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Entre famílias e direito em Axel Honneth: O caso paradigmático das famílias formadas por lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e transexuais

Between families and law in Axel Honneth: the paradigmatic case of families formed by lesbians, gays, bisexuals, transgender people, and transsexuals

Resumo

O artigo procura explorar algumas das relações que atravessam dois dos campos da vida social investigados por Axel Honneth em O direito da liberdade: as famílias e o direito. Para tanto, lança mão da reconstrução normativa, que permite esboçar o desenvolvimento geral de esferas funcionalmente diferenciadas e observar as relações que intercorrem entre umas e outras a ponto de impactar a realização interna de suas promessas normativas. As famílias constituídas por lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais aparecem, aqui, como indicadores tanto da especialização como da democratização das relações familiares. Aparecem, também, como caso paradigmático das relações que intercorrem entre famílias e direito.

Palavras-chave:
Axel Honneth; O Direito da Liberdade; Direito; Famílias; Minorias Sexuais

Abstract

This article aims to explore some of the relationships that cross two fields of social life that Axel Honneth discusses in Freedom’s Right - families and law. To this end, makes use of a normative reconstruction, which allows to trace the general development of functionally differentiated spheres and to observe the relationships between these spheres which impact the internal realization of its normative promises. The families headed by lesbians, gays, bisexuals, transvestites and transsexuals appear here as indicators of family relationships specialization and democratization. They also appear as a paradigmatic case of the relationships between families and law.

Keywords:
Axel Honneth; Freedom’s Right; Law; Families; Sexual Minority

Ela me chama de pai, por que a Justiça não reconhece a paternidade?

Uziel, 2009UZIEL, Anna Paula. (2009), “Homossexualidades e formação familiar no Brasil contemporâneo”. Revista Latinoamericana de Estudios de Família, 1: 104-115, jan./dez., p. 114.

Considerações iniciais

Axel Honneth (2015HONNETH, Axel. (2015), “Rejoinder”. Critical Horizons, 16 (2): 204-226, may., p. 222) procura explorar, em O direito da liberdade, na esteira de autores como Hegel, Durkheim e Max Weber, “a força implacável” de ideais normativos que se institucionalizam ou corporificam-se, no curso da modernidade, num conjunto multifacetado de esferas sociais, algumas públicas, outras domésticas. Para tanto, ele recorre a um método todo próprio, a reconstrução normativa, que lhe permite destilar critérios de justiça social diretamente das reivindicações normativas que se desenvolveram no interior de campos sociais muito plurais, como aqueles que por ora mais nos interessam, o direito e as famílias.

Honneth vê-se compelido, assim, a reconstruir, uma por uma, a trajetória sócio-histórica de um complexo de esferas funcionalmente diferenciadas, e a seguir de perto as relações que intercorrem entre essas mesmas esferas e que poderiam exercer, em cada caso, algum impacto, seja ele negativo ou positivo, na realização ou desdobramento interno de suas promessas normativas. Um projeto normativo alternativo desse tipo, muito embora se valha de uma estratégia de separação metodológica das esferas, não leva Honneth (2014b; 2015; 2017) a subestimar ou relegar à irrelevância as influências que essas mesmas esferas exercem umas sobre as outras, ainda que muitas dessas interconexões passem despercebidas, demandando novas investigações, mais abrangentes e mais profundas, sobretudo quando em jogo diferentes cenários nacionais, como ele mesmo admite, aliás, no prólogo de O direito da liberdade, ou no diálogo travado com Lois McNay (2015McNAY, Lois. (2015), “Social freedom and progress in the family: reflections on care, gender and inequality”. Critical Horizons, 16 (2): 170-186, may.).

Procuramos sondar, por isso mesmo, algumas das influências, interconexões ou vínculos, muitos deles tensos, contraditórios, complexos, superpostos ou diferenciados, entre dois dos domínios da vida social de que fala Honneth - o direito e as famílias -, mas sobretudo de uma perspectiva interna ao “nós” das relações intrafamiliares, como reclama o script honnethiano. Dadas as limitações impostas ao presente texto e o objetivo ora proposto, de caráter mais circunscrito, restringimo-nos a examinar, nestas páginas, o impacto da luta de minorias sexuais no campo das famílias e o papel do direito em meio a rearranjos familiares sem precedentes. E isso porque vínculos familiares protagonizados por lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais parecem constituir, à primeira vista, uma boa porta de entrada para diagnósticos ainda mais abrangentes sobre representações e práticas familiares contemporâneas, assim como sobre as relações que operam entre direito e famílias.

Assumindo as relações que atravessam e agitam as esferas do direito e das famílias como nosso objeto central, dividimos a presente investigação em duas seções. Na primeira, procuramos retomar algumas das reflexões de Honneth sobre a autonomia relativa de domínios sociais como o direito e as famílias. Buscamos mostrar, ali, em especial, por que, para ele, um emaranhado de processos tipicamente modernos, muitos deles de amplo alcance, não pode ser vislumbrado de uma perspectiva estritamente jurídica.

Já na segunda e última seção, procuramos desdobrar o projeto honnethiano: perguntamo-nos, ali, e não sem fazer do Brasil o palco principal de nossa investigação, que influxos podem ser rastreados entre direito e famílias. Mobilizamos, para tanto, como nos ensina Honneth, análises empíricas, sociológicas e históricas de práticas e instituições concretas e interdependentes (Honneth, 2014b; 2015; Zurn, 2015ZURN, Christopher. (2015), Axel Honneth: A critical theory of the social. Cambridge, Polity Press.). Fragmentos de uma reconstrução normativa da trajetória sócio-histórica da esfera das famílias no Brasil parecem fazer das famílias constituídas por lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais um caso paradigmático da especialização e democratização das relações familiares, assim como das coimplicações entre direito e famílias. Essas modalidades familiares, há pouco consideradas marginais ou mesmo ininteligíveis, parecem explicitar a dinâmica tanto produtiva como (in)tensa entre esferas funcionalmente diferenciadas: mesmo nesse caso típico de “luta pelo amor” e de “amor pela luta” (Hernández et al., 2012HERNÁNDEZ, Jimena de Garay et al. (2012), “A luta pelo amor e o amor pela luta: notas sobre a cerimônia coletiva de uniões homoafetivas no Rio de Janeiro”. Sociedade e Cultura, 15 (2): 369-377, fev.), a linguagem jurídica joga um papel central, ainda que, de todo modo, como não é incomum, em uma etapa subsequente ou suplementar (Honneth, 2017, p. 130).

Direito e famílias: uma cadeia complexa de implicações recíprocas

Honneth (2015HONNETH, Axel. (2015), “Rejoinder”. Critical Horizons, 16 (2): 204-226, may., p. 222) procura “explorar”, em O direito da liberdade, “à maneira de Hegel, Durkheim e Max Weber, a força implacável do ideal normativo que, desde o início da modernidade, institucionaliza-se em cada uma das várias esferas de ação”. Uma empreitada desse tipo o compele a “reconstruir separadamente o desenvolvimento das esferas funcionalmente diferenciadas” e observar as relações que intercorrem entre elas e “que poderiam exercer”, em cada caso, “um efeito positivo ou negativo na realização interna de suas promessas normativas”.

Muitas dessas relações, contudo, escapam à reconstrução honnethiana. O próprio Honneth (2015HONNETH, Axel. (2015), “Rejoinder”. Critical Horizons, 16 (2): 204-226, may., p. 222), em réplica às críticas de McNay (2015McNAY, Lois. (2015), “Social freedom and progress in the family: reflections on care, gender and inequality”. Critical Horizons, 16 (2): 170-186, may.), credita muitas dessas lacunas à “estratégia da separação das esferas”. Ele “confess[a]” “prestar atenção apenas” àquela[s] “influência[s]” que de “tão óbvia[s]” constrangem-nos a tomá-las em conta na reconstrução do desenvolvimento interno de uma determinada esfera1 1 . No diálogo entre Honneth (2015) e McNay (2015) estão em jogo, em especial, as relações que intercorrem entre os campos das famílias e do mercado de trabalho. Honneth (2015, p. 222) admite não ter captado, em O direito da liberdade, uma série de questões, a exemplo do “impacto que a crescente internacionalização do mercado de trabalho tem tido na divisão do trabalho doméstico nas sociedades ocidentais”. E acrescenta logo na sequência ter aprendido com o “trabalho de McNay sobre essas questões complicadas” que ainda há provavelmente mais “influências e interconexões desse tipo” do que ele descobrira em sua análise. . Esse quadro fica mais e mais evidente à medida que nossos olhos se voltam para cenários diferentes daquele de que Honneth parece se ocupar em primeiro lugar (Honneth, 2014b; 2015; McNay, 2015; Marques, 2022MARQUES, Stanley Souza. (2022), “Justiça, gênero e famílias em O direito da liberdade, de Axel Honneth: elementos para uma contribuição ao projeto honnethiano”. Sociologias, 24 (61): 226-259, jan.). Ele, aliás, no prólogo de O direito da liberdade, reconhece que “ainda há muito que fazer”, já que parece mesmo “necessário diferenciar todas as trajetórias evolutivas […] de acordo com os caminhos adotados por cada nação”. O próprio diagnóstico do presente, acrescenta Honneth (2014b, p. 10), demanda “aprofundamento”.

Procuramos rastrear, por isso mesmo, algumas das influências que os campos do direito e das famílias exercem uns sobre os outros, algumas das relações que intercorrem entre esses domínios sociais, e que permanecem, ali, em O direito da liberdade, mais ou menos em aberto. Em outras palavras, intentamos mapear algumas das “influências”, “interconexões” ou vínculos, muitos deles, tensos, complicados, complexos, superpostos ou diferenciados, entre dois dos domínios da vida social de que fala Honneth - o direito e as famílias -, mas sobretudo de uma perspectiva interna ao “nós” das relações familiares, como reclama o esquema honnethiano.

E isso porque, “[a]pesar da autorreferência das normas nela geradas e de sua relativa independência no plano de análise”, a esfera das famílias se relaciona - correntemente e não sem uma infinidade de tensões e contradições - com as “esferas sociais vizinhas” (Silva, 2013SILVA, Felipe Gonçalves. (2013), “Um ponto cego no pensamento político? Teoria crítica e a democratização da intimidade”. In: MELO, Rúrion (org.). A teoria crítica de Axel Honneth. Reconhecimento, liberdade e justiça. São Paulo, Saraiva, pp. 201-233., p. 215), como o direito ou o mercado. É que as famílias ganham, no curso da modernidade, autonomia relativa “perante a determinação heterônoma de esferas sociais alheias”, passando a se “autorregular” conforme princípios particulares (2013, p. 230). Os sujeitos começam a poder encontrar, no interior desse complexo relacional, em “sentido ontogenético”, há mais de duzentos anos, “as primeiras experiências da liberdade social” (Honneth, 2014bHONNETH, Axel. (2014b), El derecho de la libertad. Esbozo de uma eticidad democrática. Buenos Aires, Katz Editores., p. 174); ou onde os parceiros de interação passam a poder reconhecer, pela primeira vez, “a necessidade da ‘cooperação intersubjetiva’ para a realização de seu[s] projeto[s] de vida” (Silva, 2013, p. 210). Em outras palavras, os sujeitos modernos então percebem, em suas relações familiares, que “a liberdade se realiza através da percepção dos indivíduos de que eles/elas se completam mutuamente”; é dizer: “a vivência livre dos próprios desejos e necessidades depende da ajuda e apoio dos outros” (Mattos, 2018MATTOS, Patrícia. (2018), “Desafios do reconhecimento nas relações íntimas: um debate com Axel Honneth”. Política & Sociedade, 17 (40): 156-190, dez., p. 162).

Ocorre que, mesmo “a mais naturalizada de todas as esferas sociais, a família, além de reconstruir-se e reelaborar-se internamente”, como Honneth procura mesmo mostrar, “tem sido alvo de marcantes interferências de processos externos” (Araújo e Cavalcanti, 2009ARAÚJO, Ulisses Campos de & CAVALCANTI, Vanessa Ribeiro Simon. (2009), “A família como primeira opção: abordagens teóricas e interdisciplinares sobre pobreza e políticas públicas”. In: CASTRO, Mary Garcia & MENEZES, José Euclimar Xavier de. Família, população, sexo e poder: entre saberes e polêmicas. São Paulo, Paulinas, pp. 149-174., p. 158). O direito joga aí um papel central, ainda que, correntemente, e conforme veremos a seguir, num “estágio um tanto avançado” (Honneth, 2017, p. 130). Até porque, “[s]e a lei representa, em certos contextos, um instrumento importante para cimentar relações de parentesco, reconhece-se que a eficácia de qualquer contrato legal será limitada”, observa Fonseca (2008FONSECA, Cláudia. (2008), “Homoparentalidade: novas luzes sobre o parentesco”. Estudos Feministas, 16 (3): 769-783, dez., p. 773), “se não vier acompanhada das convicções pessoais dos envolvidos”.

A família moderna - essa comunidade única de cuidado recíproco ao longo do tempo, cujos membros se encontram, hoje, em condições desproporcionalmente mais favoráveis do que no passado de poder esperar uns dos outros, sob condições favoráveis, “a empatia, a dedicação e o cuidado que exige a necessidade específica da fase na qual se encontram” (Honneth, 2014bHONNETH, Axel. (2014b), El derecho de la libertad. Esbozo de uma eticidad democrática. Buenos Aires, Katz Editores., p. 218) - é perpassada por diversas forças institucionais (Fonseca, 2008FONSECA, Cláudia. (2008), “Homoparentalidade: novas luzes sobre o parentesco”. Estudos Feministas, 16 (3): 769-783, dez., p. 773), entre elas o direito, que, por ora, mais particularmente nos interessa.

A esfera das famílias, ela mesma um domínio da normatividade social independente, em poucas palavras, não só deve ao direito a sua própria existência como esfera de reconhecimento, como também está cravejada de conflitos sobre o formato e a extensão de sua regulamentação jurídica: “[q]uem pode se casar com quem, quem é legalmente o filho de quem, com que fundamento os casamentos podem ser dissolvidos e se ambos os cônjuges ou apenas um deve consentir em sua dissolução” são alguns poucos exemplos de questões doméstico-familiares espezinhadas pela legislação (Okin, 2004OKIN, Susan Moller. (2004), “The public/private dichotomy”. In: FARRELLY, Colin (org.). Contemporary political theory. Londres, Sage, pp. 184-194., p. 189).

O direito, a seu passo, projeta uma “esfera prática na qual somos autorizados por todos os outros membros de nossa sociedade a recuar”, escreve Honneth (2017HONNETH, Axel. (2017). “Beyond the law: a response to William Scheuerman”. Constellations, 24 (1): 126-132, march., p. 129), “sempre que tivermos dúvidas ou reservas sobre cargas decorrentes de nossos relacionamentos e interações existentes dentro de nossa família, casamento, profissão ou na esfera pública política”. A esfera jurídica, essa “fonte particular de reivindicações que podem ser invocadas conforme necessário em qualquer contexto social” (2017, p. 128), assegura aos sujeitos a oportunidade de retirada “dos contextos de justificação pública”, protegendo, desse modo, “a incolumidade das decisões individuais contra controles e intervenções não autorizadas”, de quem quer que seja, inclusive em face dos próprios familiares (2017, p. 129).

Se é verdade que, “em princípio […], cada um de nós é conhecido e reconhecido por todos os outros como um sujeito de direitos, cuja proteção legal é da responsabilidade de um estado de direito democraticamente constituído” (2017, p. 129), também é verdade que esse tipo todo próprio de liberdade, por mais fundamental que seja para os sujeitos modernos, e de fato o é, “não garante”, segundo Honneth, “a conexão do comportamento intersubjetivo nos modos particulares e exigentes da forma de liberdade social”, tal como encontramos em campos como o das famílias (Silva, 2013SILVA, Felipe Gonçalves. (2013), “Um ponto cego no pensamento político? Teoria crítica e a democratização da intimidade”. In: MELO, Rúrion (org.). A teoria crítica de Axel Honneth. Reconhecimento, liberdade e justiça. São Paulo, Saraiva, pp. 201-233., p. 213). Como que lhe escapam “as relações de assistência e cuidado social mútuo”, que, para Honneth (2017, p. 129), “estão no cerne das liberdades disponíveis para nós hoje”.

No debate com Nancy Fraser, Honneth (2006HONNETH, Axel. (2006), “Redistribución como reconocimiento: respuesta a Nancy Fraser”. In: FRASER, Nancy & HONNETH, Axel. ¿Redistribución o reconocimiento? Un debate político-filosófico. Madri, Ediciones Morata e Fundación Paidéia Galiza, pp. 89-148., p. 148) já apontava, a propósito, uma tensão entre o “espírito crítico” da concepção de justiça no marco teórico do reconhecimento e a sua função preservativa. Honneth falava, mais especificamente, do alargamento do princípio jurídico, cujas implicações consequentes mereciam, a seu ver, já ali, especial atenção. É que o princípio jurídico parece penetrar diferentes domínios sociais, no mais das vezes, segundo o diagnóstico de Honneth, para resguardar a liberdade dos sujeitos quando internamente ameaçada ou insuficientemente protegida. A expansão dos direitos individuais operaria, assim, em “sentido corretivo”. Funcionaria senão como “limitação externa”.

Mas a expansão do princípio jurídico colide, e este é mesmo um aspecto importante, com a autonomia das esferas de reconhecimento e de seus princípios correspondentes. As controvérsias sobre igualdade, matrimônio e família são, aliás, segundo o esquema honnethiano, sintomáticas dessas tensões todas: “diante da dominação estrutural dos homens na esfera privada, as precondições de autodeterminação das mulheres somente podem ser asseguradas quando tomam a forma de direitos contratualmente garantidos e, portanto”, continua Honneth (2006HONNETH, Axel. (2006), “Redistribución como reconocimiento: respuesta a Nancy Fraser”. In: FRASER, Nancy & HONNETH, Axel. ¿Redistribución o reconocimiento? Un debate político-filosófico. Madri, Ediciones Morata e Fundación Paidéia Galiza, pp. 89-148., p. 147), “constituam-se em imperativo de reconhecimento jurídico”.

Tendo em conta, por ora, os campos do direito e das famílias, prevalecem, assim, para Honneth, pelo menos duas teses: a primeira delas, a “tese de que a família se constitui, na sua concepção embrionária, em suporte de amor e cuidados, independentemente da obrigação jurídica, o que não significa” dizer “que não possa ocorrer interferência legal” (Spinelli, 2019SPINELLI, Letícia Machado. (2019), “Honneth: a família entre a justiça e o afeto”. Civitas, 19 (2): 423-440, maio/ago., p. 439), sobretudo quando as interações familiares mais primordiais parecem ameaçadas, ou quando o quadro afetivo da interação parece fracassar, ou, ainda, quando certos sujeitos do círculo familiar parecem especialmente vulneráveis, como é o caso de tantas mulheres, crianças, idosos ou enfermos. E daí mesmo a segunda das teses, a de que “devemos examinar sempre reflexivamente os limites estabelecidos entre os domínios dos distintos princípios de reconhecimento, já que”, continua Honneth (2006, pp. 147-148), não podemos “eliminar a suspeita de que a divisão de trabalho vigente entre as esferas morais prejudique as oportunidades” de realização da liberdade.

O protagonismo do afeto, em poucas palavras, não se impõe, ali, naquele âmbito todo próprio da vida social, na ausência completa de referência a dados jurídicos, pelo contrário: processos de diferenciação ou de especialização, mas também de democratização dos vínculos familiares e “processos históricos de positivação de direitos subjetivos privados” no mais das vezes se cruzam, se superpõem ou mesmo se alimentam reciprocamente (Silva, 2013SILVA, Felipe Gonçalves. (2013), “Um ponto cego no pensamento político? Teoria crítica e a democratização da intimidade”. In: MELO, Rúrion (org.). A teoria crítica de Axel Honneth. Reconhecimento, liberdade e justiça. São Paulo, Saraiva, pp. 201-233., p. 214). O direito, por exemplo, enquanto esfera social vizinha, cerca o “nós” das relações familiares, “delimitando suas áreas de autorregulação na forma de permissões, proibições e incentivos” (2013, p. 216). Manifestações, práticas ou representações familiares encontram, pois, no direito, incentivos, constrangimentos ou interdições de todo tipo, ora mais ou menos inclusivas, ora mais ou menos excludentes. A provocação de um dos pais de Theodora, a primeira criança adotada legalmente por um casal homossexual masculino no Brasil, ainda no início dos anos 2000, dá conta de algumas das tensões aludidas: “[e]la me chama de pai, por que a Justiça não reconhece a paternidade?” (Uziel, 2009UZIEL, Anna Paula. (2009), “Homossexualidades e formação familiar no Brasil contemporâneo”. Revista Latinoamericana de Estudios de Família, 1: 104-115, jan./dez., p. 114).

Mas não nos confundamos, afinal reconhecer os “limites do amor” não significa “necessariamente uma deficiência dele na caracterização” de esferas como a das famílias (Spinelli, 2019SPINELLI, Letícia Machado. (2019), “Honneth: a família entre a justiça e o afeto”. Civitas, 19 (2): 423-440, maio/ago., p. 438). Dizer que os direitos individuais operam em “sentido corretivo” ou funcionam como “limitação externa” (Honneth, 2006HONNETH, Axel. (2006), “Redistribución como reconocimiento: respuesta a Nancy Fraser”. In: FRASER, Nancy & HONNETH, Axel. ¿Redistribución o reconocimiento? Un debate político-filosófico. Madri, Ediciones Morata e Fundación Paidéia Galiza, pp. 89-148., p. 147) ou, como veremos na sequência, que o direito desempenha um papel decisivo nas lutas mais cotidianas pelo progresso social não significa dizer, contudo, que os conflitos tenham que ver sempre e somente com princípios jurídicos não realizados ou insuficientemente desdobrados. Uma coisa é afirmar que o direito tem “importância eminente quando se trata de lutas pelo progresso social”, outra, muito diferente, é dizer “que tais conflitos sempre se originam na descoberta de um potencial não realizado dentro de uma dada ordem legal” (2017, p. 129).

Afinal, segundo Honneth (2017HONNETH, Axel. (2017). “Beyond the law: a response to William Scheuerman”. Constellations, 24 (1): 126-132, march., p. 129), são as experiências “locais” de reconhecimento denegado, é dizer, são os descompassos entre as normas de uma esfera de reconhecimento e a sua aplicação mais adequada, abrangente ou sofisticada que geralmente deflagram ou detonam revoltas sociais de grandes proporções: “a disposição para entrar em um conflito surge geralmente de alguma experiência ‘local’ de ter o reconhecimento negado em suas reivindicações legítimas como indivíduo - reivindicações cuja legitimidade”, escreve Honneth, “deriva das normas que governam tacitamente uma esfera particular de interação” e que não se deixam reduzir ou monopolizar por princípios jurídicos.

A violação das normas de reconhecimento típicas de uma esfera de ação instaura, assim, um “mal-estar inicial”, ele mesmo um incômodo no mais das vezes “local” ou situado. Nas hipóteses de descompasso sistemático, esse “mal-estar inicial” pode converter-se em uma “avaliação crítica de interpretações previamente inquestionáveis de normas sociais implícitas”. Escrutínios críticos desse tipo, a seu passo, se publicamente compartilhados e se conjugados com outros fatores, como a visibilidade pública, podem transformar um “micro conflito” em um “protesto social de larga escala” (Honneth, 2017HONNETH, Axel. (2017). “Beyond the law: a response to William Scheuerman”. Constellations, 24 (1): 126-132, march., p. 130); “microconfrontações cotidianas” podem, desse modo, sob certas condições, assumir a forma de “clamores militantes de coletivos inteiros que se sentem violados quanto a direitos que, devido às normas implicitamente validadas, a rigor lhes seriam devidos” (2014a, pp. 170-171). Honneth ressalta, assim, em primeiro lugar, como podemos observar, a diversidade de fontes motivacionais subjacentes às lutas sociais, especificamente interpretadas como “uma força extremamente produtiva em nosso mundo da vida humano” (Marcelo, 2013MARCELO, Gonçalo. (2013), “Recognition and critical theory today: An interview with Axel Honneth”. Philosophy and Social Criticism, 39 (2): 209-221, january., p. 217).

É, pois, a violação da promessa interna de liberdade que inflama e mobiliza politicamente os sujeitos a reivindicarem, em seus campos próprios de batalha, uma interpretação e uma implementação mais adequadas das normas correspondentes, cujo excedente normativo aponta continuamente para novos sentidos, pouco explorados ou mesmo inexplorados; o que faz do conflito social, aliás, um elemento endêmico dessas instituições relacionais: “[o] que importa”, para os propósitos de Honneth (2017HONNETH, Axel. (2017). “Beyond the law: a response to William Scheuerman”. Constellations, 24 (1): 126-132, march., p. 129-130), “é que as queixas, contestações e protestos surgem quando há violações daquelas normas de reconhecimento que são incorporadas nas relações institucionalizadas de interação no seio das diferentes esferas ‘éticas’”.

Pensemos, por exemplo, na expectativa das esposas de que seus maridos respeitem sua autonomia sexual, que, para Honneth (2017HONNETH, Axel. (2017). “Beyond the law: a response to William Scheuerman”. Constellations, 24 (1): 126-132, march., p. 130), funda-se antes nos “votos do matrimônio”, ou seja, tem como ponto de partida e ponto de chegada um princípio institucionalmente ancorado numa esfera de ação diferente daquela do direito; o que não significa dizer que essas mesmas esposas, caso se sintam desconsideradas em suas expectativas de reconhecimento institucionalmente ancoradas, não possam mobilizar uma linguagem propriamente jurídica para publicizá-las e justificá-las para um conjunto mais amplo de cidadãos: “elas podem argumentar que o respeito legal pela autodeterminação individual exige estabelecer limites estritos para o exercício da liberdade de escolha por parte dos homens dentro do espaço privado do casamento, não menos do que fora dele”.

A “regulamentação da liberdade jurídica” aparece, neste caso, como em tantos outros, como um “processo de normatização ‘posterior’ e ‘suplementar’ a transformações substantivas […] nas normas e nos significados próprios” de um campo da vida social diferente do direito. Essas “transformações substantivas”, por sua vez, continua Silva (2013SILVA, Felipe Gonçalves. (2013), “Um ponto cego no pensamento político? Teoria crítica e a democratização da intimidade”. In: MELO, Rúrion (org.). A teoria crítica de Axel Honneth. Reconhecimento, liberdade e justiça. São Paulo, Saraiva, pp. 201-233., p. 214), “alcançam sua institucionalização jurídico-estatal por meio de lutas sociais conduzidas democraticamente”. Dinâmicas inovadoras de interação familiar como que constrangem, em poucas palavras, a revisão da legislação, “que por sua vez informa e incide sobre novas cenas” amorosas (Biroli, 2018BIROLI, Flávia. (2018), Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil. São Paulo, Boitempo., p. 119), concorrendo mesmo, e sempre de novo, para novos rearranjos familiares.

Em outras palavras, a expectativa das esposas de que seus maridos respeitem sua autonomia sexual apoia-se, antes, na gramática própria às famílias, ela mesma aberta a lutas por reconhecimento sempre de novo renovadas e ao aperfeiçoamento normativo, como testemunham muitas das mudanças fundamentais no campo das famílias, muitas delas, certamente, sem precedentes ou mesmo inimagináveis há pouquíssimas décadas. As reviravoltas mais recentes nos cuidados e na socialização das crianças, segundo Honneth (2014aHONNETH, Axel. (2014a), “Barbarizações do conflito social: Lutas por reconhecimento ao início do século 21”. Civitas, 14 (1): 54-176, abr.; 2014b, 2017), não fogem a esse esquema: elas não só aparecem entre as principais transformações da esfera das famílias, como são primeiramente creditadas a mudanças culturais nos comportamentos dos pais.

O direito, nesses casos todos, desempenha, certamente, um papel importante, ainda que, de todo modo, num “estágio um tanto avançado” (Honneth, 2017HONNETH, Axel. (2017). “Beyond the law: a response to William Scheuerman”. Constellations, 24 (1): 126-132, march., p. 130). São as transformações culturais, elas mesmas, “fontes autônomas de valores e expectativas de comportamento” (Silva, 2013SILVA, Felipe Gonçalves. (2013), “Um ponto cego no pensamento político? Teoria crítica e a democratização da intimidade”. In: MELO, Rúrion (org.). A teoria crítica de Axel Honneth. Reconhecimento, liberdade e justiça. São Paulo, Saraiva, pp. 201-233., p. 231), que acionam a agenda política e os processos decisórios e reorientam a legislação específica. Essa movimentação público-política, por sua vez, alcança a cultura de fundo, remodelando-a ou reconstruindo a própria autocompreensão normativa dos membros da família moderna.

O direito aparece, assim, em O direito da liberdade, como uma entre tantas outras esferas sociais, um complexo “onipresente em nossas sociedades, disponível a qualquer momento como um recurso prático e um meio compartilhado para rejeitar demandas não razoáveis, justificar reformas sociais ou dar força às mudanças sociais recém-alcançadas”, o que não faz das demais esferas de ação intersubjetivamente constituídas, com exceção do campo da moralidade, domínios sociais como que extrajurídicos, muito pelo contrário (Honneth, 2017HONNETH, Axel. (2017). “Beyond the law: a response to William Scheuerman”. Constellations, 24 (1): 126-132, march., p. 128). Complexos relacionais como o das famílias, como já aludido, tanto devem a sua existência institucional ao sistema jurídico como se defrontam corriqueiramente com questões muito controversas sobre as formas e os limites da regulamentação jurídica.

Ainda assim, e este é mesmo um ponto elementar de O direito da liberdade, categorias jurídicas são, por si sós, insuficientes para dar conta, por exemplo, do “‘nós’ das relações familiares”. Elas pouco ou nada dizem sobre a trama familiar ou sobre os vínculos emocionais de atenção e cuidado que lhes são próprios. Pouco ou nada dizem sobre os seus processos característicos, as suas formas de socialização e de interação, revelando-se, neste aspecto em particular, como que categorias mudas, sobretudo num contexto em que proliferam famílias “tão fluidas”; “[a]s relações de reconhecimento que se estabelecem entre os sujeitos são geralmente regidas pelos valores que, de acordo com concepções compartilhadas”, escreve Honneth (2017HONNETH, Axel. (2017). “Beyond the law: a response to William Scheuerman”. Constellations, 24 (1): 126-132, march., p. 128), “fornecem a essas esferas seu ponto e propósito”.

Se “[o]s limites do direito (e, portanto, de qualquer análise social baseada nele) consistem no fato de que o direito não pode (nem procura) determinar que tipos de relações os membros de uma sociedade devem manter nas diversas esferas de atividade” (Honneth, 2017HONNETH, Axel. (2017). “Beyond the law: a response to William Scheuerman”. Constellations, 24 (1): 126-132, march., p. 128), o direito não pode mesmo ser alçado ao “status de guia ou ponto focal de teorização” (2017, p. 127); ou de “chave para uma análise social empírica” (2017, p. 128). Uma postura metodológica como a de Honneth não fecha os olhos para os “benefícios e conquistas positivas do direito”, que são muitos e de muitos tipos, tampouco subestima “seu importante papel como motor dos avanços sociais”. Mas certamente chama a atenção para um elemento incontornável: “o direito nada nos diz sobre o conteúdo das normas que estão realmente sendo seguidas nas várias esferas sociais” (2017, p. 128).

Em outras palavras, aspectos distintivos das famílias - ou de qualquer outro campo da vida social - só ganham contornos mais bem definidos se observados de uma perspectiva que não a jurídica ou, pelo menos, de uma perspectiva que não puramente jurídica, ou se deslocados daquele lugar periférico que lhes fora reservado pelo pensamento político ocidental, como tantas vezes criticado, aliás, por teóricas e ativistas feministas (Okin, 2004OKIN, Susan Moller. (2004), “The public/private dichotomy”. In: FARRELLY, Colin (org.). Contemporary political theory. Londres, Sage, pp. 184-194.; Marques, 2022MARQUES, Stanley Souza. (2022), “Justiça, gênero e famílias em O direito da liberdade, de Axel Honneth: elementos para uma contribuição ao projeto honnethiano”. Sociologias, 24 (61): 226-259, jan.). Do contrário, permanecerão como que submersos ou mais ou menos encobertos pela preocupação desmedida com arranjos jurídicos.

Afinal, “conceber”, por exemplo, “a gênese da família unicamente a partir da legalidade” significa, para Honneth, “perder a conexão íntima e afetuosa distintiva da comunidade familiar” (Spinelli, 2019SPINELLI, Letícia Machado. (2019), “Honneth: a família entre a justiça e o afeto”. Civitas, 19 (2): 423-440, maio/ago., p. 439). Ou privar-se da “concepção da família como uma unidade movida por laços essencialmente definidos nos termos de afeição e afeto”. Ou mesmo esquecer “a dimensão do reconhecimento ancorado no amor e no cuidado” (2009, p. 435). Significa, pois, descaracterizar a entidade familiar como um âmbito todo próprio da vida social, como se categorias puramente jurídicas pudessem escamotear o que está em jogo, ali, em primeiro lugar: o “cuidado e [a] afetividade resumidos sob a rubrica do amor” (2019, p. 431).

A mudança nos padrões ou nas instituições de reconhecimento pode assumir, assim, segundo Honneth, conforme sugerimos até aqui, pelo menos duas formas: a primeira, “e provavelmente a mais interessante” (Marcelo, 2013MARCELO, Gonçalo. (2013), “Recognition and critical theory today: An interview with Axel Honneth”. Philosophy and Social Criticism, 39 (2): 209-221, january., p. 211), tem que ver com o excedente de validade do princípio específico de cada esfera de reconhecimento, que abre aos implicados “a oportunidade de levantar outras demandas com referência ao mesmo princípio de reconhecimento”. É o caso daqueles que são diretamente afetados pelas normas de um sistema de ação e que mobilizam essas mesmas normas “contra as condições sociais prevalecentes” (Honneth, 2015, p. 207). Os parceiros afetivos podem, por exemplo, sempre de novo se engajar, como de fato têm se engajado, em “lutas sobre como entender as implicações do que significa amar alguém” (Marcelo, 2013, p. 211).

O segundo tipo de transformação nos padrões ou nos complexos de reconhecimento, por sua vez, tem que ver com a interação, combinação ou articulação de princípios de diferentes domínios, que, em geral, suscita tensões ou desafios específicos. Em casos desse tipo, como Honneth (2006HONNETH, Axel. (2006), “Redistribución como reconocimiento: respuesta a Nancy Fraser”. In: FRASER, Nancy & HONNETH, Axel. ¿Redistribución o reconocimiento? Un debate político-filosófico. Madri, Ediciones Morata e Fundación Paidéia Galiza, pp. 89-148., p. 147) já chamava a atenção na interlocução com Fraser, organizam-se ou definem-se “novos limites entre as esferas individuais de reconhecimento” e, com eles, incrementam-se sensivelmente as condições sociais da liberdade. Essa modalidade de “progresso diferenciado por setores” pode ser observada, como também já apontamos, nos “processos de legalização - expansão do princípio de igualdade jurídica de tratamento”, já que carregam consigo um “potencial intrínseco de intervir em sentido corretivo em outras esferas de reconhecimento”.

A criminalização da violência doméstica é exemplificativa da atuação do princípio próprio da esfera do direito em esfera estranha ou alheia, a esfera das famílias, que, neste caso, falha em assegurar as condições da liberdade para todos os seus membros. Formulado ainda de outra maneira, “superar fronteiras não significa abrir mão do território já conquistado” (Silva, 2013SILVA, Felipe Gonçalves. (2013), “Um ponto cego no pensamento político? Teoria crítica e a democratização da intimidade”. In: MELO, Rúrion (org.). A teoria crítica de Axel Honneth. Reconhecimento, liberdade e justiça. São Paulo, Saraiva, pp. 201-233., p. 228). Se os processos de democratização interna da vida familiar, por um lado, envolvem a liberdade jurídica, que aparece, antes, como que um de seus elementos constitutivos, por outro, transbordam ou mesmo transcendem categorias estritamente jurídicas.

Famílias constituídas por lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais: um caso típico de “luta pelo amor” e de “amor pela luta”2 2 . O título do presente tópico toma de empréstimo expressões formuladas por Hernández et al., 2012. Importante ressaltar que, para o Honneth de O direito da liberdade, falar de amor, em sentido amplo, significa falar de três tipos de relações interpessoais, as de amizade, intimidade sexual e famílias, que adquirem autonomia relativa no curso da modernidade. Nossas considerações limitam-se, como já anunciado, ao campo das famílias.

A tendência abrangente de especialização e democratização do “nós” das relações familiares de que fala Honneth, ali onde confluem gramáticas de ordens distintas - como a afetiva e a jurídica -, sem que elas se confundam ou se excluam mutuamente, parece ser fomentada, também, pela luta pelo reconhecimento dos vínculos familiares protagonizados por lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, uma das demandas do movimento de afirmação dos direitos das minorias sexuais no Brasil no início do século XXI (Facchini, 2003FACCHINI, Regina. (2003), “Movimento homossexual no Brasil: recompondo um histórico”. Cadernos AEL, 10 (18/19): 81-125.; Uziel et al., 2006bUZIEL, Anna Paula et al. (2006b), “Parentalidade e conjugalidade: aparições no movimento homossexual”. Horizontes Antropológicos, (26): 203-227, dez.).

Num ambiente social onde processos de individualização aliviam a pressão da tradição, lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, de diferentes inserções socioeconômicas, assumem crescente e publicamente a linguagem própria das relações familiares contra um estado de coisas ou um horizonte estreito de interpretação, a ponto mesmo de esgarçar os limites mais convencionais de representações, práticas e instituições até muito recentemente abertas ou acessíveis apenas a parceiros heterossexuais (Mello, 2003MELLO, Luiz. (2003), “Para além do heterocentrismo: a construção da conjugalidade homossexual”. Estudos de Sociologia, 1(9): 91-116., 2005, 2006; Passos, 2005PASSOS, Maria Consuêlo. (2005), “Homoparentalidade: uma entre outras formas de ser família”. Psicologia Clínica, 17 (2): 31-40.; Zambrano, 2006ZAMBRANO, Elizabeth. (2006), “Parentalidades ‘impensáveis’: pais/mães homossexuais, travestis e transexuais”. Horizontes antropológicos, (26): 123-147, 2006, jul./dez.; Uziel et al., 2006aUZIEL, Anna Paula et al. (2006a), “Conjugalidades e parentalidades de gays, lésbicas e transgêneros no Brasil”. Estudos Feministas, 14 (2): 481-487, set.; Uziel, 2009; Biroli, 2018BIROLI, Flávia. (2018), Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil. São Paulo, Boitempo.); um caso típico de “luta pelo amor” e de “amor pela luta” (Hernández et al., 2012HERNÁNDEZ, Jimena de Garay et al. (2012), “A luta pelo amor e o amor pela luta: notas sobre a cerimônia coletiva de uniões homoafetivas no Rio de Janeiro”. Sociedade e Cultura, 15 (2): 369-377, fev.), ela mesma não reduzida ou não redutível a categorias puramente jurídicas.

E não falamos, aqui, de qualquer “luta pelo amor” ou de qualquer “amor pela luta” (Hernández et al., 2012HERNÁNDEZ, Jimena de Garay et al. (2012), “A luta pelo amor e o amor pela luta: notas sobre a cerimônia coletiva de uniões homoafetivas no Rio de Janeiro”. Sociedade e Cultura, 15 (2): 369-377, fev.), já que as famílias constituídas por lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, elas mesmas, “famílias há pouco concebidas como marginais ou mesmo inconcebíveis” (Negreiros e Féres-Carneiro, 2004NEGREIROS, Teresa Creusa de Góes Monteiro & FÉRES-CARNEIRO, Terezinha. (2004), “Masculino e feminino na família contemporânea”. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 4 (1): 34-47, jun., p. 44), fraturam aquilo “que parecia ser o único e último consenso acerca das ideias de família, casamento e amor”, o “heterocentrismo compulsório” (Mello, 2003MELLO, Luiz. (2003), “Para além do heterocentrismo: a construção da conjugalidade homossexual”. Estudos de Sociologia, 1(9): 91-116., p. 93) ou o “imperativo da diferença sexual” (Mello, 2006, p. 505). Elas põem fatalmente em discussão nossas ideais mais arraigadas sobre um sem-número de questões, já que “sacodem”, escreve Fonseca (2008FONSECA, Cláudia. (2008), “Homoparentalidade: novas luzes sobre o parentesco”. Estudos Feministas, 16 (3): 769-783, dez., p. 769), “as bases de nossas crenças do que é ‘natural’”, como dão conta, aliás, as principais formas de filiação entre minorias sexuais.

Pensemos, por ora, nas famílias recompostas, cujos filhos são fruto de relação heterossexual anterior, ou na adoção legal ou informal, ou, ainda, nas novas tecnologias reprodutivas e, em especial, na inseminação artificial ou fertilização medicamente assistida, opção comum entre mulheres lésbicas, e na “barriga de aluguel”, opção comum entre homens gays (Zambrano, 2006ZAMBRANO, Elizabeth. (2006), “Parentalidades ‘impensáveis’: pais/mães homossexuais, travestis e transexuais”. Horizontes antropológicos, (26): 123-147, 2006, jul./dez., p. 132). O aspecto social das famílias, nesses casos todos, mas não só nesses casos, como que se sobrepõe ou mesmo escamoteia outro aspecto, o biológico, por muito tempo o seu fundamento primeiro, a ponto de desafiar, mais uma vez, preconceitos, estereótipos ou crenças incrustadas nos mais diferentes campos do saber, como a Psicologia, a Antropologia e o Direito.

Mudanças desse tipo, como outras tantas reviravoltas nas representações e práticas familiares nas últimas décadas, e comumente sob a pressão de argumentos locais, não se dão sem uma correlata transformação nas identidades mesmas dos implicados ou nas representações sociais da masculinidade e da feminilidade, da paternidade e da maternidade (Marques e Cattoni de Oliveira, 2017MARQUES, Stanley Souza & CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. (2017), “Direito fundamental à licença-paternidade e masculinidades no Estado Democrático de Direito”. Revista Culturas Jurídicas, 4 (9): 222-248, dez.). Ali onde opera um “turbilhão de redefinições e novas definições”, como é o caso mesmo do campo das famílias, mudam as “identidades de gênero” e mudam as “obrigações de papel” (Honneth, 2014bHONNETH, Axel. (2014b), El derecho de la libertad. Esbozo de uma eticidad democrática. Buenos Aires, Katz Editores., p. 177). A reivindicação não apenas do “direito à cidadania, em nível individual, mas, também, [d]o direito à constituição de grupos familiares”, ou seja, a luta pela inclusão no “rol dos sujeitos sociais portadores de demandas que, no mundo ocidental, convencionalmente realizam-se por meio da constituição do casal conjugal e da socialização de crianças”, sejam elas “filhos biológicos ou adotivos”, toma também como seu alvo preferencial muitas daquelas representações sociais que definem os homossexuais, especialmente os homens gays, como moralmente incompetentes, quando não violadores em potencial dos papéis familiares, sobretudo os de socialização de crianças, como se a capacidade parental tivesse que ver com a vida sexual dos sujeitos (Mello, 2005MELLO, Luiz. (2005), “Outras famílias: a construção social da conjugalidade homossexual no Brasil”. Cadernos Pagu, (24): 197-225, jun., p. 200-201; também Zambrano, 2006ZAMBRANO, Elizabeth. (2006), “Parentalidades ‘impensáveis’: pais/mães homossexuais, travestis e transexuais”. Horizontes antropológicos, (26): 123-147, 2006, jul./dez.; Fonseca, 2008FONSECA, Cláudia. (2008), “Homoparentalidade: novas luzes sobre o parentesco”. Estudos Feministas, 16 (3): 769-783, dez.).

Famílias constituídas por homossexuais suscitam um intenso debate público na sociedade brasileira pelo menos desde os anos 1990, quando uma série de variáveis passam a concorrer para a visibilização crescente dos vínculos afetivo-sexuais entre pessoas do mesmo sexo. Juntas, elas deflagram discussões públicas de “proporção antes inimaginável” (Uziel et al., 2006aUZIEL, Anna Paula et al. (2006a), “Conjugalidades e parentalidades de gays, lésbicas e transgêneros no Brasil”. Estudos Feministas, 14 (2): 481-487, set., p. 482). Pensemos, por exemplo, na epidemia da Aids, que põe em evidência as relações afetivo-sexuais entre parceiros do mesmo sexo e o desamparo legal que pesava sobre esses sujeitos em suas relações amorosas (Uziel, 2009; Uziel et al., 2006b). Lembremos, ainda, o Projeto de Lei n. 1.151/95, de autoria da então deputada Marta Suplicy, que propõe disciplinar a união civil entre pessoas do mesmo sexo, em resposta, aliás, à demanda de grupos homossexuais organizados (Mello, 2003MELLO, Luiz. (2003), “Para além do heterocentrismo: a construção da conjugalidade homossexual”. Estudos de Sociologia, 1(9): 91-116.; 2005; 2006), cujo movimento refloresce naquela década (Facchini, 2003FACCHINI, Regina. (2003), “Movimento homossexual no Brasil: recompondo um histórico”. Cadernos AEL, 10 (18/19): 81-125.; Uziel et al., 2006b). Consideremos, também, a proliferação de decisões do Poder Judiciário sobre as uniões entre homossexuais, primeiramente reconhecidas, quando muito, como sociedades de fato, como se falássemos de qualquer coisa distinta da família (Martins, 2015MARTINS, Sandra Regina Carvalho. (2015), Uniões homoafetivas: da invisibilidade à entidade família. São Paulo, 327 p. São Paulo, dissertação de mestrado, Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.). Tudo isso suscita, já naquela altura, uma cobertura mais do que expressiva dos meios de comunicação de massa.

Pensemos, ainda, na mudança de objeto de muitos dos estudos sobre homossexualidade, que se movem do “aspecto orgiástico e transgressor da experiência homoerótica” para “a compreensão dos significados das relações amorosas e familiares” para minorias sexuais, com especial destaque para “os vínculos entre gays/lésbicas e seus filhos, biológicos ou adotivos” (Mello, 2006MELLO, Luiz. (2006), “Familismo (anti)homossexual e regulação da cidadania no Brasil”. Estudos Feministas, 14 (2): 497-508, set., p. 501; também Uziel et al., 2006aUZIEL, Anna Paula et al. (2006a), “Conjugalidades e parentalidades de gays, lésbicas e transgêneros no Brasil”. Estudos Feministas, 14 (2): 481-487, set.; Zambrano, 2006ZAMBRANO, Elizabeth. (2006), “Parentalidades ‘impensáveis’: pais/mães homossexuais, travestis e transexuais”. Horizontes antropológicos, (26): 123-147, 2006, jul./dez.; Medeiros, 2006; Uziel, 2009). Esses estudos, por sua vez, acabam sendo mais tarde também incorporados à “bibliografia de referência sobre família e parentesco nas ciências sociais” (Mello, 2006, p. 503). Tomam conta do espaço público, desde então, “discursos, representações e práticas sociais” que têm antes que ver com “formas não heterossexuais de organização dos laços conjugais” e com “vínculos parentais protagonizados por gays, lésbicas e transgêneros” (Uziel et al., 2006a; Uziel et al., 2006b). Debatem-se, ali, no fundo, e mais uma vez, e não sem resistências conservadoras ou religiosas, o significado e a função mesma do amor, do casamento, do parentesco, da família, da parentalidade, do gênero, da sexualidade e da reprodução. E tudo isso não sem mobilizar, também, aqui e ali, a linguagem dos direitos.

É num cenário de visibilidade inédita alcançada por essas famílias, de forte atuação do movimento LGBTQI, de proliferação dos estudos sobre homoparentalidade, especialmente entre gays e lésbicas, de inércia e vazio legislativo e de desenvolvimento de jurisprudência sobre uniões entre parceiros do mesmo sexo que a união homoafetiva chega ao Supremo Tribunal Federal (STF). Foi em 2011, em julgamento conjunto da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 132 e da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 4.277, que o Tribunal reconheceu, por unanimidade, a dimensão familiar das uniões entre parceiros do mesmo sexo. Em interpretação do artigo 1.723 do Código Civil em conformidade com a Constituição Federal, a Corte excluiu daquele dispositivo “qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família”. Com isso, essa modalidade de relação familiar passa a se sujeitar às mesmas regras e consequências próprias da união estável heteroafetiva (Brasil, 2011, p. 315).

E se os ministros do STF mobilizam, em seus votos, um conjunto de princípios constitucionais, como os da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da não discriminação, da liberdade, do pluralismo e da segurança jurídica, também reconhecem, ali, naquela decisão histórica, dotada de eficácia contra todos e efeito vinculante, uma gramática familiar toda própria, sujeita, ela mesma, à mutabilidade histórica e cuja tônica repousa, antes, nos vínculos de afeto e de solidariedade, pouco importando o tipo de conformação familiar, quer seja matrimonializada ou não, quer seja hetero ou homoafetiva, quer seja a parentalidade biológica, adotiva ou socioafetiva.

Dois anos mais tarde, na mesma direção, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou, por ampla maioria, a Resolução n. 175/2013, que proíbe que as autoridades competentes se recusem a habilitar, celebrar casamento civil ou a converter união estável em casamento entre pessoas do mesmo sexo (Bahia e Vecchiatti, 2013BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco & VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. (2013), “ADI n. 4.277 - Constitucionalidade e relevância da decisão sobre união homoafetiva: o STF como instituição contramajoritária no reconhecimento de uma concepção plural de família”. Revista Direito GV, 9 (1): 65-92, jun.; Chaves, 2014CHAVES, Marianna. (2014), “Famílias mosaico, socioafetividade e multiparentalidade: breve ensaio sobre as relações parentais na pós-modernidade”. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha & DIAS, Maria Berenice (coords.). Família: pluralidade e felicidade. Belo Horizonte, IBDFAM, pp. 143-158.; Sousa e Martins, 2015MARTINS, Sandra Regina Carvalho. (2015), Uniões homoafetivas: da invisibilidade à entidade família. São Paulo, 327 p. São Paulo, dissertação de mestrado, Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.; Biroli; 2018BIROLI, Flávia. (2018), Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil. São Paulo, Boitempo.). Cresce continuamente, desde então, o número de casamentos entre parceiros do mesmo sexo; foram 3.701 matrimônios, em 2013, quando a coleta das estatísticas do Registro Civil pelo IBGE (2017) passa a incluir esses casamentos, e 5.887 matrimônios, em 2017; um aumento de 59,1%, muito superior ao crescimento registrado no número de casamentos entre pessoas de sexos diferentes no mesmo período, que foi de 1,7%.

A posição do STF nesse caso, mas não só nesse caso, evoca e desdobra processos de democratização, diferenciação e mutualização das relações pessoais, eles mesmos, de longa duração, não lineares e sujeitos a entraves ou retrocessos (Honneth, 20414a; 2014b; Zurn, 2015ZURN, Christopher. (2015), Axel Honneth: A critical theory of the social. Cambridge, Polity Press.; McNay, 2015McNAY, Lois. (2015), “Social freedom and progress in the family: reflections on care, gender and inequality”. Critical Horizons, 16 (2): 170-186, may.). Senão vejamos: com a democratização das relações primárias, amplia-se gradualmente o número daqueles/as que passam a poder experimentar as formas especiais de liberdade disponíveis na amizade, na intimidade sexual, no amor conjugal e nas famílias. Fruto, certamente, de muitas pressões “para reduzir desigualdades e exclusões injustificáveis” no seio desse sistema de ação relacional (Zurn, 2015, p. 174), caso mesmo das lutas das minorias sexuais de que tratamos nestas páginas. Já com a diferenciação ou a especialização dos vínculos pessoais, diluem-se pouco a pouco as determinações externas, e institucionalizam-se lógicas morais particulares. As relações conjugais, de procriação e cuidado passam a se desvincular das relações sexuais, a ponto mesmo de constituir sistemas de regras e práticas distintos, relativamente autônomos. Se aquelas passam a se caracterizar, segundo a leitura honnethiana, pela constituição de uma comunidade única de cuidado recíproco ao longo do tempo, pouco importando a sua configuração específica, estas, por sua vez, passam a se definir, em primeiro lugar, pela exploração e articulação intersubjetiva de necessidades físicas. E com a mutualização das relações pessoais, por fim, passa a falar cada vez mais alto o consentimento livre dos sujeitos em detrimento dos diferenciais de poder e status (2015, pp. 174-175).

Há, assim, todo um “ambiente sociocultural”, cujos processos transformadores “respalda[m], ou pelo menos não rechaça[m] a nova orientação” do tribunal. Formulado de outra maneira, se o “STF teve condições” de agir como agiu é “porque o reconhecimento da união homoafetiva não mais se choca com as concepções morais hegemônicas entre as elites intelectuais e urbanas brasileiras da segunda década do século XXI” (Souza Neto; Sarmento, 2017SOUZA NETO, Cláudio Pereira de & SARMENTO, Daniel. (2017), Direito constitucional: Teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte, Fórum., p. 348). Como que se alinham, pois, numa dinâmica tanto (in)tensa como produtiva, novas representações e práticas socioculturais, próprias do campo familiar, e rearranjos jurídicos de amplo alcance.

Retomando os pontos trabalhados até aqui, podemos dizer que as lutas das minorias sexuais no campo das famílias (e fora delas) tanto retomam como desdobram, com suas contribuições específicas, processos transformadores mais amplos da vida intrafamiliar, eles mesmos, de longa duração, e que apontam, não sem tensões e contradições internas, e ainda que sujeitos a movimentos regressivos, para a plasticidade e a diversidade dos vínculos familiares, cujo “substrato comum” remete cada vez menos à “preocupação com a reprodução biológica da espécie” do que com “a criação de condições que assegurem o bem-estar físico e emocional dos seres humanos em interação” (Mello, 2003MELLO, Luiz. (2003), “Para além do heterocentrismo: a construção da conjugalidade homossexual”. Estudos de Sociologia, 1(9): 91-116., pp. 103-104). Isso ajuda a explicar, aliás, por que a afetividade aparece, hoje, como “um princípio jurídico reestruturante da tutela legal do Direito das Famílias” (Chaves, 2014CHAVES, Marianna. (2014), “Famílias mosaico, socioafetividade e multiparentalidade: breve ensaio sobre as relações parentais na pós-modernidade”. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha & DIAS, Maria Berenice (coords.). Família: pluralidade e felicidade. Belo Horizonte, IBDFAM, pp. 143-158., p. 150).

Em outras palavras, a luta pela implosão do imperativo da diferença sexual - “paradigma do qual se origina a família” (Passos, 2005PASSOS, Maria Consuêlo. (2005), “Homoparentalidade: uma entre outras formas de ser família”. Psicologia Clínica, 17 (2): 31-40., p. 31) ou “princípio fundamental na constituição do grupo familiar” (2005, p. 32) - tanto pressupõe como favorece as tendências liberalizantes que marcam a trajetória sócio-histórica de campos como o das famílias, sobretudo nas últimas décadas, e que dificilmente podem ser subestimadas, mesmo quando confrontadas ou cercadas por obstáculos, ameaças ou retrocessos de todo tipo; é o caso do Projeto de Lei n. 6.583, de 2013, que cria o Estatuto da Família e dele exclui as configurações homoafetivas, como se os arranjos heteroafetivos ainda monopolizassem concepções e práticas familiares.

Muito embora as modalidades familiares de que ora falamos possam suscitar questões específicas, elas dizem muito sobre o que está em jogo nas representações e na trama familiar contemporânea, qualquer que seja o seu arranjo concreto. Falamos, em muitos casos, de mudanças sem precedentes em sua escala ou extensão, quer dirijamos o olhar para os processos ou eventos em si mesmos, quer dirijamos o olhar para as motivações pessoais subjacentes. Essas mudanças difundem-se por famílias de diferentes inserções socioeconômicas, embora em ritmos muitas vezes variados. Emergem de todos os cantos, ora das camadas baixas, ora das camadas médias e altas, e espalham-se por toda parte, na direção contrária de diagnósticos e hipóteses que se apoiam sobre certos pressupostos, “como os de que a mudança social se processa sempre de cima para baixo, ou de que é típica ou vai […] [confluir] em direção aos comportamentos de determinada classe” (Itaboraí, 2017ITABORAÍ, Nathalie Reis. (2017), Mudanças nas famílias brasileiras (1976-2012): uma perspectiva de classe e gênero. Rio de Janeiro, Garamond., p. 29; Duarte, 2009DUARTE, Luiz Fernando Dias. (2009), “Família, moralidade e religião: tensões contrastivas contemporâneas em busca de um modelo”. In: VELHO, Gilberto & DUARTE, Luiz Fernando Dias (org.). Gerações, família, sexualidade. Rio de Janeiro, 7Letras, pp. 17-45., pp. 18-19).

Pensemos, por exemplo, na criação e recriação cada vez mais livre e universal de experiências afetivas (Passos, 2005PASSOS, Maria Consuêlo. (2005), “Homoparentalidade: uma entre outras formas de ser família”. Psicologia Clínica, 17 (2): 31-40., p. 33). Ou na substituição da “hegemonia dos papéis e dos lugares fixos” pela “maior flexibilidade na constituição de posições e funções dos membros do grupo” familiar (2005, p. 36). Formulado ainda de outra maneira, famílias constituídas por lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, “que não […] [são] muito diferente[s] de qualquer outra forma familiar”, “ajuda[m] a revelar as atuais formas familiares como ‘coproduções’ que envolvem - além de valores culturais - [afeto,] lei, tecnologia e dinheiro” (Fonseca, 2008FONSECA, Cláudia. (2008), “Homoparentalidade: novas luzes sobre o parentesco”. Estudos Feministas, 16 (3): 769-783, dez., p. 781).

O cenário, enfim, é de mudanças generalizadas, aceleradas e profundas: florescem novas práticas e representações; são reorientadas expectativas mais ou menos enraizadas; “os filhos formam famílias de tipos distintos daquelas em que nasceram”; “as famílias na mesma geração diferem segundo a etapa do ciclo de vida em que se encontram” (Arriagada, 1998ARRIAGADA, Irma. (1998), “Famílias latinoamericanas: convergencias y divergencias de modelos y políticas”. Revista de la Cepal, (65): 85-102, ago., p. 86); as famílias passam se orientar cada vez mais pela exigência de garantia da autonomia de seus próprios membros (Jacquet e Costa, 2009JACQUET, Christine & COSTA, Lívia Fialho. (2009), “Conversão feminina ao Protestantismo: desencanto e reencanto conjugal”. In: CASTRO, Mary Garcia & MENEZES, José Euclimar Xavier de. Família, população, sexo e poder: entre saberes e polêmicas. São Paulo, Paulinas, pp. 295-311., p. 297); e “o estreito vínculo motivacional, eticamente apoiado, entre inclinação sexual e casamento, casamento e vida conjunta, vida conjunta e criação das crianças se [decompõe] em seus componentes individuais”, a ponto mesmo de falarmos, hoje, de uma “diversificação ‘pós-moderna’ das formas familiares” (Honneth, 2014aHONNETH, Axel. (2014a), “Barbarizações do conflito social: Lutas por reconhecimento ao início do século 21”. Civitas, 14 (1): 54-176, abr., p. 169). E parte dessas reviravoltas devem ser creditadas às lutas por reconhecimento travadas pelas minorias sexuais dentro e fora de casa.

Considerações finais

Dizer, com Honneth (2017HONNETH, Axel. (2017). “Beyond the law: a response to William Scheuerman”. Constellations, 24 (1): 126-132, march., p. 130), que o direito deixa em aberto o que tem efetivamente orientado os sujeitos no interior de um conjunto multifacetado de esferas sociais, incluindo domínios como o das famílias, não significa, contudo, conforme procuramos mostrar nestas páginas, subestimar ou negligenciar as conquistas alcançadas pelo médium do direito ou o seu papel especial como motor ou alavanca de muitos dos avanços sociais de nossa época. Significa apenas reconhecer que as categorias puramente jurídicas emudecem, por exemplo, sobre o reconhecimento intersubjetivo afetivamente mediado ou sobre muitos daqueles processos transformadores na modernidade que lhes são correlatos, pois que operam “abaixo do nível das disposições legais fixas” ou “bem abaixo do limiar da intervenção legal”.

Formulado ainda de outra maneira, podemos dizer, com Honneth (2017HONNETH, Axel. (2017). “Beyond the law: a response to William Scheuerman”. Constellations, 24 (1): 126-132, march., p. 130), que muito embora as normas jurídicas reflitam e concorram para avanços sociais de todo tipo, investindo-os de certa estabilidade ou permanência, muitos dos avanços sociais modernos mais centrais têm que ver, em primeiro lugar, com práticas sociais e atitudes culturais que guardam pouca ou nenhuma relação com o sistema jurídico. É o caso de muitas das reviravoltas que agitaram ou ainda agitam esferas como a das famílias. Muitos desses processos transformadores permanecem, assim, mais ou menos ininteligíveis se não levamos a sério as particularidades normativas desses domínios todos próprios da vida social; ou se perdemos de vista as famílias como campo mais ou menos independente da normatividade social; ou se interpretamos a democratização interna da vida familiar como se tivesse que ver apenas e tão somente com o que se passa em esferas sociais vizinhas, mais especialmente o direito (Silva, 2013SILVA, Felipe Gonçalves. (2013), “Um ponto cego no pensamento político? Teoria crítica e a democratização da intimidade”. In: MELO, Rúrion (org.). A teoria crítica de Axel Honneth. Reconhecimento, liberdade e justiça. São Paulo, Saraiva, pp. 201-233.; Honneth, 2017; Spinelli, 2019SPINELLI, Letícia Machado. (2019), “Honneth: a família entre a justiça e o afeto”. Civitas, 19 (2): 423-440, maio/ago.).

A luta das minorias sexuais no campo das famílias - cujos fragmentos procuramos recompor nestas páginas - mostra que transformações nas representações e nas práticas familiares mais cotidianas provocam reviravoltas também no campo jurídico, num cenário de debates públicos e processos decisórios geralmente acirrados sobre demandas e valores socialmente mutáveis (Silva, 2013SILVA, Felipe Gonçalves. (2013), “Um ponto cego no pensamento político? Teoria crítica e a democratização da intimidade”. In: MELO, Rúrion (org.). A teoria crítica de Axel Honneth. Reconhecimento, liberdade e justiça. São Paulo, Saraiva, pp. 201-233., p. 230). Um novo tipo de moralidade familiar, em poucas palavras, suscita um novo tipo de regulamentação jurídica, sobretudo ali onde as representações correntes das famílias perdem “a solidez do ‘natural’” (Fonseca, 2008FONSECA, Cláudia. (2008), “Homoparentalidade: novas luzes sobre o parentesco”. Estudos Feministas, 16 (3): 769-783, dez., p. 772). Novas regulamentações jurídicas, por sua vez, podem também contribuir, em última instância, para a própria consolidação de novas gramáticas familiares, que aparecem como ponto de partida e ponto de chegada de um emaranhado de lutas políticas sempre de novo renovadas num ambiente social cujas disputas semânticas jamais dão trégua.

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  • 1
    . No diálogo entre Honneth (2015HONNETH, Axel. (2015), “Rejoinder”. Critical Horizons, 16 (2): 204-226, may.) e McNay (2015) estão em jogo, em especial, as relações que intercorrem entre os campos das famílias e do mercado de trabalho. Honneth (2015, p. 222) admite não ter captado, em O direito da liberdade, uma série de questões, a exemplo do “impacto que a crescente internacionalização do mercado de trabalho tem tido na divisão do trabalho doméstico nas sociedades ocidentais”. E acrescenta logo na sequência ter aprendido com o “trabalho de McNay sobre essas questões complicadas” que ainda há provavelmente mais “influências e interconexões desse tipo” do que ele descobrira em sua análise.
  • 2
    . O título do presente tópico toma de empréstimo expressões formuladas por Hernández et al., 2012HERNÁNDEZ, Jimena de Garay et al. (2012), “A luta pelo amor e o amor pela luta: notas sobre a cerimônia coletiva de uniões homoafetivas no Rio de Janeiro”. Sociedade e Cultura, 15 (2): 369-377, fev.. Importante ressaltar que, para o Honneth de O direito da liberdade, falar de amor, em sentido amplo, significa falar de três tipos de relações interpessoais, as de amizade, intimidade sexual e famílias, que adquirem autonomia relativa no curso da modernidade. Nossas considerações limitam-se, como já anunciado, ao campo das famílias.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    17 Jan 2023
  • Aceito
    03 Jun 2023
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