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Dilemas éticos na hemotransfusão em Testemunhas de Jeová: uma análise jurídico-bioética

Resumos

OBJETIVO: Identificar a produção de conhecimento pelos profissionais de saúde acerca da hemotransfusão em Testemunhas de Jeová (TJ), listar as alternativas terapêuticas para a hemotransfusão nesses indivíduos e citar o ordenamento jurídico, ético e bioético no concernente a hemotransfusão em TJ. MÉTODOS: Coletaram-se dados nas bases de dados LILACS e SciELO, periódicos de Enfermagem e no http://www.google.com.br. Incluiram-se artigos enfocando hemotransfusão em TJ, e excluíram-se os que não abordassem essa temática ou estivessem repetidos. Utilizou-se a análise de conteúdo. RESULTADOS: As categorias temáticas sinalizam que as TJ acatam a auto-transfusão e se contrapõem à prática médica da hemotransfusão, mesmo que ela represente a continuidade da vida. CONCLUSÃO: Os profissionais de saúde vivenciam dilemas éticos quando precisam administrar hemotransfusão em TJ devido a liberdade religiosa não ser um valor absoluto e a aparente colisão de direitos fundamentais exigir uma tomada de decisão centrada no ordenamento jurídico e nos princípios bioéticos.

Transfusão de sangue; Religião; Bioética


OBJECTIVE: To identify knowledge production by healthcare professionals about blood transfusion in Jehovah's Witnesses (JW), listing the therapeutic alternatives for blood transfusion in these individuals and citing the legal, ethical and bioethical standards regarding blood transfusion in JWs. METHODS: Data were collected in the LILACS and SciELO databases, Nursing journals and on http://www.google.com.br. Articles focusing on blood transfusion in JWs were included, and texts that were repeated or did not approach this theme were excluded. Content analysis was used. RESULTS: The thematic categories show that the JWs accept self-transfusion and are opposed to the medical practice of blood transfusion, even if it represents the continuity of life. CONCLUSION: Healthcare professionals experience ethical dilemmas when they need to perform blood transfusion in JWs due to the fact that religious freedom is not an absolute value, and the apparent collision of fundamental rights demands that a decision be made, centered on legal standards and bioethical principles.

Blood transfusion; Religion; Bioethics


OBJETIVO: Identificar la producción de conocimiento por los profesionales de salud respecto a la transfusión sanguínea de Testigos de Jeova (TJ), listar las alternativas terapéuticas de la transfusión sanguínea en esos individuos y citar la ordenanza jurídica, ética y bioética en lo que concierne a la transfusión sanguínea en TJ. MÉTODOS: Se recolectaron datos en las bases de datos LILACS y SciELO, periódicos de Enfermería y en el http://www.google.com.br. Se incluyeron artículos enfocando la transfusión sanguínea en TJ, y se excluyeron a los que no abordaban esa temática o estaban repetidos. Se utilizó el análisis de contenido. RESULTADOS: Las categorías temáticas señalan que los TJ acatan la auto-transfusión y se contraponen a la práctica médica de la transfusión sanguínea, aunque ella represente la continuidad de la vida. CONCLUSIÓN: Los profesionales de salud vivencian dilemas éticos cuando precisan realizar transfusiones sanguíneas en TJ debido a que la libertad religiosa no es un valor absoluto y la aparente colisión de derechos fundamentales les exige una toma de decisión centrada en la ordenanza jurídica y en los principios bioéticos.

Transfusión sanguínea; Religión; Bioética


ARTIGO REVISÃO

Inacia Sátiro Xavier de FrançaI; Rosilene Santos BaptistaII; Virgínia Rosana de Sousa BritoIII

IDoutora, Professora Titular do Departamento de Enfermagem da Universidade Estadual da Paraíba UEPB - Campina Grande (PB), Brasil

IIMestre em Saúde Pública, Professora Titular do Departamento de Enfermagem da Universidade Estadual da Paraíba - UEPB - Campina Grande (PB), Brasil

IIIMestre em Saúde Coletiva, Professora Titular do Departamento de Enfermagem da Universidade Estadual da Paraíba - UEPB - Campina Grande (PB), Brasil

Autor Correspondente

RESUMO

OBJETIVO: Identificar a produção de conhecimento pelos profissionais de saúde acerca da hemotransfusão em Testemunhas de Jeová (TJ), listar as alternativas terapêuticas para a hemotransfusão nesses indivíduos e citar o ordenamento jurídico, ético e bioético no concernente a hemotransfusão em TJ.

MÉTODOS: Coletaram-se dados nas bases de dados LILACS e SciELO, periódicos de Enfermagem e no http://www.google.com.br. Incluiram-se artigos enfocando hemotransfusão em TJ, e excluíram-se os que não abordassem essa temática ou estivessem repetidos. Utilizou-se a análise de conteúdo.

RESULTADOS: As categorias temáticas sinalizam que as TJ acatam a auto-transfusão e se contrapõem à prática médica da hemotransfusão, mesmo que ela represente a continuidade da vida.

CONCLUSÃO: Os profissionais de saúde vivenciam dilemas éticos quando precisam administrar hemotransfusão em TJ devido a liberdade religiosa não ser um valor absoluto e a aparente colisão de direitos fundamentais exigir uma tomada de decisão centrada no ordenamento jurídico e nos princípios bioéticos.

Descritores: Transfusão de sangue; Religião; Bioética

RESUMEN

OBJETIVO: Identificar la producción de conocimiento por los profesionales de salud respecto a la transfusión sanguínea de Testigos de Jeova (TJ), listar las alternativas terapéuticas de la transfusión sanguínea en esos individuos y citar la ordenanza jurídica, ética y bioética en lo que concierne a la transfusión sanguínea en TJ.

MÉTODOS: Se recolectaron datos en las bases de datos LILACS y SciELO, periódicos de Enfermería y en el http://www.google.com.br. Se incluyeron artículos enfocando la transfusión sanguínea en TJ, y se excluyeron a los que no abordaban esa temática o estaban repetidos. Se utilizó el análisis de contenido.

RESULTADOS: Las categorías temáticas señalan que los TJ acatan la auto-transfusión y se contraponen a la práctica médica de la transfusión sanguínea, aunque ella represente la continuidad de la vida.

CONCLUSIÓN: Los profesionales de salud vivencian dilemas éticos cuando precisan realizar transfusiones sanguíneas en TJ debido a que la libertad religiosa no es un valor absoluto y la aparente colisión de derechos fundamentales les exige una toma de decisión centrada en la ordenanza jurídica y en los principios bioéticos.

Descriptores: Transfusión sanguínea; Religión; Bioética

INTRODUÇÃO

Um sistema de saúde é passível de questões e dilemas éticos que, se não resolvidos adequadamente, podem comprometer a atuação profissional, a qualidade do atendimento ou a autonomia dos usuários. Há que se considerar as preocupações bioeticistas no concernente a aplicação das tecnociências no campo das situações emergentes e ponderar os benefícios da evolução tecnocientífica no campo das situações persistentes, como é o caso da hemotransfusão em Testemunhas de Jeová (TJ).

No Brasil, a liberdade de credo é resguardada pela própria Constituição de 1988(1) em seu artigo 5º, inciso VI, que garante a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, e assegura o livre exercício dos cultos religiosos e garante a proteção aos locais de culto e a suas liturgias. Esse direito contribui para uma diversidade de tradições religiosas sendo que, em relação às TJ, existe a estimativa de 637.655 adeptos no país(2).

É de senso comum que as TJ não aceitam a hemotransfusão, mesmo havendo risco de vida. Essa recusa sustenta-se nos textos bíblicos Gênesis e Levítico que recomendam abstenção de carne por considerar que ela possui uma alma e que assimilar sangue no corpo, pela boca ou pelas veias, viola a lei de Deus. As TJ alegam que a alma do ser humano está no sangue e, assim, ela não pode ser passada para outra pessoa, pois do contrário, o adepto desobedecerá ao mandamento de amar a Deus com toda a alma(2). A proibição está impressa em um cartão de identificação pessoal que contém, no seu reverso, as diretrizes sobre tratamento de saúde, isenção para a equipe médica e a assinatura do adepto. Assim, quando a vida de uma TJ está em risco, e ela recusa hemotransfusão, o médico vivencia uma situação de difícil resolução, dado que deverá escolher entre respeitar a autonomia do paciente ou os dispositivos legais que regem a sua prática.

Ao ingressar nessa religião, o adepto deve aceitar, sem contestação, todos os ensinamentos que lhe são ministrados e evitar pensamentos independentes. Caso venha a transgredir, será submetido a uma audiência com uma Comissão Judicativa, formada por três anciãos ou pastores. Esse encontro acontece a portas fechadas, admitindo-se, apenas, a presença das testemunhas do caso(3).

A Comissão Judicativa poderá admoestar privadamente o transgressor; suspender os seus privilégios religiosos; censurá-lo publicamente quando da reunião semanal; ou excomungá-lo. Em caso de excomunhão, os demais membros da religião devem cortar relações pessoais com o desassociado, desaconselhando-se, inclusive, o simples cumprimento, além de recomendar o contato mínimo possível com os parentes próximos (pais, filhos ou cônjuge). O congregado que desobedecer esta norma, também estará sujeito a ser desassociado(3).

Ao considerar que a doutrina das TJ interfere na tomada de decisão ética na área da saúde no que se refere a hemotransfusão; que os enfermeiros brasileiros vêm buscando ampliar o conhecimento na área da hematologia e hemoterapia(4) e que, em nossa prática docente, os discentes manifestam dúvida sobre a conduta correta em caso de hemotransfusão não consentida pela TJ, esse estudo objetivou identificar a produção de conhecimento pelos profissionais de saúde sobre hemotransfusão em TJ, listar as alternativas terapêuticas para a hemotransfusão nesses indivíduos e citar o ordenamento jurídico, ético e bioético que concerne a esta hemotransfusão.

MÉTODOS

Trata-se de artigo de revisão realizado no período de maio a junho de 2007 acerca do objeto "hemotransfusão em Testemunhas de Jeová".

Buscaram-se dados nas bases de dados da Literatura Latino Americana em Ciências da Saúde (LILACS), Scientific Eletronic Library Online (SciELO) e nos periódicos de Enfermagem: Revista Brasileira de Enfermagem, Revista da Escola de Enfermagem da USP, Revista Latino-Americana de Enfermagem, Acta Paulista Enfermagem, Texto & Contexto Enfermagem, Revista da Rede Nordeste de Enfermagem-RENE, Revista Brasileira de Hematologia e Hemoterapia e no endereço eletrônico http://www.google.com.br, por meio dos descritores: religião, transfusão de sangue e bioética. Realizou-se um corte epistemológico no ano 2002, estendendo-se a busca até o ano 2006. Ocorreu o recorte na produção de conhecimento a partir do ano 2002 porque foi a partir desse ano que se detectou, no material acessado, os primeiros artigos versando sobre o objeto desse estudo. Foram acessados 388 artigos. Dentre esses, selecionaram-se 21 artigos. O critério para seleção foi que enfocassem a hemotransfusão em TJ. Foram excluídas as publicações que não abordassem essa temática ou que estivessem repetidas nas outras bases de dados consultadas.

As publicações selecionadas foram submetidas a análise de conteúdo: procedeu-se leitura superficial e profunda, recorte dos textos de interesse, padronização dos recortes e, em seguida, categorização temática. Dessa análise emergiram as categorias: breve histórico dos serviços de hemotransfusão no Brasil; produção de conhecimento sobre hemotransfusão em TJ; aspectos éticos, bioéticos e jurídicos que permeiam a transfusão sanguínea em TJ. A análise dos aspectos bioéticos priorizou a bioética principialista por ser o paradigma mais divulgado em nosso país e ser objeto de aplicação em pesquisas e na prática clínica.

RESULTADOS

No material acessado, apenas três artigos de enfermeiros enfocavam a hemotransfusão em TJ. A produção de conhecimento acerca desse procedimento se destaca nos periódicos médicos e, mais especificamente, no âmbito dos artigos publicados por cirurgiões que objetivam a divulgação da realização de intervenções cirúrgicas isentas de dilema ético permeando a relação médico-paciente-procedimento.

Breve histórico dos serviços de hemotransfusão no Brasil

Até os idos de 1900, a hemotransfusão era uma atividade empírica. Após essa data, Karl Landsteiner descobriu os grupos sangüíneos o que contribuiu para que os procedimentos envolvendo diagnóstico e tratamento hemoterápico ganhassem espaço como uma prática científica(4).

No Brasil, os primeiros serviços organizados de hemotransfusão surgiram em 1920, sendo a prática transfusional de cunho científico iniciada por cirurgiões do Rio de Janeiro. Em 1950, o I Congresso Paulista de Hemoterapia instituiu as bases para a fundação da Sociedade Brasileira de Hematologia e Hemoterapia (SBHH). Em 1965, o Ministério da Saúde (MS) criou a Comissão Nacional de Hemoterapia que se encarregou de criar os hemocentros. Na década 80 do século passado, o MS instituiu a Política Nacional do Sangue(5).

Para além da campanha desenvolvida pela SBHH incentivando a doação de sangue, e da Constituição de 1988 deliberar sobre a gratuidade da hemotransfusão, outros fatores contribuíram para que, na atualidade, a hemoterapia brasileira adote novos conceitos e cuidados. Dentre esses fatores destacam-se: a incidência da AIDS, os fatores econômicos, os estudos acerca da genética molecular e da biotecnologia, o conceito de Hemoterapia Clínica, o emergir de novas terapêuticas celulares, a renovação e o crescimento de novos equipamentos de alta tecnologia, o crescimento do número de serviços de Hemoterapia e Bancos de Sangue e o expressivo progresso científico da Hemoterapia(5).

Produção de conhecimento sobre hemotransfusão em Testemunha de Jeová

A religião Testemunhas de Jeová, fundada nos Estados Unidos por Charles Taze Russel, tem a sua doutrina contida nas obras: "Estudos das Escrituras" e "Tradução do Novo Mundo das Escrituras". Os seus adeptos estão espalhados em todo o mundo, com predominância na América do Norte, Inglaterra, México, África, Japão, Bolívia, Brasil e Chile(2). As TJ recusam, terminantemente, receber a hemotransfusão total, de elementos figurados isolados (hemácias, leucócitos ou plaquetas), ou mesmo de plasma sangüíneo, ainda que autólogas com sangue previamente armazenado(6). Ou seja: esse religioso não pode estocar o seu próprio sangue para, dias depois, submeter-se à cirurgia eletiva.

As TJ defendem a tese que ao invés da hemotransfusão pode-se utilizar eritropoietina humana recombinante, Interleucina-11 recombinante, ácido aminocapróico e tranexâmico, adesivos teciduais, expansores do volume do plasma, colóides e instrumentos hemostáticos como o eletrocautério, lasers ou o coagulador com raio de argônio. Informam a existência de 1.000 Comissões de Ligação Hospitalar (CLH), situadas em 230 paises e territórios, com mais de 50.000 adeptos médicos disponíveis para cuidar desses pacientes. E que, em todo o mundo, há 100 Centros de Tratamento Médico e Cirúrgico Sem Sangue(2).

No Brasil, existem três máquinas que procedem a recuperação intra-operatória de sangue. O acesso às instituições que possuem esse recurso se dá através do contato com as CLH(7). Um relato da literatura trata do uso de tampão sangüíneo peridural em pacientes TJ, utilizando-se um sistema fechado que permite a colheita do sangue e a injeção no espaço peridural, sem perda da continuidade e após a devida informação ao paciente e obtenção do seu consentimento(8).

Os cirurgiões divulgam duas técnicas hemoterápicas que podem ser utilizadas na revascularização do miocárdio, nas trocas valvulares, na correção cirúrgica do aneurisma da aorta, na implantação de prótese total de quadril e joelho e no transplante hepático. E são recomendadas para pacientes candidatos a cirurgia, independente da crença religiosa professada pelos pacientes(6). Uma dessas técnicas é a hemodiluição normovolêmica aguda(HNA) que consiste em manter um nível mínimo de hemoglobina no peri-operatório para reduzir as transfusões sangüíneas. Nesse procedimento, o sangue é diluído em solução cristalóide, colóide ou ambos, e não pode ser separado do paciente, sendo reinfundido durante ou ao término da cirurgia. Esse procedimento é assim descrito:

(...) consiste em retirar um volume de sangue variável na dependência do hematócrito do paciente minutos antes do ato operatório. Esse sangue fica acondicionado com heparina em bolsas apropriadas e conectadas com o sistema venoso do paciente. Segue-se por outra via de acesso a hiperidratação com soluções salinas objetivando hemodiluir seu sangue. Assim, o sangue perdido no ato operatório terá proporcionalmente uma menor concentração de glóbulos vermelhos. Ao término da cirurgia, o sangue total previamente retirado é rapidamente reinfundido(7).

A outra técnica descrita pelos autores é a recuperação intra-operatória de sangue que

(...) consiste em aspirar através de conduto heparinizado o sangue da cavidade torácica, abdominal ou pélvica que é passado por uma máquina específica que faz as seguintes funções: 1 - filtragem: separa partículas ou microagregados maiores de 40 micras do conteúdo aspirado que são desprezadas. Também elimina microêmbolos gordurosos do sangue aspirado, sobretudo durante cirurgias ortopédicas; 2- centrifugação: processo pelo qual despreza-se o sobrenadante que inclui plasma, parte dos leucócitos e plaquetas; heparina e fatores de coagulação; 3- lavagem de hemácias: com soro fisiológico; 4- armazenamento: em sistema conectado na veia do paciente e pronto para reinfusão, assim que necessário, o que deverá ser feito em até 4 horas(7).

Aspectos jurídicos, éticos e bioéticos da hemotransfusão em TJ

No material estudado detectaram-se situações em que a prática da hemotransfusão foi alvo de processo impetrado por TJ. A decisão jurídica a favor da hemotransfusão foi da seguinte ordem:

(...) Desta forma, resulta incontroverso que tanto o profissional da medicina, que deve cumprir o seu juramento hipocrático no sentido de salvar vidas a todo custo, como o profissional do direito, que julga atento ao que disciplina a lei, deve o paciente ser autorizado a receber a transfusão, em seu próprio benefício, ou, em última análise, para salvar sua vida(9).

Em um outro processo, a decisão judicial veiculada na mídia foi a seguinte:

Malgrado haja previsão constitucional acerca do direito à crença, insta salientar que nenhum direito é absoluto, porquanto encontra limites nos demais direitos igualmente consagrados na Constituição Federal. Assim, havendo conflito entre dois ou mais direitos ou garantias fundamentais, deve ser utilizado o princípio da harmonização. No presente caso, resta evidente o conflito acima referido, haja vista que a CF também garante o direito à vida(10).

A hemotransfusão em TJ suscita uma aparente colisão de direitos fundamentais, a exemplo do direito à vida, a dignidade da pessoa humana, à liberdade religiosa e sua livre manifestação, que são assegurados pela Constituição da República brasileira. Como esses direitos fundamentais são igualmente relevantes, a sua concretização depende das possibilidades fáticas e jurídicas(11).

A Carta Magna brasileira preceitua que a vida é o bem maior de todo homem e, no Código Penal, Art 135, considera-se crime por omissão o ato de deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo, sem risco pessoal, a qualquer pessoa em grave e iminente perigo. O enunciado desse artigo é corroborado por aquele do artigo 146, parágrafo 3º, que exime o médico de culpa por intervenção médica ou cirúrgica sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, em caso de iminente perigo de vida(12).

No caso específico dos profissionais de Enfermagem, a Resolução COFE n.º 311/2007(13) recomenda respeitar, reconhecer e realizar ações que assegurem o direito da pessoa, ou de seu representante legal, de decidir sobre sua saúde, tratamento, conforto e bem estar, isentando-se de discriminação de qualquer natureza. E os proíbe de implementar ou participar da assistência à saúde sem o consentimento da pessoa ou de seu representante legal, exceto em iminente risco de morte. Dessa forma, qualquer intervenção preventiva, diagnóstica ou terapêutica pretendida precisa apoiar-se nos princípios bioéticos beneficência, maleficência, não-maleficência e autonomia. E só pode realizar-se com o consentimento livre e esclarecido do indivíduo envolvido, baseado em informações adequadas.

DISCUSSÃO

A necessidade de hemotransfusão em TJ coloca a equipe de saúde diante de um dilema ético porque esse procedimento envolve a colisão de dois direitos fundamentais: o direito indisponível à vida e o direito de recusa por convicções religiosas, ambos protegidos igualmente pela Constituição brasileira. O dilema ético se instaura naquelas situações de emergência em que o paciente corre risco de vida e não há como transferí-lo para uma das CLH, ou inexiste tempo hábil para se proceder a uma intervenção judicial, em face de recusa da TJ ou do seu responsável, em aceitar a hemotransfusão.

Para evitar o confronto com o paciente e os familiares, os cirurgiões buscam respeitar o dever prima facie de preservar a vida, a autonomia de vontade e a liberdade religiosa usando hemoterapias alternativas, a exemplo da HNA e da transfusão autóloga, realizadas no peri-operatório, utilizando o próprio sangue do paciente, por meio de um sistema fechado e conectado à veia da TJ(6). Contudo, no Brasil, essa é uma prática restrita a, apenas, três instituições.

Na impossibilidade da hemoterapia alternativa, cabe ao médico reger-se pelo ordenamento jurídico e pela Resolução n.º 1021/81, do Conselho Federal de Medicina e o Código de Ética Médica, em seus artigos 56 e 57, e proceder a hemotransfusão para preservar a vida, apesar da recusa da TJ(14). Quando o procedimento for eletivo, com necessidade comprovada de hemotransfusão, compete ao hospital requisitar decisão jurídica para proceder a hemoterapia, caso ela seja recusada.

A hemotransfusão é um tratamento clínico cuja execução terapêutica, em princípio, compete aos médicos e aos profissionais de laboratório. Entretanto, o enfermeiro, como integrante da equipe de saúde, pode ter que participar deste procedimento, pois o Conselho Federal de Enfermagem, aprovou normas técnicas dos procedimentos a serem realizados pelos profissionais de Enfermagem na Hemoterapia e Transplante de Medula Óssea.

A hemotransfusão em TJ acarreta aparente colisão de direitos fundamentais, a exemplo do direito de liberdade religiosa e sua livre manifestação e de autonomia individual que, nesse caso, se contrapõem ao princípio da dignidade humana como valor preponderante, e a outros bens jurídicos protegidos constitucionalmente. Outrossim, a situação envolve dois males morais? a execução da hemotransfusão causará constrangimento e um mal moral a TJ, devido às regras de sua doutrina. A não-execução acarretará omissão do profissional expondo-o a julgamento ético-legal. Assim, a obrigação ético-jurídica para solucionar o conflito entre esses dois males morais é a de rejeitar os dois, pois, o mal não pode ser objeto de escolha(15).

A dignidade humana é fundamento do Estado de Direito Democrático e Social brasileiro e elemento balizador, caso ocorra ingerência em outros direitos fundamentais. E, tanto no campo jurídico como no bioético, tem significado peculiar que se traduz no caráter inadmissível de toda a forma de instrumentalização do ser humano no campo da biologia e da medicina(14). Assim, para a tomada de decisão ética, a aparente colisão de direitos fundamentais do caso concreto será solucionada, protegendo-se o direito à vida e, em projeção, a dignidade da pessoa humana, dado que esses valores primordiais não podem ser expostos a perigo direto e iminente.

Os profissionais de saúde primam por solucionar a colisão de direitos fundamentais, respeitando também os princípios bioéticos: beneficência - assegurando o bem-estar da TJ, maximizando os possíveis benefícios das intervenções necessárias; não-maleficência - primando por não causar dano ao paciente. Não havendo iminente risco de vida, respeitam o direito a autonomia da TJ, inclusive o de autodeterminação. Esses princípios são a base do documento Consentimento Livre e Esclarecido, por meio do qual as TJ, ou seus responsáveis, recebem as informações e esclarecimentos necessários sobre a sua situação clínica, de forma clara e objetiva, enfatizando os riscos e os benefícios da intervenção médica a ser realizada, bem como das intervenções alternativas possíveis(11). Existindo ou não risco de vida, esse documento deve ser utilizado em benefício da TJ e do próprio profissional.

E, para além da proteção aos direitos fundamentais da TJ, os profissionais contam com princípios bioéticos que ajudam na tomada de decisão, quais sejam: o princípio da defesa da vida como referência fundamental; o princípio da liberdade e da responsabilidade que justificam a não adesão a recusa da TJ, porque acatar tal atitude acarretaria dano a consciência moral do profissional; e o princípio terapêutico que autoriza o profissional a intervir sobre a vida física da pessoa, desde que haja avaliação prévia dos riscos e benefícios(15).

Dessa forma, ao se embasarem no ordenamento jurídico e nos princípios bioéticos para solucionar um conflito de direitos fundamentais, os profissionais compartilham com a TJ a responsabilidade e a análise do melhor tratamento, não só do ponto de vista físico, mas levando em consideração a sua estrutura axiológica(9).

CONCLUSÃO

As TJ se contrapõem à prática médica da hemotransfusão, mesmo que ela represente a continuidade da vida, pois aceitar esse procedimento, além do confronto às suas convicções religiosas, o exporá às conseqüências advindas do código religioso, acarretando-lhe incalculáveis e irreparáveis danos morais, religiosos e mesmo existenciais.

Os dilemas éticos que envolvem a assistência às TJ podem ser resolvidos por meio de hemoterapias alternativas ou transferência dessas pessoas para uma CLH. Na impossibilidade desses procedimentos, instaura-se uma aparente colisão entre o direito fundamental à vida e o direito fundamental à liberdade de consciência e de crença que obrigará o profissional a decidir pela prevalência da dignidade da pessoa humana como limite e fundamento do exercício dos demais direitos.

Quando a hemotransfusão é impreterível e inexiste decisão consensual entre médico-paciente, a instituição pedirá autorização judicial para proceder à transfusão. Além do ordenamento jurídico, a tomada de decisão é legitimada pelos princípios bioéticos inscritos no código de ética do profissional, de modo que a intervenção não configura delito de constrangimento ilegal. Quando não há iminente risco de vida e a TJ é capaz de manifestar livremente a sua vontade de não-transfusão, deve-se respeitar sua autonomia da vontade e da crença religiosa. E havendo ou não, risco de vida é preciso esclarecer os riscos e os benefícios da hemoterapia e utilizar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, que deverá ser assinado pela TJ ou seu representante.

Conclui-se que o ordenamento jurídico não atribui valor absoluto à liberdade religiosa, e na iminência de risco de vida, a intervenção médica, mesmo sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, não se constitui crime, razão porque, apesar dos riscos para os profissionais, não há história de condenação no país.

Outrossim, a hemotransfusão em TJ requer uma discussão que envolva cuidados assistenciais condizentes com vários tipos de tecnologias, a exemplo do uso de instrumentos e equipamentos (tecnologia dura), de conhecimentos estruturados (tecnologia leve-dura), e do estabelecimento de relações profissional-usuários (tecnologias leves).

O estudo ora realizado apresenta lacunas no concernente ao enfoque das tecnologias leves, dado que não se detectou, no material acessado, construtos enfocando temas como humanização, acolhimento, vínculo, dentre outros, relacionados com a hemotransfusão em TJ, de modo que se sugere novos estudos enfocando essa temática.

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  • Dilemas éticos na hemotransfusão em Testemunhas de Jeová: uma análise jurídico-bioética

    Dilemas éticos en la transfusión sanguínea de Testigos de Jeová: un análisis jurídico-bioético
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Out 2008
    • Data do Fascículo
      2008

    Histórico

    • Aceito
      05 Jun 2008
    • Recebido
      23 Jan 2008
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