociais. Lembremos que o autor denominou o gosto das classes populares de gosto de necessidade. Premidas pelas urgências da vida, essas classes incorporam uma disposição para uma valorização da função das coisas em detrimento da forma. Como afirma Tony Bennett, a escolha do necessário significa, segundo Bourdieu, que as classes populares não possuem “qualquer capacidade para fazer julgamentos relacionais da forma” (Bennett, 2011Bennett, Tony. (2011), “Culture, choice, necessity: a political critique of Bourdieu’s aesthetic”. Poetics, 6(39): 530-546., p. 532). O gosto de necessidade se opõe ao gosto de liberdade, que caracteriza as classes dominantes. Livres das urgências da vida, membros dessas classes tendem a valorizar a forma das coisas sobre sua função. Ou seja, seu julgamento estético valoriza aquilo que não parece necessário, nem sequer que corresponda a qualquer interesse imediato. O luxo se define justamente por essa não necessidade e, por isso, caracteriza o gosto da classe dominante (mais especificamente da fração dessa classe rica em capital econômico). Justamente, segundo Bourdieu, a oposição entre forma e função é mobilizada pela classe dominante para a classificação dos estilos de vida. Quanto mais se valoriza a forma em detrimento da função, mais a classe dominante se diferencia das classes dominadas e se classificam como superiores. Bourdieu, retomando Weber, denomina essa valorização da forma de estilização da vida. Nas palavras do autor,

[…] oposições de estrutura semelhante às que se observam em matéria de consumo cultural encontram-se, também, em matéria de consumo alimentar: a antítese entre a quantidade e a qualidade, a grande comilança e os quitutes, a substância e a forma ou as formas, encobre a oposição, associada a distanciamentos desiguais à necessidade, entre o gosto de necessidade - que, por sua vez, encaminha para os alimentos, a um só tempo, mais nutritivos e mais econômicos - e o gosto de liberdade - ou de luxo - que, por oposição a comezaina popular, tende a deslocar a ênfase da matéria para a maneira (de apresentar, de servir, de comer, etc.) por um expediente de estilização que exige à forma e às formas que operem uma denegação da função (Bourdieu, 2006Bourdieu, Pierre. (2006), A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo, Porto Alegre: Edusp, Zouk., p. 13).

A estilização da vida é, portanto, uma prática distintiva da classe dominante, uma vez que a ela - e só a ela - é dada a condição de apreciação da forma sobre a função. Tony Bennett faz uma série de críticas a Bourdieu pelo que considera um fechamento que sua noção acarreta às possibilidades de as classes populares possuírem apreciações estéticas que não sejam meramente derivadas das classes dominantes. Independente dos acertos ou erros do autor francês, a contemporaneidade impõe desafios a essa noção. A questão central que nos interessa é que a noção de estilização da vida de Bourdieu não levou em conta o papel que a cultura de consumo desempenharia. Mike Featherstone nos lembra que a boemia europeia desde o final do século xviii tentou romper a separação entre arte e vida e transformar a própria vida em uma obra de arte, tornando signo tudo a seu redor, ou seja, significação de algo que transcende sua própria utilidade. Esse projeto se encontra no século xx com a crescente importância que o consumo passa a assumir na vida cotidiana produzindo aquilo que Baudrillard (2009Baudrillard, Jean. (2009), A Sociedade de Consumo. Lisboa: Edições 70.) denominou de “sociedade de consumo”. Essa sociedade se baseia justamente na valorização do signo. Como afirma o francês, as “mercadorias não são mais definidas por seu uso, mas pelo o que elas significam. E o que elas significam é definido não pelo o que elas fazem, mas pela relação com todo o sistema de mercadorias e signos” (Baudrillard, 2009Baudrillard, Jean. (2009), A Sociedade de Consumo. Lisboa: Edições 70., p. 8). O mesmo processo é percebido por Lash e Urry (1994Lash, Scott & Urry, John. (1994), Economies of Signs & Space. London: Sage Publications., p. 4) quando afirmam que:

O que é cada vez mais produzido não são objetos materiais, mas signos. Esses signos são de dois tipos. Ou eles têm um conteúdo primordialmente cognitivo e são bens pós-industriais ou informativos. Ou têm principalmente um conteúdo estético e são o que podemos denominar bens pós-modernos. O desenvolvimento deste último pode ser visto não apenas na proliferação de objetos que possuem um componente estético substancial (como música pop, cinema, lazer, revistas, vídeo e assim por diante), mas também no componente crescente de valor-signo ou imagem incorporada em objetos materiais. Esta estetização dos objetos materiais ocorre na produção, na circulação ou no consumo de tais bens.

Isso significa que o processo de estilização da vida - ou seja, a valorização da forma ou da estética em detrimento da função - tornou-se na contemporaneidade não apenas uma prática da elite, mas uma forma de funcionamento do próprio capitalismo. Desse modo a estilização da vida também deve aparecer nas classes médias e populares. O nosso objeto demonstra isso. A pesquisa realizada em 2017 pela consultoria XP Check, com consumidores maiores de 21 anos de todos os estados do Brasil, propõe quatro possíveis motivos para um consumidor preferir uma loja de vestuário da Renner, Riachuelo, C&A, Hering e Marisa. São eles: produtos na moda, qualidade, preço e localização. Pode-se dizer que o primeiro critério privilegia a forma, os dois últimos a função, e o segundo (qualidade) é incerto, pois pode se referir à durabilidade da roupa (o que se aproxima da funcionalidade) ou a algum atributo estético do material (forma). Segundo a consultoria, preço e localização não somam metade das respostas para nenhuma loja, nem cada uma das categorias representa a principal resposta a nenhuma. Já produtos na moda dominam as respostas em relação a quatro lojas (44% em relação à Renner, 40% Riachuelo, C&A 32% e Marisa 35%), enquanto qualidade é a resposta mais frequente em uma das lojas (Hering, com 42%)19 19 Conforme 6ª edição da pesquisa XP Check. Disponível em: http://arquivos.sindicatodaindustria.com.br/app/cni_sindicatos/2011/01/10/123/20171124091533330590i.pdf Consultado em 10/03/2021. .

Ainda que não possamos nos fiar plenamente na precisão dos dados levantados - não conhecemos o suficiente sobre os procedimentos metodológicos - o fato de que tenham sido esses os fatores escolhidos para o questionário e o destaque que o relatório da consultoria atribuiu à grande preferência por produtos da moda demonstram uma valorização da forma sobre a função no consumo das classes médias e populares. Podemos dizer, assim, que as fast fashions levam para esses consumidores, pelas coleções colaborativas principalmente, uma forma de consumo que depende da condição para a apreciação estética.

Isso significa uma reafirmação da unificação de um mercado não apenas do luxo, mas da própria apreciação estética. A escolha de roupa, em quase todas as classes, se define excepcionalmente somente pela função, sendo que na maioria das vezes envolve a necessidade de um senso estético do consumidor. Justamente aqui reaparecem as CCs e seu trabalho pedagógico que ensina aos consumidores em geral quais são os representantes da moda dita “legítima”. Citando mais uma vez uma fala do vídeo publicitário da cc que aliou Lagerfeld e H&M, o criador afirma que nessa coleção o preço mais baixo que o normalmente praticado em suas coleções próprias não é importante, e que isso não desvaloriza as peças. Nessa coleção, “it’s all about taste”, é sobre gosto, o “bom gosto”.

Assim, a cultura de consumo leva noções como bom gosto, marcas, moda etc. a quase toda a extensão da sociedade, e seus membros, das mais variadas classes, estilizam suas vidas e desenvolvem formas de apreciação estética. É, justamente, essa apreciação estética materializada no luxo a língua franca desse mercado simbólico unificado. Baseados na produção desse mercado, seus agentes supõem que haja sua democratização. Mas tudo que nossa análise demonstra segue no sentido contrário. Em verdade, há uma intensa hierarquização nesse mercado. É simples notar isso já pelo preço dos produtos que estamos tratando. Voltemos às fast fashions e ao mercado de luxo. Segundo a pesquisa da XP Check, 83% dos consumidores da Riachuelo declaram gastar até R$250,00 em uma compra na loja, sendo que 44%, o maior conjunto, gasta entre R$75,00 e R$150,00 (13% até R$75; 26% entre R$150,00 e R$250,00; 17% acima de R$250,00). Esses dados estão de acordo com os preços praticados pela loja em 2016, uma vez que uma calça custava cerca de R$60,00. Contudo, se a calça for de uma cc o preço é multiplicado. Na CC com Lagerfeld, também de 2016, as calças variavam entre R$159,99 e R$259,99, ou seja, acima do que a maior parte dos clientes costumava gastar na loja. Já se olharmos um preço de uma calça na própria coleção do estilista, então chegamos a R$2.300 e R$9.000. Dessa forma, se olhadas pela elite as CCs são uma forma barata de se adquirir produtos da moda, entre os consumidores das fast fashions elas podem significar um empenho extraordinário de recursos. Ainda, se para a elite o consumo em fast fashion não significa qualquer forma de distinção (a não ser, diria Bourdieu, por condescendência), essas lojas são, justamente, o espaço em que as classes médias e baixas jogam o jogo da distinção.

Conclusão

Estamos diante de um mercado unificado extremamente hierarquizado em fronteiras simbólicas às quais vão corresponder fronteiras sociais. As fronteiras simbólicas desse mercado podem ser observadas na seguinte sequência do mais ao menos legítimo: coleções regulares das marcas de luxo (Lagerfeld e Versace) → coleções colaborativas (Lagerfeld for Riachuelo; Versace for Riachuelo) → coleções regulares das fast fashions (Riachuelo). As fronteiras se comunicam, mas nunca se misturam. A elas também correspondem fronteiras sociais. Como Lamont e Molnár (2002Lamont, Michèle & Molnár, Virág. (2002), “The Study of Boundaries in the Social Sciences”. Annual Review of Sociology, 28: 167-195., p. 169) definem, quando as fronteiras simbólicas são “amplamente acordadas”, como é o caso dessas que aqui analisamos, elas “podem se tornar fronteiras sociais, isso é, traduzir, por exemplo, em padrões identificáveis de exclusão social ou de segregação de classe e racial”. Essas fronteiras sociais são facilmente identificáveis se olhamos as condições econômicas de cada grupo social em adquirir produtos ofertados dentro de cada das fronteiras simbólicas. Contudo, essas condições podem ser ultrapassadas, pois, como vimos, membros das classes altas compram nas lojas de fast fashion. Excepcionalmente, membros de classes médias também podem comprar nas marcas de luxo.

Contudo, os sentidos desses consumos são diferentes para cada classe e essas diferenças são insuperáveis. Uma peça de uma CC não significa um objeto de luxo para as classes altas. Como nos lembra Baudrillard (2009Baudrillard, Jean. (2009), A Sociedade de Consumo. Lisboa: Edições 70.), um objeto não tem seu sentido de forma isolada. Ele está sempre inserido em um sistema, no qual a relação entre objetos é que produz o sentido de cada um. Assim, uma peça de CC em um consumo de membros da elite se insere em um sistema de objetos no qual o sentido que adquire é o oposto do luxo. O próprio termo que membros da elite dão às peças compradas em fast fashion indica essa noção: é o “basiquinho”, ou seja, o que está na base, no lugar mais distante do topo. Se olharmos para o mesmo consumo, mas agora feito pelas classes médias e populares, os sentidos se invertem, e a peça da CC pode passar a figurar como um objeto valorizado, cuja compra justifica um dispêndio excepcional de recursos. Contudo, justamente porque as classes altas não reconhecem esse consumo como de luxo, as classes médias e populares não ultrapassam a fronteira que as divide das classes altas. Um processo similar se daria se as classes médias e populares pudessem adquirir um objeto de luxo. Embora o objeto seja percebido como de luxo pelas classes altas, assim o é porque faz parte desse sistema simbólico dessas classes. Como demonstra Renato Ortiz em seu estudo sobre o luxo, o relevante para a definição de um objeto de luxo é “estabelecer o vínculo existente entre objetos, práticas e instituições” (Ortiz, 2019Ortiz, Renato. (2019), O Universo do luxo. São Paulo: Alameda., p. 65). Isso significa que um objeto só é de luxo se ele está em uma rede de relações com outros objetos, práticas e instituições, que, em conjunto, produzem o sentido do luxo. Por isso que o autor afirma que “[…] o universo do luxo realiza-se no mundo dos ricos, sem este último elo seu valor simbólico permaneceria incompleto.” (Ortiz, 2019Ortiz, Renato. (2019), O Universo do luxo. São Paulo: Alameda., p. 172). Em outras palavras, quem compra um perfume de uma marca de luxo, mas que não é capaz - seja por desconhecimento, seja por impedimento econômico - de adquirir outros produtos e práticas que correspondem a esse perfume, acaba por desvalorizar o próprio produto. É necessário que junto ao perfume haja um conjunto de práticas, como viajar para determinado lugar, escolher a bebida “certa”, combinar peças de roupa etc. Sem esse código, que ordena as práticas e o consumo, o dinheiro pode permitir a compra, mas não o pertencimento do objeto ao “universo do luxo”. Ao contrário, para os que habitam o universo de luxo, um objeto de luxo se torna vulgar quando consumido pelas classes médias e baixas. As empresas de luxo estão cientes disso e imediatamente restringem a própria oferta ou criam categorias especiais, exclusivas, para as classes altas.

Desse modo, o consumo não embaralha essas classes. Ao contrário, pelo consumo, dimensão em que o gosto se manifesta, as fronteiras que as diferenciam se estabelecem e, mais importante, uma fronteira que parte de um gosto legítimo, monopolizado pela elite. Esse ponto também deve ser percebido nas CCs. Lembremos que as classes altas fazem parte do público das fast fashions, mas como demonstramos não porque elas sejam um público relevante para essas lojas, nem porque estejam interessadas no consumo de luxo. A função que elas ocupam é de valorização simbólica dos próprios produtos das fast fashions. É o fato de que ali elas também consomem - embora em quantidade pequenas, mas suficiente para que sejam transformadas em objeto de marketing - que permite a percepção nas classes populares e médias de que os produtos disponíveis são valorizados, são de luxo. Na prática, as classes altas cumprem um sentido similar ao das marcas de luxo: sua “colaboração” serve para a elevação, para as classes médias e populares, dos objetos das fast fashion tal como se eles fossem de luxo. Nesse sentido poderíamos sugerir, nos termos de Callon et al (2000 Callon, Michel; Méadel, Cécile; Rabeharisoa, Vololona . (2000), “L’économie des qualités”. Politix, 52(13): 211-239. https://www.persee.fr/doc/polix_0295-2319_2000_num_13_52_1126. Consultado em 23/02/2022.
https://www.persee.fr/doc/polix_0295-231...
), que as classes altas fazem uma (re)qualificação dos produtos da fast fashion. Essa (re)qualificação conduziria o consumidor a uma reavaliação dos produtos, seja em termos de preço, características ou, como nosso caso nos mostra, simbólicos. Isso só é possível porque o gosto da elite é reconhecido pelas classes consumidoras dessas lojas.

Nesse sentido, o consumo das CCs não produz embaralhamento das classes, nem uma inserção das classes médias e populares no gosto das classes altas. Contudo, isso não significa que não produza distinção. As CCs se inserem na produção de fronteiras internas às próprias classes médias e baixas. Uma vez valorizadas pelas elites, a condição de fazer parecer detentora de um gosto de elite permite que frações das classes médias e baixas se diferenciem entre si. Seria necessária uma pesquisa que buscasse compreender as características socioeconômicas - ou, para dizer como Bourdieu, os capitais acumulados referentes às posições no espaço social - que diferenciam quem consome roupas de CCs, de coleções regulares das fast fashions ou de lojas mais populares, como a Torra-Torra, a loja mais frequentemente visitada pelos entrevistados de Ana Lúcia de Castro. Não somos aqui capazes de definir tais condições, mas certamente na relação dessas com as práticas de consumo poderemos observar o jogo da distinção entre as classes médias e populares. Um jogo definido internamente à cultura de consumo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Set 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    10 Mar 2021
  • Aceito
    16 Fev 2022
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