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Estrutura de sentimento e autobiografia em O campo e a cidade1 1 . Uma versão anterior deste trabalho foi discutida no Núcleo de Sociologia da Cultura da USP. Agradecemos às nossas e aos nossos colegas os comentários, críticas e sugestões que ajudaram a aperfeiçoar o trabalho. Também agradecemos a Alejandro Blanco a leitura cuidadosa. Este trabalho contou com o apoio financeiro da Capes.

Resumo

Aproveitando a efeméride dos cinquenta anos da publicação de O campo e a cidade, este artigo examina o livro de Raymond Williams sob dois aspectos principais. De um lado, pretendemos elucidar os usos e significados da noção “estrutura de sentimento”, que nesse trabalho organiza toda a argumentação, como uma espécie de operador analítico; de outro, discutimos as frequentes referências autobiográficas, que reforçam seu tom reflexivo e político.

Palavras-chave:
Literatura inglesa; Estrutura de sentimento; Autobiografia; Capitalismo agrário; Industrialismo

Abstract

In the context of the 50th anniversary of its publication, this article examines Raymond Williams’ The country and the city under two key aspects. On the one hand, we attempt to explain the uses and meanings of “structure of feeling”, which organizes the book’s argument as a kind of analytical tool. On the other hand, we will discuss the frequent autobiographical passages that reinforce the reflective and political tone of this work.

Keywords:
English literature; Structure of feeling; Autobiography; Agrarian capitalism; Industrialism

Introdução

Este artigo examina O campo e a cidade ([1973] 1990), de Raymond Williams (1921-1988), sob dois aspectos principais. De um lado, pretendemos elucidar os usos e significados da noção “estrutura de sentimento”, que nesse trabalho organiza toda a argumentação, como uma espécie de operador analítico2 2 . A noção já havia aparecido em diversos outros trabalhos, mas nunca com tanta centralidade. Os livros principais em que foi mobilizada são: Drama from Ibsen to Eliot (1952), Drama em cena (1954), Cultura e sociedade (1958), The long revolution (1961), Tragédia moderna (1966), The English novel from Dickens to Lawrence (1970) e Marxismo e literatura (1977). ; de outro, discutimos as frequentes referências autobiográficas, que reforçam seu tom reflexivo e político.

O livro obteve grande sucesso editorial e acadêmico na Inglaterra e nos Estados Unidos, tendo sido resenhado em jornais e revistas de grande circulação - como The Guardian, New Statesman, Sunday Times e Sunday Telegraph - e em publicações acadêmicas e culturais de prestígio (Times Literary Supplement, The New York Review of Books, Yale Review e Times Book Review). Também deu ensejo a um documentário apresentado pelo próprio Williams, produzido e veiculado pela BBC em 19793 3 .The country and the city: A film with Raymond Williams (1979). Direção: Mike Dibbs. Produção executiva: Christopher Martin. Where we live now: Five writers look at our surroundings, BBC (60 min.). Disponível em http://mikedibb.co.uk/filmdet.php?filmid=30. Acesso em 15 jun. 2020. .

Provavelmente está entre os livros do intelectual galês mais conhecidos no Brasil, sendo publicado pela Companhia das Letras em 1990, com duas reimpressões e, em 2011, uma versão de bolso (sem modificações substantivas)4 4 . Seguiremos a tradução de Paulo Henriques Britto para a primeira edição de O campo e a cidade (Companhia das Letras, 1990). No caso de eventual discordância, incluiremos o termo original entre parênteses ou proporemos soluções alternativas assinaladas por nota. . Dada a recepção significativa do autor nas últimas décadas (Cevasco, 2001CEVASCO, Maria Elisa. (2001), Para ler Raymond Williams. São Paulo, Paz e Terra.; Sayre e Lowy, 1999SAYRE, Robert & LOWY, Michael. (1999), “A corrente romântica nas ciências sociais da Inglaterra: Edward P. Thompson e Raymond Williams”. Crítica Marxista, 8: 43-67.; Vasconcelos, 2007VASCONCELOS, Sandra Guardini Teixeira. (2007), A formação do romance inglês: ensaios teóricos. São Paulo, Hucitec/Fapesp.) e uma vez que diversas pesquisas recentes na área de sociologia da cultura (Passiani, 2009PASSIANI, Enio. (2009), “Afinidades seletivas: uma comparação entre as sociologias da literatura de Pierre Bourdieu e Raymond Williams”. Estudos de Sociologia, 14 (27): 285-299.; Ridenti, 2010RIDENTI, Marcelo. (2010), Brasilidade revolucionária. São Paulo, Editora da Unesp.; Gatti 2015GATTI, Vanessa Vilas Bôas. (2015), Súditos da rebelião: estrutura de sentimento da Nova MPB (2009-2015). São Paulo, dissertação de mestrado em Sociologia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.; Oliveira 2016OLIVEIRA, Luciano Dutra de. (2016), As estruturas de sentimento: história e desenvolvimento da noção cultural por Raymond Williams. São Paulo, dissertação de mestrado em História, Programa de Estudos Pós-Graduados em História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.; Santos, 2019SANTOS, Márcia Vanessa Malcher. (2019), O cinema contemporâneo de Pernambuco. São Paulo, tese de doutorado em Sociologia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.; Diniz, 2020DINIZ, Sheyla Castro. (2020), “‘Esquecer Williams?’: materialismo cultural, estruturas de sentimento e pesquisas sobre música popular no Brasil”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, 1 (77): 168-183, https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v1i77p168-183.
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) mobilizam “estrutura de sentimento” como instrumento ou objeto de análise5 5 . Sobre a noção de estrutura de sentimento, na bibliografia internacional, ver: Wallis (1993), Higgins (1999); Filmer (2003) e Middleton (2020). , a reconstituição sistemática de seu uso em O campo e a cidade representa uma contribuição a esse movimento.

O subtítulo da edição brasileira “na história e na literatura” indica a abrangência e ambição do livro. De modo geral, a análise das estruturas de sentimento cristalizadas em diversas formas expressivas, principalmente poesia e romance, daria acesso às imbricações entre história e literatura, movidas pelo avanço do capitalismo agrário e do industrialismo e afetadas pelas profundas transformações sociais e políticas inerentes a esse processo. Esse instrumento analítico é mobilizado em quase todos os capítulos no interior de uma reconstrução de longa duração6 6 . Em contraste com livros anteriores como Cultura e sociedade e The long revolution, nos quais o conceito aparece em capítulos específicos, articulando análises de processos históricos de menor duração. . Nosso artigo tem como base o exame de cada uma das ocorrências explícitas desse termo, assim como de referências autobiográficas significativas.

O autor parte do pressuposto de que a literatura integra ativamente um processo histórico complexo. Na via de mão dupla tão característica de seu método, interpreta os textos a partir de sua inscrição histórica e a história por meio da análise literária. Nesse particular, discordamos de De Bolla (1995DE BOLLA, Peter. (1995), “Antipictorialism in the English landscape tradition: A second look at the country and the city”. In: PRENDERGAST, Christopher (ed.). Cultural materialism. On Raymond Williams. Minneapolis, University of Minnesota Press, pp. 173-187., p. 177), para quem haveria em O campo e a cidade uma mera relação de “justaposição” entre a análise da literatura e as considerações acerca da história econômica e social, e nos alinhamos a Lizzie e John Eldridge (1994ELDRIDGE, John & ELDRIDGE, Lizzie. (1994), Raymond Williams. Making connections. Londres; Nova York, Routledge., p. 126), segundo os quais o “movimento pendular entre literatura e a experiência social é um aspecto inevitável da abordagem metodológica de Williams”.

A opção expressa no subtítulo “na história e na literatura” também sinaliza uma tomada de posição mais ampla no interior das disputas entre críticos literários e historiadores no campo intelectual britânico entre 1920 e 1960. Tais embates foram condicionados pela expansão do sistema de ensino em seus diferentes níveis, com a crítica literária alcançando uma posição de destaque no debate público e a historiografia mais restrita à discussão especializada. O enfrentamento se acirra no Pós-guerra, sobretudo durante a década de 1960, quando os historiadores, contra-atacando os críticos literários, se impõem no debate público (Collini, 2019COLLINI, Stefan. (2019), The nostalgic imagination: History in English criticism. Oxford, Oxford University Press., pp. 198-199).

A disputa disciplinar, por sua vez, esteve politicamente carregada. Críticos tomaram a literatura como via privilegiada de avaliação sobre a “qualidade da vida” na sociedade inglesa, base de uma crítica ao industrialismo e à suposta degradação cultural por ele acarretada (Williams, [1958] 2011; Lepenies, 1996LEPENIES, Wolf. (1996), As três culturas [Soziologie zwischen Literatur und Wissenschaft]. São Paulo, Edusp.). Historiadores, ao contrário, assumiam a pesquisa junto aos acervos relativos às atividades política, administrativa e diplomática como padrão de excelência, concedendo ênfase positiva às transformações associadas à revolução industrial e acentuando, por vezes de modo apologético, os ganhos advindos desse processo (Collini, 2019COLLINI, Stefan. (2019), The nostalgic imagination: History in English criticism. Oxford, Oxford University Press., p. 7).

Assim, o “movimento pendular” entre literatura e experiência social não teria apenas implicações conceituais e metodológicas, mas também disciplinares e políticas, inscrevendo a produção intelectual de Williams em um espaço mais amplo de forças. Como esperamos evidenciar, essas circunstâncias são especialmente marcantes no andamento da análise empreendida em O campo e a cidade, que ora reivindica a crítica literária em contraponto à historiografia marxista, ora converge com esta última para rechaçar o conservadorismo associado àquela.

Bucólico e antibucólico

Comecemos pela dedicatória - “Para os trabalhadores rurais que foram meus avós” -, a primeira menção autobiográfica. Ela explicita, desde as primeiras palavras do livro, a ascendência do autor, pelos quatro costados, de trabalhadores rurais. Essa operação é decisiva, pois, violando o preceito cientificista, anuncia deliberadamente um engajamento pessoal e político central ao argumento, dessa forma assumidamente enviesado pela experiência social do autor7 7 . A estratégia tem em As utilizações da cultura, publicado em 1957 por Richard Hoggart, um precedente decisivo. Nesse livro a experiência biográfica é um recurso ainda mais direto e constitutivo da argumentação. Numa resenha ao livro, na primeira hora, Williams ([1957] 1993, pp. 106; 110) elogia o esforço no sentido de superar Fiction and the reading public, de Quenie Leavis, examinando os documentos tendo em vista um público leitor constituído por pessoas reais. Ao tentar compatibilizar métodos da crítica literária com observação pessoal e social - “escrevendo não como visitante, mas um nativo” -, Hoggart teria ampliado a discussão, mas encontrado “problemas literários” que não teria conseguido equacionar satisfatoriamente. Sugestivamente, o próprio resenhista admite não saber “como esse mundo de fatos e sentimentos poderia ser mediado, a não ser por termos tradicionalmente imaginativos”. A ressalva deixa entrever os contornos do projeto intelectual a que o próprio Williams se dedicaria, quer sob forma de romance, quer academicamente. Não soa despropositado tomar justamente estrutura de sentimento como o modo por excelência de operar aquela mediação. . Vale notar a opção por “trabalhadores rurais” (ao invés de “camponeses”), pela qual o autor postula equivalência estrutural com trabalhadores urbanos, enquanto os termos “campesinato” e “proletariado” marcariam uma diferença importante entre tais grupos8 8 . Essa posição envolve um debate importante no interior do marxismo inglês: o estatuto dos grupos sociais, especialmente os dominados, na longa transição entre o feudalismo e o capitalismo na Grã-Bretanha. .

A explicitação da origem social, geográfica e familiar tem continuidade imediata no primeiro capítulo (“Campo e cidade”). Após enunciar o problema geral, reconstituindo esse contraste a partir de seus significados comuns, bem como os valores positivos e negativos que lhes são associados, há uma longa reflexão autobiográfica, da qual destacamos um trecho eloquente:

Essa importância [da oposição entre campo e cidade na experiência social britânica] pode ser formulada, terá de ser avaliada, enquanto problema geral. Vale dizer logo de início, porém, que, para mim, a questão sempre foi pessoal, desde que me tenho por gente (Williams, 1990WILLIAMS, Raymond. (1990), O campo e a cidade: na história e na literatura. São Paulo, Companhia das Letras., p. 13, grifos nossos).

Williams se refere inicialmente ao seu nascimento em uma aldeia (village) na fronteira do País de Gales com a Inglaterra, na qual as transformações típicas do desenvolvimento capitalista se faziam presentes: “eu as vi concretamente” (p. 13) - já revelando a impropriedade das representações sobre o campo como uma realidade apartada, estável ou atemporal. Na sequência, logo após arrolar imagens recorrentes em sua memória, ele menciona o pai e o avô, ambos trabalhadores rurais deslocados para outras atividades: o primeiro como sinaleiro da via férrea e o segundo na condição de trabalhador braçal numa rodovia.

O arremate do capítulo se refere à migração entre campo e cidade envolvendo a experiência do próprio Williams, de quem se moveu entre esses espaços mediante educação formal, alcançando o topo do sistema intelectual inglês, primeiro como aluno e mais tarde como professor em Cambridge. Num comentário ácido, ele afirma que viria a conhecer a “realidade” do campo na universidade, por meio de pesquisadores ou autores sem nenhuma relação direta com a sociedade rural e menos ainda com os trabalhadores. O mal-estar é explicitado pela admissão do caráter problemático de sua conversão em um intelectual acadêmico da mais alta estirpe.

A partir do capítulo 2, “Um problema de perspectiva”, a inscrição autobiográfica associa-se à descrição e à análise das sucessivas “estruturas de sentimento” acerca das transformações do campo e da cidade e de suas inter-relações, sobretudo no que se refere ao modo como os trabalhadores rurais são figurados. A memória e a experiência de Williams oferecem contraponto às estruturas de sentimento examinadas e suas variações, permitindo-lhe sopesar o viés inerente a cada uma delas. Esse modus operandi confere ao livro uma ênfase reflexiva e política permanente, dada pela identificação pessoal com as situações vivenciadas pelos trabalhadores rurais na sociedade inglesa em transformação9 9 . A perspectiva autobiográfica não se restringe a O campo e a cidade. Como destacado por David Simpson (1995, pp. 31-32), os trabalhos de Williams encerram uma voz muito particular. Qualquer que seja o caráter (crítico, criativo ou jornalístico), o autor sempre assumiria um modo de escrita “dramático”, pelo qual apresentaria sua própria experiência como historicamente representativa. .

A 1ª ocorrência de estrutura de sentimento se dá justamente ao final desse segundo capítulo. O autor identifica na Inglaterra valorização reiterada do passado e da vida tradicional rural. Ele demonstra que os escritores do final do século XIX datam o campo “tradicional” em meados desse século, os deste último período, por sua vez, no final do século XVIII e assim sucessivamente, até os primórdios do capitalismo agrário no início do século XVI. Desse modo, o que era revalorizado recorrentemente como mundo tradicional estável e harmonioso consistia, de fato, em etapa do longo desenvolvimento capitalista inglês, vista sob a óptica específica de cada situação presente. Essas considerações desembocam em uma reflexão metodológica no último parágrafo:

As testemunhas que citamos levantam questões de perspectiva e fatos históricos, porém também levantam questões de perspectiva e fatos literários. As coisas que elas dizem não são todas ditas em uma mesma modalidade de discurso. Enquanto fatos, variam de falas de peças teatrais e trechos de romances a argumentações de ensaios e anotações de diários. Quando os fatos em questão são poemas, são também - o que talvez seja de importância crucial - poemas de tipos diferentes. Só poderemos analisar essas importantes estruturas de sentimento se fizermos tais discriminações críticas desde o início (Idem, pp. 25-6)10 10 . No original quase todas as ocorrências do conceito estão no singular: structure of feeling. Essa primeira é a única exceção, mas apenas o primeiro termo (structures) é flexionado. Em função disso, optamos por manter a tradução consolidada pela edição brasileira nos trechos citados, mas ajustando a grafia. .

Essa ocorrência é única do livro e das poucas nos trabalhos de Williams que enfrentam mais diretamente o estatuto metodológico do conceito, deixando entrever a intenção de não o enrijecer e, sim, de ajustá-lo em cada pesquisa (e a cada passo da argumentação) em função do problema em discussão. Ainda que esta não seja uma definição sistemática, alguns elementos são explicitados. A estrutura de sentimento permitiria restituir os liames entre “fatos literários” e “fatos históricos”, atentando às perspectivas assumidas pelos autores em função de sua posição social e cristalizadas em materiais expressivos diversos, como romances, peças de teatro, ensaios, diários e poemas. Além disso, vale notar, no final da passagem, a centralidade conferida à crítica literária (repondo de forma discreta o embate com a historiografia referido anteriormente).

A 2ª ocorrência se dá na metade do capítulo 3, “Bucólico e antibucólico” (Pastoral and counter-pastoral), já delineando a operação recorrente de deciframento de um determinado material literário:

No entanto, no centro da estrutura de sentimento em questão - uma relação entre as mansões senhoriais e uma civilização responsável - encontram-se os poemas dedicados a lugares e homens específicos: destes, os mais notáveis são “Penhurst” e “To Sir Robert Wroth”, de Ben Jonson, e “To Saxham”, de Thomas Carew. Não são poemas bucólicos nem neobucólicos numa acepção mais restrita, mas utilizam uma versão mais específica da vida campestre para exprimir, por meio de um elogio de uma casa e de seu proprietário, certos valores sociais e morais (Idem, p. 46).

O material analisado tanto no capítulo em questão quanto no seguinte - “Idades do ouro” (Golden ages) - é formado por um conjunto de poemas do século XVII que celebrava o campo e as mansões senhoriais em oposição à cidade e à corte. Não obstante, essas novas construções viriam a simbolizar a consolidação do capitalismo agrário inglês, em oposição aos castelos feudais, representativos da fase anterior. Tais poemas realizariam a apologia de uma classe proprietária já capitalista à qual os próprios poetas se encontravam subordinados através do patronato. Desse modo, a estrutura de sentimento cristalizava as disputas internas aos grupos dominantes, negligenciando o caráter capitalista da economia rural e suas inter-relações com a cidade, além de ignorar a existência dos trabalhadores. Desse ponto de vista, aliás, mesmo que houvesse nesses poemas algum grau de resistência à nova ordem capitalista, Williams adverte que a anterior (feudal) era “tão dura e brutal como qualquer outra que a tenha sucedido” (p. 59).

É logo no início do quarto capítulo que se dá a 3ª ocorrência:

A estrutura de sentimento dentro da qual essa referência ao passado deve ser entendida, portanto, não é basicamente uma questão de explicação e análise histórica. O que é realmente importante é esse tipo específico de reação à mudança, e isso tem causas sociais mais concretas e mais interessantes (Idem, p. 56).

Devemos notar mais um componente importante, do ponto de vista metodológico. O deciframento da estrutura de sentimento permitiria elucidar a “reação à mudança”. Em O campo e a cidade, em termos históricos, o problema geral seria o das reações cristalizadas na literatura a respeito do desenvolvimento capitalista inscrito numa longa temporalidade cujo eixo seria menos o declínio da ordem em vias de superação e mais “o crescimento vigoroso” da que lentamente se impôs e se tornou dominante após a Guerra Civil (1642-1651) e a Restauração (1688-1689). Teria sido então que “o novo tipo de proprietário rural por fim subiu ao poder”, estabelecendo as mansões senhoriais (em substituição aos castelos feudais) como “os centros visíveis do novo sistema social” (p. 61). Outro aspecto importante dessa transição teria relação com as diversas frações das classes intermediárias, diferencialmente atingidas pelo avanço desse novo sistema social. No entanto, a instabilidade das posições alcançadas - em função de novos ciclos de incorporação e cercamento de terras - acabaria minando as possibilidades de progressão tanto desses grupos intermediários como das atitudes intelectuais a eles identificadas, como seria o caso de Thomas More (1478-1535) em Utopia.

A 4ª ocorrência desponta no início do capítulo “Cidade e campo” (Town and country):

No entanto, a estrutura de sentimento resultante não se baseia apenas na ideia de um passado mais feliz. Apoia-se também numa outra ideia de inocência, associada à primeira: a inocência rural dos poemas bucólicos, neobucólicos e reflexivos. A chave de sua compreensão é o contraste entre, de um lado, o campo e, de outro, a cidade e a corte: aqui natureza, lá mundanidade (p. 69).

A passagem recupera o embate entre vida campestre e urbana, cujos significados aparentes e reais são discriminados a partir das comédias em voga no reinado de Jaime I (1603-1625) e na Restauração. Sem minimizar as disputas envolvendo grandes (aristocracia) e médios proprietários (a pequena nobreza ou gentry), grandes comerciantes, advogados e políticos -, Williams reconstitui os vínculos entre elas, condicionados pela economia capitalista em desenvolvimento e pelas formas de integração social vigentes, sobretudo, por meio do mercado matrimonial. O final do capítulo afirma uma posição mais alinhada aos reclamos dos historiadores marxistas, advertindo que enquanto a literatura expressava as tensões envolvendo as frações da classe dominante, velava o conflito entre proprietários e trabalhadores. Este seria então invisibilizado pela “ficção ‘cidade e campo’”, que teria como lógica “promover comparações superficiais e impedir comparações reais” (p. 79).

No meio do sexto capítulo, “Assim escolhem seu próprio destino” (Their destiny their choice), dá-se a 5ª ocorrência, após a análise de Upon appleton house, escrito por Andrew Marvell (1621-1678). Esse poema trata da acomodação após o processo revolucionário compreendido entre 1640 e 1688, que se baseou na transação de propriedades envolvendo vitoriosos e perdedores - caso da referida mansão senhorial, construída no lugar de um antigo convento católico -, bem como do significado ambivalente das transformações políticas e econômicas em curso:

O que terminou resultando dessas complicadas transações foi uma estrutura de sentimento muito diferente. O poema de Marvell é realmente característico de uma fase de transição: exprime sentimentos contraditórios em relação a uma velha e a uma nova ordem. Ele nos faz ver a insensatez das tentativas de encaixar todos os poemas sobre mansões senhoriais numa única tradição, como se aqueles que as ocupavam formassem uma única linhagem, sem descontinuidades. Em suas formas extremas, tais tentativas representam uma autêntica reificação das casas em si: as casas, e consequentemente, seus moradores tornam-se sinais visíveis de uma ordem, muito embora tal ordem estivesse constantemente sendo reconstituída pela formação política e econômica de uma nova aristocracia e, depois, de um novo capitalismo agrário (p. 84).

Haveria, portanto, uma mudança progressiva nos poemas sobre as casas senhoriais, desde aqueles que, embora referidos a propriedades cuja produção agrícola já se dirigia ao mercado11 11 . Descritas por Eric Hobsbawm no capítulo sobre a Revolução Industrial de A era das revoluções. , como “Penhurst” (1616) e “To Saxham” (1640), as celebravam em função de seus supostos valores tradicionais, aos que, de Upon appleton house até a “Epistle to Bathurst” (1733) e a “Epistle to Burlington” (1731), de Alexander Pope (1688-1744), tendiam a absorver as mudanças em curso como desejáveis, contanto que houvesse alguma caridade como contrapeso ao empobrecimento dos trabalhadores12 12 . Embora Williams não leve tanto em conta esse problema, vale notar que parcela expressiva dos escritores no período pertenciam à Igreja anglicana - os clérigos ou párocos responsáveis pelos presbitérios, personagens recorrentes nos romances ingleses dos séculos XVIII e XIX. Tal grupo era formado nas universidades de Cambridge e Oxford, experiência que possivelmente lhes conferia alguma independência de opinião em relação aos grandes e pequenos proprietários, dos quais descendiam e para os quais prestavam serviços religiosos e intelectuais. O ponto de vista deles, em relação à nobreza, seria mais sensível às classes dominadas. .

No entanto, a mudança central se refere ao estatuto da propriedade fundiária (bem como das relações sociais e trabalhistas envolvidas), que deixa de ser vista como herança natural para assumir caráter efetivamente capitalista: “subordinada às utilizações do dinheiro e ao investimento produtivo” (p. 86). Ao longo desse movimento, a “obra do homem” passou a ser mais valorizada do que o “paraíso natural desordenado” e uma nova estrutura de sentimento (6ª ocorrência) viria à tona na forma de uma “ética do melhoramento”13 13 .Morality of improvement, no original. A palavra “melhoramento” se refere tanto às mudanças estéticas da casa e do jardim, como à introdução de novas técnicas de produção agrícola e relações de trabalho capitalistas. :

Boa parte da Epistle to Burlington está bem próxima do cerne da importante tradição setecentista de construção de casas e tratamento paisagístico, na qual, como sinal exterior da nova ética do melhoramento, o campo foi reformado e redesenhado. Trata-se da condenação do ostentar fútil dos palácios ocos, como Jonson ou Marvell o teriam dito, mas é também uma recomendação consciente a respeito de como se deve construir uma casa, fazer um parque ou jardim - enfim, de como melhorar a Natureza: “Que nunca seja esquecida a Natureza/ Qual fosse a Deusa donzela linda e sadia, / Nem toda nua, nem ornada em demasia”. Nessa recomendação persuasiva, toda uma nova estrutura de sentimento se explicita, como parte de uma nova economia (p. 87).

O capítulo 8, “Os fios da natureza”, nos interessa sobremaneira, pois contém cinco ocorrências, além de articular estrutura de sentimento e experiência biográfica. Vejamos a 7ª ocorrência logo no parágrafo inicial:

É no século XVIII, o século de Young - nas mudanças e contradições daquela Inglaterra rural que ele ao mesmo tempo ajudou a promover e eternizou melhor do que ninguém -, que encontramos não apenas a conciliação benévola de Fielding e os temores desesperados e específicos de Richardson, mas também uma versão social nova e mais séria da paz e virtude perdidas da vida rural. Os poemas sobre arrendatários felizes, o eu idealizado e independente da tradição bucólica reflexiva, são sucedidos por poemas sobre perda, mudança, pesar: aquela estrutura de sentimento simultaneamente comovente e meditativa, de horror e retraimento captada com tanta exatidão no dístico de Goldsmith: “Neste exato momento julgo ver/ As virtudes do campo a morrer” (p. 97).

Aqui desponta a ambivalência que acompanha a aceleração das mudanças em curso na economia agrária, expressa tanto pela valorização dos melhoramentos - dado o “aumento da produção e da exportação de cereais” (p. 99) - como por uma reserva crescente em relação às suas consequências negativas, sobretudo para os trabalhadores. É justamente a menção direta a estes num poema de James Thomson (1700-1748) que constitui o elemento inovador, ensejando inclusive a 8ª ocorrência do termo (a segunda do capítulo):

Esses “parceiros”, os pobres, haviam sido o elemento excluído do panegírico da ordem e da abundância, e é no reconhecimento cada vez mais explícito de sua existência que mudou a estrutura de sentimento. Thomson chega mesmo ao reconhecimento relativamente novo - trata-se basicamente de uma “descoberta” das classes superiores instruídas do século XVIII - de que “os pobres” não são apenas um ônus para a caridade, um peso morto na economia, e sim os verdadeiros produtores das riquezas: “Assim, senhores/ Pensai na dura mão trabalhadora/ Que vos mantém no ócio e na elegância” (p. 101).

Tal “descoberta” suscitaria um novo “tom de retraimento melancólico e pensativo” (p. 101) - como no poema de William Cowper (1731-1800), do qual o título do capítulo foi extraído. A valorização da economia capitalista é então matizada pela percepção do processo disruptivo que engendra.

Visando a aprofundar a caracterização dessa estrutura de sentimento, Williams estabelece comparação com uma anterior, marcadamente conservadora, flagrada em trechos do poema “A thanksgiving”, de Robert Herrick (1591-1674)14 14 . “Senhor, me deste uma casinha/ Bem pequenina,/ Telhado humilde, resistente/ À chuva e ao vento […]/ A porta é baixa e mofina,/ Qual a minha sina,/ Mas está sempre aberta aos pobres/ Que a ela acorrem” (pp. 103-104). . Nesse ponto, o autor recorre novamente à memória. Ele conta que teria lido o tal poema ainda criança numa coletânea adotada no curso noturno frequentado por seu pai. A autocomiseração fingida e obsequiosa expressa pelos versos lhe provocara raiva. Anos mais tarde, essa primeira impressão se confirmaria ao ler outro poema de Herrick, contrariando, assim, a avaliação favorável ao poeta então predominante em Cambridge. O relato ressalta o alinhamento de Williams com os trabalhadores rurais, o viés engajado que essa posição atribui à sua análise e sua inserção tensa no establishment acadêmico britânico.

De qualquer forma, a superação daquele ponto de vista ingênuo e apaziguador seria o passo decisivo para a mudança de tom flagrada em poemas como “Rural elegance”, de William Shenstone (1714-1763), como se pode ver pela 9ª ocorrência (terceira do capítulo): “É esse adeus à simplicidade que constitui o elemento fundamental da nova estrutura de sentimento (p. 105)”.

Entretanto, o “adeus à simplicidade” não se daria de uma vez por todas e Williams nota a justaposição das visões apaziguadora e realista em diversos materiais poéticos. Essa tensão é discutida na 10ª ocorrência (quarta do capítulo):

Não há como conciliar as duas visões: a felicidade dos “vales frescos e isolados” e o reconhecimento do poder repressivo da “miséria fria”. Mas, no contexto dessa estrutura de sentimento, as ambiguidades do apelo à simplicidade foram temporariamente contidas e mediadas (p. 107).

Essas ambiguidades seriam progressivamente desfeitas em favor de uma polarização com contornos mais definidos, cujos primeiros sinais são identificados no poema “The deserted village”, de Oliver Goldsmith (1728-1774), conforme a 11ª ocorrência do termo (e última do capítulo):

Aqui, com uma precisão excepcional, é projetado aquilo que posteriormente podemos denominar [estrutura de sentimento romântica] - a afirmação da natureza em oposição à indústria e da poesia em oposição ao comércio; o isolamento da humanidade e comunidade na ideia de cultura, em oposição às pressões sociais concretas da época. Podemos captar seus ecos com exatidão em Blake, Wordsworth e Shelley (p. 113; intervenções nossas)15 15 .Romantic structure of feeling, no original. .

O restante do capítulo prossegue examinando a transição ao romantismo a partir da produção poética de John Langhorne (1735-1779), que sedimenta o agravamento das condições sociais dos trabalhadores rurais com o avanço do capitalismo. O surgimento de um contingente de pessoas em situação de penúria e “vadiagem” seria efeito da incapacidade do sistema de justiça e do aparato estatal em geral de remediarem esse processo, cuja causa, entretanto, não seria percebida pelo poeta. Sua posição social - ele era casado com a filha de um proprietário e se tornara juiz de paz -, bloquearia a percepção do envolvimento direto de sua própria classe na dissolução da comunidade rural.

A migração, como uma das alternativas abraçadas pelos trabalhadores que haviam perdido seu lugar no novo sistema econômico, é entendida pelo poeta como causa do desajuste e não como uma consequência. Esse argumento, que teria longa continuidade na literatura inglesa - a ponto de ser mobilizado por T. S. Eliot (1888-1965) já no século XX - é contestado por Williams através de outra reflexão autobiográfica, na qual o êxodo não resulta de desapego pela aldeia, mas da impossibilidade de nela permanecer:

Também conheço esse problema na carne: não apenas porque tive de sair de minha aldeia para estudar e para desenvolver um tipo específico de trabalho, mas também porque toda a região onde nasci vem sofrendo um processo terrível de perda de população, porque as pessoas não conseguem mais ganhar a vida lá. Quando me deparo com a idealização do sedentarismo não preciso tomar emprestado o primeiro sentimento: sei exatamente o que significa a vizinhança nessa acepção exata e o que significa ter de partir e separar-se dela. Porém sei também por que as pessoas têm de partir, por que tantos membros de minha família foram embora. Assim, encaro a idealização do sedentarismo em sua versão lítero-histórica mais comum, como uma indiferença insolente às necessidades da maioria das pessoas (p. 120).

O capítulo 9, “Criado para ser lavrador”, pode ser entendido como desfecho de uma primeira parte do livro (a contar do segundo capítulo), centrada na análise das poesias sobre as mansões senhoriais. Talvez se possa resumir o argumento de Williams até aqui pelo contraste entre duas estruturas de sentimento típicas, bucólica e antibucólica: a primeira, próxima de uma ideologia da mansão senhorial, e a segunda, em contraponto, de “intenções realistas” (p. 127)16 16 . Na primeira ocorrência do termo “estrutura de sentimento” de Cultura e sociedade, Williams afirma que as “mudanças de convenção só ocorrem quando existem mudanças radicais na estrutura de sentimento geral” (p. 63), e parece ser justamente o que se dá aqui, na passagem do bucólico para o antibucólico. . A lenta transformação sofrida pela estrutura de sentimento desde “Penhurst” e “To Saxham” até a reação de Crabbe constitui, então, o eixo argumentativo dessa primeira parte, sintetizada na 12ª ocorrência:

“Pois a verdade, ainda que expressa em poesia/ É que campeia nas aldeias a agonia.”

Agora torna-se mais fácil compreender a insistência de Crabbe. A observação é a mesma de Goldsmith e Langhorne, porém inserida numa nova e strutura de sentimento, que pode dispensar a retrospecção. O que se vê dentro de uma convenção nova é um contraste social existente e ativo. A energia desta convenção nova provém da rejeição da velha: uma rejeição do bucólico (p. 124).

A “intenção realista” de Crabbe em “The village” - viabilizada pela independência em relação aos proprietários que a posição de clérigo lhe conferia - pode ser verificada pelas constantes menções aos trabalhadores, respaldando a afirmação de que o escritor teria alcançado uma visão mais sensível a essa classe. Ainda assim, ele não teria conseguido romper completamente com a perspectiva bucólica, pois continuou desconsiderando os fatores que produziam a pobreza - o desenvolvimento capitalista da produção agrícola e a orientação mercantil do proprietário -, detendo-se na proposta de assistência aos indigentes. Portanto, se Crabbe demonstra uma “intenção realista”, a consciência objetiva que Williams cobra atribuiria sem concessão à classe proprietária e às suas mansões senhoriais a responsabilidade direta pela exploração econômica e pela disparidade entre as condições de vida das classes dominantes e dominadas17 17 . A solução ambígua de Crabbe, segundo nossa interpretação, teria como base a ambivalência de sua posição social, por um lado dependente (porque os presbitérios estavam localizados no interior das terras da nobreza, e os clérigos dependiam da indicação dos nobres para ocupá-los), por outro, independente (porque os clérigos eram autoridades religiosas e tinham formação acadêmica). .

Do capitalismo ao industrialismo

No capítulo 10, “Cercamentos, terras comunais e comunidades”, há uma digressão histórica que sintetiza o argumento e explicita o processo subjacente à evolução das estruturas de sentimento (13ª ocorrência):

No entanto, em certo sentido a questão dos cercamentos, situados no período específico de eclosão da Revolução Industrial, pode ter o efeito de desviar nossa atenção da verdadeira história e tornar-se um elemento de uma visão mítica muito sedutora da Inglaterra moderna, segundo a qual a transição da sociedade rural para a industrial é encarada como uma espécie de decadência, a verdadeira causa e origem dos nossos problemas e convulsões sociais. É imensa a importância desse mito para o pensamento social moderno. É uma das fontes principais daquela estrutura de sentimento que começamos a examinar: um perpétuo recuo a uma sociedade “orgânica” ou “natural”. Mas é também uma fonte importante daquela última ilusão protetora da crise de nossa época: a ideia de que não é o capitalismo que nos está prejudicando, e sim o sistema mais visível e mais facilmente isolável do industrialismo urbano (p. 137).

Para Williams, a emergência do industrialismo urbano não deveria ser pensada fora do processo mais abrangente, de longa duração, de desenvolvimento capitalista que inclui a economia rural, o comércio, as manufaturas, ou seja, a totalidade do sistema econômico. Nessa direção, a intensificação dos cercamentos e a Revolução Industrial seriam desdobramentos do desenvolvimento capitalista e não processos inteiramente novos. Na sociedade rural essas transformações implicaram expansão das terras cultivadas, concentração da propriedade, expulsão dos trabalhadores e avanço progressivo do “sistema econômico de proprietário, arrendatário e trabalhador” (p. 151).

O restante do capítulo permite vislumbrar qual seria a consciência política mais realista e consequente, segundo a percepção de Williams. Mobilizando novamente sua própria trajetória social, ele defende que a causa dos processos disruptivos seria a exploração econômica brutal vigente no capitalismo agrário inglês, levada a cabo pela classe proprietária e simbolizada na mansão senhorial:

Sempre tive a impressão, com base em certas experiências familiares relevantes, que a distância ou ausência dessas “grandes mansões” dos proprietários pode ter uma importância crucial para a sobrevivência de uma manifestação tradicional do espírito comunitário: a tolerância para com os vizinhos (p. 148).

A expressão “terra rica, trabalhadores pobres” (p. 154), de William Cobbett (1763-1835), um dos “Três escritores da região de Farnham” - título do capítulo 11 -, demarcaria a emergência de uma nova variante da estrutura de sentimento antibucólica (14ª ocorrência), mais nitidamente identificada com os trabalhadores e crítica à exploração que os afetava diretamente:

A estrutura de sentimento que até então vigorava, de apelos diretos e discriminações morais internas - a argumentação moral, a advertência moral de um Goldsmith ou um Crabbe -, necessariamente se transformou numa ordem de pensamento e sentimento diferente. A maturidade do capitalismo enquanto sistema estava forçando o surgimento de uma organização sistemática de oposição a ele (p. 157).

Essa consciência realista implicaria uma mudança de convenção por meio da qual a interação entre as classes veio a se tornar o eixo de um novo tipo de romance, sobretudo a partir da década de 1830. Mudança parcialmente incorporada por Jane Austen (1775-1817), apresentada no capítulo como contraponto à perspectiva de Cobbett. Embora radicados na mesma região e atentos às mesmas transformações, assumiam pontos de vista distintos, o dela alheio aos trabalhadores e centrado na interação entre as frações da classe dominante, condicionados por origens sociais muito diferentes - ele era filho de um pequeno fazendeiro, e ela de um clérigo oriundo da pequena nobreza (gentry)18 18 . O título alude a três escritores, dos quais o terceiro, Gilbert White, é menos importante no desenvolvimento do capítulo e também para a nossa argumentação. : “Cobbett e Jane Austen representam duas visões, duas perspectivas em contraste, dentro de uma mesma região” (p. 164)19 19 . Talvez a visão de Williams sobre Jane Austen pudesse ser mais favorável, entretanto, se ele levasse em conta as relações de gênero. Ela responde ao contexto como uma representante da pequena nobreza, mas também como mulher, valendo notar o peso das autorias femininas no romance inglês. De qualquer forma, o que mais interessa a Williams é a percepção fina, pela autora, das interações entre as diversas frações das classes dominantes, em torno da grande questão do mercado matrimonial e das tensões entre campo e cidade, o primeiro claramente privilegiado por Austen como o espaço de uma vida autêntica, sobretudo, para a nobreza educada, tão valorizada e à qual ela pertencia. .

Outra variante da estrutura de sentimento antibucólica emergiria com os poetas românticos do início do século XIX, analisados no capítulo 13, “A linguagem verde”, momento em que uma nova concepção de natureza se associa a uma experiência poética igualmente nova. Embora não haja menção explícita20 20 . Se não há uma afirmação explícita nessa direção, existem algumas passagens que fundamentam essa afirmação, como a seguinte: “Porém era um novo tipo de poeta, assim como um novo tipo de natureza, que estava sendo formado” (p. 185). , a argumentação é similar à desenvolvida no capítulo “O artista romântico”, de Cultura e sociedade, que apontava “uma mudança radical […] nas ideias de arte, do artista e de seu lugar na sociedade” (Williams, [1958] 2011, p. 56). É no quadro dessas transformações que se deve entender a nova posição social do poeta, de maior autonomia (o artista não estaria mais submetido ao patronato, ou à Igreja anglicana, mas sim ao mercado), base, por sua vez, dessa variante (15ª ocorrência) incorporada por autores como John Clare (1793-1864):

Desse modo, uma postura radical de isolamento, silêncio e solidão tornou-se o único veículo da natureza e da comunidade, em contraposição aos rigores, à abstinência fria, à prosperidade egoísta da sociedade normal. É uma estrutura de sentimento complexa, mas nela se inaugura uma fase decisiva do que ainda temos de denominar literatura rural (p. 183).

A “natureza” inscrita nos poemas seria a condensação da “imaginação criadora” do artista, única capaz de acessar a realidade profunda da vida e sobretudo da natureza. Mas Clare era, além de “artista romântico”, um “poeta trabalhador”, e essa origem social implicaria, também, um ponto de vista mais realista e crítico sobre as transformações em curso, especialmente com relação aos cercamentos. No mesmo capítulo há mais duas menções formalizadas ao termo (16ª e 17ª ocorrências), expressivas dessas disposições conjugadas (do artista romântico e do trabalhador rural):

E então se torna muito relevante a escolha do primeiro adjetivo usado para qualificar o responsável pelos cercamentos: “insensível”. Isto tem a ver com a estrutura de sentimento que estava começando a se formar, de Goldsmith aos poetas do romantismo, e que é particularmente visível em Clare: a perda do “velho campo” é uma perda de poesia; o cultivo dos sentimentos naturais é empobrecido pelas consequências dos melhoramentos advindos do cultivo da terra; a riqueza, além de dura e cruel, é insensível - isto é, falta-lhe sensibilidade estética (p. 192).

Tanto nessa ocorrência como na seguinte, Williams nota tanto a valorização romântica da natureza quanto a visão crítica sobre os melhoramentos:

Como visão da expropriação do trabalho pelo capital, isto é perfeito. Mas a estrutura de sentimento na qual se situa pressupõe que o que está sendo mais claramente destruído pela riqueza é a “Natureza”: aquele mundo rural tal como era, no passado e na infância, que é destruído tanto pelo tempo quanto pelas mudanças (p. 193).

A origem familiar de Clare (filho de agricultor) ensejaria ainda mais uma referência autobiográfica, reforçando novamente a perspectiva analítica do crítico, orientada, como vimos, por sua identificação com os trabalhadores rurais: “Um século e meio depois, reconheço o que Clare descreve: árvores específicas e um determinado riacho onde brinquei na infância desapareceram exatamente desse modo, em anos recentes, numa operação de melhoramento de terras não aproveitadas” (p. 193).

A partir do capítulo 14, “Transformações na cidade” (Change in the city), a análise é deslocada para um novo momento da relação cidade e campo, decorrente da Revolução Industrial. Se até então aquela (e Londres, especialmente) “era o produto extraordinário de um capitalismo agrário e mercantil, no contexto de uma ordem política aristocrática”, a partir do século XIX ela “seria uma criação do capitalismo industrial” (p. 205). A passagem de uma para a outra suscitaria representações ambivalentes em poemas, romances e ensaios. Diferentes autores desse contexto - Henry Fielding (1707-1754), Adam Smith (1723-1790), William Blake (1757-1827), William Wordsworth (1770-1850) e Cobbett - compartilhariam uma nova perspectiva, dada pela experiência urbana e por “um novo complexo de relações físicas e sensoriais” (p. 210). Esse complexo constituiria a matéria mesma dos romances de Charles Dickens (1812-1870), escritor analisado no capítulo seguinte (“Gente da cidade”), no qual a noção de estrutura de sentimento é mobilizada para apreender o seu “método da ficção”:

Esse método é realmente notável. Naturalmente, baseia-se em certas propriedades do idioma: percepções de relações entre pessoas e coisas. Mas em Dickens ele tem uma importância crucial. É uma maneira consciente de ver e mostrar. A cidade aparece ao mesmo tempo como fato social e paisagem humana. O que é dramatizado nela é uma estrutura de sentimento muito complexa (p. 220).

Essa estrutura de sentimento (18ª ocorrência) refere-se especificamente a Londres, e não às cidades industriais. Ao contrário destas e de sua tendência à uniformidade, a metrópole seria caracterizada pela heterogeneidade e pela “aleatoriedade aparente”, derivadas, na verdade, de uma cidade antiga em transformação. Nessa direção, a contradição ou o paradoxo entre “o aleatório e o sistemático, o visível e o oculto” (p. 216) seria o núcleo dessa estrutura de sentimento. O que os romances de Dickens “dramatizam” é justamente a percepção da mudança constante e da emergência de uma nova ordem concentrada na metrópole que era “a capital de uma economia e uma sociedade complexas, nacionais e transnacionais” (p. 215). O “tipo de observação” que não encara a cidade e seus personagens de maneira maniqueísta nem teleológica seria a marca distintiva de Dickens, problematizando as relações entre os indivíduos, as instituições sociais e a cidade concreta, entendidas como dimensões imbricadas da experiência tanto na realidade como nos romances. Daí a recorrência de nomes de personagens que remetem a instituições e orientações morais, além da atribuição de propriedades humanas a casas e prédios: “a experiência da cidade é o método da ficção; o método da ficção é a experiência da cidade” (p. 216). Os romances de Dickens atingiriam, portanto, “o âmago dinâmico dessa experiência social de transformação” (p. 227).

Nos capítulos seguintes (16, 17 e 18), a temática rural é retomada em um diálogo direto com The great tradition (1948), livro de F. R. Leavis (1895-1978). O capítulo “Comunidades cognoscíveis” é centrado nos romances de George Eliot, pseudônimo de Mary Ann Evans (1819-1880), inicialmente abordando as relações de continuidade e descontinuidade com Jane Austen. O termo “comunidades cognoscíveis” diz respeito aos recortes da realidade social operados pelas romancistas com vistas a constituir um espaço de análise e criação ficcional. Nessa direção, a comunidade cognoscível de Jane Austen seria a “rede de casas e famílias de proprietários e nos buracos dessa rede fechada situa-se a maioria das pessoas concretas, que simplesmente não são vistas” (p. 230). Com origem social desfavorável em relação à antecessora - embora essa caracterização seja bastante sumária para os casos de ambas-, George Eliot retrataria diversas frações das classes trabalhadora e média, mas panoramicamente e de maneira ainda estereotipada, segundo Williams. A estrutura de sentimento (19ª ocorrência) articulada pela romancista é interrogada diretamente:

Identifico-me suficientemente com os problemas enfrentados por George Eliot a ponto de me sentir capaz de expô-los pessoalmente; mais, a ponto de sentir que é isso que estou fazendo, de certo modo, já que a forma específica de inteligência e de estrutura de sentimento que ela representa ainda existe e é relevante (p. 234).

Essa ocorrência do termo envolve diretamente a dimensão autobiográfica, bem como o engajamento pessoal e político do autor. Seu desconforto em relação a George Eliot estaria na apreensão distanciada dos trabalhadores como indivíduos indiferenciados e desprovidos de autonomia e complexidade.

A discussão das trajetórias educacionais de George Eliot, Thomas Hardy (1840-1928) e D. H. Lawrence (1885-1930) permite a Williams identificar uma tradição cultural que desafiava o circuito recente e exclusivista constituído em torno das chamadas public schools21 21 . Contrariamente ao que o termo induz, trata-se das escolas particulares conhecidas por formar para as prestigiosas universidades de Cambridge e Oxford. inglesas e se filiar mais explicitamente a ela. O trio, apesar das origens sociais modestas - “Seus pais eram, respectivamente, um meirinho, um empreiteiro e um mineiro” (p. 235) -, teria alcançado um grau de escolaridade relativamente elevado (apesar de serem considerados pela história literária como “autodidatas”). Essa experiência social teria propiciado a esses autores, embora desigualmente, assumir um ponto de vista mais abrangente e realista, por incluir a classe trabalhadora na comunidade cognoscível de seus romances. No entanto, Eliot não teria levado essa mudança de perspectiva até o fim por recair em uma visão simplificadora e mesmo preconceituosa. Essa solução a meio caminho (20ª ocorrência), ambivalente, reconduziria à celebração das classes proprietárias e das mansões senhoriais.

A retrospecção rural mais extensa de George Eliot […] é a introdução de Felix Holt. É mais persuasiva e mais substancial do que o sonho do velho Lazer, mas em toda a sua estruturação revela com mais clareza ainda a estrutura de sentimento que estava sendo imposta ao campo (p. 245).

A expressão “sonho do velho Lazer”, recolhida de Adam Bede, expressaria essa adesão ambígua de Eliot ao mundo dos proprietários. Williams então conclui relacionando essa estrutura de sentimento (21ª ocorrência), ainda ligada ao bucólico, à “grande tradição” estabelecida por Leavis, identificada com a Inglaterra das mansões senhoriais:

Compreendemos então por que o sr. Leavis, o mais notável expoente dessa estrutura de sentimento, persiste no delineamento da grande tradição, de George Eliot a Henry James (p. 248).

O capítulo 17, “O campo em segundo plano” (The shadowed country), apresenta uma digressão histórica sobre as transformações da sociedade rural inglesa no século XIX, progressivamente subordinada à economia industrial e urbana. A parte final do capítulo analisa quatro escritores: Alexander Somerville (1811-1885), Joseph Arch (1826-1919), Joseph Ashby (1859-1919) e Richard Jefferies (1848-1887). Oriundos de famílias rurais modestas, eles eram filhos de trabalhadores ou pequenos agricultores desapropriados, divididos entre a identificação com seus grupos de origem e a subordinação aos grandes proprietários, dos quais dependiam para progredir na carreira literária. Apesar disso, em todos haveria uma reflexão sobre os efeitos das transformações no campo sobre os trabalhadores, permitindo inseri-los na linhagem antibucólica que desaguaria em Thomas Hardy.

A argumentação de Williams é apoiada em passagens autobiográficas, que explicitam novamente seu envolvimento pessoal com as questões tratadas. Na primeira, ele menciona falas orgulhosas de seu avô sobre episódios de caça que seriam momentos de desafogo diante da crise que afetou a quase totalidade dos trabalhadores rurais no curso do século XIX, dada a crescente concentração de terras típica do capitalismo agrário. A segunda e a terceira passagens dialogam diretamente com os autores analisados, registrando experiências familiares semelhantes às descritas pelos escritores, com destaque para a última delas, que se acopla a mais uma ocorrência da estrutura de sentimento (22ª ocorrência). Depois de mencionar a reivindicação, pelo “último Jefferies”, da “democratização do campo” por meio de diversas associações dos próprios trabalhadores, Williams afirma:

Trata-se de um reconhecimento crucial. Está ligado à minha própria opinião, formada no seio de uma família que viveu toda essa experiência, de que há mais espírito comunitário verdadeiro na aldeia moderna do que em qualquer época passada de que se tenha memória. As mudanças que ocorreram, através da democratização e das lutas econômicas, suavizaram e purificaram a velha ordem. Mas apegar-se a essa realidade é reconhecer uma extensão, um vínculo, pois, no sentido estrito, não se trata de uma visão rural. Ou, pelo menos, não parece, quando comparada com aquela estrutura de sentimento que, de certo modo, é derivada do primeiro Jefferies.

Fui obrigado a fazer este levantamento em minha mente, numa espécie de autoanálise, e Jefferies, mais do que qualquer um, proporciona um meio de fazê-lo (pp. 266-7; ênfase adicional).

Jefferies teria passado de uma atitude de reverência e subordinação (minimizando a exploração e os sofrimentos dos trabalhadores) a uma crítica contundente aos grandes proprietários - do bucólico ao antibucólico -, valorizando não um suposto passado rural estável e harmonioso, mas sim o tempo presente de resistência política das comunidades de trabalhadores rurais, apesar de toda violência e exploração que pesavam sobre elas. Não parece demais destacar a conexão direta entre estrutura de sentimento e reflexão autobiográfica, descrita como um esforço conjugado de “levantamento” e “autoanálise”, respaldando nossa interpretação de que essa articulação seria o principal suporte analítico do livro.

O capítulo 18, “Wessex e a fronteira”, é importantíssimo, uma vez que atribui a Thomas Hardy a melhor solução no interior da tradição literária que se ocupou das relações entre campo e cidade. Ele teria percebido como nenhum outro a complexidade da sociedade rural inglesa em mudança na segunda metade do século XIX e transposto para seus romances, sem estereótipos, as diversas frações das classes trabalhadora e média do capitalismo agrário. Novamente, a dimensão autobiográfica aparece marcadamente no capítulo através da identificação com o eixo que, segundo Williams, estaria presente em vários livros de Hardy: o do contraste entre tradição e educação, especialmente em Jude the obscure, no qual a possibilidade de ascensão social e mudança de vida por meio da escolarização e do acesso à universidade é tematizada diretamente na trajetória do protagonista. Não obstante, a desconcertante projeção de Williams em destinos trágicos, como Jude ou Clym (de O retorno do nativo), deixa entrever o provável dilaceramento que o acompanhou em sua trajetória muito bem-sucedida objetivamente (ao contrário desses personagens de Hardy).

Porém a questão é mais do que aprender termos e tons; é o que acontece conosco, o que realmente acontece conosco, quando tentamos atuar como mediadores desses mundos em contraste: quando nos colocamos na posição de um Jude que teve permissão de entrar; ou quando voltamos para nosso lugar de origem, nossa família, e percebemos, em termos de ideia e de sentimento, o que significa a expressão “a volta do nativo”. Isso tem uma importância especial para uma geração específica, de pessoas que vieram de famílias comuns, chegaram à universidade e têm de descobrir, durante toda uma existência, o que representa essa experiência (p. 271).

A percepção e a tematização da mudança social em curso justificariam o enquadramento de Hardy entre os mais importantes escritores ingleses do século XIX, com romances que ultrapassariam o domínio da ficção regional. Por meio dessa tomada de posição, Williams desafiava o cânone estabelecido especialmente por Leavis e Henry James (1843-1916). Sua argumentação restitui a origem social e familiar de Hardy Ele proviria, de fato, da camada média da sociedade rural - o pai “era um empreiteiro que empregava seis ou sete trabalhadores” (p. 273) -, tendo obtido uma formação educacional relativamente elevada para os padrões da época, embora sem chegar à universidade. Dessa posição, o escritor pôde atinar para as consequências desestabilizadoras das transformações econômicas tornadas ainda mais intensas com o avanço da industrialização. Nesses termos, a obra de Hardy não teria como referência o camponês de um passado idealizado, mas sim a crise de uma sociedade em mudança:

Do mesmo modo, é óbvio que na maioria das paisagens rurais existem características muito velhas e muitas vezes inalteradas, que mantêm uma escala temporal muito diferente. Hardy dava muita importância a elas, o que não surpreende quando levamos em conta toda a sua estrutura de sentimento. Mas todos esses elementos - como não podia deixar de acontecer num romancista desse tipo - ficam em segundo plano em relação aos relacionamentos interpessoais imediatos e concretos, que se desenrolavam dentro das pressões da época e eram, no máximo, modulados e interpretados pelas continuidades existentes (p. 285).

Considerado um inovador, a estrutura de sentimento identificada (23ª ocorrência) seria específica a Hardy, superando totalmente a convenção bucólica. A atenção do escritor se volta para as relações entre as diversas frações das classes intermediária e trabalhadora, incorporadas na integridade dos “processos cotidianos de vida e trabalho” (p. 287). Assim, a vida sentimental e os dramas pessoais teriam membros desses grupos como protagonistas complexos e individualizados, como sintetiza a passagem que contém a 24ª ocorrência do termo no final do capítulo:

A [estrutura de sentimento geral] de Hardy seria muito menos convincente se não houvesse nada além de alienação, frustração, separação e isolamento, catástrofes finais. O que é derrotado, mas não destruído, no final de The Woodlanders, ou no de Tess, ou no de Jude, é um calor humano, uma persistência no amor e no trabalho que constituem a definição necessária do que Hardy reconhece e lamenta como perda. O que é vital - e distingue Hardy de Lawrence, como veremos; uma diferença de geração e história pessoal, mas também de caráter - é que Hardy não celebra o isolamento e a separação (p. 289; intervenções nossas)22 22 .General structure of feeling, no original. .

Tanto o capítulo “Cidades de trevas e de luz” (19) quanto o seguinte, “A figura humana na cidade” (The figure in the city), se concentram na urbanização que avança com toda a força no século XIX, quando a população das cidades ultrapassa a rural, ao mesmo passo que o conjunto total cresce extraordinariamente. Tais aspectos justificariam outra digressão no vigésimo capítulo, que articula cidade e literatura na 25ª ocorrência do termo: “De formas diversas, nestes escritores muito diferentes, uma estrutura de sentimento comum estava se formando” (p. 317).

A análise percorre uma lista extensa, de Charles Dickens, James Thomson (1700-1748) e Richard Jefferies até Virginia Woolf (1882-1941) e James Joyce (1882-1941). A vertente representada por esses dois últimos é, contudo, discutida lateralmente. Segundo nos parece, esse aspecto da abordagem de Williams indica a assimetria de foco entre as literaturas rural e urbana em O campo e a cidade. Cabe assinalar que a discussão sobre essa vanguarda do romance urbano sempre enfatiza dinâmicas mais gerais, como, por exemplo, a transitoriedade e a fragmentação da experiência social e sua interiorização subjetiva problemática no contexto da grande cidade, mobilizando termos como “consciência angustiada”, “descontinuidade”, “atomização”, “formas de consciência aceleradas e separadas”. Nessas passagens, Williams quase não leva em conta as diversas elaborações literárias possíveis das classes em confronto e do proletariado especificamente, como seria de se esperar tendo em vista o eixo argumentativo do livro23 23 . Essa mudança de ênfase e registro analítico pode ser compreendida como estratégia (consciente ou inconsciente) de privilegiar a história do trabalhador rural em detrimento do urbano, pelo que Williams se contraporia diretamente às interpretações dominantes em certas vertentes do marxismo. .

Retomando esse eixo temático no capítulo 21, “O homem do campo hoje” (Surviving countrymen), Williams analisa as reações da literatura ao processo pelo qual “a Inglaterra rural tornou-se subsidiária” (p. 334), um “mundo centrado não na terra, mas no capital” (p. 335). Seria nesse quadro que os romances de Henry James passariam a tratar as mansões senhoriais não mais como centros do sistema social, mas como cenários ocupados por agentes totalmente alheios a elas: “Mas a questão é que a mansão senhorial, no século XX, possui esta qualidade de disponibilidade abstrata e indiferença de função” (p. 336). Ao mesmo tempo, viria à tona uma representação literária equivocada e estereotipada do trabalhador rural, transmutado na figura do camponês grosseiro. Outro resultado da subordinação do campo à cidade seria sua apreensão como “um lugar de regeneração física e espiritual”, núcleo de uma nova estrutura de sentimento (26ª ocorrência):

Agora, tinha-se a vida palpitante da natureza isolada, ou o ritmo sazonal dos processos vitais básicos. Em si, nenhum desses sentimentos era novo. O que havia de novo era a fusão dos dois de modo a originar uma estrutura de sentimento em que a terra e suas criaturas - animais e camponeses quase em pé de igualdade - constituíam uma afirmação de vitalidade e da possibilidade de repouso conscientemente contrastada com a ordem mecânica, as rotinas artificiais, das cidades (p. 339).

De tal modo, a literatura das primeiras décadas do século XX, especialmente os escritores georgianos - do período referente ao reinado de Jorge V (1910-1936) -, teriam se detido, apesar de suas pretensões realistas, sobre “imagens estranhas”, em ideias do rural e do bucólico já selecionadas e sedimentadas pela tradição. Todo esse artificialismo é contrastado por Williams à experiência de sua família:

Talvez minha família estivesse enganada: algumas coisas estavam fora do alcance de sua experiência. Mas essas pessoas não eram, e não são, personagens de uma decadência. A crise da Inglaterra rural, cujas consequências concretas elas sentiram na carne, não era a crise que fora projetada com base na experiência urbana e universitária. Era uma crise de salários, condições de vida e preços; do uso da terra e do trabalho na terra (pp. 345-6).

Significativamente, Williams toma partido de Brother to the ox, autobiografia de Fred Kitchen, um “trabalhador rural moderno” que, não por acaso, teria sido incentivado a escrever numa turma da Associação Educacional dos Trabalhadores. Sem mitificações, alusões ou ideias preconcebidas de outras classes, essa autobiografia, feita com observação aguda e veracidade, é então reivindicada como um dos raros relatos em primeira mão da vida dos trabalhadores rurais na literatura inglesa.

O capítulo 22 possui um título sugestivo, “De novo a fronteira” (The border again), recuperando o termo polissêmico border, que remete tanto a fronteiras geográficas entre países (notadamente, entre Inglaterra e País de Gales), como campo e cidade, ou ainda cultura tradicional e escolar - dimensões exploradas na análise dos escritos de D. H. Lawrence (1885-1930) e Lewis Grassic Gibbon (1901-1935). Deve-se notar, também, a referência direta ao País de Gales, que, juntamente com Escócia e Irlanda, abrigaria regiões não plenamente integradas à “ordem rural capitalista inglesa” e, por conta disso, teriam preservado um espírito comunitário resistente: “uma comunidade rural subordinada e relativamente isolada, consciente, em formas antigas e novas, de sua vida difícil, mas independente” (p. 362). Disso resultaria uma “autossuficiência espiritual”, núcleo significativo da 27ª ocorrência:

Temos aqui uma estrutura de sentimento claramente diferente. O apego espiritual a terra e ao trabalho, a ênfase “pagã” sempre implícita na imagística da terra (muito semelhante ao Lawrence do início de The rainbow, apesar da diferença de ritmos), está presente e é salientado nas novas lutas: durante a Greve Geral, no período de Cloud Howe, chegando à época das passeatas contra a fome, no período de Grey Granite (p. 363)

Na continuação desse trecho, Williams sugere que essa estrutura de sentimento pressupõe a positividade da militância política dos trabalhadores rurais, que teria continuidade na luta dos trabalhadores da indústria:

Numa visão mais histórica e mais convincente, a independência radical dos pequenos agricultores, artesãos e trabalhadores é encarada como uma fase de transição, levando à militância dos trabalhadores da indústria. Nesse momento, toda uma história tem sua forma transformada de maneira decisiva (p. 364).

A passagem explicita uma das principais frentes de combate do livro, qual seja: rejeitar a tendência predominante em um marxismo mais ortodoxo de dissociar os trabalhadores urbanos dos rurais, atribuindo protagonismo político apenas aos primeiros, e, de forma mais geral, de privilegiar o “progresso” urbano e industrial em relação ao “atraso” rural e agrícola. Contra essa posição, o crítico descendente de trabalhadores rurais galeses defende a unidade política do proletariado rural e urbano, apontando para a superação dessa distinção equivocada.

Outro contencioso aberto no capítulo envolve o modo pelo qual Lawrence é inscrito no cânone literário inglês, desarranjado pela aproximação inusitada entre um expoente da “grande tradição” como ele e Gibbon (escritor escocês considerado de menor expressão), operação analítica que se justifica não apenas pelo modo como ambos retratam a vida e o trabalho rural, mas também os múltiplos cruzamentos na fronteira entre campo e cidade. Desse movimento resulta o reposicionamento de Lawrence a meio caminho entre a apropriação pelo establishment da crítica literária e a desconfiança da intelectualidade progressista (devida a sua orientação política tida como reacionária).

Os dois últimos usos de estrutura de sentimento (ocorrências 28ª e 29ª) se dão no capítulo final. O título “Cidades e campos” inverte, no plural, os termos do primeiro (“Campo e cidade”), operação que reafirma o caráter processual e diverso da relação repertoriada em detalhe ao longo do livro. Nessa direção, tais ocorrências sintetizam conteúdos e formas mais gerais das variações referidas a contextos históricos específicos, oferecendo adicionalmente uma reflexão sobre o método de análise mobilizado pelo autor:

Já vimos que com frequência uma ideia do campo é uma ideia da infância: não apenas as lembranças localizadas, ou uma lembrança comum idealmente compartilhada, mas também a sensação da infância, de absorção deliciada em nosso próprio mundo, do qual no decorrer do processo de amadurecimento, terminamos nos distanciando e nos afastando, de modo que essa sensação e o mundo tornam-se coisas que observamos. Em Wordsworth e Clare, bem como muitos outros escritores, essa estrutura de sentimento é expressa de modo poderoso, e já vimos de que modo ela frequentemente é em seguida convertida em ideias ilusórias do passado rural: temos aquelas sucessivas, sempre retrospectivas, “Inglaterras felizes da minha infância” (pp. 397-8).

Apoiar a análise na reconstrução das estruturas de sentimento permitiria sopesar, nos diversos períodos e escritos considerados, impressões e avaliações a favor dos proprietários e percepções críticas sobre os conflitos sociais inscritos no longo desenvolvimento capitalista tal como cristalizados na literatura, envolvendo no mesmo passo, portanto, reconstrução histórica e crítica textual. A ocorrência seguinte reforça a dimensão política da análise tal como pretendida por Williams.

Finalmente, o que temos a dizer é que vivemos num mundo no qual o modo de produção e as relações sociais dominantes ensinam, inculcam e se propõem a normalizar, e mesmo a petrificar, modos de percepção e ação distanciados, separados e externos: modos de usar e consumir, em vez de aceitar e desfrutar, pessoas e coisas. A estrutura de sentimento das memórias é, portanto, significativa e indispensável enquanto reação a essa deformação social específica (pp. 398-99).

Vale notar, mais uma vez, que a referência direta à “estrutura de sentimento das memórias” reforça a dimensão reflexiva e o viés interpretativo particular que ela impõe ao livro. Não por acaso, no item seguinte Williams discute dois romances de sua autoria, Border country (1960/2013) e Second generation (1964), o primeiro sendo um livro com caráter autobiográfico evidente e que significativamente encaminha o fechamento de O campo e a cidade.

No final dos anos 1940 percebi que finalmente havia me afastado da aldeia onde me criei. Comecei a escrever a respeito de minha visão dessa experiência, nas sete versões que acabaram formando o romance Border country. Através dessas versões, descobri-me relacionando a minha experiência a um processo histórico mais geral de mobilidade física e social e, além disso, a uma crise de instrução e classe - que explorei e, em seguida, retomei ao ler, como se pela primeira vez, os romances de George Eliot, Hardy e Lawrence. Também fui obrigado a olhar para a aldeia mais uma vez, estabelecendo uma certa tensão entre minhas lembranças de infância e a experiência adulta da geração de meu pai (pp. 399-400).

O trecho reforça a imbricação entre os relatos autobiográficos presentes no livro e seu eixo argumentativo, o que confere à interpretação de Williams um tom muito pessoal e político. Do ponto de vista subjetivo, a obra pode ser entendida como uma tentativa de equacionar o dilaceramento provocado pelo fato de ele ter migrado de sua comunidade de origem e ascendido socialmente pela educação. Tampouco se deve desconsiderar que essa tentativa converge para o trabalho metodológico de articular as dimensões objetiva e subjetiva frequentemente separadas pelas análises. Do ponto de vista político, por sua vez, trata-se de combater a associação - ainda hoje com bastante apelo nas fileiras comunistas e progressistas - do campo ao atraso e a representação da cidade como o espaço a partir do qual a revolução socialista seria realizada. Contrariando essas imagens, Williams destaca a centralidade persistente da agricultura e da pecuária nas economias periféricas e na totalidade do sistema capitalista mundial. O esforço por restituir o lugar da economia rural no quadro mais amplo do capitalismo joga luz sobre outro ponto importante do argumento de Williams, qual seja, a tarefa política de enfrentar não o industrialismo, mas o capitalismo: “Nem a cidade irá salvar o campo, nem o campo, a cidade. Em vez disso, a velha luta travada em ambos se tornará um conflito generalizado, o que num certo sentido ela sempre foi” (p. 403).

Considerações finais

Antes de arriscarmos uma sistematização das ocorrências de estrutura de sentimento em O campo e a cidade, lembramos que é preciso evitar seu entendimento como um conceito abstrato e fechado (com contorno, conteúdo e alcance predefinidos).

Uma das principais especificidades da estrutura de sentimento em O campo e a cidade (1973) relaciona-se com sua ocorrência em quase todos os capítulos, que lhe confere um caráter axial na argumentação desenvolvida, organizando uma reconstrução histórica de longa duração sobre a literatura produzida no curso do desenvolvimento capitalista da agricultura inglesa. Lembramos ainda que, em livros anteriores, essa ferramenta analítica é mobilizada em partes específicas e se refere a períodos relativamente circunscritos, como se dá em Cultura e sociedade (1958) e The long revolution (1961), respectivamente nos capítulos “Os romances industriais” e “The analysis of culture”.

Tentemos a partir de agora sintetizar o método de O campo e a cidade e o modo como a estrutura de sentimento é mobilizada, tomando como referência uma passagem especialmente representativa:

Pois o que é cognoscível não é apenas uma função dos objetos - do que há de ser conhecido; é também uma função dos sujeitos, dos observadores - do que é desejado e se precisa conhecer. E o que temos de ver então, como sempre, na literatura rural, não é apenas a realidade da comunidade rural: é também a posição do observador nela e em relação a ela; uma posição que faz parte da comunidade que se quer conhecer (p. 229).

A citação condensa as dimensões levadas em conta na interpretação das diversas estruturas de sentimento no livro. Seus condicionantes principais seriam a origem familiar dos escritores e escritoras, a educação formal e as relações de produção envolvidas na criação literária, especificamente, dependência direta (submissão ao patronato), dependência indireta (vinculação à Igreja) ou independência parcial (inserção no mercado). Levando em conta tais aspectos, nem sempre explicitados, Williams identifica nas formas literárias os modos de figuração das diferentes classes e frações de classe em luta no processo histórico, sempre confrontados à sua própria experiência e memória biográfica.

Mais concretamente, Williams analisa a transição entre estruturas de sentimento bucólicas e antibucólicas. As primeiras seriam encarnadas e expressas por escritores submetidos ao patronato dos grandes proprietários (aristocracia) e associados ao seu modo de dominação, materializado e simbolizado pelas mansões senhoriais. As segundas seriam articuladas por escritores gradativamente autônomos - primeiro os escritores clérigos e depois os escritores profissionalizados -, cada vez mais atentos e solidários (apesar das ambivalências) às classes trabalhadoras e aos grupos intermediários.

Sua perspectiva associa análise histórica e literária sob a luz da própria experiência biográfica, resultando na reivindicação de uma revisão intelectual e política das representações sobre o campo e os trabalhadores rurais. Esse posicionamento deve ser compreendido no interior das disputas que enfrentou, sobretudo em relação a dois grupos principais, um à direita e outro à esquerda: os críticos literários conservadores e os historiadores marxistas.

O embate com a crítica literária de extração conservadora exercida em Cambridge e pelo grupo da revista Scrutiny, sob a liderança do casal Leavis, envolveu o questionamento do cânone estabelecido em The great tradition (1948). Com base em critérios realistas de avaliação das obras, Williams destaca autores considerados menores, sobretudo reivindicando Thomas Hardy como um expoente do romance inglês e não como um escritor circunscrito à literatura regional. Ao contrário de romancistas consagrados pela crítica, como George Eliot e Henry James, Hardy teria alcançado uma estrutura de sentimento propriamente antibucólica, atenta à realidade das classes trabalhadora e intermediárias, bem como à complexidade das mudanças em curso nas relações entre campo e cidade. Desse modo, ele teria superado oposições redutoras, inaugurando uma nova vertente literária, à qual o próprio Williams viria se filiar, quer como romancista - em especial com Border country -, quer como intelectual acadêmico (com destaque para o próprio O campo e a cidade). Em termos políticos, portanto, ele combatia a crítica conservadora inglesa e sua defesa, em chave elitista, de uma comunidade moral forte assentada na alta cultura, associada à nostalgia das mansões senhoriais e ao sistema de poder que ela simbolizava.

Na outra frente, Williams responde às reservas a ele dirigidas em resenhas e comentários circunstanciais por seus companheiros da Nova Esquerda, principalmente os historiadores marxistas E. P. Thompson (1961THOMPSON, E. P. (July-August 1961), “The long revolution (Part II)”. New Left Review, I (10): 34-39.) e Perry Anderson (expressas na entrevista publicada em A política e as letras). Eles questionaram o caráter supostamente abstrato dos livros Cultura e sociedade e The long revolution, que teriam desconsiderado os conflitos de classes envolvidos nos processos históricos e literários examinados. Essa crítica se relacionava com o posicionamento desses agentes no interior daquele movimento político (dividido por linhas programáticas e geracionais), no qual Williams representaria uma posição mais moderada e reformista. Convém ressaltar ainda que, nos primeiros anos da Nova Esquerda, Williams estava filiado ao Partido Trabalhista, do qual se desligaria em 1966. Thompson e Anderson, por sua vez, nunca foram filiados ao partido e sempre assumiram uma atitude mais combativa em relação ao mesmo (Rivetti, 2021).

Por um lado, em O campo e a cidade, Williams parece aceitar as reservas dirigidas aos seus trabalhos anteriores, como sugere a centralidade atribuída à história social e ao conflito de classes nesse livro. Por outro, reage às críticas políticas que lhe foram imputadas explicitando sua origem social - como descendente direto de trabalhadores rurais (diferentemente de Thompson e Anderson, de origem social relativamente elevada) -, introduzida, também, como um mecanismo de legitimação de sua posição no interior do marxismo inglês. Nessa direção, combate a desqualificação política dos trabalhadores rurais, postulando a equivalência estrutural com o proletariado urbano no interior do capitalismo e na luta por sua superação. Essa defesa supunha uma crítica profunda ao que designou como “ambiguidade do marxismo”:

Marx e Engels denunciavam o que estava sendo feito no progresso dilacerador do capitalismo e do imperialismo; insistiam em que era necessário que os homens lutassem no sentido de suplantá-los e nos indicaram alguns caminhos. No entanto, nessa denúncia estava implícito um outro conjunto de julgamentos de valor: a burguesia havia “salvado uma parte considerável da população da idiotice da vida rural”; as nações subjugadas eram “bárbaras e semibárbaras”; as potências dominantes eram “civilizadas”. Assim, com base nesse tipo de confiança nos valores singulares de modernização e da civilização foi criada uma distorção fundamental na história do comunismo. O proletariado urbano empobrecido aprenderia e criaria novas formas de sociedade, superiores à existente: se a mensagem fosse apenas isso, tudo teria sido muito diferente. Mas, se as formas de desenvolvimento burguês continham, apesar de suas contradições, valores superiores à “idiotice rural” e à “barbárie”, então praticamente qualquer programa, em nome do proletariado urbano, podia ser justificado e imposto. A ironia terrível disso tudo é que os processos concretos da prioridade absoluta dada à cidade e à indústria, bem como a consequente prioridade dada às nações avançadas e civilizadas, tiveram o efeito de prejudicar não apenas os “idiotas rurais” e “bárbaros e semibárbaros” coloniais, mas também os próprios proletários urbanos, bem como as sociedades avançadas e civilizadas sobre as quais, por sua vez, as prioridades exerceram sua dominação, numa estranha distorção dialética. Ver que a pobreza gerava a revolução era uma coisa; achar que mais pobreza geraria algo completamente diferente era, na melhor das hipóteses, uma esperança apocalíptica (pp. 405-406)24 24 . Vale notar que nessa passagem Williams não apenas reivindica a equivalência entre trabalhadores urbanos e rurais como do centro e da periferia. .

Finalmente, o recurso à perspectiva autobiográfica e à estrutura de sentimento como instrumentos de análise articulados permitiu ao autor perscrutar a tradição da literatura rural inglesa e sua base social, explicitando o viés por ele adotado. Especialmente nesse livro, estrutura de sentimento é uma ferramenta que permite conciliar análise textual rigorosa a uma posição política muito pessoal e nitidamente enunciada no curso da argumentação. Nesse sentido, o livro encerra uma tentativa de elaborar os embaraços a um só tempo subjetivos e objetivos derivados da ascensão pela educação e de uma carreira acadêmica muito bem-sucedida. Se, de um lado, esse deslocamento no espaço social trouxe a Williams segurança material e enorme reconhecimento, de outro, o constituiu como um indivíduo cindido entre origem e destino.

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  • THOMPSON, E. P. (July-August 1961), “The long revolution (Part II)”. New Left Review, I (10): 34-39.
  • 1
    . Uma versão anterior deste trabalho foi discutida no Núcleo de Sociologia da Cultura da USP. Agradecemos às nossas e aos nossos colegas os comentários, críticas e sugestões que ajudaram a aperfeiçoar o trabalho. Também agradecemos a Alejandro Blanco a leitura cuidadosa. Este trabalho contou com o apoio financeiro da Capes.
  • 2
    . A noção já havia aparecido em diversos outros trabalhos, mas nunca com tanta centralidade. Os livros principais em que foi mobilizada são: Drama from Ibsen to Eliot (1952), Drama em cena (1954), Cultura e sociedade (1958), The long revolution (1961), Tragédia moderna (1966), The English novel from Dickens to Lawrence (1970) e Marxismo e literatura (1977).
  • 3
    .The country and the city: A film with Raymond Williams (1979). Direção: Mike Dibbs. Produção executiva: Christopher Martin. Where we live now: Five writers look at our surroundings, BBC (60 min.). Disponível em http://mikedibb.co.uk/filmdet.php?filmid=30. Acesso em 15 jun. 2020.
  • 4
    . Seguiremos a tradução de Paulo Henriques Britto para a primeira edição de O campo e a cidade (Companhia das Letras, 1990). No caso de eventual discordância, incluiremos o termo original entre parênteses ou proporemos soluções alternativas assinaladas por nota.
  • 5
    . Sobre a noção de estrutura de sentimento, na bibliografia internacional, ver: Wallis (1993WALLIS, Mick. (1993), “Present consciousness of a practical kind: Structure of feeling and higher education drama”. In: MORGAN, W. John & PRESTON, Peter. Raymond Williams: Politics, education, letters. Nova York, St. Martin’s Press, pp. 129-162.), Higgins (1999HIGGINS, John. (1999), Raymond Williams. Literature, marxism and cultural materialism. Londres e Nova York, Routledge.); Filmer (2003FILMER, Paul. (July 2003), “Structures of feeling and socio-cultural formations: the significance of literature and experience to Raymond Williams’s sociology of culture”. British Journal of Sociology, 54 (2): 199-219.) e Middleton (2020MIDDLETON, Stuart. (2020), “Raymond Williams’s ‘structure of feeling’ and the problem of democratic values in Britain, 1938-1961”. Modern Intellectual History, 17 (4): 1133-1161.).
  • 6
    . Em contraste com livros anteriores como Cultura e sociedade e The long revolution, nos quais o conceito aparece em capítulos específicos, articulando análises de processos históricos de menor duração.
  • 7
    . A estratégia tem em As utilizações da cultura, publicado em 1957 por Richard Hoggart, um precedente decisivo. Nesse livro a experiência biográfica é um recurso ainda mais direto e constitutivo da argumentação. Numa resenha ao livro, na primeira hora, Williams ([1957] 1993, pp. 106; 110) elogia o esforço no sentido de superar Fiction and the reading public, de Quenie Leavis, examinando os documentos tendo em vista um público leitor constituído por pessoas reais. Ao tentar compatibilizar métodos da crítica literária com observação pessoal e social - “escrevendo não como visitante, mas um nativo” -, Hoggart teria ampliado a discussão, mas encontrado “problemas literários” que não teria conseguido equacionar satisfatoriamente. Sugestivamente, o próprio resenhista admite não saber “como esse mundo de fatos e sentimentos poderia ser mediado, a não ser por termos tradicionalmente imaginativos”. A ressalva deixa entrever os contornos do projeto intelectual a que o próprio Williams se dedicaria, quer sob forma de romance, quer academicamente. Não soa despropositado tomar justamente estrutura de sentimento como o modo por excelência de operar aquela mediação.
  • 8
    . Essa posição envolve um debate importante no interior do marxismo inglês: o estatuto dos grupos sociais, especialmente os dominados, na longa transição entre o feudalismo e o capitalismo na Grã-Bretanha.
  • 9
    . A perspectiva autobiográfica não se restringe a O campo e a cidade. Como destacado por David Simpson (1995SIMPSON, David. (1995), “Raymond Williams: Feeling for Structures, Voicing ‘History’”. In: PRENDERGAST, Christopher (ed.). Cultural materialism. On Raymond Williams. Minneapolis, University of Minnesota Press, pp. 29-50., pp. 31-32), os trabalhos de Williams encerram uma voz muito particular. Qualquer que seja o caráter (crítico, criativo ou jornalístico), o autor sempre assumiria um modo de escrita “dramático”, pelo qual apresentaria sua própria experiência como historicamente representativa.
  • 10
    . No original quase todas as ocorrências do conceito estão no singular: structure of feeling. Essa primeira é a única exceção, mas apenas o primeiro termo (structures) é flexionado. Em função disso, optamos por manter a tradução consolidada pela edição brasileira nos trechos citados, mas ajustando a grafia.
  • 11
    . Descritas por Eric Hobsbawm no capítulo sobre a Revolução Industrial de A era das revoluções.
  • 12
    . Embora Williams não leve tanto em conta esse problema, vale notar que parcela expressiva dos escritores no período pertenciam à Igreja anglicana - os clérigos ou párocos responsáveis pelos presbitérios, personagens recorrentes nos romances ingleses dos séculos XVIII e XIX. Tal grupo era formado nas universidades de Cambridge e Oxford, experiência que possivelmente lhes conferia alguma independência de opinião em relação aos grandes e pequenos proprietários, dos quais descendiam e para os quais prestavam serviços religiosos e intelectuais. O ponto de vista deles, em relação à nobreza, seria mais sensível às classes dominadas.
  • 13
    .Morality of improvement, no original. A palavra “melhoramento” se refere tanto às mudanças estéticas da casa e do jardim, como à introdução de novas técnicas de produção agrícola e relações de trabalho capitalistas.
  • 14
    . “Senhor, me deste uma casinha/ Bem pequenina,/ Telhado humilde, resistente/ À chuva e ao vento […]/ A porta é baixa e mofina,/ Qual a minha sina,/ Mas está sempre aberta aos pobres/ Que a ela acorrem” (pp. 103-104).
  • 15
    .Romantic structure of feeling, no original.
  • 16
    . Na primeira ocorrência do termo “estrutura de sentimento” de Cultura e sociedade, Williams afirma que as “mudanças de convenção só ocorrem quando existem mudanças radicais na estrutura de sentimento geral” (p. 63), e parece ser justamente o que se dá aqui, na passagem do bucólico para o antibucólico.
  • 17
    . A solução ambígua de Crabbe, segundo nossa interpretação, teria como base a ambivalência de sua posição social, por um lado dependente (porque os presbitérios estavam localizados no interior das terras da nobreza, e os clérigos dependiam da indicação dos nobres para ocupá-los), por outro, independente (porque os clérigos eram autoridades religiosas e tinham formação acadêmica).
  • 18
    . O título alude a três escritores, dos quais o terceiro, Gilbert White, é menos importante no desenvolvimento do capítulo e também para a nossa argumentação.
  • 19
    . Talvez a visão de Williams sobre Jane Austen pudesse ser mais favorável, entretanto, se ele levasse em conta as relações de gênero. Ela responde ao contexto como uma representante da pequena nobreza, mas também como mulher, valendo notar o peso das autorias femininas no romance inglês. De qualquer forma, o que mais interessa a Williams é a percepção fina, pela autora, das interações entre as diversas frações das classes dominantes, em torno da grande questão do mercado matrimonial e das tensões entre campo e cidade, o primeiro claramente privilegiado por Austen como o espaço de uma vida autêntica, sobretudo, para a nobreza educada, tão valorizada e à qual ela pertencia.
  • 20
    . Se não há uma afirmação explícita nessa direção, existem algumas passagens que fundamentam essa afirmação, como a seguinte: “Porém era um novo tipo de poeta, assim como um novo tipo de natureza, que estava sendo formado” (p. 185).
  • 21
    . Contrariamente ao que o termo induz, trata-se das escolas particulares conhecidas por formar para as prestigiosas universidades de Cambridge e Oxford.
  • 22
    .General structure of feeling, no original.
  • 23
    . Essa mudança de ênfase e registro analítico pode ser compreendida como estratégia (consciente ou inconsciente) de privilegiar a história do trabalhador rural em detrimento do urbano, pelo que Williams se contraporia diretamente às interpretações dominantes em certas vertentes do marxismo.
  • 24
    . Vale notar que nessa passagem Williams não apenas reivindica a equivalência entre trabalhadores urbanos e rurais como do centro e da periferia.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    06 Fev 2023
  • Aceito
    13 Abr 2023
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