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Stuart Elden, The early Foucault. Cambridge, Polity, 2021. 281 pp.

Elden, Stuart. The early Foucault. Cambridge: Polity, 2021. 281 pp

Michel Foucault (1926-1984) ofereceu definições distintas para sua tese principal de doctorat ès lettres1 1 “O doctorat ès lettres é um doutorado superior, às vezes chamado de doctorat d’État, e mais próximo de um Habilitationsschrift alemão ou de um DSc ou DLitt anglófono do que de um PhD moderno” (p. 149). : “história da ciência” (Foucault, 2001b, p. 1025), estudo do “confinamento” (Foucault, 2001d, p. 1164), “estudo das condições econômicas, políticas, ideológicas e institucionais que permitiram a segregação dos loucos na idade clássica” (Foucault, 2001e, p. 1091) ou, ainda, “caixa de ferramentas” (Foucault, 2001a, p. 1588). Como fica evidente, tal tese, publicada em livro pela primeira vez em 1961, sob o título Folie et déraison: histoire de la folie à l’âge classique, e reeditada posteriormente apenas como Histoire de la folie à l’âge classique (1972)2 2 A primeira edição brasileira foi publicada em 1978, pela editora Perspectiva, sob o título História da loucura na Idade Clássica. Em 2019, foi publicada uma edição especial, revista e atualizada, também pela Perspectiva. Em ambas as edições, a tradução é de José Teixeira Coelho Netto. Sobre a recepção do livro em diversos contextos, consultar, entre muitos outros: Gutting, 1994; Roudinesco, 1994; Yacine, 2004; Chevallier e Greacen, 2009. , foi, em múltiplas ocasiões, objeto de reflexão retrospectiva para Foucault. Não obstante, quando se trata de reconstruir rigorosamente o pensamento desse autor para além de suas próprias declarações, é imperativo um exame mais sistemático da trajetória que o levou à escrita dessa obra. Tal é a proposta que Stuart Elden3 3 Stuart Elden é professor de Teoria Política e Geografia na Universidade de Warwick. leva a cabo em The early Foucault (2021), terceiro trabalho de uma quadrilogia empenhada em realizar uma história intelectual completa da obra de Foucault4 4 Os outros volumes são, em ordem de publicação: Foucault’s last decade (2016), Foucault: The birth of power (2017) e The archaeology of Foucault (no prelo). A ordem de publicação não obedece à cronologia dos estudos de Foucault, isto é: o trabalho sobre o primeiro Foucault não é o primeiro publicado por Elden. A ideia foi, segundo o autor, seguir a disponibilidade dos materiais de pesquisa. . Ao longo de oito capítulos, Elden analisa o que se pode chamar de um “primeiro Foucault”: são revisitadas todas as produções do autor - publicadas ou não - referentes ao intervalo de 1945 a 1961. Em linhas gerais, os primeiros dois capítulos tratam de textos não publicados: o primeiro revisita sua tese para obtenção de um diplôme d’études supérieures, quando da formação de Foucault na École Normale Supérieure (ENS) e na Sorbonne, ao passo que o segundo discorre sobre alguns manuscritos produzidos no início de sua carreira docente na Universidade de Lille e na própria ENS. O terceiro capítulo, por sua vez, penetra propriamente na discussão daquelas que viriam a ser as publicações “inaugurais” de Foucault: são analisados três textos produzidos durante a primeira metade da década de 1950, entre eles o primeiro livro de Foucault, Maladie mentale et personnalité (1954). Os capítulos seguintes abordam algumas dimensões da produção intelectual de Foucault relativas ainda à década de 1950: o quarto capítulo enfoca o trabalho de Foucault como tradutor de Ludwig Binswanger e Viktor Von Weizsäcker; o quinto capítulo investiga o encontro e engajamento de Foucault com a obra de Nietzsche e de Heidegger; o sexto capítulo discorre sobre o início do trabalho no manuscrito que viria a se transformar em Folie et déraison, ocorrido durante o período da estadia de Foucault em Uppsala e Varsóvia. Por sua vez, o sétimo capítulo, já situado na transição para a década de 1960, discute a tese complementar de doctorat ès lettres de Foucault: uma tradução de Anthropologie du point de vue pragmatique, de Kant, acompanhada de uma introdução. Finalmente, o oitavo e último capítulo discute a defesa e publicação de Folie et déraison, sua reedição como Histoire de la folie e a influência que esse trabalho exerceu sobre a reformulação do primeiro livro de Foucault - que sofreu diversas alterações, entre elas a mudança do título para Maladie mentale et psychologie (1962).

Naturalmente, o panorama de um período tão extenso favorece a emergência das mais variadas elaborações. Como o próprio autor reconhece, The early Foucault “tentou complementar, enriquecer e, às vezes, corrigir considerações anteriores”5 5 Todas as traduções são nossas, a partir da edição original de The early Foucault (2021). (p. 191). De partida, é notável o diálogo com as biografias de Foucault escritas por Didier Eribon (1991ERIBON, Didier. (1991), Michel Foucault. Londres, Faber.; 2011) e David Macey (1993MACEY, David. (1993), The lives of Michel Foucault. Londres, Hutchinson.). Ocorrem também correções no que se refere às datas de eventos importantes da trajetória intelectual de Foucault; é o caso, por exemplo, da querela a respeito de seu engajamento com a obra de Nietzsche. Se, durante muito tempo, foi sugerido que Foucault começou a escrever sobre o filósofo apenas nos anos 1960, o exame de material não publicado, localizado nos arquivos da Bibliothèque Nationale de France (BNF), demonstra que, assim como Daniel Defert afirma em sua Chronologie (2013DEFERT, Daniel. (2013), “Chronology”. In: FALZON, Christopher; O’LEARY, Timothy & SAWICKI, Jana (eds.). A companion to Foucault. Oxford, Blackwell.), o engajamento ativo de Foucault com Nietzsche começou tão logo o autor começou a lê-lo, ainda nos anos 1950 (p. 116). Outros pontos, até então incertos, também são elucidados, tais como aqueles envolvendo a data em que foram produzidos alguns manuscritos sobre Psicologia, a introdução a Le rêve et l’existence de Binswanger, e Maladie mentale et personnalité (p. 97). É importante destacar que questões sobre datas são especialmente relevantes, dada a dificuldade vigente, ainda hoje, de estabelecer uma bibliografia completa e definitiva de Foucault (Lynch, 2004LYNCH, Richard. (2004), “Two bibliographical resources for Foucault’s work in English”. Foucault Studies, n. 1, pp. 71-76.). Tendo em vista todos esses movimentos feitos pelo livro, é evidente o fôlego da obra de Elden. Diante de um exame mais atento ao sentido profundo de sua empreitada, contudo, o que sobressai é o estabelecimento de conexões entre os diversos períodos do pensamento de Foucault e, principalmente, a localização precisa de Histoire de la folie em meio a essa rede composta dos distintos momentos, aos quais por vezes nos referimos como fases de uma obra. Com efeito, é possível depreender do livro de Elden a construção de três elos envolvendo os trabalhos de Foucault: o primeiro é composto das conexões que ligam os primeiros escritos de Foucault a temas que aparecem em sua obra posteriormente; o segundo, dos nexos existentes entre Histoire de la folie e os trabalhos que a antecedem; e o terceiro, finalmente, das ligações entre a tese de Foucault e as produções subsequentes a ela.

No que diz respeito ao primeiro elo, logo no início do livro emerge uma indicação de que temas considerados mais tardios no pensamento do autor aparecem já durante sua formação na École Normale Supérieure (ENS), notadamente em sua tese para obtenção de um diplôme d’études supérieures, que discutiu o papel da Fenomenologia do espírito no pensamento hegeliano (p. 16). Num argumento sobre as origens hegelianas do transcendental na filosofia, Foucault enfatiza tanto a centralidade da questão do conhecimento quanto a importância imperativa da história - interesses que indubitavelmente o seguem até o final de sua vida e obra. O início da carreira docente de Foucault, logo após a aprovação na agrégation6 6 A agrégation é um exame que permite lecionar na França. Foucault realizou o exame duas vezes: uma, em 1950 - na qual foi reprovado -, e outra, em 1951 - quando foi aprovado em segundo lugar dentre os selecionados para a disciplina de Filosofia (pp. 24-27). , continua apontando para os múltiplos pontos de origem daqueles que viriam a ser seus principais assuntos de investigação nas décadas seguintes. Ainda que nesse momento os interesses de Foucault estivessem muito ligados à antropologia filosófica e à psicologia, assuntos aparentemente ausentes do radar após a década de 1950, antecipa-se, num manuscrito sobre Binswanger não publicado e sem data exata, a crítica a uma “‘velha metafísica do amor, recuperada de um Platão convertido, batizado e santificado pelos pais da Igreja’”, que seria trabalhada posteriormente nos últimos volumes de Histoire de la sexualité (Foucault apud Elden, 2021, p. 39). Da mesma maneira, durante o período em que trabalhou num hospital psiquiátrico com Georges e Jacqueline Verdeaux (1951-1955), prenunciam-se as “questões óbvias da doença mental e do encarceramento”, o “papel da perícia psiquiátrica no sistema penal” e as “questões do indivíduo perigoso” (p. 48). Elden também indica o uso da expressão “a priori histórico” num artigo sobre psicologia escrito entre 1952 e 1953 (p. 53)7 7 “La recherche scientifique et la psychologie”, publicado como parte da coletânea Des chercheurs français s’interrogent: Orientation et organisation du travail scientifique en France, editada por Jean-Édouard Morère em 1957. como um prelúdio da noção de condição de possibilidade no pensamento foucaultiano (p. 60). É, ainda, discutida a tese complementar de Foucault, a tradução da Anthropologie de Kant. Elden aponta a relação entre o interesse de Foucault em antropologia filosófica e o posterior desenvolvimento da subjetividade em seu trabalho: “o que Foucault, seguindo Kant, identifica como a questão da antropologia é na raiz a questão ‘o que é o homem?’ […] Para o Foucault tardio isso se torna uma preocupação com a subjetividade” (p. 123). Como se percebe, o livro abunda em exemplos desse tipo de conexão, dos quais destaca-se um em particular, relativo ao primeiro livro publicado por Foucault. Apesar de tradicionalmente isolado do conjunto da obra do autor (p. 112), Maladie mentale et personnalité também demonstra carregar consigo algumas nuances importantes que viriam a ser desenvolvidas posteriormente. A análise que Elden empreende desse livro permite identificar já ali a aparição de uma característica que pode ser considerada o fundamento de celebrados momentos da obra de Foucault, entre eles seu argumento sobre o poder e sua recusa da hipótese repressiva, qual seja: o caráter produtivo da negatividade. O trecho a seguir, que contém citações das duas edições do primeiro livro de Foucault, é eloquente nesse sentido:

Ao passo que a Psicologia do século XIX tendia a analisar a doença mental de uma forma puramente negativa, ao enfatizar as funções suprimidas, as ausências e o modo como “a consciência do paciente é desorientada, obscurecida, reduzida, fragmentada”, há necessidade de uma explicação mais equilibrada (MMPe 19; MMPs 19/16). A doença mental paradoxalmente “apaga” e “enfatiza”, “suprime” e “acentua”: “a essência da doença mental está não apenas no vazio que ela escava, mas também na plenitude positiva das atividades de substituição que preenchem esse vazio” (MMPe 20; MMPs 20/17) (p. 65).

Para além disso, o termo “arqueologia”, amplamente explorado por Foucault posteriormente, também é usado pela primeira vez nesse livro, para se referir a uma “arqueologia da libido” (p. 66). Ainda em Maladie mentale et personnalité, Elden observa como já estão em pauta temas relativos à exclusão e ao crime, notadamente quando Foucault caracteriza a rejeição social dos chamados doentes mentais e a segregação que dela decorre como movimentos de recusa da sociedade em reconhecer-se a si mesma (pp. 71-74).

O segundo elo explorado por Elden pode ser resumido na investigação sobre o sentido da aparição de Histoire de la folie tendo em vista o que vinha sendo produzido por Foucault até então. Durante a primeira metade da década de 1950, junto a Jacqueline Verdeaux, Foucault cotraduziu o ensaio Le rêve et l’existence (1954). Seu autor, Ludwig Binswanger (1881-1966), foi um psiquiatra suíço notabilizado por seu pioneirismo em realizar uma associação entre a psicologia e a filosofia heideggeriana que culminou na chamada Daseinsanalyse, também conhecida por análise existencial. Não é surpreendente que Foucault tenha assumido a tarefa de traduzir Le rêve et l’existence, uma vez que se tratava de um texto capaz de articular dois de seus interesses à época, quais sejam, a psicologia e Heidegger (pp. 31 e 123). No entanto, Elden mostra que há uma razão de fundo mais elucidativa para sua disposição em não apenas colaborar com a tradução, mas também introduzir8 8 A introdução de Foucault a Le rêve et l’existence ficou conhecida por superar em número de páginas o ensaio do próprio Binswanger. Assim sendo, é possível considerá-la mesmo como um ensaio comentador. Seu título em francês aparece meramente como Introduction. Em língua inglesa, a introdução foi intitulada “Dream, imagination and existence”. longamente o ensaio: a assimilação, por parte de Foucault, de um potencial crítico pertinente ao trabalho de Binswanger. Como designa o título, Le rêve et l’existence trata do sonho como um “acréscimo aos modos privilegiados de acesso à compreensão ontológica desenvolvidos por Heidegger”: o texto, assim, apresentava algumas sugestões de respostas a questões importantes para a antropologia filosófica (p. 85). Mas isso não é tudo. O ensaio fazia parte do conjunto de trabalhos formadores do que era, à época, a Daseinsanalyse, que por sua vez era o que de mais radical Foucault pôde encontrar, até aquele momento, como contraponto à psicologia hegemônica então vigente, resumida num diálogo truncado entre uma psiquiatria hospitalar biologicista e a psicanálise. Tal radicalidade se expressa tanto na recusa de Binswanger a uma determinação unidimensionalmente biológica da existência (Binswanger, 1986, p. 82) quanto no fato de que, na leitura que Foucault faz do psiquiatra, encontra-se a possibilidade de compreender um elemento diante do qual o método freudiano seria “inadequado”, a saber: a “subjetividade radical da experiência do sonho” (Foucault, 1986b, p. 57). Na leitura de Foucault, ao passo que Freud enxerga o sonho como um discurso (p. 91), Binswanger propõe o sonho como uma fonte imaginativa que permite à investigação ontológica ir além da gramática já conhecida dos despertos:

Sonhar não é outra maneira de experimentar outro mundo, é para o sujeito sonhador a maneira radical de experimentar seu próprio mundo. Essa forma de experimentar é tão radical, porque a existência não se pronuncia como mundo. O sonho está situado naquele momento último em que a existência ainda é seu mundo; uma vez além, no alvorecer da vigília, já não é mais seu mundo. É por isso que a análise dos sonhos é decisiva para trazer à luz os significados fundamentais da existência (Foucault, 1986bFOUCAULT, Michel. (1986b), “Dream, imagination and existence”. In: BINSWANGER, Ludwig & FOUCAULT, Michel. Dream and existence. New Jersey, Humanities Press, pp. 31-80., p. 59).

Para Foucault, essa perspectiva, que pode ser considerada aquela de uma psicologia fenomenológica, foi até certo ponto satisfatória considerando sua oposição à psicologia tradicional: “é crucial que o que ele encontra em Binswanger não é uma antropologia baseada em ‘positivismo psicológico’, mas, ao contrário, uma que está situada ‘dentro do contexto de uma reflexão ontológica’ (DE#1 I, 66; DIE 31)” (p. 90). É importante notar, contudo, que apesar de o potencial crítico da abordagem de Binswanger ter-se tornado referência para Foucault, foi dessa “noção de Psicologia fenomenológica que Foucault se sentiu compelido a ir além” (Hoeller, 1986HOELLER, Keith. (1986), “Editor’s foreword”. In: BINSWANGER, Ludwig & FOUCAULT, Michel. Dream and existence. New Jersey, Humanities Press, pp. 7-18., p. 13). A partir da consulta a um manuscrito não publicado de Foucault sobre Nietzsche, produzido ainda nos anos 1950, Elden desenvolve uma análise sugestiva de que ao sonho, como fonte privilegiada para a investigação ontológica, poderiam se acrescentar dois outros elementos, considerados por Foucault experiências “relacionadas” com o sonho e entre si (Foucault apud Elden, 2021, p. 116), quais sejam: a “embriaguez” e a “loucura” (p. 116). Elden é cauteloso, mas direto: “a questão da desrazão aponta o caminho para futuras preocupações, ao passo que a análise tripartida talvez sugira por que Binswanger sozinho era insuficiente” (p. 116). Além disso, tal como nos indica o prefácio da edição em língua inglesa de Dream and existence (Hoeller, 1986, p. 10), é interessante como, numa entrevista de 1984, o próprio Foucault aponta para o modo como Histoire de la folie foi resultado da necessidade de superação do quadro analítico marxista e fenomenológico - este último representado por Binswanger (Hoeller, 1986, p. 13). Discorrendo sobre o período de produção de sua tese, Foucault indica: “foi quando eu primeiro entendi que o assunto teria de ser definido em outros termos que não o marxismo ou a fenomenologia” (Foucault, 1986a, pp. 176-177). Assim, se por um lado é sabido que Foucault propõe uma abordagem original para o problema da segregação dos loucos em Histoire de la folie, o que é menos conhecido é o fato de que essa abordagem adveio do aprofundamento - e da consequente necessidade de superação - de um potencial crítico que já figurava em trabalhos como o sobre Binswanger. Aparentemente, um dos motivos pelos quais a tese de Foucault se impele a atingir seu reconhecido grau de inovação é o de que a crítica heideggeriana de Binswanger à psicologia se mostra, apesar de inspiradora, insuficiente. Apesar de seu caráter de superação, é pertinente notar, no entanto, que Histoire de la folie apresenta resíduos do envolvimento de Foucault com o pensamento de Binswanger. A inovação de Binswanger em aplicar Heidegger à psicologia se expressa de maneira bastante palpável na tese de Foucault: afinal, a doença mental em Histoire de la folie é vista, antes de mais nada, não como uma entidade encerrada em si mesma, mas como resultado da interação entre indivíduo e mundo. O que muda é a direção da investigação sobre essa interação:

Entre 1954, quando “Dream, imagination and existence” foi primeiro publicado, e 1961, quando Folie et déraison apareceu, houve claramente uma virada no pensamento de Foucault. Essa virada marcou uma mudança entre o mundo concreto e subjetivo do indivíduo - e as pré-condições para tal mundo - para uma análise histórica e política mais ampla dessas pré-condições (Hoeller, 1986HOELLER, Keith. (1986), “Editor’s foreword”. In: BINSWANGER, Ludwig & FOUCAULT, Michel. Dream and existence. New Jersey, Humanities Press, pp. 7-18., p. 13).

Assim, se Histoire de la folie pode ser vista como aprofundamento de um potencial crítico que culmina em sua própria superação, ela também carrega consigo alguns pressupostos comuns aos trabalhos que a antecederam. O envolvimento com a psicologia fenomenológica e o pensamento de Binswanger parece, nesse sentido, ter sido crucial para o aparecimento de Histoire de la folie.

Há ainda, como referido, um terceiro elo examinado pelo livro de Elden: aquele pertinente à relação de Histoire de la folie com as produções subsequentes de Foucault. Como Elden aponta:

O livro abre vários caminhos que Foucault exploraria mais tarde em detalhes. A discussão sobre hospitais e medicina está diretamente ligada a Naissance de la clinique; a discussão sobre literatura e arte continua em muitos de seus outros escritos da década de 1960; o tema da organização do pensamento é desenvolvido em Les mots et les choses; e a abordagem histórica aqui empregada está consolidada em L’archéologie du savoir. A preocupação com o encarceramento e uma sociedade disciplinada e os poucos comentários sobre sexualidade levam a temas dos anos 1970 e posteriores. Foucault fez muitas anotações, aparentemente desse período, sobre sodomia, homossexualidade e hermafroditas. Esses temas talvez fossem destinados a um volume futuro na época, mas reaparecem em sua obra muitos anos depois, conforme ele persegue o projeto sobre a história da sexualidade (p. 146).

Em especial, destacamos uma dentre todas essas relações estabelecidas: aquela com os trabalhos de 1970. Elden não só ressalta a associação feita por Foucault entre os loucos encarcerados e os criminosos, na medida em que ambos são colocados num “‘espaço moral de exclusão’ (HM 18/8)” (Foucault apud Elden, 2021, pp. 143-144), mas também aponta para o trabalho que Foucault realiza com a noção de exclusão, situando-a como parte de um movimento que não apresenta apenas uma dimensão negativa, mas também de produção - característica que nos remete imediatamente ao seu posterior conceito de poder. De acordo com o próprio Foucault: “o confinamento não desempenhou apenas o papel negativo de exclusão, mas também o papel positivo de organização. Suas práticas e regulamentações constituíam um domínio da experiência que tinha unidade, coerência e função” (HM 96/82) (Foucault apud Elden, 2021, p. 144).

A partir da perspectiva que procuramos oferecer sobre o livro de Elden, vale ressaltar que possivelmente o ponto mais fecundo que dele desponta é aquele que torna evidente a relação entre as atividades de Foucault na década de 1950 e a publicação de sua tese. Isso se dá tendo em vista ser frequente o destaque para uma suposta ruptura inexplicável que Histoire de la folie teria representado na trajetória intelectual de Foucault. Encontram-se considerações que classificam seus primeiros trabalhos como “orientados a conteúdo”, “não levando a nenhum lugar em particular”, pertinentes a um momento em que Foucault “ainda precisaria encontrar sua própria voz” e carentes de uma “extravagância estilística”, encontrada não obstante em Histoire de la folie e nos trabalhos posteriores (pp. 111-112).

Contrapondo-se a essas avaliações, The early Foucault demonstra sistematicamente a existência de diversos pontos de continuidade entre o assim chamado primeiro Foucault e o filósofo mundialmente reconhecido. Ao longo da leitura do trabalho de Elden, as fronteiras entre as conhecidas três fases da obra do autor se fundem, e são trazidos à luz pontos de comunicação que transcendem as limitações epistemológicas correspondentes à arqueologia, à genealogia e à ética (Davidson, 1988DAVIDSON, Arnold. (1988), “Arqueologia, genealogia, ética”. In: HOY, David (comp.). Foucault. Buenos Aires, Nueva Visión, pp. 243-257.).

A maneira pela qual é definida por Elden a posição de Histoire de la folie é exemplo patente disso: é ressaltada tanto sua aparição a partir da crítica ao enquadramento ontológico-fenomenológico até então adotado por Foucault, quanto sua repercussão longínqua sobre o restante da obra do filósofo francês. Elden mostra que certos trabalhos subsequentes de Foucault - como aqueles relativos à punição e ao controle social -, raramente associados aos primeiros anos do autor como intelectual, desenvolvem tópicos que já haviam sido anunciados pela primeira vez em Histoire de la folie. Se o que parece atravessar todos esses elos entre os diversos momentos do pensamento de Foucault é o imperativo da problematização e da crítica (Revel, 2012REVEL, Judith. (2012), “La pensée verticale: une éthique de la problématisation”. In: GROS, Frédéric (org.). Foucault: le courage de la vérité. 2. éd. Paris, PUF, pp. 63-86.), a partir do livro de Elden, é possível conceber Histoire de la folie como o apogeu de uma série de exercícios de contestação, que começam com a crítica à psicologia hegemônica pela via da Daseinsanalyse e avançam para o deslocamento da abordagem ontológica da doença mental em direção à análise histórica9 9 Por vezes, essa recusa de uma perspectiva existencial para a abordagem da doença mental é entendida como a negação da própria existência da doença mental em Foucault (Peters, 2022). Não obstante, são possíveis apreensões mais nuançadas desse movimento. Para uma discussão sobre o progressivo desaparecimento do termo Déraison e consequentemente da ideia de “alguma verdade subjacente sobre a loucura” nas sucessivas edições de Histoire de la folie, ver Hacking (2014, p. 42); para uma análise da protoarqueologia em Foucault e de sua relação com a fenomenologia, consultar Nalli (2003; 2009). . Tendo em vista que, para Foucault, a “crítica do que somos é ao mesmo tempo a análise histórica dos limites que nos são impostos e um experimento com a possibilidade de ultrapassá-los” (Foucault, 1997, p. 319) e que numa de suas declarações expressas sobre sua tese o autor afirmou: “Quando escrevi Histoire de la folie, queria fazer uma espécie de crítica social” (Foucault, 2001c, p. 983), pode-se supor, graças ao trabalho de Elden, que muitas vezes os achados da história intelectual, ao mesmo tempo que problematizam a trajetória de um autor, podem, por outro lado, confirmar a avaliação que o próprio autor faz de sua obra.

Referências Bibliográficas

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  • FOUCAULT, Michel. (2001c), “Folie, littérature, société. Entretien avec T. Shimizu et M. Watanabe; trad. R. Nakamura”. In: FOUCAULT, Michel. Dits et écrits I, 1954-1975. Paris, Gallimard, pp. 972-996.
  • FOUCAULT, Michel. (2001d), “Le grand enfermement. Entretien avec N. Meienberg; trad. J. Chavy”. In: FOUCAULT, Michel. Dits et écrits I, 1954-1975. Paris, Gallimard, pp. 1164-1174.
  • FOUCAULT, Michel. (2001e), “Les monstruosités de la critique; trad. F. Durand-Bogarett”. In: FOUCAULT, Michel. Dits et écrits I, 1954-1975. Paris, Gallimard, pp. 1082-1091.
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  • HOELLER, Keith. (1986), “Editor’s foreword”. In: BINSWANGER, Ludwig & FOUCAULT, Michel. Dream and existence. New Jersey, Humanities Press, pp. 7-18.
  • LYNCH, Richard. (2004), “Two bibliographical resources for Foucault’s work in English”. Foucault Studies, n. 1, pp. 71-76.
  • MACEY, David. (1993), The lives of Michel Foucault. Londres, Hutchinson.
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  • NALLI, Marcos Alexandre Gomes. (2009), “Um rastro a desaparecer na praia do pensamento: Foucault e a Fenomenologia”. Rev. Abordagem Gestalt., 15, (2): 108-114.
  • PETERS, Gabriel. (2022), “A violência da (in)compreensão”. Tempo social, 1 (34): 5-30.
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  • ROUDINESCO, Elisabeth et al. (1994), Leituras da história da loucura. Rio de Janeiro, Relume-Dumará.
  • YACINE, Jean-Luc. (2004), La folie à l’âge démocratique ou L’après Foucault. Nîmes, Théétète éditions.

Notas

  • 1
    “O doctorat ès lettres é um doutorado superior, às vezes chamado de doctorat d’État, e mais próximo de um Habilitationsschrift alemão ou de um DSc ou DLitt anglófono do que de um PhD moderno” (p. 149).
  • 2
    A primeira edição brasileira foi publicada em 1978, pela editora Perspectiva, sob o título História da loucura na Idade Clássica. Em 2019, foi publicada uma edição especial, revista e atualizada, também pela Perspectiva. Em ambas as edições, a tradução é de José Teixeira Coelho Netto. Sobre a recepção do livro em diversos contextos, consultar, entre muitos outros: Gutting, 1994; Roudinesco, 1994; Yacine, 2004; Chevallier e Greacen, 2009.
  • 3
    Stuart Elden é professor de Teoria Política e Geografia na Universidade de Warwick.
  • 4
    Os outros volumes são, em ordem de publicação: Foucault’s last decade (2016), Foucault: The birth of power (2017) e The archaeology of Foucault (no prelo). A ordem de publicação não obedece à cronologia dos estudos de Foucault, isto é: o trabalho sobre o primeiro Foucault não é o primeiro publicado por Elden. A ideia foi, segundo o autor, seguir a disponibilidade dos materiais de pesquisa.
  • 5
    Todas as traduções são nossas, a partir da edição original de The early Foucault (2021).
  • 6
    A agrégation é um exame que permite lecionar na França. Foucault realizou o exame duas vezes: uma, em 1950 - na qual foi reprovado -, e outra, em 1951 - quando foi aprovado em segundo lugar dentre os selecionados para a disciplina de Filosofia (pp. 24-27).
  • 7
    “La recherche scientifique et la psychologie”, publicado como parte da coletânea Des chercheurs français s’interrogent: Orientation et organisation du travail scientifique en France, editada por Jean-Édouard Morère em 1957.
  • 8
    A introdução de Foucault a Le rêve et l’existence ficou conhecida por superar em número de páginas o ensaio do próprio Binswanger. Assim sendo, é possível considerá-la mesmo como um ensaio comentador. Seu título em francês aparece meramente como Introduction. Em língua inglesa, a introdução foi intitulada “Dream, imagination and existence”.
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    Por vezes, essa recusa de uma perspectiva existencial para a abordagem da doença mental é entendida como a negação da própria existência da doença mental em Foucault (Peters, 2022). Não obstante, são possíveis apreensões mais nuançadas desse movimento. Para uma discussão sobre o progressivo desaparecimento do termo Déraison e consequentemente da ideia de “alguma verdade subjacente sobre a loucura” nas sucessivas edições de Histoire de la folie, ver Hacking (2014, p. 42); para uma análise da protoarqueologia em Foucault e de sua relação com a fenomenologia, consultar Nalli (2003; 2009).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    02 Dez 2022
  • Aceito
    30 Mar 2023
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