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Cem anos da Escola de Frankfurt: Uma conversa com Martin Jay

100 years of the Frankfurt School: a conversation with Martin Jay

Resumo

Em 2023, o Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt completa cem anos. Desde então, a “Escola de Frankfurt” realizou um amplo diagnóstico da perenidade do capitalismo e de suas contradições. Até meados dos anos 1960, entretanto, o mundo anglófono ainda estava relativamente alheio ao importante legado dessa experiência. Amplamente responsável pela reversão dessa situação, surge em 1973 a obra A imaginação dialética: História da Escola de Frankfurt e do Instituto de Pesquisas Sociais 1923-1950, de Martin Jay. Nessa conversa com o autor, discorremos sobre a história e os pressupostos da teoria crítica, a relação dela com outras correntes de pensamento e, por fim, sua atualidade e relevância para se pensar a periférica situação brasileira.

Palavras-chave:
Escola de Frankfurt; Teoria Crítica; Martin Jay.

Abstract

In 2023, the Institute for Social Research in Frankfurt celebrates its 100th birthday. Since then, the “Frankfurt School” carried out a broad diagnosis of the permanence of capitalism and its contradictions. Until the mid-1960s, however, the English-speaking world was still relatively unaware of the important legacy of this experience. Largely responsible for reversing this situation, is published in 1973 the work Dialectic Imagination: A History of the Frankfurt School and the Institute of Social Research 1923-1950, by Martin Jay. In this conversation with the author, we discuss the history and assumptions of critical theory, its relationship with other currents of thought and, finally, its contemporaneity and relevance for thinking about the peripheral Brazilian situation.

Keywords:
Frankfurt School; Critical theory; Martin Jay.

Em 2023, o Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt, mais conhecido como “Escola de Frankfurt”, completa cem anos1 1 A entrevista foi realizada por escrito, numa troca de e-mails ao longo de junho de 2023. Revisão da tradução: Midori Martins (FFLCH/USP, Brasil). Agradeço ao Prof. Martin Jay a disponibilidade, atenção e generosidade ímpar. . Ao longo desse período, importantes intelectuais formularam uma teoria crítica da sociedade que tem como objetivo diagnosticar as razões da perenidade do capitalismo, a despeito de suas inúmeras contradições. De matriz materialista, dialética e interdisciplinar, a análise frankfurtiana trouxe ao debate marxista uma provocadora análise dos entraves impostos à emancipação, através de um profundo estudo tanto dos alicerces econômicos e políticos do atual estado regressivo da humanidade como daqueles que dizem respeito à cultura e à psicologia social. Entre os importantes representantes do momento inaugural dessa tradição, destacaram-se Theodor Adorno, Max Horkheimer, Walter Benjamin e Herbert Marcuse. Nas gerações seguintes, grandes intelectuais também produziram uma vasta obra, como Jürgen Habermas, Axel Honneth e Rahel Jaeggi, para citar só alguns. No Brasil, essa tradição crítica encontrou uma fértil aclimatação, movimento inaugurado pelo crítico literário Roberto Schwarz.

Do pós-guerra até meados dos anos 1960, entretanto, o mundo anglófono ainda estava relativamente alheio ao importante legado dessa tradição. Porém, a herança frankfurtiana parecia mais uma vez relevante para a compreensão daquele novo momento histórico do capitalismo, em que antigas certezas do Estado de bem-estar social dos países centrais e da democracia liberal começavam a desmoronar. Em meio ao esforço de jogar luz naquela experiência intelectual alemã, surge em 1973 a obra A imaginação dialética: História da Escola de Frankfurt e do Instituto de Pesquisas Sociais 1923-1950, de Martin Jay (2008)JAY, Martin. (2008), A imaginação dialética: História da Escola de Frankfurt e do Instituto de Pesquisas Sociais 1923-1950. Rio de Janeiro, Contraponto., originalmente publicada em inglês. Para sua escrita, o autor entrevistou boa parte dos representantes da chamada “primeira geração” da Escola de Frankfurt e reconstruiu de forma ampla, ao mesmo tempo que detalhada, a história do Instituto, de seus membros e as principais características de sua empreitada intelectual. Desde então, seu livro figura como uma das mais significativas análises dessa experiência.

Indo muito além da historiografia e do comentário, nosso entrevistado se tornou um importante intérprete da tradição crítica frankfurtiana, na qual poderíamos incluí-lo ele próprio. Professor emérito da Universidade da Califórnia, Martin Jay publicou obras que versam sobre os mais diferentes temas. Entre elas, destacamos Marxism and totality: The adventures of a concept from Lukács to Habermas (1984JAY, Martin. (1984), Marxism and totality: The adventures of a concept from Lukács to Habermas. Califórnia, University of California Press.), Downcast eyes: The denigration of vision in twentieth-century French thought (1993JAY, Martin. (1993), Downcast eyes: The denigration of vision in twentieth-century French thought. Califórnia, University of California Press.) e o recente Splinters in your eye: Frankfurt School provocations (2020JAY, Martin. (2020), Splinters in your eye: Frankfurt School provocations. Londres/Nova York, Verso.). Nessa entrevista, nós nos debruçamos não só sobre a história e os pressupostos teóricos da Escola de Frankfurt, como também sobre a relação dela com outras correntes de pensamento e sua validade para se pensar o tempo presente e nossa periférica situação brasileira.

Este ano comemoramos o centenário do Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt. Ao longo desse tempo, gerações de pensadores de diferentes áreas e orientações teóricas e políticas, diante de contextos históricos distintos, se sucederam na análise e crítica da sociedade capitalista. Na introdução do seu recente livro Splinters in your eye (2020), você comenta que essa “tradição” possui uma “forma não integrada” que dispensa uma “coerência narrativa”, algo que diz muito a respeito na natureza da análise frankfurtiana. Entretanto, sabemos que há de se encontrar uma certa especificidade que permita, ao longo desses cem anos, estabelecer uma linha que una Max Horkheimer e Theodor Adorno a Rahel Jaeggi, por exemplo. Em sua visão, quais seriam os critérios que podemos estabelecer para que esses pensadores sejam encarados como parte de uma mesma constelação e de um mesmo campo de força (Kraftfeld) conhecido como “Teoria Crítica”?

Martin Jay [MJ]: Para começar a responder a essa pergunta tão desafiadora, seria necessário irmos para além de uma análise que busca um denominador comum na obra de várias das figuras que se identificaram com a tradição da Teoria Crítica. Na verdade, teríamos que começar refletindo sobre as metáforas da própria pergunta. Desse modo, teríamos que levar em conta o que significa traçar uma “linha” conectando gerações de pensadores que não necessariamente estão bem-posicionados ao longo de um mesmo percurso em comum. Como alternativa, seria melhor se os encarássemos como pensadores que ocuparam diferentes posições em um emaranhado de filiações que resistem a serem agrupadas em uma única linhagem. Além disso, deveríamos nos perguntar se as metáforas da “constelação” e do “campo de força”, introduzidas por Benjamin e Adorno e frequentemente adotadas em minha própria obra, são compatíveis com a singularidade de uma “linha”. Se decidíssemos pela sua incompatibilidade e enfim abandonássemos essa ideia de linearidade, teríamos que mostrar como a evolução do Instituto de Pesquisa Social, da Escola de Frankfurt e da Teoria Crítica - para citar os três protagonistas de nossa história - poderia ser satisfatoriamente organizada em um campo dinâmico de forças ou de constelações de estrelas que pudessem, enfim, fazer justiça a todos os seus diferentes membros ao longo de um século de desenvolvimento histórico. Ao fazer tal esforço, rapidamente perceberíamos por que Wittgenstein prefere falar em “semelhanças familiares” em vez de procurar um conceito geral sob o qual os diferentes membros pudessem ser reunidos - e por que Adorno manteve sua dialética “negativa” e valorizou a “não identidade” em detrimento da identidade.

Embora tenha invocado essas questões para evitar uma resposta direta à sua pergunta, permita-me pelo menos sugerir uma maneira aproximada de entendermos essa tradição. De certo modo, ela pode ser definida pela conhecida expressão segundo a qual “o cisco no teu olho é a melhor lente de aumento”, uma frase de Adorno (2017ADORNO, Theodor. (2017), Minima moralia. Lisboa, Edições 70., p. 40), que tomei emprestada para o título do meu recente livro (2020). De modo geral, todos aqueles pensadores estavam profundamente preocupados com as fontes evitáveis daquilo que poderíamos chamar de “sofrimento excedente” - tanto o individual como o da humanidade em geral -, o qual deveria ser identificado e, se possível, eliminado. Eles se sentiam indignados com os obstáculos à realização da possibilidade de felicidade genuína para todos e negavam que os intelectuais precisassem ser figuras desinteressadas. Na verdade, eles deveriam ser guiados por um imperativo assumidamente normativo que expusesse e criticasse tais obstáculos. Para tanto, estavam abertos, com diferentes graus de entusiasmo, às contribuições da filosofia, teologia, teoria social e política, psicanálise e arte, bem como das ciências sociais empíricas. Eles aprenderam com as críticas de Kant à razão pura e prática, bem como com a crítica de Marx à economia política. Enfim, foram para além deles perseguindo a autocrítica, aonde quer que ela os pudesse levar. Como resultado, deixaram um legado aberto e não dogmático que possibilitou novas respostas a diferentes circunstâncias históricas e um estímulo a modelos teóricos posteriores.

Seu livro A imaginação dialética: História da Escola de Frankfurt e do Instituto de Pesquisas Sociais 1923-1950 ([1973] 2008) se tornou uma obra de referência nos estudos da Teoria Crítica. Ao longo de sua preparação, você entrevistou as principais figuras da chamada “primeira geração”, como Horkheimer, Adorno, Leo Löwenthal, entre outros. Em sua obra já citada Splinters in your eye (2020), você aborda um pouco dos bastidores desse período. Você poderia comentar como esses intelectuais queriam ser lembrados e quais eram suas principais preocupações em relação à historiografia nascente que surgia a respeito deles? Em outras palavras, qual era a autocompreensão desse heterogêneo grupo, naquele momento histórico, a respeito da experiência intelectual do Instituto até ali?

MJ: Quando iniciei minha pesquisa de doutorado sobre o Institut em 1967, praticamente não havia nenhum estudo sério sobre sua história ou as ideias de seus principais pensadores. Embora outros projetos também estivessem em andamento na época, tive a sorte de concluir o meu antes que eles aparecessem ou fossem interrompidos por circunstâncias infelizes (refiro-me aqui em particular a uma biografia de Horkheimer que estava sendo escrita por Matthias Becker, mas que permaneceu inacabada por causa de sua morte prematura). Apesar dos comentários frequentemente polêmicos acerca do trabalho de Marcuse que começavam a ser publicados, eles nunca se baseavam em fontes originais que esclareciam o seu contexto original. Em geral, Walter Benjamin permanecia apenas como um rumor, pelo menos no mundo anglófono, até a publicação de seus escritos sob o título Iluminations (1968BENJAMIN, Walter. (1968), Illuminations: Essays and Reflections. Nova York, Schocken Books.), volume editado por Hannah Arendt e que contava com uma controversa introdução. Além de Prisms (1967ADORNO, Theodor. (1967), Prisms: Studies in contemporary German social thought. Londres, Neville Spearman.), de Adorno, e Negations (1968MARCUSE, Herbert. (1968), Negations: Essays in Critical Theory. Londres, Penguin.), de Marcuse, não havia materiais em língua inglesa dos seus trabalhos anteriores. Horkheimer, de maneira muito hesitante, permitiu que seus ensaios do pré-guerra, como Kritische Theorie (1968HORKHEIMER, Max. (1968), Kritische Theorie, eine Dokumentation. Frankfurt, S. Fischer Verlag., 1972HORKHEIMER, Max. (1972), Critical theory: Select essays. Nova York, Seabury Press.), fossem republicados. A maioria dos estudiosos alemães estava muito ocupada discutindo sobre o significado atual da Teoria Crítica, especialmente suas implicações políticas, deixando de lado qualquer atenção ao seu desenvolvimento histórico.

Assim, eu tinha praticamente todo um campo aberto para narrar essa história conforme coletava fontes e realizava conversas com os membros sobreviventes. Esses membros não eram, com certeza, observadores desinteressados, mas estavam ativamente interessados em moldar a sua recepção. Felix Weil, por exemplo, estava muito ansioso em me demonstrar o importante papel que teve na fundação do Instituto, além de ressaltar seu contínuo envolvimento nos anos que se seguiram. [Erich] Fromm queria contestar a versão convencional acerca da sua ruptura com o Institut no final da década de l930, que havia sido amplamente atribuída à sua desilusão com Freud por Marcuse e Adorno. Ele também era, como você pode imaginar, mais cético em relação às realizações positivas do Instituto do que seus colegas. Löwenthal se interessava em deixar claro o papel central que teve na produção da Zeitschrift für Sozialforschung2 2 Revista do Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt. , além de refutar a marginalização de suas contribuições por Adorno depois do estremecimento da amizade entre ambos (o que mais tarde influenciaria a versão de Rolf Wiggershaus (2002)WIGGERSHAUS, Rolf. (2002), A Escola de Frankfurt. Rio de Janeiro, Difel. do papel de Löwenthal no Instituto). [Friedrich] Pollock enfatizava a centralidade intelectual e institucional de Horkheimer na história do Instituto. Adorno estava ansioso para refutar as acusações que sofria de ter manipulado o legado de Benjamin, inclusive sobre as contribuições de Benjamin que tinham saído na própria revista do Instituto. Ele também me alertou em não levar muito a sério a versão do sociólogo Paul Lazarsfeld sobre a colaboração entre ambos no final dos anos 1930. Marcuse não estava interessado em ressaltar as diferenças políticas que tinha com Horkheimer e Adorno sobre o movimento estudantil, o que mais tarde se tornaria amplamente conhecido. Ninguém queria reconhecer em público o desdém sofrido pela análise mais marxista de [Franz] Neumann sobre o nazismo em Behemoth ([1942] 2009NEUMANN, Franz. ([1942] 2009), Behemoth: The structure and practice of national socialism, 1933-1944. Chicago, Ivan R. Dee Publisher/United States Holocaust Memorial Museum.), questão que eu tinha visto em algumas cartas deles. Tampouco faziam questão, principalmente Weil, de dar qualquer importância às suas origens judaicas para a formação da Teoria Crítica. Enfim, essa lista poderia ser ampliada. Como escrevi no prefácio do livro, muitas vezes senti como se estivesse assistindo a Rashomon, filme de [Akira] Kurosawa, no qual diferentes versões de uma mesma história nunca convergem em uma verdade singular e inequívoca. De qualquer modo, fiz o meu melhor para moldar o que considerei ser o relato mais plausível, reconhecendo as diferentes memórias de alguns dos participantes.

Utilizada por György Lukács, a imagem do “Grande Hotel Abismo” ([1933] 1984) caracteriza até hoje uma visão bastante difundida a respeito dos teóricos críticos: a de que esses pensadores, ao exercerem uma “grande recusa” em relação a uma prática e um posicionamento político direto, ficariam encastelados como intelectuais distantes em sua “torre de marfim”. Nos protestos de 1969, a tumultuosa relação de Adorno com os estudantes intensificou essa imagem (o que não ocorreria com Marcuse). Outros argumentam que a relação desses intelectuais com a participação política deveria ser analisada através de um prisma mais complexo, que reconhecesse sua independência frente às demandas políticas de contextos específicos. É fato que a teoria crítica tentou se afastar da tradicional figura do intelectual frente às “massas” não esclarecidas. Em Teoria tradicional e Teoria Crítica, por exemplo, Horkheimer (1983HORKHEIMER, Max. (1983), “Teoria tradicional e Teoria Crítica”. In: BENJAMIN, Walter, HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor W. & HABERMAS, Jürgen. Textos escolhidos. São Paulo, Abril Cultural, pp. 117-161. Col. Os Pensadores, vol. XLVIII., p. 148) argumentava que diferentemente da noção de intelligentsia, na qual o teórico “paira sobre as classes”, “a tarefa do teórico crítico é superar a tensão entre a sua compreensão e a humanidade oprimida, para a qual ele pensa”. A seu turno, Adorno (1995ADORNO, Theodor. (1995), “Educação após Auschwitz”. In: ADORNO, Theodor. Educação e emancipação. Rio de Janeiro, Paz e Terra., p. 125) defendia em Educação após Auschwitz que “o único poder efetivo contra o princípio de Auschwitz seria a autonomia”, por parte do intelectual, a “não participação” (nicht mitmachen). Como você qualificaria a postura do teórico crítico frente à dimensão da prática política? Em suma, qual o lugar dele na sociedade?

MJ: Embora muitas tentativas tenham sido feitas ao longo dos anos para abordar essa questão, o fato de você trazê-la à tona mais uma vez mostra como ela permanece não resolvida no debate sobre o legado da Escola de Frankfurt. Como a teoria “crítica” se diferenciava de sua contraparte “tradicional” justamente a partir de seu imperativo em desafiar e, em última instância, transformar um mundo que frustrava o pleno florescimento humano, a necessidade de encontrar um caminho da teoria para a prática sempre pareceu urgente. Evidentemente, o contexto dos anos 1960 parecia oportuno, pelo menos para alguns, em transformar a crítica em práxis. Como Adorno, em particular, estava relutante em atender a esse chamado, ele foi denunciado pela Nova Esquerda Alemã como um hipócrita que preservava sua “bela alma” e se recusava a sujar as mãos. Em ensaios como “Resignação” (2018ADORNO, Theodor. (2018), “Resignação”. Cadernos de Filosofia Alemã: Crítica e Modernidade. São Paulo, 23 (1): 111-115, jun.), ele respondeu diretamente a essa acusação de maneira sutil e, a meu ver, persuasiva. O fracasso final da Nova Esquerda Alemã em realizar suas demandas mais radicais talvez possa ser visto como uma justificativa da relutância de Adorno em endossá-la sem hesitação.

De qualquer modo, a questão maior levantada acerca do caminho da teoria radical em direção à prática transformadora, que os marxistas tentaram responder desde o início, envolve a difícil questão da organização. Ou seja, como canalizar o descontentamento de um grande número de pessoas vitimadas por um sistema através de um meio eficaz de superá-lo? Um partido de massas voltado a conquistar a maioria em uma democracia? Um disciplinado partido de vanguarda disposto a subverter os princípios democráticos e talvez fazer uso da violência para perturbar o sistema? Conselhos de trabalhadores e demais grupos que desejam criar instituições alternativas dentro de um sistema para demonstrar a possibilidade de modelos de organização socioeconômica superiores ao vigente? Uma irrupção não hierárquica e espontânea de uma resistência não organizada, ainda que efêmera, frente à reprodução normal do sistema, como tentou o movimento Occupy no início deste século? Na verdade, a Escola de Frankfurt nunca se sentiu muito confortável com nenhuma dessas alternativas, e assim manteve, faute de mieux [por falta de algo melhor], uma espécie de divisão do trabalho em que teoria e prática não poderiam ser unidas com sucesso através de um mero wishful thinking [desejo, pensamento positivo].

Ironicamente, foi na trajetória do mais proeminente teórico crítico da segunda geração que um esforço mais robusto foi feito para escapar do Grande Hotel Abismo e adentrar na luta política. Mais do que qualquer outro intelectual de nosso tempo, Jürgen Habermas se envolveu diretamente em disputas políticas na Alemanha e em outros lugares. Em vez de abraçar a “grande recusa”, na qual a perspectiva utópica se converte numa negação de compromisso com o statu quo, ele sempre procurou trabalhar com as ideias de “interação comunicativa” e “democracia deliberativa” à luz das questões atuais. Isso porque, como Habermas mesmo disse, “somos todos participantes do processo do esclarecimento”. Assim, ele evita transformar o teórico em um mentor elitista das massas, que sabe de antemão o que é bom para elas. Para certos defensores da primeira geração de teóricos críticos, essa abordagem pode parecer um abandono de seus objetivos mais radicais, mas pelo menos demonstra que a lacuna entre teoria e prática não é eternamente intransponível.

Em A imaginação dialética (2008, p. 85), você esmiúça como as expectativas decrescentes em relação a uma revolução na Alemanha durante os anos 1930 afetou a produção intelectual dos frankfurtianos. Diante de tais mudanças, “a teoria crítica foi cada vez mais forçada a uma posição de ‘transcendência’ pelo enfraquecimento da classe trabalhadora revolucionária”, o que teria direcionado os estudos do Instituto a adotar um “tom pessimista”. Desde então, estabeleceu-se uma dificuldade em dar um conteúdo à imagem utópica de uma sociedade ainda não existente, postura que você correlaciona à proibição judaica de se representar imageticamente a natureza divina (Bilderverbot). Por outro lado, o télos teórico e prático da Teoria Crítica continua sendo a superação do existente. Em Minima moralia (2017, p. 242), Adorno comenta que “o único modo que ainda resta à filosofia de se responsabilizar perante o desespero seria tentar ver as coisas como aparecem do ponto de vista da redenção”. Por sua vez, no prefácio que Horkheimer escreveu ao seu livro, o autor comenta que se deve insistir “na esperança de que o horror terreno não detenha a última palavra” (2008, p. 36). Como você definiria essa “posição de transcendência” da teoria crítica em um período em que as expectativas parecem ainda menos promissoras?

MJ: Ao longo de sua história centenária, a Escola de Frankfurt tem lidado com a questão de onde encontrar o point d’appui [ponto de apoio] normativo da Teoria Crítica. Embora às vezes tenha se apoiado mais em um polo do que no outro, ela sempre buscou respostas na crítica imanente e transcendente. Deixe-me explicar melhor. Embora não depositassem mais sua confiança no ponto de vista privilegiado do proletariado, tido por marxistas anteriores como Karl Korsch como o fundamento basilar da validade epistemológica, eles frequentemente buscavam evidências da resistência ao statu quo nas “rachaduras e fendas” do presente “mundo administrado”. As lembranças felizes da infância, o legado ambíguo de tentativas utópicas que fracassaram e talvez, acima de tudo, a “promessa de felicidade” contida na arte forneciam pelo menos a possibilidade de um futuro radicalmente diferente e possivelmente melhor. Mesmo o hiato entre as pretensões ideológicas da ordem vigente e sua miserável realidade oferecia, pelo menos, alguma justificativa para uma crítica imanente, na qual os fracassos da realidade poderiam ser medidos em relação à ideologia.

Em outros momentos, porém, tais distinções foram apagadas no que Marcuse chamou de “sociedade unidimensional”, na qual as aparentes negações da realidade funcionavam para preservar o statu quo em vez de desafiá-lo. Como resultado, a crítica imanente teve que ser complementada por padrões normativos mais transcendentes, que pairavam de forma a-histórica acima da sociedade tal como ela existe. O forte conceito de razão objetiva às vezes parecia servir a esse propósito, embora se tornasse cada vez mais difícil defender sua plausibilidade. Uma alternativa era o que Adorno chamava de “experiência metafísica”, um conceito mal definido que nunca foi adiante. Outro foi o recurso de Adorno à “redenção” em Minima moralia (2017), o qual você cita e que ele também invocou na Dialética negativa (2009ADORNO, Theodor. (2009), Dialética negativa. Rio de Janeiro, Zahar.). Lá, ele estava se referindo às intuições de cunho teológico de Walter Benjamin sem, no entanto, realmente compartilhar da plausibilidade da fé dogmática de seu amigo. Recentemente escrevi um ensaio, que ainda está no prelo, que analisa essa ideia com mais atenção. Nele, destrincho o que vem junto dessa ideia religiosa de redenção, mesmo que Adorno procurasse se afastar dela invocando a Bilderverbot (proibição de imagens) judaica. Nesse texto, concluo que o recurso a esse termo era ao mesmo tempo uma forma desesperada de se compensar a inadequação de outras normas transcendentes, e, em última análise, um gesto retórico sem substância real.

Habermas parece ter chegado à mesma conclusão, o que explica seus esforços em encontrar um novo ponto de vista normativo para a Teoria Crítica, primeiro em um interesse quase transcendental pela emancipação exposto em Conhecimento e interesse ([1968] 2014HABERMAS, Jürgen. (2014), Conhecimento e interesse. São Paulo, Editora Unesp.) e, depois, pela razão comunicativa intersubjetiva em Teoria da ação comunicativa ([1981] 2022HABERMAS, Jürgen. (2022), Teoria da ação comunicativa. São Paulo, Editora Unesp.). O sucesso combinado desses esforços foi tema de um dos meus últimos livros, Reason after its Eclipse: On late Critical Theory (2016JAY, Martin. (2016), Reason after its eclipse: On late Critical theory. Wisconsin, University of Wisconsin Press.). A mistura da crítica imanente e transcendente que poderia fornecer uma base sólida para uma teoria crítica da sociedade permanece, portanto, ainda uma questão em aberto (se supusermos que precisamos encontrar uma, premissa desafiada por Richard Rorty, entre outros).

Em um dos aforismos de Dämmerung ([1934] 2022HORKHEIMER, Max. (2022), Crepúsculo: Notas alemãs (1926-1931). São Paulo, Editora Unesp., p. 35), Horkheimer esboça uma crítica à teoria das mônadas de Leibniz e sua concepção antissocial de indivíduo. Se neste último a alma era comparada “a uma casa sem janelas”, que prescinde do outro para se afirmar e se desenvolver, Horkheimer responde que há “uma espécie de rajada de vento capaz de abrir as janelas das casas”, a saber, “o sofrimento em comum”, esse sim responsável pela compreensão mútua entre os homens. Apesar da influência de Arthur Schopenhauer se fazer sentir aqui, o descentramento do indivíduo isolado para um sujeito historicamente arrasado pelo capitalismo também revela um outro movimento da Teoria Crítica: a mobilização da psicanálise de Sigmund Freud. Principalmente sob a figura de Erich Fromm, tornou-se fundamental uma análise do sofrimento social que também o encarasse como sofrimento psíquico. Seja numa perspectiva mais ampla, como na conhecida imagem das ruínas e dos mortos que se acumulam aos pés do “anjo da história” de Walter Benjamin (1987BENJAMIN, Walter. (1987), “Teses sobre o conceito de história”. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo, Brasiliense., p. 226), seja na coisificação do outro (Verdinglichung) identificada por Adorno como “a condição psicológica mais importante para tornar possível algo como Auschwitz” (1995, p. 134), o sofrimento figura como problema central dessa tradição intelectual. Em A imaginação dialética (2008, p. 139), você comenta como a psicanálise forneceu “o elo que faltava entre a superestrutura ideológica e a base socioeconômica”, tornando possível perseguir a “ideia materialista na natureza essencial do ser humano”. Em sua opinião, como a psicanálise contribuiu para a análise dessa mediação entre o indivíduo e a sociedade? De que forma a análise do sofrimento psíquico revela o estado irracional e de sofrimento do todo social?

MJ: Essa é uma pergunta muito importante que exigiria um livro inteiro para ser respondida com o detalhamento que ela exige. Não só os seres humanos sofrem por várias causas diferentes, mas também o mundo natural no qual estamos inseridos. A Escola de Frankfurt sempre foi sensível à dominação da natureza exercida pela tecnologia humana e ansiava por uma relação mais saudável e sem exploração - a qual eles chamavam de relação mimética - entre a humanidade e o meio ambiente. Em outras palavras, tratava-se da relação da cultura humana com a natureza, a qual está fora e dentro de nós. Como há um conflito interno entre o que se poderia chamar de cultura internalizada - em termos freudianos, o superego e o ego - e a natureza instintiva - o que Freud chama de id -, o sofrimento e a repressão acontecem tanto no nível psicológico quanto social. Quando Adorno (2017ADORNO, Theodor. (2017), Minima moralia. Lisboa, Edições 70., p. 51) identificava a utopia com o “cego prazer somático”, ele protestava contra a repressão e a sublimação dos desejos libidinais, cuja negação causava sofrimento. Assim, a psicanálise é vital para nos ajudar a compreender a relação dinâmica entre o desejo e os obstáculos à sua realização, ao mesmo tempo que lança luz sobre a dimensão intersubjetiva dessa relação. Ou seja, ela nos ajuda a ver que a realização do desejo envolve não apenas a satisfação dos impulsos libidinais egoístas, mas também a conquista da aceitação mútua daquilo que chamamos de amor ou, no mínimo, uma empatia pelos outros. Axel Honneth ([1992] 2007HONNETH, Axel. ([1992] 2007), Lutas por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo, Editora 34.), seguindo o exemplo de Hegel, iria tratar tal questão nos termos de uma dialética do reconhecimento.

Independentemente de a simpatia de Horkheimer por Schopenhauer ter sido ou não a razão de sua sensibilidade quanto à questão do sofrimento, a experiência de ter sobrevivido ao Holocausto os tornou muito conscientes da terrível capacidade dos homens em provocar em pessoas inocentes o que se poderia chamar de sofrimento excedente. Como mencionei em uma resposta anterior, talvez a principal motivação da Teoria Crítica tenha sido a determinação em diminuir os efeitos da desnecessária miséria, intencional ou não, desencadeada pelos homens uns contra os outros e contra o mundo natural. O “pessimismo” frequentemente atribuído à Escola de Frankfurt decorre de sua percepção de que havia inúmeras fontes aparentemente insolúveis do sofrimento excedente, para além daquelas incontornáveis causadas pela natural mortalidade humana e pela vulnerabilidade às doenças. Mesmo assim, eles nunca abandonaram totalmente a esperança de que, apesar de tudo, mudanças significativas eram possíveis.

As chamadas segunda e terceira gerações da Teórica Crítica da sociedade, com Jürgen Habermas e Axel Honneth à frente, desenvolveram teorias que reformularam sobremaneira o debate frankfurtiano. Esses autores apontaram que a primeira geração sofria de déficits sociológicos e políticos, como também era refém de posições aporéticas frente aos novos dilemas históricos - como na chamada “estratégia de hibernação” que Habermas (1979HABERMAS, Jürgen. (1979), “Consciousness-raising or redemptive criticism: The contemporaneity of Walter Benjamin”. New German Critique, 17: 30-59., p. 43) atribuía a Adorno. Entre os novos diagnósticos enfrentados por tais autores a partir do pós-guerra, temos a reflexão sobre as possibilidades de debate público nas democracias liberais dos países centrais e as intensas lutas, por parte de grupos marginalizados, pelo reconhecimento de seus direitos. De certa forma, a crítica da ideologia trilhou novos caminhos. Por outro lado, parte da literatura aponta para o esvaziamento do potencial crítico nesses novos diagnósticos, já distantes de uma leitura materialista e dialética da sociedade. Como você encara esse debate a respeito da relação entre as diferentes “gerações” frankfurtianas?

MJ: Sempre tive receio em colocar uma geração de teóricos críticos contra outra, embora seja claro que elas reagiram a diferentes desafios históricos e frequentemente ofereceram soluções diferentes. Um ponto forte da Escola de Frankfurt como domínio de formação intelectual contínuo e em desenvolvimento é sua resistência em canonizar os textos originais ou em cultuar de forma acrítica seus pais fundadores. Experimental desde o início, ela evitou a sistematização estagnada e a institucionalização que minou o poder de muitos dos seus rivais marxistas ocidentais, além, é claro, do discurso comunista oficial. Embora as críticas feitas às gerações posteriores de abandonarem a intransigência utópica da primeira geração, e assim diluírem sua denúncia já “desqualificada” do capitalismo, também tenham o seu mérito, não podemos continuar reciclando os sonhos da Nova Esquerda dos anos 1960, quando a primeira geração parecia mais relevante. O tipo de engajamento político representado por Habermas me parece muito mais promissor hoje do que, digamos, a mistura incipiente de êxtase teológico e niilismo anarquista que orientou grande parte da obra de Walter Benjamin. Isso não quer dizer que não tenhamos mais nada a aprender com o notável trabalho de Benjamin e de outros teóricos da primeira geração da Escola de Frankfurt. Na verdade, seria apenas um erro confundir o período em que eles estavam escrevendo com o nosso. Se levarmos a sério o “histórico” do “materialismo histórico” e reconhecermos o próprio imperativo de Benjamin em criar uma constelação dinâmica entre passado e presente, também honramos o espírito da Teoria Crítica quando nos recusamos a transformar seu legado em um conjunto de textos sagrados válidos para todos os tempos e lugares.

Ao lado da experiência intelectual frankfurtiana, temos o chamado pós-estruturalismo francês, também denominado de desconstrucionismo. Por vezes, observa-se entre os estudiosos da Teoria Crítica e desta outra tradição uma aversão mútua, que em muitas das vezes impede possíveis e frutíferos intercâmbios. Porém, também se faz necessário olhar para os pontos de contato entre ambas, proximidade aventada inclusive por Michel Foucault. Em uma entrevista, o filósofo francês afirmou que “se eu tivesse conhecido a tempo a Escola de Frankfurt, muito trabalho me teria sido poupado”, já que os frankfurtianos já teriam “aberto o caminho” (1983, p. 24). Quais seriam, em sua opinião, as principais convergências entre essas duas tradições do pensamento moderno?

MJ: No contexto das chamadas “guerras teóricas” do final do século XX, uma das batalhas mais ruidosas opôs a Teoria Crítica ao pós-estruturalismo em geral e à desconstrução em particular - ou pelo menos era assim que o tema aparecia no imaginário popular nos Estados Unidos e em outros lugares, a ponto de aparecerem trocadilhos sobre os frankfurters e os French fries3 3 Há uma ambiguidade nos termos. As frankfurters são um popular tipo de salsicha alemã, além de designar aquele que nasceu na cidade de Frankfurt. Já a expressão French fries significa tanto “batatas fritas” como também, numa tradução literal, “franceses fritos”. . Sob um olhar mais atento, entretanto, as fronteiras não eram nada claras e ambos os campos eram tudo, menos homogêneos. Em primeiro lugar, o chamado pós-estruturalismo - um termo impreciso imposto por um grupo de diferentes pensadores, sobretudo franceses, que nunca se sentiram muito confortáveis com ele - foi muitas vezes confundido com o pós-modernismo. Vários teóricos críticos, mais notadamente Leo Löwenthal ao final de sua vida e Jürgen Habermas, temiam uma perda de confiança no impulso emancipatório e até utópico do projeto modernista por aqueles que pensavam que ele já estava totalmente esgotado. Eles temiam que o pós-modernismo abraçasse muito rapidamente os prazeres superficiais da cultura de massa (ou da indústria cultural) e fosse assim cúmplice do capitalismo tardio. Enfim, temiam que se fosse para além da crítica à razão instrumental para se atacar a razão tout court [sem mais].

Embora a sobreposição entre o pós-modernismo e o pós-estruturalismo esteja longe de ser exata, o ceticismo dos frankfurtianos os levou às vezes a colocarem todos esses autores no mesmo saco (talvez o exemplo mais importante tenha sido O discurso filosófico da modernidade de Habermas, [1985] 2000HABERMAS, Jürgen. (2000), O discurso filosófico da modernidade. São Paulo, Martins Fontes.). Porém, se olharmos de forma mais atenta, as várias tendências teóricas que foram agrupadas sob o rótulo pós-estruturalista eram muitas vezes mais compatíveis com impulsos na Teoria Crítica do que parecia à primeira vista. Cada um dos campos, por exemplo, poderia encontrar uma inspiração na ambiguidade do legado de Walter Benjamin, embora nem sempre pelas mesmas razões. Ambos desconfiavam do desejo de sistematização e totalização nas filosofias idealistas e materialistas tradicionais. Ambos eram críticos do ideal convencional do individualismo autônomo e autossuficiente, apoiado pelo liberalismo e pela psicologia do ego. Cada um deles percebeu a importância da mediação linguística das ideias, mesmo que tenham tido interpretações diferentes de como a linguagem funcionava. A lista poderia ser facilmente ampliada, embora não possamos ignorar as tensões muito reais que impediram o colapso de um campo pelo outro.

Se tomarmos o caso específico de Foucault (que, aliás, era muito hostil à desconstrução de Derrida e não aderiu a ela), um diálogo fecundo com a Teoria Crítica era evidente. Foucault passou vários anos em Berkeley antes de sua morte, em 1984, e pudemos discutir em várias oportunidades. Ele me disse que não tinha percebido o quanto poderia ter aprendido com a Teoria Crítica até ler a tradução francesa do meu primeiro livro, em meados dos anos 1970, e de se sentir próximo da Dialética do Esclarecimento ([1944] 1985ADORNO, Theodor & HORKHEIMER, Max. (1985), Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.) em particular. Ele compartilhava a ênfase que a obra dava à história disciplinadora dos corpos e a apreciação feita a respeito do entrelaçamento do conhecimento e do poder. Embora contestasse a leitura utópica de Freud feita por Marcuse em Eros e civilização ([1955] 1982MARCUSE, Herbert. ([1955] 1982), Eros e civilização: Uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. Rio de Janeiro, LTC.), Foucault era receptivo à valorização do prazer somático, incluindo a perversidade polimórfica. Isso não quer dizer que não houvesse diferenças em suas abordagens, o que ficou claro quando Löwenthal e eu fomos incluídos por Paul Rabinow e Hubert Dreyfus em uma série de conversas gravadas com Foucault, que também envolveu Richard Rorty e Charles Taylor. Ele era, por exemplo, muito mais cético a respeito do papel da agência na mudança social do que o resto de nós, e ainda menos esperançoso de que a resistência pudesse realmente mudar qualquer coisa, em vez de simplesmente servir para manter o sistema funcionando sem maiores problemas.

O fundamental é que apesar das óbvias tensões entre as duas margens do rio Reno, que se estenderam para as “guerras teóricas” na academia anglófona e além, a possibilidade de uma troca significativa nunca foi excluída. Embora um consenso dialógico em todas as questões fosse inalcançável - Derrida, aliás, sempre fez questão de preferir a princípio o dissenso -, foram possíveis uma rica troca teórica e a realização de alguma aproximação nas relações entre os dois campos. Significativamente, até Habermas e Derrida conseguiram, em 1999/2000, realizar um seminário conjunto em Paris e depois em Frankfurt. Alguns anos depois, também publicaram juntos A plea for a common foreign policy (2003DERRIDA, Jacques & HABERMAS, Jürgen. (2003), “February 15, or What bind Europeans together: A plea for a common foreign policy, beginning in the core of Europe”. Constellations, Oxford/Malden, 10 (3): 291-297.). Derrida também recebeu o Prêmio Adorno da cidade de Frankfurt. Embora alguns discípulos mais dogmáticos de cada uma dessas figuras tenham se sentido traídos pela nova amizade, eles demonstraram que era possível encontrar algum terreno comum contra um mundo cada vez mais hostil a teorias de qualquer tipo.

Com o recrudescimento da extrema direita em âmbito mundial, a intensificação dos processos de degradação social neoliberal e de instabilidade sistêmica marcada por inúmeros conflitos sociais, observa-se uma retomada no interesse acadêmico pelas análises da primeira geração em relação ao fascismo e suas consequências para a política, a cultura e a economia. Como obras emblemáticas desse debate, podemos citar Behemoth ([1942] 2009NEUMANN, Franz. ([1942] 2009), Behemoth: The structure and practice of national socialism, 1933-1944. Chicago, Ivan R. Dee Publisher/United States Holocaust Memorial Museum.), de Franz Neumann, os artigos de Frederich Pollock sobre o “Estado autoritário” ([1932-1941] 2019) e os estudos empreendidos pelo Instituto, como Prophets of Deceit ([1949] 2021JAY, Martin. (2021), “Trump, Scorsese e a Teoria dos Rackets da Escola de Frankfurt”. Disponível em https://aterraeredonda.com.br/trump-scorsese-e-a-teoria-dos-rackets-da-escola-de-frankfurt/, consultado em 09/07/2023.
https://aterraeredonda.com.br/trump-scor...
), de Leo Löwenthal e Norbert Guterman, e
Estudos sobre a personalidade autoritária ([1950] 2019ADORNO, Theodor. ([1950] 2019), Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo, Editora Unesp.), coordenado por Adorno. Em sua opinião, de que forma esses e outros escritos dos primeiros frankfurtianos contribuem para o debate contemporâneo em relação ao contexto atual de ascensão da extrema direita?

MJ: Você está certo quando diz que o início da onda global de populismo autoritário, exemplificada na América por Trump e no Brasil por Bolsonaro, reavivou o interesse pelo trabalho da Escola de Frankfurt sobre o fascismo na Europa e, potencialmente, nos Estados Unidos. Os estudos psicanaliticamente informados que eles fizeram sobre as técnicas usadas pelos demagogos e as razões pelas quais grandes segmentos da população foram seduzidos por eles - você mencionou os principais estudos, mas também houve vários outros - parecem mais uma vez relevantes para explicar os fenômenos contemporâneos. O alerta acerca do perigo que o antissemitismo representa como um pretexto para o fascismo também parece atual. Por outro lado, o Behemoth, de Neumann, não exerce tanta influência, pois enfatizava o papel que o capitalismo monopolista desempenhou na promoção do nazismo em particular, um modelo que realmente não funciona mais para explicar a desconfiança populista no capitalismo global e a suspeita da concentração de poder nas mãos das elites.

Uma abordagem menos estudada tem sido a tentativa, nunca totalmente concluída, que Horkheimer e seus colegas fizeram sobre o que chamaram de “sociedade dos rackets4 4 Mantivemos o termo original, como já convencionado na literatura em português sobre o tema. nas décadas de 1930 e 1940. Aqui, o argumento se concentrou no retorno de arranjos transacionais pré-modernos de proteção e lealdade, muitas vezes de natureza personalista, que substituíram o Estado de Direito abstrato e os procedimentos do mercado anônimo. Em um ensaio (2021) que escrevi sobre o filme O irlandês, de Martin Scorsese, o qual será republicado em minha próxima coletânea Immanent critiques, tentei aplicar as lições da análise da “sociedade dos rackets” para explicar o domínio de Trump sobre sua base Maga (Make America Great Again). Mesmo após sua derrota nas eleições de 2020 e o desastre de 6 de janeiro de 2021, seus seguidores parecem ainda sob seu domínio. Compreender os laços recíprocos de lealdade pessoal que transcendem os princípios - morais e legais - em uma sociedade de rackets pode nos ajudar a entender seu apelo contínuo. Fiquei satisfeito ao ver que, na investigação em curso sobre a interferência de Trump nas eleições de 2020 - que ele falsamente alegou terem sido “roubadas” e “fraudadas” -, as acusações federais de extorsão sob a Lei Rico (Racketeering Influenced Criminal Organization)5 5 Lei de Organizações Corruptas Influenciadas por Rackets. estão agora sendo seriamente aplicadas contra ele, validando assim implicitamente a relevância da análise da sociedade de rackets da Escola de Frankfurt.

Em O homem unidimensional ([1964] 2015MARCUSE, Herbert. ([1964] 2015), O homem unidimensional: Estudos da ideologia da sociedade industrial avançada. São Paulo, Edipro., p. 111), Herbert Marcuse já apontava na sociedade norte-americana da década de 1960 um fechamento tanto do universo político como do discurso, numa espécie de “sociedade sem oposição”. Para o autor, assistia-se ao surgimento de uma sociedade que “pode ter recursos para dispensar a lógica e jogar com a destruição”, na qual as contradições em curso são falsamente reconciliadas. Ao refletir sobre o contexto atual dos novos extremismos de direita (2020, p. 153), você já salientou que estamos diante de uma espécie de “dialética anti-iluminista”, na qual se cria um “universo paralelo onde as leis normais de evidência e plausibilidade são suspensas”, quase como numa “narrativa paranoica”. Um dos exemplos dessa regressão em curso são as inúmeras teorias da conspiração que atribuem ao chamado “marxismo cultural” a responsabilidade pela maior parte dos males de nosso tempo. Como a teoria crítica contemporânea pode se afirmar como uma voz dissonante nessa espécie de sociedade sem oposição?

MJ: A análise de Marcuse sobre o cerco unidimensional da cultura e da sociedade americana, nas quais a negação e a crítica haviam sido embotadas e uma aceitação conformista do statu quo prevaleceu, foi ironicamente desafiada pela emergência da contracultura e da Nova Esquerda quase imediatamente após sua publicação, em 1964. Pode-se dizer, é claro, que o livro foi responsável pela sua própria refutação ao alertar as pessoas - os estudantes em particular - a respeito de sua inconsciente integração a uma sociedade repressiva. Por outro lado, também se poderia argumentar que as tentativas para escapar desse destino foram, elas mesmas e sem aviso prévio, cúmplices da manutenção do próprio sistema que procuravam subverter. Marcuse havia previsto essa situação com seu conceito de “dessublimação repressiva”, no qual a aparente liberação de impulsos transgressores, principalmente os sexuais, poderia ser aproveitada para propósitos finais de cunho conformista. A contracultura do “sexo, das drogas e do rock and roll” era vulnerável à sua estabilização em um “capitalismo hippie”, no qual um simulacro de rebeldia alimentava a fera que acreditava desafiar o sistema. Embora seja equivocado concluir cinicamente que toda resistência aparente é, em última análise, funcional para a manutenção do poder e do sistema - uma conclusão na qual Foucault parece ter chegado em alguns momentos -, fato é que nos tornamos mais cautelosos em celebrar qualquer comportamento transgressor ou pensamento idiossincrático como inerentemente libertadores.

Hoje estamos diante de uma outra ironia, que diz respeito à emergência de uma robusta contracultura proveniente da direita, que aprendeu uma série de lições com sua contraparte de esquerda nos anos 1960. Ela também encara a autoridade estabelecida como “elitista” e zomba das normas de civilidade e do comportamento “adequado”. Desconfia da ciência e da expertise em geral, e muitas vezes abraça teorias conspiratórias sem comprovação sobre forças das trevas que supostamente comandam o mundo. Essa contracultura sabe chamar a atenção e mobilizar os descontentes para atrapalhar o funcionamento do sistema (como, por exemplo, a recusa tanto dos seguidores de Trump quanto de Bolsonaro em aceitar pacificamente os resultados das eleições, as quais perderam). Ela se organiza de forma descentralizada, utilizando novas tecnologias e mídias sociais para difundir suas ideias e conquistar novos adeptos. Em suma, ela mostra que a “grande recusa” de Marcuse tem o potencial de desencadear energias vindas dos de baixo tanto pela direita como pela esquerda, numa dialética do contrailuminismo tal como aquela do iluminismo. Em poucas palavras, descobrimos que a superação da unidimensionalidade e o empoderamento de uma negação transgressora não promovem automaticamente objetivos progressistas e emancipatórios.

O diagnóstico a respeito da indústria cultural talvez seja a contribuição frankfurtiana que obteve maior repercussão, tornando-se incontornável não só no âmbito da sociologia, como também nos estudos de comunicação. Em 1968, Adorno já pôde vislumbrar a fama de tal diagnóstico. Em Resumé über Kulturindustrie ([1963] 1986ADORNO, Theodor. ([1963] 1986), “A indústria cultural”. In: ADORNO, Theodor. Theodor W. Adorno: Sociologia. São Paulo, Editora Ática., p. 96), advertiu para que se levasse “a sério a proporção do papel incontestado” da indústria cultural na sociedade, o que significaria “levá-la criticamente a sério e não se curvar diante de seu monopólio”. Entretanto, a disseminação do conceito nas décadas seguintes acarretou uma espécie de esvaziamento do seu potencial crítico, tornando a ideia quase um conceito descritivo. Há também aqueles que acreditam que o conceito teria sido superado pelas inúmeras transformações em curso, principalmente a suposta descentralização e democratização da produção cultural ocasionada pelo aparecimento da internet. Entre os defensores da “cultura de massas” e críticos do conceito frankfurtiano, tornou-se um lugar-comum denunciar um suposto elitismo e “beco sem saída” no diagnóstico de Adorno e Horkheimer. Em um artigo, Robert Kurz (2012)KURZ, Robert. (2012), “ Kulturindustrie im 21. Jahrhundert: Zur Aktualität des Konzepts von Adorno und Horkheimer”. EXIT! Krise und Kritik der Warengesellschaft, 9, mar. nomeia essa tendência de “otimismo cultural pós-moderno”. Segundo ele, seus “profetas” veem a massificação da cultura como um fenômeno per se emancipatório, mesmo que reconheçam seu caráter industrial e reificado. Frente a tais questões, como você encara a atualidade e a pertinência do diagnóstico da indústria cultural para se pensar a cultura contemporânea?

MJ: Em Minima moralia (2017, p. 39), Adorno afirmava de modo provocativo que “na psicanálise, nada é tão verdadeiro como os seus exageros”. Em outros escritos, exaltava as virtudes de se construírem argumentos corajosos que escapavam de certo efeito entorpecente típico de qualificações intermináveis. Ao caracterizar a “indústria cultural”, ele e Horkheimer seguiram esse imperativo e apresentaram uma análise deliberadamente extrema de um fenômeno complexo que facilmente poderia ter perdido seu poder se tivesse, à época, sido formulado em termos mais cautelosos e provisórios. Negando o saber convencional de que a cultura de massas respondia aos desejos de seus consumidores e de que os prazeres que ela proporcionava eram alternativas saudáveis às duras exigências do trabalho cotidiano, eles argumentavam que esses desejos eram manipulados sem transparência para a obtenção do máximo lucro possível. Além disso, compreendiam que o entretenimento escapista que era oferecido apenas reforçava as relações de exploração que prevaleciam no local de trabalho. A afirmação audaciosa de que a cultura poderia ser incorporada ao capitalismo industrial em vez de servir de refúgio a ele teve que ser feita da forma mais categórica e inequívoca possível para ganhar a atenção que merecia.

Sua crítica à indústria cultural poderia ter sido descrita, com razão, como reflexo de certo elitismo mandarim. Entretanto, eles também são duros na análise de grande parte da dita “alta” cultura, incluindo algumas manifestações de vanguarda, como o surrealismo. Seguramente, eles mantinham a esperança nas implicações negativas de pelo menos alguma arte modernista: as peças de Beckett, a música de Berg, as histórias de Kafka. Mas, em geral, eles se opunham ferozmente ao que Horkheimer e Marcuse chamavam na década de 1930 de “caráter afirmativo da cultura”, tanto da “alta” quanto da “baixa”. Seu alvo era tanto a ideologia burguesa da Bildung (autocultivo), que ainda informava muito a arte comunista promovida oficialmente, quanto a celebração populista da cultura de massas.

Entretanto, é inevitável levantar questões sobre as exageradas generalizações que os autores fizeram sobre a indústria cultural como um todo, tarefa facilitada pela redescoberta dos sugestivos argumentos de Benjamin sobre o potencial crítico de arte reproduzida tecnologicamente, como a fotografia e o cinema. Além disso, uma apreciação muito mais nuançada acerca do jazz e de outras formas musicais populares pode desafiar a condenação geral de Adorno - no mínimo, deve-se atentar aos momentos em que tais formas se desenvolveram de modos menos padronizados e estereotipados. De qualquer forma, aquele tom de exagero original serviu ao propósito de levar a discussão para além de caracterizações simplistas do exotérico e o esotérico, do que é de elite e o que é popular, da alta e baixa arte.

Em relação ao desenvolvimento do argumento no século XXI, seria necessária uma sustentada e refinada análise focada nas tendências culturais e em sua imbricação no mercado para, enfim, fornecer uma resposta significativa. Também teríamos que incluir uma séria discussão sobre as novas tecnologias digitais e as mídias sociais, bem como as maneiras pelas quais muitas criações artísticas e até de entretenimento absorveram em si mesmas as críticas feitas às suas manifestações anteriores (o que Peter Sloterdijk já discernia na “razão cínica” na República de Weimar). Além disso, deveríamos registrar a tensa relação dialética entre a monopolização e a descentralização que caracteriza a produção cultural na contemporaneidade, com grandes empreendimentos engolindo os menores, enquanto, ao mesmo tempo, vê-se a capacidade de indivíduos e grupos aparentemente marginais em se tornarem “influenciadores” com sua cota de mercado em meio ao ruído da internet. Também precisaríamos pensar no papel desempenhado pela manipulação anônima dos algoritmos em vez da intervenção consciente dos capitães da velha indústria cultural. Finalmente, teríamos que levar em conta a relação dos diferentes governos com a produção, regulação e disseminação do conteúdo cultural. Como exemplos disso temos o recente furor acerca do controle chinês sobre o TikTok ou o conflito entre o governador da Flórida, De Santis, e a corporação Disney.

Tudo isso teria que ser feito no contexto de uma análise teoricamente informada e empiricamente testada a respeito daquilo que poderia constituir uma forma cultural genuinamente transgressora, crítica e negativa, tanto em sua forma como em seu conteúdo. Por outro lado, também revelaria aquilo que é apenas seu simulacro enganoso, sempre levando em conta a possibilidade de uma recepção pelo público que enfraquece as intenções originais dos produtores. Não é uma tarefa fácil!

Das primeiras formulações marxianas aos mais recentes desenvolvimentos da Teoria Crítica, um volumoso debate se desenrolou a respeito da validade e relevância do pensamento crítico, predominantemente oriundo dos países centrais da Europa e dos Estados Unidos, quando transposto sem mediações à periferia do sistema capitalista e às suas particularidades. Entretanto, a Teoria Crítica frankfurtiana não só encontrou terreno fértil no debate intelectual brasileiro, como vicejou uma riquíssima tradição do pensamento social. Direta ou indiretamente, dos anos 1960 até hoje, importantes pensadores como Roberto Schwarz, Gabriel Cohn, Barbara Freitag, Michael Löwy, Francisco de Oliveira, Olgária Matos, Paulo Arantes e Vladimir Safatle passaram a se utilizar do arcabouço teórico crítico frankfurtiano como uma importante ferramenta de análise de nossas profundas feridas sociais. Em sua opinião, haveria um certo privilégio epistêmico da periferia do capitalismo no que tange à crítica da ideologia? Na vanguarda do atraso, enfim, pode despontar a vanguarda da crítica?

MJ: Essa é uma pergunta maravilhosa, que aponta para um importante desenvolvimento que provavelmente caracterizará o segundo século da história da Teoria Crítica. É importante reconhecermos que o primeiro século foi fortemente influenciado pelo exílio forçado da Escola de Frankfurt da Europa para a América antes de seu retorno parcial após a Segunda Guerra Mundial. Desde então, ela já estava marcada pela sua transferência para um ambiente diferente e pela necessidade de se adaptar a novas e desafiadoras circunstâncias. Detlev Claussen, um dos mais astutos estudantes e perspicazes biógrafos de Adorno, disse certa vez que “não há Teoria Crítica sem a América”. Nas décadas de 1930 e 1940, a América estava apenas começando a sair do lugar de mera periferia da Europa, pelo menos como um centro de inovação teórica. Porém, as experiências da Escola de Frankfurt tiveram um impacto profundo no que poderíamos chamar de sua desprovincianização pós-eurocêntrica.

Da perspectiva de outras partes do mundo, sem dúvida, essa tendência pode não ter ido longe o suficiente. Estamos agora no meio de uma maior disseminação e hibridização da tradição, que leva mais a sério do que nunca as vozes do que antes chamávamos de “Terceiro Mundo” e, agora, é conhecido como “Sul global”. É revelador que eu já tenha me beneficiado de encontros, pessoais e também por meio de suas obras, com vários estudiosos brasileiros de sua lista - à qual eu acrescentaria Rodrigo Duarte e Marcos Nobre entre aqueles que desempenham valiosos papéis na discussão internacional. Evidentemente, o impacto do trabalho de estudiosos da chamada periferia sempre é potencializado quando traduzido para uma das línguas acadêmicas hegemônicas, principalmente o inglês. Uma coisa é o subalterno falar, outra é que suas palavras se tornem acessíveis a um público maior. Porém, as oportunidades para essas traduções parecem estar aumentando.

Sobre a questão do privilégio epistêmico da periferia ou da vantagem do ponto de vista do atraso, só posso dar uma resposta tímida e ambígua. Certamente, diferentes experiências históricas fornecem estímulos para se formularem perguntas e buscarem respostas de maneiras novas e desafiadoras. A primeira geração da Escola de Frankfurt, por exemplo, raramente se preocupava com o impacto do imperialismo e da colonização, enquanto a segunda pouco se concentrou sobre a importância da descolonização. Seus membros tendiam a dar continuidade à tradição, que remonta a Kant, Hegel e Marx, de considerar a Europa como a vanguarda da história mundial. Embora o Instituto incluísse estudiosos como Karl August Wittfogel, que se concentrou na China, e Felix Weil, que escreveu sobre a Argentina, o trabalho deles raramente estimulou os desenvolvimentos teóricos de Horkheimer e de seus colegas. Hoje, na discussão sobre as tendências globais do século XXI, seria impossível ignorar a ascensão da China e os processos em curso na América Latina, para não mencionar os modos como os intelectuais dessas partes do mundo aplicaram o legado da Teoria Crítica às suas experiências.

Entretanto, graças ao relativo distanciamento da primeira Escola de Frankfurt em relação à periferia, evitou-se a romantização duvidosa do Terceiro Mundo como o local da eflorescência revolucionária, o que seduziu outros intelectuais europeus por um tempo no final do século XX. Nenhum de seus membros, por exemplo, seguiu pensadores franceses como Sartre, Kristeva ou Sollers, que acreditavam no potencial redentor dos movimentos de libertação do Terceiro Mundo. Às vezes, as experiências de Cuba de Castro, a China de Mao (especialmente durante a Revolução Cultural), o Vietnã do Norte, os palestinos ou mesmo a Coreia do Norte tinham a tarefa de compensar os fracassos da revolução no Primeiro Mundo e a sua corrupção no Segundo. Porém, a Escola de Frankfurt nunca compartilhou dessas esperanças.

Dito isso, também acredito que chegou a hora de uma troca de ideias mais equitativa entre o que costumava ser grosseiramente caracterizado como centro e periferia. Na verdade, um consórcio internacional de programas de Teoria Crítica foi recentemente organizado pela minha ex-colega de Berkeley, Judith Butler, o qual desempenha um papel de liderança desde seu início. O consórcio patrocina uma revista chamada Critical Times: Interventions in Global Critical Theory, que acaba de publicar o primeiro número de seu sexto volume6 6 Disponível em: https://read.dukeupress.edu/critical-times. . Sem uma inversão simplista da relação de poder, em que tudo o que é eurocêntrico na origem é automaticamente desacreditado por suas supostas origens imperialistas e racistas, um diálogo produtivo ou, melhor, plural, pode começar.

Em certa altura do discurso de posse da direção do Instituto, Horkheimer ([1931] 1999HORKHEIMER, Max. (1999), “A presente situação da filosofia social e as tarefas de um Instituto de Pesquisas Sociais”. Revista Praga, 7, São Paulo, Hucitec., p. 130) afirma que uma das principais tarefas da Teoria Crítica seria a de compreender como as diferentes esferas da vida social - o processo econômico, o desenvolvimento psíquico dos indivíduos e os fenômenos culturais - se interligam e são uma por outra mediadas. Em seguida, comenta que “a intenção de estudar as relações entre esses três campos não é outra que uma formulação” daquele “velho problema da conexão entre a existência particular e a razão universal, entre a realidade e a ideia, entre a vida e o espírito; só que este velho tema aparece agora colocado numa nova constelação de problemas”. Aparentemente, perseguimos as mesmas questões, mas estamos diante de problemas ainda mais distintos e complexos - vide, por exemplo, a catástrofe ambiental em curso. Passados cem anos, coloca-se em discussão quais são os principais desafios da Teoria Crítica em se afirmar como uma via de análise do mundo contemporâneo. Para usar uma imagem mobilizada por Adorno em Filosofia da nova música ([1949] 1974ADORNO, Theodor. ([1949] 1974), Filosofia da nova música. São Paulo, Editora Perspectiva., p. 107), como descerramos da garrafa a mensagem da teoria crítica? Em suma, como escapamos da aporia na qual ela “repercute sem que ninguém a escute, sem eco”?

MJ: Como argumentei anteriormente, o programa interdisciplinar originalmente proposto no discurso inaugural de Horkheimer se mostrou otimista demais. A integração harmoniosa entre diferentes abordagens, bem como a fácil passagem da teoria para a pesquisa empírica e vice-versa esbarraram no obstáculo de uma totalidade social ela mesma fraturada e resistente a uma análise holística. Como resposta, a Escola de Frankfurt abandonou tacitamente suas esperanças de uma abordagem mediada e integrada em favor de uma que justapunha diferentes perspectivas disciplinares, como a psicológica e a sociológica, e admitiu que perspectivas micro e macro poderiam não se encaixar tão facilmente. A noção de dialética negativa de Adorno e sua ênfase na não identidade foram as expressões teóricas dessa revisão da possibilidade de totalização interdisciplinar. Isso não quer dizer que as interconexões e as referências cruzadas fossem inteiramente evitadas, apenas que a Teoria Crítica não poderia postular um método abrangente e sintético que unisse tudo.

Quanto à melhor maneira de aplicar as lições da Escola de Frankfurt, tanto em seus sucessos quanto em seus fracassos (pois muitos de seus projetos não foram realizados), não tenho muito o que dizer. Como historiador, já tenho dificuldade o suficiente em entender o passado, o que dirá saber o que o futuro nos reserva. No entanto, eu diria que ainda restam potentes recursos na multifacetada obra de seus membros que podem nos ajudar a tratar questões contemporâneas. Já mencionei a utilidade da análise da “sociedade de rackets” para certas tendências políticas da atualidade. Para concluir, diria que o que precisaria ser feito são menos exercícios esotéricos para revelar o significado obscuro de um fragmento inédito das reflexões de tom teológico de Walter Benjamin ou mais uma denúncia da atitude elitista de Adorno em relação ao jazz, e mais esforços para abordar os assustadores problemas que agora enfrentamos no mundo real: as mudanças climáticas, a crise migratória, a desigualdade econômica, a ameaça populista autoritária à democracia e o impacto imprevisto da inteligência artificial, para citar apenas alguns. Abrir garrafas que contenham as mais estimulantes e perspicazes mensagens deixadas por pensadores do passado não pode competir com a tarefa de pensar criticamente as crises de nosso próprio tempo e imaginar soluções para lidar com elas.

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    A entrevista foi realizada por escrito, numa troca de e-mails ao longo de junho de 2023. Revisão da tradução: Midori Martins (FFLCH/USP, Brasil). Agradeço ao Prof. Martin Jay a disponibilidade, atenção e generosidade ímpar.
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    Revista do Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt.
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    Há uma ambiguidade nos termos. As frankfurters são um popular tipo de salsicha alemã, além de designar aquele que nasceu na cidade de Frankfurt. Já a expressão French fries significa tanto “batatas fritas” como também, numa tradução literal, “franceses fritos”.
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    Mantivemos o termo original, como já convencionado na literatura em português sobre o tema.
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    Lei de Organizações Corruptas Influenciadas por Rackets.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    09 Jul 2023
  • Aceito
    07 Ago 2023
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