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Gabriel Cohn, A difícil república. Rio de Janeiro, Azougue, 2023. 226 pp.

Cohn, Gabriel. A difícil república. Rio de Janeiro: Azougue, 2023. 226

Teoria fina, mundo bruto e esticamento de horizontes

Quem ousa manter a pena leve diante de fatos tão abissais como aqueles vivenciados nos últimos anos na nossa “difícil república”? Para Gabriel Cohn, não se trata de ousadia, mas de exigência: “Quanto mais bruto o mundo, mais fina deve ser sua análise, esse é o lema” (Cohn, 2020COHN, Gabriel. (2020), “Weber, Adorno e o curso do mundo”. Sociologia & Antropologia. Rio de janeiro, 10 (2): 395-422, maio-ago., p. 402). Mesmo sob a sensação inevitável de “arrepio” durante a escrita (p. 6), sua alternativa para tomar certa distância da violência do factual a fim de viabilizar a reflexão consiste na atenção às “diferenças finas” (p. 205), por meio das quais é possível surpreender as tendências sociais ainda em estado de delineação. Nesse comportamento intelectual certamente ecoam as palavras de Theodor Adorno, para quem a teoria social deseja “nomear o que secretamente mantém a engrenagem” para, eventualmente, “suspender a pedra, sob a qual viceja o monstro” (Adorno, 2003ADORNO, Theodor. (2003), “Soziologie und empirische Forschung”. In: ADORNO, Theodor. Soziologische Schriften I. Suhrkamp, Frankfurt a. M., p. 196). Os textos abrigados em A difícil república perseguem essa tarefa com a costumeira elegância do ensaísmo de Cohn. Há beleza e fascínio no campo minado de problemas trilhado pelo autor.

Cohn não foge a conceitos espinhosos - por vezes desgastados pelo uso, mas ainda capazes de preservar sua magnitude -, como civilização ou processo civilizacional, desenvolvimento, fascismo, democracia, fetichismo, liberalismo, barbárie ou república, mas confronta-os a imagens menos sublimes, mais marginais, como a indiferença, a seleção, o agrado e o castigo, a mobilidade ou o caráter senhorial. Nisso, o que paira como um pano de fundo que une as preocupações e diferentes visadas do autor consiste na preocupação com a “construção de bases para o estudo adequado ao nosso tempo dos modos de experiência social” (p. 172).

Cada um dos nove textos que compõem o volume preserva sua independência, porém o conjunto espelha um modo muito exigente de pensar a teoria social, que combina aquela preocupação de fundo relativa aos modos de experiência social com uma erudição refinada, mas em nada pedante. As referências (Marx, Weber, Adorno, Florestan, Faoro e tantos outros) se revezam sob medida meticulosamente calculada ao longo do livro, sem o excesso próprio às exigências acadêmicas dos nossos dias. Essas reflexões teóricas são frequentemente interpeladas por vias peculiares, obedecendo ao lema da fineza da análise.

Os cinco primeiros ensaios estão reunidos sob o mote da “Civilização problemática”. Esse caráter é exposto tanto no que se refere às peculiaridades nacionais como no confronto mais geral com o capitalismo em sua versão mais contemporânea. O primeiro texto dessa seção, “Civilização, cidadania e barbárie”, traz imagens poderosas da sociabilidade brasileira, como a da esfera pública como “área de despejo”, ao mesmo tempo que não se reduz à resignação, lembrando, com Freud, que “a voz da razão é débil, mas persistente” (p. 27). Aliás, um pouco à la Freud, Cohn também costuma apoiar-se em referências bastante corriqueiras, que atravessam as análises mais refinadas como relampejos advindos diretamente do cotidiano. Assim, frases como “os inocentes pagam pelos pecadores” ajudam a compreender a estranha dialética punitiva brasileira, na qual se pune demais, “mas pune-se como contrapartida da noção de impunidade: pela via privada, à margem das instituições” (p. 28). Os três grandes motes do título são abordados ao longo do texto por meio de estratégias de aproximação e distanciamento, combinando fina interlocução teórica e exemplos cotidianos. Quem lê hoje esse texto datado de 2002 (com adendos de 1993) é obrigado a admitir que os ingredientes para o autoritarismo dos últimos anos permeiam há tempos nossa experiência social, marcada pela “indiferença estrutural”.

O segundo texto dessa primeira seção intitula-se “A sociologia e o novo padrão civilizatório” e expõe todo o poder de síntese teórica de Gabriel Cohn ao unir sob o mote da expansão e da acumulação as preocupações de Durkheim, Marx, Weber e Simmel. Mas se lá na virada para o século XX estava no horizonte dos clássicos o problema da inclusão via organização, no início do XXI impõe-se a temática da seleção via mobilidade. As dimensões sombrias da civilização contemporânea são exploradas por Cohn, sem perder de vista os “agentes do capital”, de um lado, e os “indesejáveis”, de outro - excluídos agora por sua irrelevância. Para Cohn, a face contemporânea da barbárie está calcada, não por acaso, na indiferença. Diante disso, há novamente a preocupação explícita com “as categorias de análise e as formas de intervenção social correspondentes” (p. 49) a serem construídas para esse mundo novo.

Ainda envolvendo o tema da civilização, o terceiro texto, “Desenvolvimento como processo civilizador”, retoma questões clássicas do pensamento nacional e, por isso, revisita autores como Celso Furtado, Luiz Carlos Bresser Pereira, Chico de Oliveira, Milton Santos e Florestan Fernandes. Nesses diálogos, sempre em estilo sucinto e cirúrgico, cumpre destacar a importância de dimensões não exclusivamente econômicas para o desenvolvimento - esse “deve ser visto como um processo de criação de novas relações sociais, e não como mero desdobramento da acumulação” (p. 61).

“A difícil república” é o texto que vem logo a seguir. Não por acaso, seu título foi emprestado ao livro: suas discussões condensam problemas tratados em outros textos, mas sob a óptica peculiar da sociabilidade republicana brasileira e, além disso, recorrendo a situações mais próximas temporalmente - o texto data originalmente de 2020. Cohn discute nele problemas linguísticos e teóricos relacionados à ideia de república, mas eu gostaria de sublinhar sobretudo as imagens cotidianas às quais o autor recorre - afinal, é o misto peculiar de erudição e observação cotidiana que cede fineza à sua análise e permite viabilizar a suspensão da pedra sob a qual vicejam nossos monstros. Nesse sentido, a imagem mais emblemática talvez apareça na expressão “para inglês ver”, usada sem reservas “quando na origem ela se refere à ‘limpeza’ do navio mediante o arremesso dos africanos ao mar sempre que nave inglesa comprometida com o combate à escravatura se aproximava” (p. 88). Se o que importa é reconhecer o “timbre” de heranças históricas como a escravização, o exemplo de Cohn não poderia ser mais feliz: ele escava “camada por camada os depósitos significativos que, combinados entre si, vão constituindo a fisionomia de uma sociedade” (p. 87) como a nossa. Nessa linha, há ainda referências à falta de reciprocidade de pedidos de “desculpa” ou de “por favor” de certos representantes do autoritarismo brasileiro contemporâneo. Ao analisar o emprego dessas expressões, Cohn ressalta mais uma vez a indiferença, “talvez a figura mais acabada do complexo significativo cultivado (como cultura) em nossa sociedade” (p. 100).

Fechando esse rol de textos elencados sob o mote da civilização aparece a reflexão nomeada “O fascismo latente”. Cohn delineia elementos do fascismo histórico, da Itália e Alemanha na primeira metade do século XX, para reconhecer que “se podemos falar de um forte traço parafascista entre nós ele não será encontrado diretamente nos aparelhos de Estado […] e sim difuso na sociedade” (p. 123). O uso da expressão “fascismo latente” é uma saída muito interessante para o dilema de como nomear a recente ascensão autoritária brasileira. Mas o texto não se detém aí. São igualmente pertinentes as referências feitas ao controle “soft” propiciado pelas nossas tecnologias digitais de informação e às vantagens obtidas pelo “lado mais agressivo” desse tipo de comunicação - lado esse “capaz de mobilizar os militantes de novo tipo” (p. 126).

A segunda seção do livro intitula-se “Contrapontos” e, de maneira muito sagaz, opõe dois grandes representantes do pensamento social brasileiro: Florestan Fernandes e Raymundo Faoro. O primeiro texto, intitulado “Florestan e o estilo democrático de vida”, preserva a leveza e generosidade da pena de Gabriel Cohn ao iniciar a abordagem dessa figura gigante reconhecendo sua posição social “cruzada” e, por isso, dotada de uma potencialidade rara entre nossos intelectuais clássicos. A condição “visceralmente plebeia” de Fernandes é destacada por Cohn como impulsionadora de um programa de pesquisa. De maneira despretensiosa, o ensaio de Cohn vai descortinando parte desse programa, com destaque para os papéis sociais. Nesse sentido, retoma a dificuldade, tão bem descrita por Florestan, do negro recém-libertado de “sair da própria pele” - ou melhor, de entrar nela e afirmar-se negro para “converter-se em interlocutor válido” (p. 135). Também inclui belamente a análise do jogo das crianças do Bom Retiro, no qual a “norma não é só restrição e comando. É oportunidade e promessa” (p. 137).

Sem precisar demorar-se enfadonhamente nas análises dessas grandes figuras do pensamento social brasileiro, Cohn logra apresentar uma imagem de suas obras que desnuda exatamente seu ponto de sustentação. Isso aparece, por exemplo, no texto intitulado “Faoro e a crônica da tragédia liberal”. Ao analisar o problema da rigidez da nossa “estrutura de poder” em Faoro, Cohn destaca suas conexões com o pensamento de Max Weber, mas ressalta também a “peculiar plasticidade” que apareceria analisada em Os donos do poder. Paradoxalmente, é a resiliência que permite que a “inelástica” estrutura de poder se sustente. Nesse processo, em poucas páginas, temas centrais de Faoro e também de Weber vão sendo costurados, por meio de jogos de aproximação e distanciamento. Exemplo disso é a relação dos dois autores com a ideia de destino. Enquanto em Weber o conhecimento desse enrijecimento de “ações pregressas” possibilita confrontá-lo com “lances da vontade”, em Faoro isso seria menos manifesto (daí a tragédia do título do texto).

A última seção do livro traz o título de “Temporalidades”. O primeiro texto, “Timbres e pulsações”, mobiliza diferentes autores (a exemplo de Hermínio Martins, Alfred Schutz e Karl Marx) e apresenta a metáfora que também servirá à reflexão a ser desenvolvida no próximo ensaio: o tempo como “vibração da fibra do arco que se transmite à flecha” (p. 165). Importa interpelar o “timbre” que essa composição imprime ao movimento - e não a trajetória da flecha em si. O cuidado de Cohn na construção da metáfora vai desde a imagem até a escolha meticulosa das palavras com que a desenha. Seu pensamento é rigoroso também na escolha de sua forma de transmissão, não apenas no conteúdo (aliás, talvez por isso seja possível notar o cuidado como ele lê outros pensadores, sempre atentando também aos seus estilos próprios). O que se propõe aqui é pensar também em um “modo de tempo”, em analogia com o “modo de produção”. Assim, o tempo não seria visto somente como medida, mas também “como modo de apresentação e desenvolvimento do objeto” (p. 166). Por objeto, leia-se capital, pois se trata de pensar como o modo de tempo se move no modo de produção capitalista e, por meio de vibrações ou pulsações, funde passado e futuro.

Essa reflexão só será aprimorada no próximo texto, “Marx: o tempo e o modo”. Aqui volta explicitamente a preocupação de Cohn com uma teoria adequada dos “modos de experiência social”. Para isso, ele cobra das reflexões de Marx que a postura de “pôr em movimento as relações petrificadas” (p. 171) também seja adotada na reflexão sobre o tempo. A ideia central estaria em pensar o tempo não somente como medida de duração, mas como algo que “se insinua no mais íntimo das coisas e das suas relações” (p. 176); como conteúdo que vai tomando outras formas no âmbito do modo de produção capitalista. O argumento é intricado e Cohn lança mão de diferentes estratégias para desenvolvê-lo (impossíveis de reproduzirmos aqui). Mas importa pensar, dialeticamente, em uma concepção de tempo que não é linear e que, por isso mesmo, abrange movimentos regressivos. Nisso, regressão não é tida como simples retrocesso na linha temporal, sim “como modalidades específicas de composição e entrelaçamento de ritmos temporais, como parece ocorrer quando se tem um movimento do capital no qual o uso intensivo de recursos high tech se une à reativação das formas mais cruas de superexploração e acumulação” (p. 198). Por outro lado, a concepção de modo de tempo apresentada também tem como objetivo contribuir para uma “prontidão histórica” atenta às “diferenças finas, em especial no que concerne aos ritmos temporais” (p. 205) para, quiçá, “escapar à reiteração do mesmo e indicar o ponto limite onde se vislumbra o outro” (p. 206).

Tendo aberto o livro com a frase de Kafka que afirma que “o messias só vem quando não é mais esperado” (p. 9), Cohn fecha-o com essa fascinante reflexão sobre o tempo, que tem a seguinte epígrafe de Oriki Yorubá: “[Exu] mata um pássaro ontem jogando uma pedra amanhã” (p. 171). Dialeticamente, portanto, esse livro tenta reverter aquela espera vã própria da experiência social da nossa “difícil república” e, mais amplamente, do capitalismo contemporâneo. Nisso, em meio às dificuldades ressaltadas, surgem aqui e ali “esticadores de horizontes” (p. 206), por meio dos quais se infiltram promessas.

Referências Bibliográficas

  • ADORNO, Theodor. (2003), “Soziologie und empirische Forschung”. In: ADORNO, Theodor. Soziologische Schriften I Suhrkamp, Frankfurt a. M.
  • COHN, Gabriel. (2020), “Weber, Adorno e o curso do mundo”. Sociologia & Antropologia Rio de janeiro, 10 (2): 395-422, maio-ago.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    17 Maio 2023
  • Aceito
    07 Ago 2023
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