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Em busca de um padrão de subalternidade de populações negras no oeste paulista no pós-abolição1 1 . Agradecemos o apoio da Fapesp (proc. 2015/20577-6) e do CNPq (proc. 308322/2018-5), que possibilitaram a realização da pesquisa geradora do presente artigo.

Searching for a pattern of subordination of black populations in Western São Paulo in the post-abolition period

Resumo

As duas décadas seguintes ao pós-abolição configuram-se como um momento chave para se observarem elementos que indicam a continuidade ou a ressignificação da subalternidade socioeconômica da população negra. Após discutir os conceitos de raça, racismo, racismo estrutural e processos de racialização que irão produzir a subcidadania negra, o presente artigo busca ressaltar, a partir de um escopo variado de fontes, dimensões empíricas da subalternidade negra com base no estudo aprofundado de um município característico da economia cafeeira do oeste paulista.

Palavras-chave:
População negra; Subalternidade negra; Racismo; Oeste paulista; Pós-abolição; Economia cafeeira

Abstract

The two decades following post-abolition represent a key moment to observe continuities or re-significations of the socioeconomic subalternity of the Black population. By discussing the concepts of race, racism, structural racism and racialization processes that will produce Black sub-citizenship, this article seeks to highlight, from a varied scope of sources, empirical dimensions of Black subalternity based on the in-depth study of a characteristic city of the western São Paulo coffee economy.

Keywords:
Black population; Black subalternity; Racism; Western São Paulo; Post-abolition; Coffee economy

As duas décadas seguintes ao pós-abolição configuram-se como um momento chave para se observarem elementos que indicam a continuidade ou a ressignificação da subalternidade socioeconômica da população negra, um momento histórico em que lugares e hierarquias sociais construídos durante séculos se desmancham. As categorias senhor e escravo, essenciais para se entenderem as sociedades escravistas, deixavam de fazer sentido nessa nova realidade social. Seria errôneo encarar as sociedades pós-emancipação como uma ruptura radical. No entanto, também não é correto afirmar que a abolição foi apenas a formalização de uma situação que já estava resolvida. Isso porque ela não representou somente o fim de uma relação de propriedade, mas também a perda das referências fundamentais na constituição da identificação de escravos e senhores de terra. A extinção jurídica do binômio senhor/escravo, a partir do 13 de maio, comprometia vínculos pessoais e referências de autoridade, e não somente relações de trabalho. Não eram apenas os trabalhadores que os proprietários perdiam, mas igualmente suas próprias posições hierárquicas. Havia todo um “lugar social” construído desde o período colonial em torno dessas duas categorias, que agora era desconstruído (Albuquerque, 2009ALBUQUERQUE, Wlamyra. (2009), O jogo da dissimulação. Abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras., p. 113; Fraga Filho, 2006FRAGA FILHO, Walter. (2006), Encruzilhadas da liberdade. História de escravos e libertos na Bahia (1870-1910). Campinas, Ed. Unicamp.)2 2 . Há vasta bibliografia que aborda a problemática do pós-abolição, tanto nacional como internacional. Além das duas obras citadas, mencionem-se Andrews (1998), Cunha e Gomes (2007), Garcia (1988, 2003), Mattos (2013), Monsma (2016), Palma e Truzzi (2018, 2021), Cooper et al. (2005) e Holt (1992), entre outras. .

Importa então investigar, de um ponto de vista teórico e empírico, como se expressou esse panorama político-social que fixou assimetrias de poder, que sistematicamente criou vantagens e desvantagens para os indivíduos, a depender do grupo racial no qual se inseriam. Em outras palavras, importa examinar em que medida, a despeito da abolição prescrever uma suposta igualdade cidadã, o racismo se cristalizou e passou a ser encarado como normal, natural, no seio das relações sociais.

Para tanto, o presente artigo se divide em três seções. A primeira discute os conceitos de raça, racismo, racismo estrutural e processos de racialização que irão produzir a subcidadania negra. Em seguida, analisam-se o contexto e as fontes a partir das quais serão ressaltadas dimensões empíricas da subalternidade negra. Por fim, apresentam-se e analisam-se propriamente tais dimensões que, vislumbradas em seu conjunto, compõem um cenário indicativo da subalternidade da população negra no pós-abolição, em um município característico da economia cafeeira do oeste paulista.

Dimensões teóricas da subalternidade negra

Na segunda metade século XX, estudos nas áreas da genética e da biomedicina demonstraram que todos os seres humanos fazem parte do mesmo grupo biológico. Sendo assim, diferenças psicológicas, morais e intelectuais, e até mesmo físicas, não podem derivar, de forma alguma, de diferenças propriamente raciais. Tais considerações, como era de se esperar, repercutiram nas Ciências Sociais, principalmente entre os estudiosos das formas de racismo. Enquanto alguns preferiram eliminar de vez o termo “raça” do vocabulário de suas análises sociais, outros optaram por manter a sua utilização, com a ressalva de estarem tratando, sempre, de uma “construção social”.

As sociedades humanas constroem discursos sobre suas origens e sobre sua transmissão de essências entre gerações […]. Só nesse campo a ideia de raça faz sentido. O que são raças para a sociologia, portanto? São discursos sobre as origens de um grupo, que usam termos que remetem à transmissão de traços fisionômicos, qualidades morais, intelectuais, psicológicas etc. […] (Guimarães, 2003GUIMARÃES, Antonio S. (2003), “Como trabalhar com raça em Sociologia”. Educação & Pesquisa, S. Paulo, 29 (1): 93- 107, jan./jun., p. 97).

Se as raças não existem para a Biologia, ela existe e existiu no imaginário e na representação coletivos de diversas populações. Raça seria, cientificamente falando, uma construção social, carregada de ideologia e, por causa disso, um termo que oculta algo não proclamado: relações de poder (Munanga, 2005).

Se as raças não existem no plano objetivo, elas são, contudo, uma construção histórica que cria diferenças hierarquizantes3 3 . “Racialização é o nome dado a este processo de construção social de raças [...], é o ‘termo usado para descrever processos sociais, culturais, econômicos e psicológicos que fazem raça importante e as formas que raça é usada como uma base para desigualdade e discriminação’, sendo que o principal produto do processo de racialização é a classificação de pessoas em categorias raciais e a criação de hierarquias entre estas categorias.” (Souza, 2017, p. 23). . Sua construção e reprodução remetem a uma luta simbólica e política pela classificação hierárquica dos grupos sociais. Pode-se afirmar, a partir disso, que o conceito de raça, ao se referir a relações de poder e à formatação de uma forma específica de desigualdade, ganha sentido, para os cientistas sociais, como estratégia para se pensar um fenômeno específico de subalternização social: o racismo4 4 . Alguns autores são categóricos em afirmar que o racismo é o fenômeno responsável pela criação das “raças sociais” e não o contrário. “É o racismo e os processos de racialização que devem ocupar o centro da análise, não as ‘relações raciais’, termo que substancializa as ‘raças” (Monsma, 2016, p. 53). . Monsma (2017MONSMA, KARL. (2017), “Como pensar o racismo: o paradigma colonial e a abordagem da sociologia histórica”. Revista de Ciências Sociais (UFC), 48: 53-82., p. 69), ao buscar extrapolar o alcance do conceito de racismo para além do paradigma colonial, o define como “a dominação sistemática de um grupo étnico por outro, acompanhada por representações e ideologias que essencializam e depreciam o povo subordinado, servindo para justificar a exploração ou exclusão material”.

Atualmente, as pesquisas sobre as relações raciais nas Ciências Humanas são bastante variadas, mas adotam uma perspectiva que desnaturaliza completamente a ideia de raça. “Raça é uma construção discursiva, um conceito classificatório importante na produção da diferença, um significante flutuante, deslizante, que significa diferentes coisas em diferentes épocas e lugares.” (Hall, 2015HALL, Stuart. (2015), “Raça, o Significante Flutuante”. Z Cultural, ano VIII, n. 2., p. 1). Ao se historicizar a ideia de raça, permite-se compreendê-la como um fenômeno que apresenta diferentes significados em diferentes contextos sociais. Sendo assim, o próprio racismo precisa ser conjugado no plural, pois adquire formas específicas, particulares e únicas, dependendo de como as representações acerca da ideia de raça são operacionalizadas. Apesar de mundial em suas manifestações, o racismo precisa, desse modo, ser visto de acordo com as especificidades históricas de cada sociedade.

Apesar dos diferentes significados assumidos em cada contexto histórico, é possível identificar uma constante na noção de raça: é associada à ideia de que a humanidade pode ser subdividida em diferentes grupos, que mantêm entre si uma relação de superioridade/inferioridade, sendo que cada um deles se distingue dos demais em razão de características inatas, compartilhadas entre seus membros. Trata-se de uma concepção que, em sua essência, diz respeito às relações de poder e necessidade de controle, sendo constantemente invocada para justificar práticas de dominação de um grupo sobre outro (Lima, 2019LIMA, Emanuel F. (2019), “Racismo no plural: ensaio sobre o conceito de racismos”. In: LIMA, Emanuel F.; SANTOS, Fernanda; NAKASHIMA, Henry & TEDESCHI, Losandro. Ensaios sobre racismos. São Paulo, Balão., p. 12).

Atualmente, um conceito bastante em voga é o de racismo estrutural, ou sistêmico (Bonilla-Silva, 1997BONILLA-SILVA, Eduardo. (1997), “Rethinking racism: Toward a structural interpretation”. American Sociological Review, 62 (3), pp. 465-480, jun.; 2020). Esse termo surgiu para definir o racismo não como um comportamento individual, mas sim como um processo político que estrutura posições sociais. Dito de outra maneira, o racismo se configura, sempre, como uma relação social de poder que cria vantagens e desvantagens (não circunstanciais) no processo de competição pelos bens materiais e simbólicos de uma determinada sociedade. Ele só existe se há uma estrutura social capaz de criar grupos, sujeitos e subjetividades e organizá-los a partir de determinadas relações de poder.

A tese central é a de que o racismo é sempre estrutural, ou seja, de que ele é um elemento que integra a organização econômica e política da sociedade. Em suma, o que queremos explicitar é que o racismo é a manifestação normal de uma sociedade, e não um fenômeno patológico que expressa algum tipo de anormalidade. O racismo fornece o sentido, a lógica e a tecnologia para a reprodução das formas de desigualdade e violência que moldam a vida social contemporânea […]. As expressões do racismo no cotidiano, seja nas relações interpessoais, seja na dinâmica das instituições, são manifestações de algo mais profundo, que se desenvolve nas entranhas políticas e econômicas da sociedade (Almeida, 2019ALMEIDA, Silvio L. (2019), Racismo estrutural. São Paulo, Pólen., pp. 20-21).

Diferentemente da discriminação racial (a qual pode ser definida como qualquer tratamento desigual a membros de um grupo racialmente identificado) e do preconceito racial (juízo baseado em estereótipos, que pode resultar em discriminação, contra membros de um grupo racialmente identificado), o racismo tem um caráter sistêmico.

Podemos dizer que o racismo é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertencem (Almeida, 2019ALMEIDA, Silvio L. (2019), Racismo estrutural. São Paulo, Pólen., p. 32).

Tal definição privilegia dois aspectos na análise do racismo: destaca a dimensão do poder presente nesse fenômeno (o racismo estrutural pode ser conceituado como uma tecnologia de exercício de poder), bem como o compreende para além das suas manifestações propriamente individuais. Dito em outras palavras, não é no nível individual que conseguimos compreender o racismo. Mais do que produzido pelos indivíduos, suas relações de poder produzem indivíduos; constituem sujeitos. Os indivíduos precisam aprender a se comportar de maneira racista em instituições racistas. Estas últimas, por sua vez, só existem em sociedades racialmente estruturadas5 5 . Aqui reside a diferença entre racismo estrutural e racismo institucional. Instituições racistas só existem de maneira articulada em uma sociedade estruturalmente racista. “As instituições são apenas a materialização de uma estrutura social ou de um modo de socialização que tem o racismo como um de seus componentes orgânicos. Dito de modo mais direto: as instituições são racistas porque a sociedade é racista. […]. O racismo é parte da ordem social. Não é algo criado pela instituição, mas é por ela reproduzido” (Almeida, 2019, p. 47). Tanto os comportamentos individuais como os processos institucionais são derivados de uma sociedade cujo racismo é regra e não exceção. .

Monsma, inspirado na teoria social de Pierre Bourdieu, pauta-se no conceito de “habitus racial”, para refletir sobre como os indivíduos internalizam e reproduzem o racismo das estruturas sociais.

Uma teoria do racismo não deve focar somente os sistemas ideológicos mais ou menos elaborados por intelectuais, como o racismo científico do final do século XIX e início do XX. Também precisa abordar a racialização das instituições sociais, por um lado, e a internalização do racismo como um aspecto do habitus, por outro. As instituições, como o Estado, a escola, a polícia, a igreja e a família, incorporam categorias raciais e tratam os integrantes dessas categorias de maneira diferenciada. O habitus racial consiste em: 1) categorias raciais de percepção e classificação dos outros e de si mesmo; 2) percepções, associadas às categorias raciais, de capacidades, tendências comportamentais e qualidade morais; 3) disposições corporais e emoções - de atração ou repulsão, confiança ou suspeita, segurança ou medo - a respeito das pessoas racialmente categorizadas; 4) esquemas de ação diferentes a respeito das pessoas de categorias “raciais” distintas. Internaliza-se o habitus racial pela experiência em um mundo social racializado (Monsma, 2016MONSMA, KARL. (2016), A reprodução do racismo. Fazendeiros, negros e imigrantes no oeste paulista (1880-1914). São Carlos: EdUFSCar., p. 52).

Assim, o racismo é reproduzido a partir de toda uma complexa engrenagem social que o torna um elemento sistemático em determinadas sociedades, passando das instituições para o habitus dos indivíduos. Segundo esse autor, são cinco as principais dimensões de reprodução do racismo: instituições racializadas; redes sociais racializadas; representações e ideologias racializadas; rotinas de interação racializadas; e o habitus racial.

Também é correto afirmar que o racismo estrutural não pode ser considerado um fenômeno estático. Para perceber a sua temporalidade, é preciso recorrer a uma noção que leve em conta o caráter dinâmico e fragmentado das estruturas sociais. Portanto, a fim de abordar os (des)caminhos da construção da liberdade negra como um fenômeno político, é preciso entendê-los como parte de um processo social.

Nesse sentido, não há como pensar a construção e a contestação da liberdade negra, no pós-abolição, sem levar em conta a remodelação do racismo estrutural após o fim da escravidão. A subalternização da cidadania negra passa pela subalternização social da população negra. Resumindo, somente é possível entender o processo de construção da (sub)cidadania negra constatando-se que ele se estabelece por meio de uma disputa (desigual, tensa e difusa), na qual há, por um lado, a tentativa de manutenção das hierarquias raciais como elemento estruturante da sociedade (o racismo) e, por outro lado, as lutas por afirmação da liberdade negra - liberdade encarada aqui não como abstração, mas como elemento chave na experiência histórica de populações que foram escravizadas.

No restante deste artigo, busca-se explorar múltiplas dimensões empíricas da subalternidade negra. Nosso foco não são os processos por meio dos quais ela foi historicamente produzida, mas sim seus resultados concretos, em um período chave que constitui o início do século XX, quando as hierarquias sociais já se encontravam razoavelmente estabilizadas, cerca de duas décadas após a abolição. Para tanto, lançaremos mão de fontes variadas, dentre as quais uma delas se destaca - um censo nominativo municipal -, que, por sua singularidade, reúne informações bastante sugestivas e instigantes no sentido de revelar aspectos pouco explorados pela historiografia e sociologia das relações raciais paulista6 6 . Como referências de artigos que utilizaram pioneiramente o censo de 1907, consultar Truzzi e Bassanezi (2009) e Monsma (2010). .

O contexto e a relevância da fonte

Em São Carlos, município localizado na região central do estado, a formação de uma população estabelecida iniciou-se ainda na primeira metade do século XIX, com as primeiras fazendas mantidas a braço escravo (Truzzi, 2007TRUZZI, Oswaldo (2007). Café e indústria: São Carlos (1850-1950). 3. ed. São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo; São Carlos, EdUFSCar.). O município apresenta uma singularidade significativa, pois a época de sua “fundação”, em 1857, situa-se entre datas que desafiavam, de um ponto de vista legal, o regime escravista: as leis Eusébio de Queiroz (1850, que buscava extinguir o tráfico negreiro) e Rio Branco (ou do Ventre Livre, de 1871).

Não obstante, a perspectiva de a região abrigar cada vez mais lavouras comerciais determinou que os escravos, mesmo a um custo maior, fossem trazidos de outras regiões. Em 1874, o município contava com cerca de 1600 escravos, número este que mais que duplicaria apenas doze anos depois. Somados eles aos pardos e pretos já à época libertos ou que nasceram livres, a população negra compunha um contingente de 5.950 indivíduos e representava o maior contingente étnico-racial do município, perfazendo 37% da população, composta ainda por brasileiros brancos (32%), caboclos (18%) e estrangeiros (13%) (vide adiante a tabela 2).

Uma aproximação razoável a respeito da origem da população negra pôde ser realizada por meio de registros paroquiais de casamento de escravos, forros e libertos, entre 1860 e 1888, ano da abolição.

TABELA 1
Origem dos cônjuges (escravos, forros e libertos), São Carlos, 1860-1888

Tais fontes indicam uma população relativamente heterogênea quanto à origem, fruto do tráfico interprovincial de escravos, sendo diminuto o percentual de africanos que se casaram no período. Mais da metade dos negros proveio ou da Bahia ou de regiões mais antigas do estado de São Paulo, em particular do chamado “Quadrilátero do açúcar”, área poligonal de ocupação mais antiga, delimitada pelos municípios de Sorocaba, Piracicaba, Mogi-Guaçu e Jundiaí.

Em 1884 a chegada da ferrovia representou um impulso decisivo à economia cafeeira da região, acompanhada do incremento da importação de famílias de colonos de origem europeia, sobretudo italiana. Esse aporte relativamente diversificado tornou-se evidente já no prelúdio do novo século. Em 1899, uma estatística agrícola organizada pelo Club da Lavoura local consignava um total de 15688 trabalhadores no meio rural, onde os italianos somavam dois terços de toda a força de trabalho, seguidos de longe por espanhóis (9%), brasileiros negros (8%), brasileiros brancos (7%), portugueses (6%) e imigrantes de outras nacionalidades (5%) (Truzzi, 2004TRUZZI, Oswaldo (2004). Fontes estatístico-nominativas da propriedade rural em São Carlos, 1873-1940. São Carlos, EdUFSCar.). Oito anos depois, um levantamento censitário realizado no município em 1907, que abrangeu a compilação de informações variadas7 7 . A saber: nome, idade, sexo, estado civil, profissão, cor e nacionalidade. Também o censo recolheu duas informações binárias (sim / não) referentes a “ser ou não proprietário” e a “saber ou não ler” (Truzzi e Bassanezi, 2009). referentes a 38.642 indivíduos que então o habitavam, confirmou o porte das alterações demográficas ocorridas entre 1886 e 1907.

TABELA 2
População segundo nacionalidade e cor (São Carlos, 1886 e 1907)

A população de São Carlos mais que duplicou no período, tendo sua composição racial fortemente alterada, graças, sobretudo, ao grande afluxo de imigrantes. Assim, mesmo que as categorias raciais não coincidam exatamente, em 1886, dos 16.104 indivíduos que habitavam o município, 37% foram arrolados como pretos ou pardos. Já em 1907, pretos e mulatos não ultrapassavam um oitavo da população do município8 8 . Provavelmente os caboclos de 1886 foram subsumidos em 1907 seja como brancos ou mulatos, dependendo da cor e também da posição social de cada indivíduo. O mesmo deve ter ocorrido com a categoria pardo, um atributo que, em épocas próximas à abolição, serviu também para designar, em algumas áreas do país, a condição de livres (Mattos, 2013). .

Em 1886, dos 5.950 indivíduos arrolados como pretos ou pardos, mais da metade (2.982) permanecia sob o jugo da escravidão, 1.277 foram indicados como ingênuos, filhos livres de mulher escrava (frutos da aplicação da Lei do Ventre Livre de 1871), enquanto os libertos ou já nascidos livres somavam 1.681 indivíduos. Sendo assim, apenas dois anos antes da abolição, uma estimativa conservadora do percentual de pretos ou pardos, ainda escravizados ou pelo menos nascidos em famílias escravas, rondava os 80% em São Carlos.

Com a chegada massiva de imigrantes estrangeiros, estes saltaram de 12,7% da população em 1886 (mais da metade já eram italianos), para 39,4% em 1907 (quase três quartos italianos)9 9 . Se incluirmos os filhos de imigrantes que nasceram no Brasil, o número é muito maior. . Além disso, a população branca foi também incrementada pelo afluxo de brasileiros brancos (cujo volume absoluto mais do que triplicou) que acorreram ao município, atraídos pela prosperidade de suas lavouras. O resultado foi o decréscimo não apenas absoluto da população negra10 10 . O número absoluto de negros mudou pouco. Certamente alguns foram embora depois de 1888, mas houve também crescimento vegetativo dessa população após a abolição, porque todos de repente ficaram livres para se casarem. , mas sobretudo relativo, de 37% da população total em 1886 para apenas 12,5% em 1907. Da população negra presente em 1907, mulatos somavam pouco mais de um quinto do total.

Busca-se aqui analisar e discutir as características de inserção social e econômica da população negra em São Carlos nessa época e daí derivar um padrão de subalternidade de populações negras no oeste paulista no pós-abolição. O Censo Municipal realizado neste município em 1907 constitui uma fonte primária relevante, que supre a ausência de levantamentos populacionais que trabalhem a variável cor no período em questão. De fato, o censo seguinte ao recenseamento geral realizado na província de São Paulo em 1886, foi feito nacionalmente em 1890, porém contou com inúmeras deficiências, reconhecidas pelo próprio prefaciador11 11 . “[…] ao apresentar hoje a synopse do recenseamento de 1890, não aconselho aos que de seus algarismos se forem servir, que o façam, senão com todo critério, não devendo considerar a segunda [sic] operação censitária da República, mais que um segundo ensaio de recenseamento e quiça em condições inferiores ao primeiro […].” (Bassanezi, 1998). .

Ademais, como é sabido, durante o início do século XX, os censos nacionais de 1900 e 1920 não incluíram a variável cor em sua coleta de dados. Para piorar, tanto os censos nacionais de 1910 como o de 1930 não foram realizados por motivos de instabilidade política (Piza e Rosemberg, 1998PIZA, Edith & ROSEMBERG, Fulvia. (1998), “Cor nos censos brasileiros”. Revista USP, 40.-1999)12 12 . Ver também: “Censos demográficos”, Memória IBGE. . Em São Paulo, fez-se um censo estadual em 1934, mas que ainda não incluiu a variável cor. Assim sendo, há uma lacuna de mais de meio século entre o recenseamento estadual de 1886 e o censo nacional de 1940, o primeiro recenseamento confiável, na era republicana, no qual a variável cor foi considerada. Em face de tal apagão de dados censitários a respeito da composição racial da população, o referido censo de 1907, ainda que de abrangência municipal, assume um papel privilegiado na investigação da população negra no pós-abolição em áreas do oeste paulista onde se desenvolveu a economia cafeeira. Além de apresentar um censo absolutamente singular, São Carlos também abrigava números significativos, tanto de negros quanto de imigrantes, por estar na fronteira da expansão da economia do café na época da abolição.

Dimensões empíricas da subalternidade da população negra no pós-abolição

A partir dos dados fornecidos pelo Censo de 1907, quatro dimensões da subalternidade da população negra foram exploradas e analisadas: instrução (mediada pela capacidade de leitura e frequência à escola), ocupações (tanto no meio rural quanto urbano, incluindo-se as de certo prestígio), distribuição espacial da população negra no tecido urbano e no meio rural e, por último, a composição racial das famílias. A tais variáveis foi acrescida uma, relativa à inserção social e política, desdobrada aqui na capacidade associativa e de interlocução do grupo com as elites, e na ocupação de cargos na política formal do município. Na medida do possível, tais variáveis foram cotejadas de modo comparativo com outros grupos sociais, especialmente de imigrantes e seus descendentes no município.

Instrução

No tocante à instrução, o censo de 1907 distingue entre os que sabiam e os que não sabiam ler. No total do município, considerando-se a população de no mínimo doze anos de idade (23.773 indivíduos), apenas 35% da população sabia ler. Havia, porém, diferenças bastante acentuadas entre os meios urbano e rural (nesse último, apenas 28% da população foi registrada como tendo capacidade de leitura; já no meio urbano, quase 60%) e entre homens e mulheres (43% dos homens e 27% das mulheres).

Para nossos fins, cruzando-se a capacidade de leitura com a variável cor e nacionalidade, observa-se que 39% dos brasileiros com no mínimo doze anos sabiam ler, sendo que, entre esses, o contingente mais prejudicado era justamente o de negros, em que apenas 14% dos indivíduos o faziam. Ao se discriminar pretos de mulatos, observam-se diferenças significativas, pois entre os primeiros a capacidade de leitura se limitava a 11% dos indivíduos, enquanto entre os últimos alcançava 25%.

Já entre os estrangeiros, espanhóis, portugueses e italianos exibiam taxas que variavam entre 30% e 32%, seguidos por turcos (43%) e alemães, esses últimos contando com 64% do grupo com capacidade de leitura.

No tocante à frequência à escola, configura-se um quadro que beira a total exclusão escolar da população negra. O próprio censo registra 95 estudantes, todos no meio urbano, sendo quarenta do sexo masculino e 55 do sexo feminino. Estas eram todas brancas, enquanto entre os quarenta estudantes masculinos, havia apenas dois mulatos13 13 . Mesmo que incompleto, provavelmente arrolando apenas os indivíduos que se dedicavam integralmente aos estudos e deixando de fora, por exemplo, filhos de colonos que eventualmente frequentassem escolas rurais, ou outros na cidade que, além de estudarem, também trabalhassem no comércio ou em ofícios diversos, a contundência dos dados do censo não deixa de ser expressiva. .

Infelizmente não há dados sobre a composição racial do alunado em nenhuma das doze instituições de ensino particulares estabelecidas na cidade desde 1887, mas é razoável se supor que o atendimento à população negra fosse inexistente ou pelo menos muito raro (Aragão, 2003ARAGÃO, E. (2003), “Raça, nação, classe e a educação para o trabalho: a marginalização do trabalhador nacional livre na primeira industrialização em São Paulo (1880-1920)”. Pro-Posições, 14 (2): 147-175.). Já na esfera educacional pública, um almanaque publicado em 1905 menciona existirem no município quinze escolas mantidas pelos poderes públicos municipais e estaduais (Augusto, 2007AUGUSTO, Joaquim (ed.). (2007), Almanáque de S. Carlos 1905. São Carlos: EdUFSCar e Imesp., p. 47). Entretanto, somente em 1904 foram concluídas as obras do primeiro grupo escolar público da cidade (o segundo seria instalado apenas em 1919). A escassa frequência da população negra à escola pode ser atestada pelo exame dos livros de matrícula de 1907, que registram os nomes dos pais dos 177 alunos matriculados14 14 . Os livros mencionados encontram-se na Unidade Especial de Informação e Memória da UFSCar. . Tais nomes foram cruzados com as informações do censo de 1907, para se obterem a cor e a nacionalidade. Considerando-se todo o universo, havia apenas quatro alunos filhos de casais de cor preta, um aluno filho de um casal de mulatos e outro filho de um casal “misto”, no qual um dos pais era branco e o outro, preto.

Por contraste, é oportuno ainda notar que a volumosa comunidade italiana urbana, organizada em torno da Società Dante Alighieri desde 1902, inaugurou sua sede própria e edifício escolar em 1908, sob a presença de autoridades municipais, de representantes de associações italianas e de expressiva delegação vinda da capital, que incluía os industriais beneméritos Francesco Matarazzo e Egídio Pinotti Gamba, os professores Antonio Carini (então diretor do Instituto Pasteur) e Antonio Piccarolo (diretor do jornal Avanti). Ao longo de quase quatro décadas, essa escola marcou gerações de alunos que a frequentaram, mas é improvável, pelo seu próprio caráter preponderantemente étnico, que abrigasse negros, a não ser excepcionalmente, entre o corpo discente.

Por outro lado, pouco sabemos o que sucedia na área educacional no meio rural. Dentre os 66 professores arrolados pelo censo de 1907, três quartos deles (49) residiam no núcleo urbano principal, e nenhum nos bairros rurais onde a população negra era sobrerrepresentada. Mais uma vez não temos informações sobre a regularidade do funcionamento do ensino nessas fazendas e muito menos acerca da composição racial do corpo discente nas mesmas.

Ocupações

Em relação às ocupações, convém desde logo distinguir os meios rural e urbano. Em 1907, o censo registra que mais de três quartos da população do município habitavam o meio rural (Truzzi e Bassanezi, 2009TRUZZI, Oswaldo & BASSANEZI, Maria S. (2009). “População, grupos étnico-raciais e economia cafeeira”. Revista Brasileira de Estudos de População, 26: 197-218.). Adotou-se também aqui o universo de indivíduos com no mínimo doze anos de idade, embora fosse comum o emprego de crianças de menor idade nas lides rurais. Como era de se esperar, o grosso da população rural do município, cerca de dois terços, estava empregada sob o regime do colonato, os italianos compondo cerca de 60% do contingente, seguidos por brasileiros brancos (15%), negros (10%), espanhóis (8%) e portugueses (6%). O quadro a seguir evidencia as ocupações rurais com mais de cinquenta indivíduos, por cor e nacionalidade.

TABELA 3
Ocupações Rurais com mais de 50 indivíduos, por cor e nacionalidade* (São Carlos, 1907)
TABELA 4
Ocupações Urbanas com mais de 50 indivíduos, por cor e nacionalidade (São Carlos, 1907)

Entre os 3.016 brasileiros colonos, 990 eram pretos e 178 mulatos. “Chama atenção aqui a presença significativa de famílias de colonos negros (tanto pretos quanto mulatos), mais numerosos do que colonos portugueses ou espanhóis, ao arrepio do que normalmente é referido na literatura” (Truzzi e Bassanezi, 2009TRUZZI, Oswaldo & BASSANEZI, Maria S. (2009). “População, grupos étnico-raciais e economia cafeeira”. Revista Brasileira de Estudos de População, 26: 197-218.; Barbosa, 1943BARBOSA, C. (1943), Glossário do trabalho agrícola e profissões São Paulo. São Paulo, Secr. Agric., Ind. e Com. do Estado., p. 51), que ora atribui a tal grupo ocupações mais periféricas no latifúndio cafeeiro (como a de camaradas), ora indica o abandono das fazendas por ocasião da abolição da escravidão. Não obstante a não exclusão dos negros do regime do colonato (Monsma, 2010MONSMA, KARL. (2010), “Vantagens de imigrantes e desvantagens de negros: emprego, propriedade, estrutura familiar e alfabetização depois da abolição no oeste paulista”. Dados, 53 (3): 509-543.), é bastante significativa a presença da população negra entre camaradas. Também eram majoritários em ocupações menos qualificadas como as de empregado, carroceiro e cozinheira (a única das profissões elencadas na tabela na qual as mulheres predominavam, tanto para todos os grupos [81%], quanto para pretos e mulatos [84%])15 15 . Tanto no meio rural quanto no meio urbano, o cruzamento das variáveis gênero e profissão fica prejudicado para vários itens nos quais a ocupação do homem “contamina”, por assim dizer, a ocupação da esposa, como nos casos de lavrador, empreiteiro e construtor, com percentuais pouco críveis, ao redor de 40%, para as mulheres. Isso não ocorre na vasta categoria do colonato, regido por contratos familiares, ainda que vigesse certa divisão de trabalho por gênero nas unidades familiares (Matos, Truzzi e Conceição, 2018). A “contaminação” tampouco parece ocorrer no sentido inverso, da mulher para o homem. . Em contrapartida, negros eram escassos, relativamente a brasileiros brancos e italianos, nas ocupações de administrador e lavrador, esta última uma categoria um tanto ambígua, mas que guarda uma forte correlação com a propriedade da terra (Truzzi e Bassanezi, 2009). Por fim, não havia um único negociante negro no meio rural.

TABELA 5
Ocupações com certo prestígio (21 anos ou mais), por cor e nacionalidade

Em relação à propriedade da terra, os brasileiros brancos também se destacavam dos brasileiros negros. Das 313 propriedades rurais arroladas pela Estatística Agrícola referente ao ano agrícola 1904-1905, realizada pelo governo do estado, apenas nove puderam ser identificadas como pertencentes a negros (sete de proprietários de cor preta e duas pertencentes ao mesmo mulato) indicados no censo de 1907. Eram todas de porte pequeno, com áreas variando entre 1 e 50 alqueires paulistas, exceto uma de porte médio, com 236 alqueires. O valor delas também era modesto: cinco dessas propriedades eram avaliadas entre meio e três contos de réis, enquanto as outras quatro valiam entre quinze e trinta contos de réis. Para se ter uma ideia do que isso significa em relação ao conjunto das propriedades rurais no município, elas representavam 3% do número, 0,8% da área e 0,3% do valor. Os italianos, embora na época ainda recém-chegados, já detinham 12% do número, 1,7% da área e 1,3% do valor das propriedades rurais em São Carlos (Truzzi, 2004TRUZZI, Oswaldo (2004). Fontes estatístico-nominativas da propriedade rural em São Carlos, 1873-1940. São Carlos, EdUFSCar., pp. 61-126).

No meio urbano, o padrão de subalternidade das ocupações da população negra se mantém, pois é patente que os negros são mais abundantes entre cozinheiros (cerca de 95% mulheres), lavadeiras (todas mulheres) e criados (mais de 80% mulheres), além de disputarem com os italianos a ocupação de camaradas residentes em área urbana.

Tal padrão é confirmado quando se analisa a tabela 5, que reúne categorias ocupacionais de certo prestígio no município. Observa-se a ausência de negros em várias categorias (nenhum advogado, juiz, médico, farmacêutico, engenheiro, professor, funcionário público, chefe de estação, banqueiro, comerciante ou diretor), ou a sua presença diminuta quando comparada a outros grupos sociais. Embora representassem 12,5% da população do município, os negros ocupavam apenas 2% (13, todos homens, em 634) das ocupações aqui cotadas como de certo prestígio.

Distribuição no tecido urbano e no meio rural

Como o censo de 1907 distribuiu espacialmente a população urbana em uma zona central, quatro bairros periféricos e regiões de subúrbios, puderam-se ainda constatar os primórdios da marginalização dos negros no tecido urbano do município. Volante (2021VOLANTE, João P. (2021), Processos pioneiros de diferenciação socioespacial urbana no oeste paulista: o caso de São Carlos (1880-1914). São Carlos, dissertação de mestrado, Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos, PPGS-UFSCar.) analisou a composição étnico-racial de áreas destacadas do tecido urbano: a então rua São Carlos (principal eixo viário da cidade), o entorno da matriz, a região conhecida como Piccola Calabria e os quatro bairros periféricos da cidade. Os negros (pretos e mulatos) encontravam-se muito mais concentrados em três destes quatro bairros exteriores ao núcleo urbano central: as vilas Pureza (47%), Izabel (42%) e Nery (30%), enquanto a média para o tecido urbano como um todo era de apenas 14% (mapa 1). Assim, ao se considerar a periferia urbana da época, composta pelos quatro bairros mais exteriores ao núcleo urbano central e mais a zona referenciada no censo como “subúrbios”, observa-se que a chance de um negro (preto ou mulato) habitar a periferia era quase o dobro daquela de um brasileiro branco ou de um estrangeiro (Truzzi e Bassanezi, 2009TRUZZI, Oswaldo & BASSANEZI, Maria S. (2009). “População, grupos étnico-raciais e economia cafeeira”. Revista Brasileira de Estudos de População, 26: 197-218.).

MAPA 1
Núcleo urbano de São Carlos com regiões em destaque (cerca de 1908)

Não significa que não havia brancos na periferia, mas sim que os negros nessas áreas eram relativamente sobrerrepresentados (com exceção do bairro do Botafogo). A maioria da população negra que aí residia executava atividades ligadas ao meio rural - na figura dos camaradas -, e outras consideradas menos qualificadas, como doceiros, cozinheiros e quitandeiros. Por outro lado, tampouco significa que não havia negros residindo em áreas urbanas mais centrais. Muitos deles residiam inclusive no núcleo mais central, em áreas no entorno da matriz, onde exerciam ocupações como as de cozinheiro, pedreiro, criado ou empregado, atestando um regime de evidente segmentação ocupacional16 16 . Para uma análise mais detalhada, por bairros na cidade, consultar Volante (2021). .

TABELA 6
Distribuição da população da cidade de São Carlos por categorias raciais - 1907

Já no meio rural como um todo, os negros representavam cerca de 12% da população. Mas havia também bairros rurais onde a população negra era muito mais numerosa, a par de outros onde era bem mais escassa. Exemplificando os extremos, o bairro de Fortaleza, localizado na divisa com Araraquara, abrigava 26% de negros, ao passo que estes somavam apenas 3% e 7% nos bairros de Canchim e Colônia, respectivamente (Canchim e Colônia eram também os bairros onde havia menor percentual de brasileiros brancos). Significativamente, Fortaleza é o bairro rural com menor incidência de imigrantes (e de italianos), enquanto Canchim e Colônia representam os bairros rurais onde estes se encontram mais representados. Tais dados sugerem disputas no mercado de trabalho rural, com negros alinhados com brasileiros brancos (provavelmente pobres), de um lado, e imigrantes (italianos especialmente) de outro.

Composição racial familiar

O censo de São Carlos em 1907, ao registrar nominalmente cada indivíduo e sua cor, fornece muitas pistas sobre a constituição das famílias. A análise, contudo, não pode ser exaustiva, seja porque há indivíduos casados cujo cônjuge não se encontra sucessivamente listado no censo, seja pela ocorrência provável de uniões consensuais, nem sempre evidentes, e certamente mais comuns em estratos populacionais menos favorecidos. Mesmo assim, em um percorrer atento e minucioso às páginas manuscritas do censo, normalmente se podem perceber a estruturação dos núcleos familiares, sua composição e configuração racial. Neste sentido, em meio aos 38642 indivíduos arrolados no censo, foram identificados 6208 casais. As tabelas abaixo expõem a configuração racial desses casais.

TABELA 7
Composição racial dos casais identificados no censo. São Carlos, 1907

Para exemplificar, tomemos o universo de casais brancos. Os dados devem ser lidos da seguinte forma: do total de 6208 casais, 5426 eram compostos por homem branco e mulher branca; 99,5% dos homens brancos tinham por cônjuge mulheres brancas, e 98,9% das mulheres brancas tinham por cônjuge homens brancos. Do mesmo modo, 694 casais eram formados por homens negros e mulheres negras; 92,2% dos homens negros esposavam mulheres negras, e 96% das mulheres negras esposavam homens negros.

Do ponto de vista da constituição racial das famílias, os dados configuram um alto grau de endogamia racial. De fato, menos de 8% do total de homens negros eram maridos de mulheres brancas, e apenas 4% das mulheres negras eram esposas de homens brancos.

Pode-se ainda desdobrar a população negra entre pretos(as) e mulatos(as), conforme indica a tabela seguinte.

TABELA 8
Composição racial dos casais identificados no censo, levando-se em conta a distinção entre pretos e mulatos. São Carlos, 1907

Observam-se então diferenças até certo ponto significativas, pois enquanto apenas 7% dos homens pretos eram maridos de mulheres brancas, entre homens mulatos, mais de 11% o faziam. Do mesmo modo, enquanto apenas pouco mais de 2% das mulheres pretas eram esposas de homens brancos, entre mulheres mulatas, mais de 10% o faziam.

De qualquer modo, o que os dados evidenciam é um contexto de forte racialização na composição das famílias. Tais números lançam (mais) evidências empíricas para a contestação da chamada “ideologia da mestiçagem”, muito presente na formação da identidade nacional. A partir do início do século XX, a miscigenação, antes combatida, passou a ser elogiada e utilizada a serviço do progresso da nação. Pela primeira vez, difunde-se a ideia de que é possível o Brasil modernizar-se (mesmo) sendo um país mestiço, “destacando a herança negra e a mestiçagem no que elas poderiam aportar de positivo à nação” Truzzi, 2012TRUZZI, Oswaldo. (2012), “Assimilação ressignificada: Novas interpretações de um velho conceito”. Dados, 55 (2): 517-553., p. 521).

Ora, de acordo com as informações contidas no recenseamento de São Carlos, podemos perceber que a ideia de mestiçagem, além de historicamente ser em parte fruto da violência sexual contra as mulheres escravas, estava ligada à ideologia do branqueamento, que pregava a branquitude como modelo a ser alcançado. Isso explica, por exemplo, por que os(as) mulatos(as) apresentam números ligeiramente superiores aos de pretos(as), de exogamia interracial. Assim, é curioso que a mestiçagem crescente da população seja apresentada como prova de inexistência de racismo17 17 . Assim como a afirmação comum de que “o dinheiro embranquece”. , quando na verdade atesta a vigência de um sistema racializado no qual o indivíduo é ranqueado segundo a proximidade da cor de sua pele com o ideal branco.

Inserção social e política

Discriminados pelo restante da sociedade, também parece que os negros só lograram se organizar mais tardiamente, em 1928, quando fundaram uma associação (até hoje existente), cujo núcleo era composto por ferroviários detentores de um emprego digno18 18 . O almanaque publicado em São Carlos em 1915 (p. 133) faz menção à associação Luís Gama, fundada em 1908 e presidida por um pedreiro, que justamente residia nos arrabaldes da cidade. Contudo, não se conseguiu apurar mais nada sobre tal sodalício. . Observe-se que tais aspectos contrastam em ampla medida com a situação de italianos que fundaram desde o século XIX pelo menos duas associações (uma delas logo passou a manter uma escola para seus filhos), que frequentavam ativamente as lojas maçônicas locais (Lotumulo e Tolentino, 2000), dispunham de profissionais com algum prestígio (como indicado na tabela 5) e ainda controlavam (excetuando-se os negócios diretamente relacionados ao café) o comércio, os ofícios artesanais e várias indústrias da cidade, mantendo certa interlocução ativa com as elites oligárquicas que dominavam política e economicamente o município. Nada disso acontecia com os negros. Pode-se conjecturar que isso se deve à heterogeneidade da população negra, como já apontamos inicialmente, mas os italianos também eram heterogêneos, regionalmente falando; só que eram brancos (Truzzi, 2015TRUZZI, Oswaldo (2015). Italianidade no interior paulista: percursos e descaminhos de uma identidade étnica (1880-1950). São Paulo: Editora Unesp., pp. 34-35).

Por fim, uma curta, mas sugestiva, menção à representação formal de negros na política local: é incrível que o primeiro negro (na verdade, mulato) a pisar a Câmara como vereador só o fez na década de 1980, e mesmo assim não assumindo plenamente a condição de ser negro.

Considerações finais

O conjunto de evidências empíricas acima apresentadas indicam processos cumulativos que, juntos, corroboraram, menos de duas décadas após a abolição, a inferiorização dos negros na sociedade. A combinação de tais evidências acarretou o efeito de reiterar e produzir subalternidade social. Tais resultados sugerem um padrão estrutural de subalternização entre a população negra no oeste paulista no pós-abolição, manifesto em diversas dimensões sociais, como o acesso à instrução praticamente nulo, o perfil ocupacional mais desqualificado, a distribuição espacial mais periférica no tecido urbano, a composição familiar racialmente endógena e a tardia e até hoje incompleta inserção social e política. A interligação dessas condições acabou por arquitetar um “lugar social” de subalternidade para aqueles que não se enquadravam nos preceitos da branquitude.

O que é o racismo estrutural senão a inserção de indivíduos e famílias em uma estrutura social racializada, na qual em todos os espaços de poder os negros ocupam uma condição subalterna? Sendo assim, podemos pensar a desigualdade racial como um fenômeno articulado e reproduzido em diversos campos da vida social, que se reforçam mutuamente. Enquanto processo político historicamente herdado e reinventado, o racismo estrutural é uma assimetria social predominante em diversos espaços e instituições, a qual acaba por racializar as classes sociais. É o que demonstram as condições gerais da população negra em um município representativo da economia cafeeira paulista no pós-abolição em uma época de “apagão censitário” na qual muito poucos dados acerca da população negra se encontram disponíveis.

Raça, classe social, status e gênero constituem categorias que se conjugam até hoje, sendo impossível compreender as consequências de um desses eixos de desigualdade e dominação sem levar em conta o outro. Aqui seguimos a literatura interseccional (Piscitelli, 2008PISCITELLI, Adriana. (2008), “Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras”. Sociedade e Cultura, Goiânia, 11 (2).) - até hoje concentrada principalmente na análise da situação de mulheres de grupos raciais ou étnicos subalternos, mas que merece aplicação mais ampla -, que salienta os ganhos analíticos possibilitados ao focar as combinações de categorias que correspondem à experiência e às identidades dos grupos humanos, bem como as relações entre os grupos assim definidos e suas continuidades e mudanças ao longo do tempo.

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  • 1
    . Agradecemos o apoio da Fapesp (proc. 2015/20577-6) e do CNPq (proc. 308322/2018-5), que possibilitaram a realização da pesquisa geradora do presente artigo.
  • 2
    . Há vasta bibliografia que aborda a problemática do pós-abolição, tanto nacional como internacional. Além das duas obras citadas, mencionem-se Andrews (1998ANDREWS, George R. (1998), Negros e brancos em São Paulo. Bauru, Edusc.), Cunha e Gomes (2007CUNHA, Olívia & GOMES, Flávio. (2007), Quase-cidadão. Histórias e antropologias da pós-emancipação no Brasil. Rio de Janeiro, Editora da FGV.), Garcia (1988GARCIA, Afrânio. (1988), “Libertos e sujeitos: sobre a transição para trabalhadores livres do Nordeste”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 3 (7): 6-41., 2003), Mattos (2013MATTOS, Hebe. (2013), Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista (Brasil, Século XIX). 3. ed. Campinas, Ed. Unicamp.), Monsma (2016MONSMA, KARL. (2016), A reprodução do racismo. Fazendeiros, negros e imigrantes no oeste paulista (1880-1914). São Carlos: EdUFSCar.), Palma e Truzzi (2018PALMA, Rogerio da & TRUZZI, Oswaldo. (2018), “A dependência reconstruída: a trajetória do escravo Felício no Oeste Paulista (1847-1920)”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 34 (99): 1-20., 2021), Cooper et al. (2005COOPER, Frederick et al. (2005), Além da escravidão: investigação sobre raça, trabalho e cidadania. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.) e Holt (1992HOLT, Thomas. (1992), The problem of freedom. Race, labor, and politics in Jamaica and Britain, 1832-1938. Baltimore, Johns Hopkins UP.), entre outras.
  • 3
    . “Racialização é o nome dado a este processo de construção social de raças [...], é o ‘termo usado para descrever processos sociais, culturais, econômicos e psicológicos que fazem raça importante e as formas que raça é usada como uma base para desigualdade e discriminação’, sendo que o principal produto do processo de racialização é a classificação de pessoas em categorias raciais e a criação de hierarquias entre estas categorias.” (Souza, 2017SOUZA, Eloísio M. (2017), “Processos de racialização: inteligibilidade, hibridade e identidade racial em evidência”. Economia e Gestão, Belo Horizonte, 17 (48): 23-42, set./dez., p. 23).
  • 4
    . Alguns autores são categóricos em afirmar que o racismo é o fenômeno responsável pela criação das “raças sociais” e não o contrário. “É o racismo e os processos de racialização que devem ocupar o centro da análise, não as ‘relações raciais’, termo que substancializa as ‘raças” (Monsma, 2016MONSMA, KARL. (2016), A reprodução do racismo. Fazendeiros, negros e imigrantes no oeste paulista (1880-1914). São Carlos: EdUFSCar., p. 53).
  • 5
    . Aqui reside a diferença entre racismo estrutural e racismo institucional. Instituições racistas só existem de maneira articulada em uma sociedade estruturalmente racista. “As instituições são apenas a materialização de uma estrutura social ou de um modo de socialização que tem o racismo como um de seus componentes orgânicos. Dito de modo mais direto: as instituições são racistas porque a sociedade é racista. […]. O racismo é parte da ordem social. Não é algo criado pela instituição, mas é por ela reproduzido” (Almeida, 2019ALMEIDA, Silvio L. (2019), Racismo estrutural. São Paulo, Pólen., p. 47). Tanto os comportamentos individuais como os processos institucionais são derivados de uma sociedade cujo racismo é regra e não exceção.
  • 6
    . Como referências de artigos que utilizaram pioneiramente o censo de 1907, consultar Truzzi e Bassanezi (2009TRUZZI, Oswaldo & BASSANEZI, Maria S. (2009). “População, grupos étnico-raciais e economia cafeeira”. Revista Brasileira de Estudos de População, 26: 197-218.) e Monsma (2010MONSMA, KARL. (2010), “Vantagens de imigrantes e desvantagens de negros: emprego, propriedade, estrutura familiar e alfabetização depois da abolição no oeste paulista”. Dados, 53 (3): 509-543.).
  • 7
    . A saber: nome, idade, sexo, estado civil, profissão, cor e nacionalidade. Também o censo recolheu duas informações binárias (sim / não) referentes a “ser ou não proprietário” e a “saber ou não ler” (Truzzi e Bassanezi, 2009TRUZZI, Oswaldo & BASSANEZI, Maria S. (2009). “População, grupos étnico-raciais e economia cafeeira”. Revista Brasileira de Estudos de População, 26: 197-218.).
  • 8
    . Provavelmente os caboclos de 1886 foram subsumidos em 1907 seja como brancos ou mulatos, dependendo da cor e também da posição social de cada indivíduo. O mesmo deve ter ocorrido com a categoria pardo, um atributo que, em épocas próximas à abolição, serviu também para designar, em algumas áreas do país, a condição de livres (Mattos, 2013MATTOS, Hebe. (2013), Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista (Brasil, Século XIX). 3. ed. Campinas, Ed. Unicamp.).
  • 9
    . Se incluirmos os filhos de imigrantes que nasceram no Brasil, o número é muito maior.
  • 10
    . O número absoluto de negros mudou pouco. Certamente alguns foram embora depois de 1888, mas houve também crescimento vegetativo dessa população após a abolição, porque todos de repente ficaram livres para se casarem.
  • 11
    . “[…] ao apresentar hoje a synopse do recenseamento de 1890, não aconselho aos que de seus algarismos se forem servir, que o façam, senão com todo critério, não devendo considerar a segunda [sic] operação censitária da República, mais que um segundo ensaio de recenseamento e quiça em condições inferiores ao primeiro […].” (Bassanezi, 1998BASSANEZI, Maria S. (1998), São Paulo do passado. Dados demográficos, 1890. Campinas, Nepo/Unicamp. Disponível em https://www.nepo.unicamp.br/publicacoes/censos/1890.pdf; consultado em 11/8/2021.
    https://www.nepo.unicamp.br/publicacoes/...
    ).
  • 12
    . Ver também: “Censos demográficos”, Memória IBGE.
  • 13
    . Mesmo que incompleto, provavelmente arrolando apenas os indivíduos que se dedicavam integralmente aos estudos e deixando de fora, por exemplo, filhos de colonos que eventualmente frequentassem escolas rurais, ou outros na cidade que, além de estudarem, também trabalhassem no comércio ou em ofícios diversos, a contundência dos dados do censo não deixa de ser expressiva.
  • 14
    . Os livros mencionados encontram-se na Unidade Especial de Informação e Memória da UFSCar.
  • 15
    . Tanto no meio rural quanto no meio urbano, o cruzamento das variáveis gênero e profissão fica prejudicado para vários itens nos quais a ocupação do homem “contamina”, por assim dizer, a ocupação da esposa, como nos casos de lavrador, empreiteiro e construtor, com percentuais pouco críveis, ao redor de 40%, para as mulheres. Isso não ocorre na vasta categoria do colonato, regido por contratos familiares, ainda que vigesse certa divisão de trabalho por gênero nas unidades familiares (Matos, Truzzi e Conceição, 2018MATOS, Maria I. et al. (2018), “Mulheres imigrantes: presença e ocultamento (interiores de São Paulo, 1880-1930)”. Revista Brasileira de Estudos de População, 35 (3).). A “contaminação” tampouco parece ocorrer no sentido inverso, da mulher para o homem.
  • 16
    . Para uma análise mais detalhada, por bairros na cidade, consultar Volante (2021VOLANTE, João P. (2021), Processos pioneiros de diferenciação socioespacial urbana no oeste paulista: o caso de São Carlos (1880-1914). São Carlos, dissertação de mestrado, Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos, PPGS-UFSCar.).
  • 17
    . Assim como a afirmação comum de que “o dinheiro embranquece”.
  • 18
    . O almanaque publicado em São Carlos em 1915 (p. 133) faz menção à associação Luís Gama, fundada em 1908 e presidida por um pedreiro, que justamente residia nos arrabaldes da cidade. Contudo, não se conseguiu apurar mais nada sobre tal sodalício.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    28 Out 2022
  • Aceito
    11 Maio 2023
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