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A gestão empresarial das memórias sensíveis: Poderes, sentidos e práticas em torno do Cais do Valongo no Rio de Janeiro

Business management of sensitive memories: powers, meanings and practices around Cais do Valongo in Rio de Janeiro/RJ

Resumo

Neste artigo, analisamos os feixes de poder que possibilitaram a inscrição do sítio arqueológico Cais do Valongo como patrimônio mundial. Através de documentos, trabalho de campo e literatura especializada, destacamos três cenários: a incorporação de ativistas dos movimentos negros à administração pública no final dos anos 1970, a legitimação internacional das agendas afro-brasileiras pelo projeto A Rota do Escravo da Unesco e o incremento à indústria turística durante a operação urbana Porto Maravilha no início do século XXI. Argumentamos que a territorialização das memórias da escravidão foi impulsionada por uma gestão empresarial das identidades culturais, em que métodos e procedimentos técnicos se impuseram como modelo de ação política. Desse modo, concluímos que o discurso da identidade afro-brasileira se integrou às novas dinâmicas de acumulação do capital e de mercantilização cultural, com os sentidos e práticas em torno do cais agregando as lógicas do dever de memória e da regulação concorrencial.

Palavras-chave:
Patrimônio cultural; Escravidão; Unesco; Porto Maravilha; Sítio arqueológico Cais do Valongo

Abstract

In this article, we analyze the nets of power that allowed the inscription of the archaeological site Cais do Valongo as a World Heritage Site. Through documents, fieldwork, and specialized literature, we highlight three scenarios: the incorporation of black activists into public administration in the late 1970s, the international legitimacy of Afro-Brazilian agendas by Unesco’s Slave Route project and the increase to the tourism industry during the urban operation Porto Maravilha at the beginning of the 21st century. We argue that the territorialization of the memories of slavery was driven by a business management of cultural identities, in which technical methods and procedures were imposed as a model of political action. In this way, we conclude that the Afro-Brazilian identity discourse was integrated into the new dynamics of capital accumulation and cultural commodification, with the meanings and practices around the wharf aggregating the logic of the duty of memory and competition regulation.

Keywords:
Cultural heritage; Slavery; Unesco; Port Wonder; Archaeological site Cais do Valongo

O Cais do Valongo foi palco de uma terrível tragédia humana. No início do século XIX, a administração colonial portuguesa ergueu o atracadouro na região portuária da cidade do Rio de Janeiro, por onde historiadores estimam terem aportado 900 mil africanos escravizados. No afã de modernizar a então capital republicana do país, no lumiar do século XX a Prefeitura soterrou o local e sobre ele construiu uma praça. Em 2011, uma equipe arqueológica desvelou suas ruínas e diversos objetos de uso religioso e cotidiano, ação seguida do registro do conjunto como “sítio arqueológico e histórico de memória sensível” pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em reconhecimento ao sofrimento dos afrodescendentes no Brasil (Iphan e PCRJ, 2016). Após obras e estudos, em 2017 a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) o inscreveu como patrimônio mundial.

Neste artigo, recorremos a documentos oficiais, trabalho de campo e literatura especializada para a análise dos feixes de poder que possibilitaram a inscrição do Cais do Valongo como patrimônio mundial. Destacamos três cenários: a promoção, a partir do final dos anos 1970, de um projeto nacional conciliatório entre pleitos populares e privatização da economia, que possibilitou a incorporação de ativistas dos movimentos negros em instâncias da administração pública; a legitimação internacional das agendas afro-brasileiras através do projeto A Rota do Escravo da Unesco, articulado nos anos 1990; e a comunhão de interesses públicos-privados no incremento da indústria turística durante a execução da operação urbana Porto Maravilha, na região portuária carioca, nas duas primeiras décadas do século XXI1 1 . Os dados e análises apresentados neste artigo foram baseados em pesquisas sobre os processos de reconhecimento da memória negra na região portuária no Rio de Janeiro (Guimarães, 2012, 2013, 2014, 2016) e sobre os processos de formação do Estado brasileiro e suas modalidades de operação (Castro, 2009; Guimarães e Castro, 2021). As atividades recentes de pesquisa contaram com o financiamento da bolsa Jovem Cientista do Nosso Estado (Faperj, 2018-2022) para o projeto As mediações de arquitetos e urbanistas nos processos de patrimonialização da cidade do Rio de Janeiro, coordenado por Roberta Sampaio Guimarães. .

Argumentamos que a inscrição do sítio arqueológico Cais do Valongo como patrimônio mundial foi impulsionada pelo manejo de habilidades gerenciais e pela ideia corrente de que uma memória cultural só se estabeleceria se fosse competitiva. Entre conflitos, disputas e adesões, os atores sociais institucionalizados (ou que buscavam ampliar suas presenças na administração pública) se voltaram então para a participação em grupos de trabalho, audiências públicas e seminários de capacitação. Nesses encontros, orientaram-se sobre estratégias orçamentárias, políticas de fomento e métodos de elaboração de editais e captação de recursos voltados para a difusão do patrimônio e do turismo cultural, tendo em vista a inserção do local na indústria cultural.

Desse modo, postulamos que uma gestão empresarial das identidades culturais foi operada por meio de métodos e procedimentos técnicos, impondo-se como modelo de ação política. Pois, através de esforços para o desempenho econômico do sítio (e de outros lugares a ele associados, via criação do Circuito de Herança Africana), os agentes sociais desenvolveram formas de governar reguladas pela concorrência, transformando-se em sujeitos de racionalidade neoliberal (Laval, 2018LAVAL, Christian. (2018), Foucault, Bourdieu et la question néolibérale. Paris, La Découverte.). No decurso de negociações, cooperações e parcerias com agentes imbuídos de diferentes poderes, o discurso de identidade afro-brasileira se integrou então às novas dinâmicas de acumulação do capital e de mercantilização cultural, fazendo com que os sentidos e práticas em torno do cais agregassem as lógicas do dever de memória e da regulação concorrencial.

Negociações sociais e modos de comunicar a dor

Memoriais, monumentos, filmes, autobiografias, testemunhos e outras formas de inscrição de memórias ligadas a eventos dolorosos têm se proliferado em diferentes contextos socioculturais, suscitando formas novas de enquadramento histórico e de gestão de conflitos. No caso da tragédia da escravidão no Brasil, foi por meio do registro dos vestígios do Cais do Valongo como “sítio arqueológico de memória sensível” que o Estado brasileiro expressou seu reconhecimento ao sofrimento do povo africano frente à migração forçada, em uma sinédoque que dotaria o bem de “ressonância cultural” (Greenblatt, 1991GREENBLATT, Stephen. (1991), “O novo historicismo: ressonância e encantamento”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, 4 (8): 244-261., p. 42).

Essa indexação patrimonial como evento traumático nos fez indagar sobre as negociações que haviam sido travadas em torno de tópicos controversos, como a nomeação dos agentes envolvidos nos atos violentos e os limites impostos aos modos de comunicar a dor. A gênese de tais questões remontavam aos debates que despontaram ao final dos anos 1970 sobre o Holocausto, os presos políticos das ditaduras latino-americanas, as comissões de verdade e reconciliação na África pós-apartheid, entre outros episódios ligados ao colonialismo e às guerras mundiais. Foi nesse contexto que, de forma inédita, a Unesco arrolou como patrimônios mundiais dois sítios que evocavam ideias de atrocidade, dor e vergonha: o campo de concentração nazista alemão de Auschwitz-Birkenau; e a prisão de Robben Island, local de detenção do líder sul-africano Nelson Mandela. Lugares e instituições que, ao representarem o legado de massacres, genocídios, prisões e guerras, foram chamados por alguns pesquisadores de “patrimônios difíceis” (Logan e Reeves, 2009LOGAN, William & REEVES, Keir (eds.). (2009), “Introduction: remembering places of pain and shame”. In: Places of pain and shame: dealing with “difficult heritage”. Londres, Routledge, pp.1-14.; MacDonald, 2009MACDONALD, Sharon. (2009), Difficult heritage: negotiating the Nazi past in Nuremberg and beyond. Londres, Routledge.).

Entre reflexões sobre o passado e expectativas de superação das fissuras sociais, diversas sociedades e grupos se voltaram para a fabricação de uma nova consciência de si e para a reelaboração pública de suas memórias coletivas. Nesse cenário, o Holocausto se consolidou como figura de linguagem universal do trauma, e as recordações do genocídio do povo judeu serviram de metáfora para variadas circunstâncias (Huyssen, 2000HUYSSEN, Andreas. (2000), Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro, Aeroplano.). Um alargamento de sentidos que se mostrou capaz de abarcar outras vozes que denunciavam experiências de sofrimento ou de violação de direitos humanos. Vozes que desejavam visibilizar o que antes parecia indizível (Wierviorka, 1998WIERVIORKA, Annette. (1998), L’Ère du témoin. Paris, Plon.).

A ascendência do léxico do dever e direito de memória muniu comunidades políticas de noções como reconhecimento, reparação e justiça, possibilitando a construção social da violência e das figuras das vítimas e algozes (Ledoux, 2016LEDOUX, Sébastien. (2016), Le Devoir de mémoire. Une formule et son histoire. Paris, CNRS.; Fassin e Rechtman, 2011FASSIN, Didier & RECHTMAN, Richard. (2011), L’empire du traumatisme. Enquête sur la condition de victime. Paris, Flammarion.). Em suas falas, essas coletividades fundiram então diferentes ciclos e momentos, conformando um tempo social único que se apresentasse apto a comunicar sentimentos de dor, heroísmo e resistência, a ocupar espaços institucionais, jurídicos e científicos e a embasar ações pedagógicas, artísticas e culturais. Um arroubo memorialista que invadiu desde narrativas sobre conflitos locais até massacres de proporções mundiais, em que a própria articulação da ideia de patrimônio se tornou “uma maneira de viver as rupturas, de reconhecê-las e reduzi-las, referindo-se a elas, elegendo-as, produzindo semióforos. […] um recurso para o tempo de crise” (Hartog, 2006HARTOG, François. (2006), “Tempo e patrimônio”. Varia Historia, Belo Horizonte, 22 (36): 261-273, jul., p. 272).

Assim, propomos que modalidades de transmissão de memórias e de formação de uma opinião pública sobre eventos do passado, tais como filmes, museus, monumentos, sites na internet, novelas, músicas etc., passaram a compor uma modalidade de gestão de eventos violentos. O que não é o mesmo que acusar todo e qualquer produto cultural de manipulação política, mercadorização ou banalização do sofrimento. Seguimos apenas a sugestão de Huyssen (2014) de que eles constituiriam a própria memória cultural e, portanto, buscamos acioná-los como uma chave de entendimento sobre as formas de as sociedades lidarem com suas fissuras.

É à luz dessas considerações que analisamos os feixes de poder que promoveram o sítio arqueológico Cais do Valongo. Não temos, contudo, a intenção de fazer uma sociogênese da construção da identidade afro-brasileira ou de abarcar a diversidade dos atores envolvidos e de seus embates políticos. O que desejamos é apresentar alguns cenários de formulação da narrativa oficial sobre a participação do país no tráfico escravista, sua circulação por instâncias administrativas, a legitimação por ritos estatais, e os produtos culturais que a difundiram e consolidaram (Bourdieu, 2012BOURDIEU, Pierre. (2012), Sur l’État. Cours au Collège de France 1989-1992. Paris, Seuil.).

A criação de um lugar estatal para a identidade afro-brasileira

Discussões sobre as memórias sensíveis brasileiras ecoaram ao final dos anos 1970, quando se iniciou a redemocratização do país após o golpe civil-militar de 1964. A emergência de uma classe trabalhadora apta a liderar as primeiras greves e a agregar diversas demandas populares e progressistas foi o indício das transformações que estavam em curso. As formas da sociedade brasileira de lidar com a violência e garantir a efetivação de direitos civis e sociais passaram então a ser debatidas a partir de eventos diversos, como os relativos às perseguições e prisões políticas ocorridas nos governos militares, aos efeitos do colonialismo sobre as populações indígenas e afrodescendentes e às agressões sofridas por segmentos vulneráveis, como mulheres, crianças e idosos. Discussões difíceis porque, entre outros aspectos, apresentavam o risco de cristalizar identidades e excluir grupos e experiências desarticulados ou não reconhecidos (Sarti, 2011SARTI, Cynthia. (2011), “A vítima como figura contemporânea”. Caderno CRH, Salvador, 24 (61): 51-61, abr.).

Foi nesse contexto que militantes e organizações de vários estados fundaram em 1978 o Movimento Negro Unificado (MNU) e projetaram à nação uma agenda de afirmação da identidade afro-brasileira. Suas lideranças haviam nascido entre os anos 1940 e 1950, em famílias das camadas populares e dos estratos médios urbanos. Ao ingressarem nas universidades durante a ditadura, depararam com mobilizações estudantis, formações partidárias clandestinas e ideários da esquerda marxista (Rios, 2012RIOS, Flávia. (2012), “O protesto negro no Brasil contemporâneo (1978-2010)”. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, São Paulo, 85: 41-79, maio.). Manifestações de cunho racial também lhes serviram de inspiração, como a associação de poetas de língua francesa Négritude, o jornal Quilombo de Abdias do Nascimento, as lutas pela descolonização dos países africanos e os grupos norte-americanos Black Power e Panteras Negras (Alberti e Pereira, 2007ALBERTI, Verena & PEREIRA, Amilcar. (2007), “Significados da África para o movimento negro do Brasil”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, 39: 25-56, janeiro.). No embalo das transformações nacionais e internacionais, esses ativistas constituíram um campo de forças capaz de articular pautas próprias, pleitear espaços dentro da máquina da administração pública e contestar o discurso hegemônico de “democracia racial”, que celebrava a suposta convivência harmônica entre grupos culturais-raciais brasileiros (Guimarães, 2001GUIMARÃES, Antonio Sergio. (2001), “Democracia racial: o ideal, o pacto e o mito”. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, 61: 147-162, nov.).

A consolidação política do movimento possibilitou que elegessem parlamentares comprometidos com a causa afro-brasileira e receptivos aos temas da compensação, reparação e indenização aos danos causados pela escravidão e à luta pelo controle de sua narrativa histórica (Santos, 2018SANTOS, Fernanda Barros dos. (2018), “Estado e movimentos sociais negros (1980-2010)”. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, 10 (25): 144-82, nov.). Afetadas pelo espírito memorialista da época, algumas lideranças então vocalizaram um sentimento de perda da África autêntica, lugar utópico que seria conectado às forças ancestrais, à natureza e à religiosidade. E, do mesmo modo como ocorrido com outras comunidades políticas que emergiram nessa época, elas exprimiram uma espécie de “nostalgia vicária, de segunda mão”, vislumbrando ser possível (e desejável) o resgate de práticas culturais tidas como tradicionais por meio de sua transmissão em livros, filmes, arquivos, museus e outros suportes de memória (Berliner, 2018BERLINER, David. (2018), Perdre sa culture. Bruxelles, Zone Sensibles., p. 20).

O momento era propício para releituras da identidade nacional, já que durante a transição política diversas instituições governamentais reformularam suas condutas. Entre elas o Iphan, que até então havia atuado na proteção de memórias da elite branca, tombando bens como igrejas católicas, fortes militares e edificações de estilos arquitetônicos consagrados. Diante dos novos ares democráticos, a partir de 1979 o órgão começou a rever seus conceitos e procedimentos, iniciando processos de preservação de expressões da cultura e do cotidiano popular (Gonçalves, 1996GONÇALVES, José Reginaldo. (1996), A retórica da perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil. Rio de Janeiro, UFRJ/Iphan.). Após uma fase de divergências e embates, seus conselheiros por fim arrolaram os primeiros bens relativos à memória negra: o terreiro de candomblé Casa Branca do Engenho Velho, na Bahia (1984), e o Conjunto Histórico e Paisagístico de Serra da Barriga, em Alagoas (1985).

As celebrações e protestos que ocorreram em 1988 em torno dos cem anos da abolição da escravidão no Brasil e da Assembleia Nacional Constituinte fecharam o período de transição política. Denúncias sobre as dificuldades de inserção econômica do negro no sistema de classes e sobre as barreiras sociais impostas pelo preconceito racial tomaram as ruas, universidades e jornais (Hanchard, 2001HANCHARD, Michael George. (2001), Orfeu e o poder: o movimento Negro no Rio de Janeiro e São Paulo (1945-1988). Rio de Janeiro, EdUerj.). Como desdobramento dessas mobilizações, os parlamentares inseriram três novos dispositivos legais na Constituição: a proteção das manifestações culturais afro-brasileiras como patrimônio nacional; o direito a terra aos remanescentes das comunidades quilombolas; e a criminalização do racismo com pena de prisão inafiançável. Tais conquistas sedimentaram na esfera pública a ideia de que os afrodescendentes compõem um segmento cultural distinto em relação aos demais grupos nacionais, e obrigaram o Estado a prever políticas raciais de acesso a bens e serviços econômicos e simbólicos.

Ainda que essas políticas tenham tardado a se concretizar e que perdurassem os limites sociais, o período deixou como legado a inserção da cultura afro-brasileira no âmbito estatal e a circulação pela administração pública de lideranças dos movimentos negros e de discursos identitários desvinculados a premissas de integração nacional. Com a aquisição de novas competências políticas e gerenciais, em poucos anos expoentes da causa afro-brasileira se engajaram em agendas e projetos de alcance internacional, deparando-se com dinâmicas próprias aos programas de cooperação das agências multilaterais.

As memórias do tráfico atlântico na agenda diplomática brasileira

Se no despontar da Nova República brasileira as demandas identitárias se firmaram nas malhas da administração pública, na década de 1990 elas ganharam visibilidade com a globalização das questões de natureza cultural. Nas estratégias mobilizadas por grupos e movimentos via acordos multilaterais, uma relação de dupla satisfação então se estabeleceu: para os operadores nacionais, foi a oportunidade de se apropriarem de capital estrangeiro e obterem reconhecimento social interno; e para as agências, além dos aportes financeiros, foi a chance de capturarem as nações para suas cosmovisões e definições de valores universais, alargando suas áreas de influência (Dezalay e Garth, 2002DEZALAY, Yves & GARTH, Bryant. (2002), La mondialisation des guerres de palais. La restructuration du pouvoir d´état en Amérique Latine, entre notables du droit et Chicago Boys. Paris, Seuil.). A força dessas organizações internacionais variou ao longo do tempo, bem como as relações que estabeleceram com as gestões administrativas e políticas das nações da América Latina, Ásia e África. Mas, no cômputo geral, suas resoluções obtiveram ampla adesão, passando a desempenhar importante papel nos embates locais e na configuração das arenas de disputas (Ferguson, 1994FERGUSON, James. (1994), The anti-politics machine. “Development”, depoliticization and bureaucratic power in Lesotho. Minneapolis, Londres, University of Minnesota Press.; Escobar, 1995ESCOBAR, Arturo. (1995), Encountering development. The making and the unmaking of the Third World. Princeton, Princeton University Press.; Castro, 2009CASTRO, João Paulo Macedo. (2009), A invenção da juventude violenta. Análise da elaboração de uma política pública. Rio de Janeiro, E-papers; Laced/Museu Nacional.)2 2 . Vale lembrar que a agência já havia atuado no Brasil durante os anos 1950, quando organizou junto a universidades nacionais um projeto que buscava compreender as propaladas relações raciais harmônicas do país, engajando pesquisadores como Roger Bastide, Oracy Nogueira e Florestan Fernandes. A intenção era transformar os dados encontrados em políticas públicas voltadas a contextos de conflito social, para promover neles projetos de desenvolvimento econômico e de otimização da produção capitalista (Maio, 1999). .

Foi o que se observou na centralidade obtida pela Unesco no processo de construção da narrativa histórica da escravidão do povo negro, em resposta a demandas por reparação lideradas pelo Haiti e por alguns países africanos que passavam por mudanças de regime político após o fim da Guerra Fria. Na sua 27ª Conferência Geral (1993), a agência aprovou o projeto A Rota do Escravo, com a proposta de promover uma reflexão pluridisciplinar sobre as causas, modalidades e consequências do tráfico atlântico (Unesco, 1997, p. 3). O lançamento oficial do projeto ocorreu no ano seguinte, em Benin, quando foi noticiada a formação de um Comitê Científico Internacional composto por pesquisadores da Europa, África e América. Dois anos depois, nele foram também incorporados representantes brasileiros, refletindo o acúmulo das articulações do movimento negro e do meio acadêmico nacional. A missão do comitê era orientar grupos de trabalho na catalogação e preservação de arquivos, bibliografias, fontes documentais e tradições orais, com vistas a produzir um conhecimento integrado sobre a diáspora negra e alimentar um banco de dados das expedições, rotas comerciais e portos. Ao final, essas informações serviriam de apoio a programas educacionais, exposições, publicações, sítios de memória, atividades turísticas etc. (Unesco, 1994).

A aplicação de instrumentos e mecanismos de cooperação permitiu, portanto, o fortalecimento dos laços entre diversos países e centros de pesquisa, construindo uma autoridade científica transnacional sobre a escravidão. Mas suas premissas passaram por reformulações em 2001, ano em que a Organização das Nações Unidas (ONU) promoveu a III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata em Durban, África do Sul. Nela, países africanos reivindicaram que os Estados Unidos, algumas nações europeias e o Brasil formulassem políticas de reconhecimento das contribuições culturais, econômicas e científicas dos afrodescendentes, admitissem a persistência da discriminação racial e pagassem uma indenização pelos benéficos que obtiveram com a escravidão e por outras injustiças do passado. Contudo, não houve consenso sobre o processo de aferição histórica do que havia ocorrido durante os mais de três séculos de comércio escravista e sobre as formas como os negros haviam sido afetados pela escravidão. Tampouco sobre como seria calculada a indenização, quem assumiria seu pagamento e quem teria o direito a recebê-la (Domingues, 2018DOMINGUES, Petrônio. (2018), “Agenciar raça, reinventar a nação: o Movimento pelas Reparações no Brasil”. Análise Social, Lisboa, 53 (227): 332-361, jan.).

Diante dos impasses, algumas vozes, em vez de compensação financeira, preconizaram o perdão da dívida externa dos países africanos, argumentando que esse modo de reparação, além de portar um teor moral, seria mais exequível. Outras vozes, como a do diretor do A Rota do Escravo à época, defenderam a necessidade de uma reparação ética e histórico-científica, o que consolidou as narrativas fomentadas pelo projeto e incentivou a adesão de novos países. Com isso, suas ações passaram a abarcar novos temas, relativos à resistência dos afrodescendentes, às modalidades contemporâneas de escravidão e à luta contra o racismo. Incluíram ainda um programa específico para a preservação de lugares e edifícios da memória da escravidão e de sua promoção através do turismo cultural (Unesco, 2003).

No Brasil, somou-se a esse movimento de promoção das memórias do tráfico atlântico o processo de revisão das estratégias diplomáticas do governo federal junto aos países africanos. Desde a redemocratização, o Partido dos Trabalhadores (PT) havia catalisado as demandas populares da sociedade brasileira e apresentado, por três eleições presidenciais consecutivas, a candidatura do operário Luiz Inácio Lula da Silva. Mas foi só na campanha de 2002, quando o partido reviu suas posições tidas como mais radicais e firmou um compromisso com o modelo econômico neoliberal, que ele conquistou o poder. Por treze anos, os governos petistas se alinharam às elites políticas e financeiras enquanto promoviam medidas econômicas de cunho distributivo, em uma composição de diferentes forças sociais que encarnou o sonho da almejada democracia calorosa e cordial.

Ao consolidarem a base política interna, as gestões petistas garantiram a liderança do país na América Latina e aspiraram a ampliar seu comércio internacional através da formação de um bloco econômico composto pelo Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul (países do acrônimo Brics). Estimulados por mecanismos de cooperação, por proteções fiscais e insumos governamentais, pela alta das commodities e pela exploração de petróleo offshore, setores de exportação nacional como o das indústrias de construção civil, de produção de carne bovina, do agronegócio e da mineração receberam grande afluxo de investimentos. E como 90% das exportações e importações eram realizadas via rotas do oceano Atlântico, o governo buscou estreitar as relações com os países costeiros africanos (Costa, 2012COSTA, Wanderley Messias da. (2012), “Projeção do Brasil no Atlântico Sul: geopolítica e estratégia”. Revista USP, São Paulo, 95: 9-22, nov.).

Desse modo, só no primeiro mandato de Lula a presença diplomática do país na África cresceu de dezoito para trinta embaixadas e dois consulados. O mesmo movimento foi feito por parte dos países africanos, que de dezesseis embaixadores passaram a contar com 25 situados em Brasília (Ribeiro, 2010RIBEIRO, Claudio Oliveira. (2010), “Adjustment changes: a política africana do Brasil no pós-guerra fria”. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, 18 (35): 55-79, fevereiro.). A aproximação foi ainda apoiada por mudanças nos discursos exteriores sobre a identidade nacional, com o governo propalando que a população era birracial (branca e preta) em vez de misturada, como operado no sistema de classificação múltiplo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Essa era uma alteração significativa da interpretação dos dados, visto que em 2010 o censo havia indicado que os “pardos” representavam 43% dos brasileiros e os “pretos”, 8%. Ambas as categorias foram somadas no discurso birracial, o que alçou os “negros” à maioria da população (Cicalo, 2013CICALO, André. (2013), “From racial mixture to black nation: Racialising discourses in Brazil’s African affairs”. Bulletin of Latin American Research. DOI:10.1111/blar.12063, consultado em18/11/2019.
https://doi.org/10.1111/blar.12063...
). Ademais, o presidente defendeu que o país deveria superar o racismo e discutir sua dívida histórica em relação ao papel desempenhado no comércio escravista, fala que subvertia as abordagens diplomáticas anteriores, que evitavam o tópico problemático da escravidão.

Tais orientações científicas, políticas, econômicas e diplomáticas estimularam a indexação de sujeitos e lugares do país à cultura afro-brasileira, incentivando a organização de nichos turísticos. Como desdobramento, em agosto de 2012 o projeto A Rota do Escravo e o governo federal lançaram a candidatura do Cais do Valongo como patrimônio mundial, no âmbito do Seminário Internacional Herança, Identidade, Educação e Cultura: Gestão dos Sítios Históricos Ligados ao Tráfico Negreiro e à Escravidão. Organizado em Brasília, o evento contou com a presença de representantes dos ministérios da Educação, Cultura, Justiça e Relações Internacionais, de autarquias e órgãos governamentais, de entidades religiosas, de movimentos sociais e de pesquisadores brasileiros e internacionais, muitos deles dos países africanos (ONU Brasil, 2012). Embora seu objetivo explícito fosse elaborar um guia conceitual e metodológico para futuros gestores de sítios históricos relacionados à escravidão, os principais efeitos do seminário foram a unificação das narrativas sobre o tema no país e a legitimação da candidatura como uma ação de Estado.

A territorialização das memórias afro-brasileiras na região portuária carioca

Uma mirada sobre o processo de territorialização das memórias afro-brasileiras no Rio de Janeiro ajuda na compreensão das dinâmicas locais que sustentaram a patrimonialização do Cais do Valongo. Em 1983, ainda no contexto de redemocratização, o primeiro governo estadual eleito pelo voto direto se mostrou favorável às iniciativas de promoção da igualdade racial. Comandada pelo governador Leonel Brizola e pelo seu vice, o antropólogo Darcy Ribeiro, a gestão incorporou lideranças negras a cargos e atividades governamentais e afinou-se às iniciativas nacionais de celebração da cultura negra. Surgiram assim os primeiros símbolos identitários nas regiões central e portuária na cidade: a passarela de desfiles carnavalescos do Sambódromo (1985), a monumental cabeça de bronze em homenagem a Zumbi dos Palmares (1986) e o patrimônio cultural da Pedra do Sal (1987) (Guimarães, 2014GUIMARÃES, Roberta Sampaio. (2014), A utopia da Pequena África. Projetos urbanísticos, patrimônios e conflitos na Zona Portuária carioca. Rio de Janeiro, FGV.).

Na década seguinte, contudo, uma nova correlação de forças políticas fez emergir no âmbito da administração pública municipal um conjunto de projetos que pretendia rentabilizar os territórios urbanos por meio da atração de investimentos financeiros e do fomento às indústrias turísticas e imobiliárias. A região portuária, que abrigava à época amplos galpões, terrenos e imóveis públicos desativados e era local de residência, comércio e lazer das classes populares, foi visada como uma das áreas prioritárias de intervenção. Inspirados em processos de reurbanização de frentes marítimas implementados em Gênova, Barcelona, Porto, Baltimore e Manchester, os gestores cariocas conceberam o plano Porto do Rio (PCRJ, 2001). Nessa orientação política, eles se pautaram menos pela lógica de reconhecimento da diversidade e mais pela normalização disciplinar, acionando um pacote de procedimentos ordenadores de territórios, comportamentos e moralidades (Foucault, 1976FOUCAULT, Michel. (1976), Il faut défendre la société. Cour au Collèges de France. Paris, Gallimard/Seuil.).

Como justificativa para suas ações, a Prefeitura então mobilizou um léxico de combate à desordem e à pobreza que atribuía a degradação dos bairros portuários aos maus usos de seus habitantes, conjugando acusações de serem insalubres, violentos e favelados a uma nova gramática jurídico-normativa baseada em noções de legalidade. Nessa batalha moral, seus gestores construíram largos e praças, retiraram moradias improvisadas debaixo de viadutos e restringiram o comércio ambulante. Já nas ditas favelas perigosas, uniram programas de infraestrutura aos de policiamento ostensivo. E, na esfera dos discursos patrimoniais, classificaram alguns morros como portadores de alto valor histórico, paisagístico e cultural, desenvolvendo neles programas de incentivo ao turismo e à residência da classe média. Associaram ainda a herança da região apenas à cultura portuguesa, encapsulando a presença negra na história encerrada da escravidão. No conjunto das ações, transmitiram, portanto, a mensagem de que alguns espaços e modos de vida compunham a memória da cidade e deveriam ser preservados, enquanto outros, percebidos como inautênticos e contingentes, poderiam ser trocados, extintos ou vendidos (Guimarães, 2013GUIMARÃES, Roberta Sampaio. (2013), “O encontro mítico de Pereira Passos com a Pequena África: narrativas de passado e formas de habitar na Zona Portuária carioca”. In: GUIMARÃES, Roberta Sampaio & GONÇALVES, José Reginaldo & BITAR, Nina (orgs.). A alma das coisas: patrimônios, materialidade e ressonância. Rio de Janeiro, Mauad X, pp. 47-78.).

Porém, com o avançar dos governos petistas as agendas raciais e identitárias fortaleceram-se mais uma vez, desdobrando-se na criação de políticas afirmativas como a que instituiu o ensino da história e cultura africana e afro-brasileira nas escolas e as que definiram cotas nas universidades e nos concursos públicos em geral3 3 . Referimo-nos à Lei n. 10.639/2003, que estabeleceu a inclusão e obrigatoriedade do ensino da história e cultura africana e afro-brasileira nas diretrizes curriculares da educação básica; à Lei n. 12.711/2011, que obrigou universidades e institutos federais a cederem ao menos 50% de suas vagas aos candidatos egressos de escola pública e, dentro dessa reserva, estipulou regras para destinar vagas a alunos de baixa renda, negros (que correspondem à parcela de pretos e pardos), indígenas e com deficiência; e à Lei n. 12.990/2104, que determinou a reserva de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos aos negros, desde que o número de vagas oferecidas no concurso fosse igual ou superior a três. . Nesse novo quadro nacional, os movimentos negros do Rio de Janeiro conseguiram reorganizar suas gramáticas políticas e estratégias de luta perante as administrações estaduais e municipais, liderando pleitos como o de titulação do quilombo urbano da Pedra do Sal e o de fixação do bloco de carnaval Afoxé Filhos de Gandhi em um sobrado arruinado da região portuária (Guimarães, 2012GUIMARÃES, Roberta Sampaio. (2012), “De monumento negro a território étnico: os usos do patrimônio na produção de espaços urbanos diferenciados”. In: TAMASO, Izabela & FERREIRA FILHO, Manuel (orgs.). Antropologia e Patrimônio Cultural: trajetórias e conceitos. Brasília/Goiânia, ABA, pp. 299-318., 2016). Mas, se é inegável que os movimentos sociais ganharam maior espaço de ação, também foi notório o favorecimento dos arranjos políticos e econômicos que permitiram a institucionalização das intervenções.

Desse modo, o Ministério do Planejamento e a Superintendência do Patrimônio da União lideraram a criação do Grupo Executivo Interministerial da Área Portuária do Rio de Janeiro. Em 2009, o grupo aprovou a operação urbana consorciada Porto Maravilha e formou uma empresa mista para contratar e gerir agentes privados na execução de obras e na prestação de serviços públicos municipais - a Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região Portuária (Cdurp). O vínculo do governo federal com a operação foi então determinante para o êxito dos projetos, através da compra de Certificados do Potencial Adicional de Construção (Cepacs)4 4 . O Estatuto da Cidade criou o instrumento do Cepac visando a financiar obras previstas em Operações Urbanas e desonerar os municípios, que com isso não precisariam utilizar seus recursos orçamentários. No entanto, diversos urbanistas e economistas consideraram escandaloso que todos os certificados do Porto Maravilha tenham sido comprados por um banco público. pela Caixa Econômica Federal e da cessão de grandes terrenos (Sarue, 2016SARUE, Betina. (2016), “Os capitais urbanos do Porto Maravilha”. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, 35 (2): 79-97, jul.). Com a alegação de promover os Jogos Olímpicos de 2016, vultosos investimentos aportaram na região, via programas de mobilidade, lazer, turismo, segurança pública etc. No âmbito cultural, a parceria entre a Prefeitura e a Fundação Roberto Marinho inaugurou dois equipamentos: o Museu de Arte do Rio (2013) e o Museu do Amanhã (2015).

As políticas de preservação patrimonial, por sua vez, receberam uma previsão orçamentária de 3% do valor arrecadado com os Cepacs. As coletividades que então se mostraram aptas a captar o recurso foram aquelas institucionalizadas havia mais tempo e que, por sua expertise gerencial, conseguiram mobilizar a opinião pública e apresentar projetos adequados aos requisitos exigidos por financiamentos e editais. Como a rede de ativistas e pesquisadores conectada ao A Rota do Escravo, que em 2010 iniciou a elaboração do Inventário dos Lugares de Memória do Tráfico Atlântico de Escravos e da História dos Africanos Escravizados no Brasil (Labhoi, 2013). Assim, se levarmos em conta a sólida participação do Brasil nesse projeto internacional e o papel estratégico dos países africanos nas relações comerciais, deduzimos que já estava programado o encontro dos vestígios do Cais do Valongo em janeiro de 2011 pela equipe arqueológica contratada pelo Porto Maravilha5 5 . Ademais, a contratação de uma equipe arqueológica pelo Porto Maravilha atendia exigências das legislações federal e municipal sobre impactos ambientais que tornavam obrigatório o monitoramento de qualquer intervenção no subsolo (Lima et al., 2016). .

A confluência de interesses foi confirmada pela pronta adesão da Prefeitura. Em poucos meses, o Instituto Pereira Passos, vinculado à Secretaria Municipal de Urbanismo, apresentou um projeto arquitetônico para exibir 1.350 m² da área escavada - segundo arquitetas municipais, a maior janela que foi possível para não inviabilizar outras obras. No seu desenho, a orientação turística foi destacada pela inclusão de escadas, rampas de acesso e arquibancadas para contemplação6 6 . Entrevista com Juliana Jabor e Renata Jardim, realizada por Roberta Guimarães em 9 de dezembro de 2014. . Em novembro do mesmo ano, o prefeito então decretou a formação de um grupo de trabalho para construir o Circuito de Herança Africana, com a participação de órgãos municipais de promoção da igualdade racial e de lideranças dos movimentos negros e das religiões de matriz africana. O grupo selecionou os pontos da região que reforçariam os sentidos testemunhais da cidade negra: além do Cais do Valongo, foram incluídos a Pedra do Sal, o Jardim Suspenso do Valongo, o cemitério dos Pretos Novos, o Centro Cultural José Bonifácio e o largo do Depósito (atual largo dos Estivadores).

Após esses esforços para tornar o patrimônio visível e inteligível, em abril de 2012 o Iphan registrou o Cais do Valongo como sítio arqueológico e histórico. Três meses depois, todos os agentes envolvidos na patrimonialização se reuniram para inaugurá-lo com um “ritual de limpeza e purificação” comandado por mães de santo, que teve como objetivo “aliviar a carga de dor e medo que marcava o local” (Iphan e PCRJ, 2016, p. 82)7 7 . Iniciativa depois incluída no Calendário Oficial de Eventos e Datas Comemorativas da Cidade pela Lei 5820/2014, que definiu o segundo sábado do mês de julho como o Dia da Lavagem Simbólica do Cais do Valongo. Nessa data, lideranças religiosas, ativistas, administradores públicos e jornalistas performavam a relação do local com a África e presentificavam narrativas de dor e sofrimento da escravidão. . Com a operação dessa performance mágico-religiosa, eles comunicaram os aspectos simbólicos do lugar e sua associação à cultura afro-brasileira e às memórias da escravidão, mensagem que reverberou para a sociedade mais ampla graças à cobertura jornalística.

Foi assim, como coroamento dessa sequência de eventos, que em agosto de 2012 ocorreu o Seminário Internacional Herança, Identidade, Educação e Cultura em Brasília, citado ao final do tópico anterior. Nele, a Unesco oficializou a inclusão do sítio arqueológico Cais do Valongo no A Rota do Escravo e, junto com o governo federal, lançou sua candidatura a patrimônio mundial. A relevância do local foi então assumida como política de Estado, o que abriu um novo conjunto de ações para conformá-lo à gramática das “memórias sensíveis” e fabricá-lo como mercadoria cultural rentável.

A gestão empresarial das memórias sensíveis da escravidão

Durante quatro anos o Iphan, a Secretaria Municipal de Urbanismo e a empresa mista Cdurp desenvolveram ações de adequação do Cais do Valongo aos parâmetros exigidos pela Unesco, através da realização de levantamentos topográficos, estudos arqueológicos e planos de conservação, proteção, gestão, monitoramento e documentação do local. Foi ainda tecida uma história única sobre a relevância do atracadouro no contexto do tráfico atlântico, com a seleção e interpretação de fatos e eventos a serem promovidos em políticas de difusão da memória da escravidão. Essas pesquisas foram supervisionadas pelo Iphan e pela Prefeitura e coordenadas por um grupo de trabalho liderado pela rede de pesquisadores brasileiros articulados ao Comitê Científico do A Rota do Escravo.

Ao mesmo tempo, suas ações foram promovidas pelo recém-inaugurado Museu de Arte do Rio, que estava na época sob gestão do Instituto Odeon, associação privada qualificada como Organização Social (OS). Em maio de 2014, o museu inaugurou a exposição Do Valongo à Favela. Imaginário e Periferia, apresentando uma narrativa que confluía com as orientações interpretativas do A Rota do Escravo8 8 . De acordo com o diretor-presidente do Instituto Odeon, o objetivo era estabelecer um elo entre o passado do cais, “maior entreposto de venda de escravos do mundo […] que demarca a tragédia da escravidão e da diáspora africana”, e o presente da favela, “traço mais manifesto da nova exclusão dos libertos” (Gradim, 2014, p. 5). . Mantida na programação por doze meses, graças ao financiamento da empresa de mineração Vale e do banco Itaú, a exposição tanto fortaleceu a legitimidade social do sítio arqueológico, ao articular seu primeiro discurso público de cunho pedagógico, quanto sinalizou a captura dos mecanismos de gestão e financiamento do bem por entidades privadas, via parcerias chanceladas pelo poder público.

A Proposta de Inscrição na Lista do Patrimônio Mundial foi apresentada à Unesco em janeiro de 2016, contendo 443 páginas de textos, fotografias, pinturas, mapas e plantas que expunham procedimentos técnicos, narrativas históricas e culturais, avaliações de especialistas e argumentos sobre as contribuições dos afrodescendentes para a sociedade brasileira. A base da justificativa era a “excepcionalidade” do cais frente aos demais portos escravagistas do mundo, a partir de dois critérios preestabelecidos pela agência para o reconhecimento de patrimônios mundiais: o local apresentaria “um testemunho único ou pelo menos excepcional de uma tradição cultural ou de uma civilização desaparecida” (critério III) e estaria “diretamente ou materialmente associado a acontecimentos ou tradições vivas, com ideias ou crenças, ou com obras artísticas ou literárias de significado universal excepcional” (critério VI) (Iphan e PCRJ, 2016, pp. 12-13).

No caso do Cais do Valongo, não se tratava de qualquer tradição, mas de uma que pretendia evocar um evento trágico. Por isso, a Minuta da Declaração de Valor Universal Excepcional reforçou seu caráter de testemunho doloroso por meio da comparação do cais com os primeiros lugares reconhecidos pela Unesco como “sítios de memória sensível”: o campo de concentração nazista alemão de Auschwitz-Birkenau, que teria em comum com a experiência da escravidão a “privação da liberdade de uma pessoa, perda da soberania sobre seu próprio corpo e da sua condição de cidadão”; e o cárcere de Robben Island na África do Sul, que no apartheid havia contido “aqueles que o poder dominante desejava manter confinados, distantes do restante da sociedade”, e simbolizaria “o triunfo do espírito humano, da liberdade e da democracia sobre a opressão” (Iphan e PCRJ, 2016, pp. 138-139). Desse modo, a conexão com os eventos globais foi estabelecida via evocação do Holocausto, tropo universal do trauma, e Robben Island, símbolo da superação do passado de dor e segregação racial por meio da resistência e da luta.

A união dos arranjos institucionais, procedimentos técnicos e discursos globalizados foi exitosa, e o Cais do Valongo recebeu o título de Patrimônio Mundial em 2017, abrindo uma nova etapa de articulações políticas, investimentos financeiros e difusão cultural. Por meio de iniciativas como publicações, teses, dissertações, exposições, visitas guiadas, festivais de arte e cinema etc., diversos segmentos sociais se mobilizaram para a produção da memória pública da escravidão atlântica e/ou por ela foram abarcados, desde a faixa escolar, passando por grupos mais especializados até o público geral da cidade e os turistas nacionais e internacionais9 9 . Entre as iniciativas que ocorreram após o título de Patrimônio Mundial da Unesco, destacamos algumas que abrangeram grande público: a profusão de roteiros turísticos privados, ofertados via site TripAdvisor; a organização pelo Instituto Pretos Novos de passeios gratuitos regulares para a população e escolas públicas, através de verba disponibilizada pela CDURP (Pacheco e Schicchi, 2022); e a oferta de diferentes modalidades de visitas guiadas idealizadas por movimentos sociais, alunos de cursos de turismo e associações civis (Gonçalves, 2021). Em novembro de 2018, o Cais do Valongo foi também tombado como patrimônio histórico e cultural do Estado do Rio de Janeiro, momento em que se inaugurou a exposição Cartografia da Africanidade Fluminense, na Casa França-Brasil (Carneiro e Pinheiro, 2022). Além disso, nota-se a difusão do imaginário relacionado ao local através de romances como O crime do Cais do Valongo, escrito por Eliane Alvez Cruz (publicado pela editora Malê em 2018) e da exposição inaugurada no Museu de Arte do Rio em setembro de 2022, baseada no romance Um defeito de cor, escrito por Ana Maria Gonçalves (publicado pela editora Record em 2006). .

Novas organizações privadas também emergiram no cenário de administração do cais, colocando-se como intermediárias dos processos de captação e gestão de recursos. Como o Instituto de Desenvolvimento e Gestão (IDG), que se define como uma organização privada sem fins lucrativos que presta consultorias para a concepção, modelagem, formatação e gestão de projetos, incluindo desenvolvimento de escopo, captação de recursos, enquadramento em leis de incentivo e gestão durante sua implementação. Em 2017, o IDG se estabeleceu como Relações Comunitárias do Museu do Amanhã, realizando programas e atividades junto a moradores, escolas e instituições culturais da região portuária. Após essa inserção, no ano seguinte o instituto se tornou gestor de uma doação de 2 milhões de reais, proveniente de um fundo do Consulado Geral dos Estados Unidos, que seria destinado a obras de restauro, limpeza, higienização, conservação e consolidação do sítio histórico. Em seguida, em setembro de 2019, coube também a ele a gestão da segunda fase de obras do local, voltada para melhorias na infraestrutura e sinalização, com instalação de módulos expositivos contando a história da Pequena África, de guarda-corpo, iluminação cênica monumental, sinalização direcional, sistema de segurança por câmeras, além da manutenção das ações educativas e comunicativas. Dessa vez, os recursos foram oriundos da State Grid Brazil Holding, através da linha de financiamento Investimentos Sociais de Empresas (ISE), disponibilizada pelo BNDES, sem divulgação de valores.

Assim, a máquina de circulação de recursos manteve-se ativada durante todo o processo de aprimoramento dos mecanismos de concorrência do sítio histórico e do circuito turístico por ele promovido, através de estratégias e metodologias de planejamento, gestão, financiamento e promoção pública. Manteve-se também em movimento a engrenagem dos projetos de desenvolvimento, assistência e cooperação, com suas organizações, consultores e especialistas. Nesse aparato econômico e político, os sentimentos de dor e sofrimento atribuídos ao Cais do Valongo tornaram-se importante peça de propaganda dos métodos de gestão empresarial do Porto Maravilha. Pois, enquanto contrapartida patrimonial mais promovida e celebrada pelo plano, produziu um efeito de naturalização dos meios de implementar diversos projetos, legitimando as práticas de governo das populações e territórios via parcerias público-privadas.

Governar memórias, empreender mercados

Hoje o Cais do Valongo é considerado um caso patrimonial de sucesso. Ainda que mudanças nas gestões municipais tenham sido sentidas no aumento ou diminuição de recursos para sua conservação e promoção, o que reverberou na imprensa como fases de degradação do mobiliário e da falta de sua conservação e limpeza, o sítio arqueológico conseguiu se estabelecer como circuito visitado por diversas escolas e oferecido por guias turísticos e agências de viagem. Assim, dentro do competitivo mercado das memórias, e levando em conta inclusive o contexto de desinvestimento em políticas raciais da gestão federal de Jair Bolsonaro (2019-2022) e de desaquecimento da indústria turística em função da pandemia da Covid-19, podemos afirmar que o espaço se tornou uma referência na promoção da memória pública da escravidão.

Na tentativa de explicar tal êxito patrimonial incomum, buscamos demonstrar que a construção simbólica do Cais do Valongo deveu-se a uma longa trajetória de mobilização de estratégias locais, nacionais e internacionais, atreladas às agendas políticas afro-brasileiras e sustentadas por um campo de forças composto por administradores públicos, movimentos sociais, intelectuais, legisladores, entre outros. A redemocratização política no final da ditadura militar foi então contexto crucial no processo de institucionalização de uma narrativa única sobre a escravidão do povo africano no Brasil, já que possibilitou a incorporação de ativistas negros às instâncias estatais e fez com que se tornassem hábeis no manejo das regras e procedimentos que orientavam as ações públicas e as relações administrativas. Assim, mesmo que as políticas raciais e identitárias tenham tido eventuais recuos nas agendas governamentais, a presença de suas pautas permaneceu por meio de indivíduos e entidades que atuavam em programas, conselhos e representações públicas.

Os sentidos e significados das memórias relacionadas com a escravidão no Brasil foram ainda impulsionados pela adoção de léxicos e procedimentos próprios às agências multilaterais, com destaque para o papel desempenhado pelo projeto A Rota do Escravo da Unesco durante os anos 1990. A elaboração de estratégias de cooperação fez circularem conceitos como os de direitos humanos, dívida histórica e reparação e estimulou a aquisição de novas condutas e habilidades voltadas para o financiamento de projetos. Nas dinâmicas governamentais, as pautas, temas e léxicos promovidos no âmbito da agência multilateral foram ressignificados, abrangendo novos agentes e reordenando os discursos sobre o lugar dos afrodescendentes na cultura nacional.

Viu-se então a emergência patrimonial de categorias como “dor”, “sofrimento” e “resistência” na organização de projetos que buscavam inserir o país no competitivo mercado turístico dos lugares de “memórias sensíveis”. Unido a outros fatores, como a retomada das agendas raciais nas gestões federais do PT a partir de 2003, o fortalecimento das relações diplomáticas e comerciais com os países africanos e o alinhamento de agentes políticos e econômicos durante a implementação do Porto Maravilha, formou-se o quadro necessário para a inscrição do sítio arqueológico do Cais do Valongo como patrimônio mundial.

Destacamos, portanto, que foi a partir de uma articulação social complexa que o discurso de identidade afro-brasileira se integrou às novas dinâmicas da acumulação do capital e de mercantilização de práticas culturais. Já que, no decurso de negociações, cooperações e parcerias com agentes imbuídos de diferentes poderes, seus sentidos agregaram as lógicas do dever de memória e da regulação concorrencial. As memórias traumáticas da escravidão indexadas ao “sítio arqueológico de memória sensível” se apresentaram, por fim, como um discurso multifacetado: étnico, identitário, turístico e econômico.

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  • WIERVIORKA, Annette. (1998), L’Ère du témoin. Paris, Plon.
  • 1
    . Os dados e análises apresentados neste artigo foram baseados em pesquisas sobre os processos de reconhecimento da memória negra na região portuária no Rio de Janeiro (Guimarães, 2012GUIMARÃES, Roberta Sampaio. (2012), “De monumento negro a território étnico: os usos do patrimônio na produção de espaços urbanos diferenciados”. In: TAMASO, Izabela & FERREIRA FILHO, Manuel (orgs.). Antropologia e Patrimônio Cultural: trajetórias e conceitos. Brasília/Goiânia, ABA, pp. 299-318., 2013, 2014, 2016) e sobre os processos de formação do Estado brasileiro e suas modalidades de operação (Castro, 2009CASTRO, João Paulo Macedo. (2009), A invenção da juventude violenta. Análise da elaboração de uma política pública. Rio de Janeiro, E-papers; Laced/Museu Nacional.; Guimarães e Castro, 2021). As atividades recentes de pesquisa contaram com o financiamento da bolsa Jovem Cientista do Nosso Estado (Faperj, 2018-2022) para o projeto As mediações de arquitetos e urbanistas nos processos de patrimonialização da cidade do Rio de Janeiro, coordenado por Roberta Sampaio Guimarães.
  • 2
    . Vale lembrar que a agência já havia atuado no Brasil durante os anos 1950, quando organizou junto a universidades nacionais um projeto que buscava compreender as propaladas relações raciais harmônicas do país, engajando pesquisadores como Roger Bastide, Oracy Nogueira e Florestan Fernandes. A intenção era transformar os dados encontrados em políticas públicas voltadas a contextos de conflito social, para promover neles projetos de desenvolvimento econômico e de otimização da produção capitalista (Maio, 1999MAIO, Marcos Chor. (1999), “O Projeto Unesco e a agenda das ciências sociais do Brasil dos anos 40 e 50”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, 14 (41): 141-158, out.).
  • 3
    . Referimo-nos à Lei n. 10.639/2003, que estabeleceu a inclusão e obrigatoriedade do ensino da história e cultura africana e afro-brasileira nas diretrizes curriculares da educação básica; à Lei n. 12.711/2011, que obrigou universidades e institutos federais a cederem ao menos 50% de suas vagas aos candidatos egressos de escola pública e, dentro dessa reserva, estipulou regras para destinar vagas a alunos de baixa renda, negros (que correspondem à parcela de pretos e pardos), indígenas e com deficiência; e à Lei n. 12.990/2104, que determinou a reserva de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos aos negros, desde que o número de vagas oferecidas no concurso fosse igual ou superior a três.
  • 4
    . O Estatuto da Cidade criou o instrumento do Cepac visando a financiar obras previstas em Operações Urbanas e desonerar os municípios, que com isso não precisariam utilizar seus recursos orçamentários. No entanto, diversos urbanistas e economistas consideraram escandaloso que todos os certificados do Porto Maravilha tenham sido comprados por um banco público.
  • 5
    . Ademais, a contratação de uma equipe arqueológica pelo Porto Maravilha atendia exigências das legislações federal e municipal sobre impactos ambientais que tornavam obrigatório o monitoramento de qualquer intervenção no subsolo (Lima et al., 2016LIMA, Tânia Andrade et al. (2016), “Em busca do Cais do Valongo, Rio de Janeiro, século XIX”. Anais do Museu Paulista, São Paulo, 24 (1): 299-391, jan.).
  • 6
    . Entrevista com Juliana Jabor e Renata Jardim, realizada por Roberta Guimarães em 9 de dezembro de 2014GUIMARÃES, Roberta Sampaio. (2014), A utopia da Pequena África. Projetos urbanísticos, patrimônios e conflitos na Zona Portuária carioca. Rio de Janeiro, FGV..
  • 7
    . Iniciativa depois incluída no Calendário Oficial de Eventos e Datas Comemorativas da Cidade pela Lei 5820/2014, que definiu o segundo sábado do mês de julho como o Dia da Lavagem Simbólica do Cais do Valongo. Nessa data, lideranças religiosas, ativistas, administradores públicos e jornalistas performavam a relação do local com a África e presentificavam narrativas de dor e sofrimento da escravidão.
  • 8
    . De acordo com o diretor-presidente do Instituto Odeon, o objetivo era estabelecer um elo entre o passado do cais, “maior entreposto de venda de escravos do mundo […] que demarca a tragédia da escravidão e da diáspora africana”, e o presente da favela, “traço mais manifesto da nova exclusão dos libertos” (Gradim, 2014GRADIM, Carlos. (2014), Do Valongo à favela. Imaginário e periferia. Rio de Janeiro, MAR/Instituto Odeon., p. 5).
  • 9
    . Entre as iniciativas que ocorreram após o título de Patrimônio Mundial da Unesco, destacamos algumas que abrangeram grande público: a profusão de roteiros turísticos privados, ofertados via site TripAdvisor; a organização pelo Instituto Pretos Novos de passeios gratuitos regulares para a população e escolas públicas, através de verba disponibilizada pela CDURP (Pacheco e Schicchi, 2022PACHECO, Bianca Teixeira Moret & SCHICCHI, Maria Cristina da Silva. (2022), “Porto Maravilha: entre a imagem e a memória”. Risco: Revista de Pesquisa em Arquitetura e Urbanismo, São Paulo, 20.); e a oferta de diferentes modalidades de visitas guiadas idealizadas por movimentos sociais, alunos de cursos de turismo e associações civis (Gonçalves, 2021GONÇALVES, Renata de Sá. (2021), “Walking through Rio de Janeiro’s ‘Little Africa’: places and contested borders”. Vibrant: Virtual Brazilian Anthropology, Brasília, 18.). Em novembro de 2018, o Cais do Valongo foi também tombado como patrimônio histórico e cultural do Estado do Rio de Janeiro, momento em que se inaugurou a exposição Cartografia da Africanidade Fluminense, na Casa França-Brasil (Carneiro e Pinheiro, 2022CARNEIRO, Sandra de Sá & PINHEIRO, Márcia Leitão. (2022), “Cais do Valongo (RJ): apropriações, memórias e celebrações”. Sociologia & Antropologia, Rio de Janeiro, 12 (03).). Além disso, nota-se a difusão do imaginário relacionado ao local através de romances como O crime do Cais do Valongo, escrito por Eliane Alvez Cruz (publicado pela editora Malê em 2018) e da exposição inaugurada no Museu de Arte do Rio em setembro de 2022, baseada no romance Um defeito de cor, escrito por Ana Maria Gonçalves (publicado pela editora Record em 2006).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    12 Nov 2022
  • Aceito
    01 Mar 2023
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