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Autonomia em cuidados paliativos: conceitos e percepções de uma equipe de saúde

Autonomía en cuidados paliativos: conceptos y percepciones de un equipo de salud

Resumos

OBJETIVOS: Analisar o conceito que a equipe de saúde inserida no contexto de cuidados paliativos tem da autonomia do doente sem possibilidades de cura e identificar qual é a atitude desses profissionais diante da manifestação dessa autonomia. MÉTODOS: Trata-se de um estudo exploratório descritivo com abordagem qualitativa. Foram entrevistados 22 membros de uma equipe de saúde de cuidados paliativos. Os dados foram analisados segundo a metodologia de análise de conteúdo. RESULTADOS: Foram obtidas três categorias distintas para cada grupo de profissionais (Grupos I e II). Elas evidenciaram a compreensão da autonomia dos doentes sem possibilidades de cura no contexto dos cuidados paliativos, as reações desses profissionais no cotidiano assistencial e suas limitações nessa relação (autonomia vs cuidados paliativos). CONCLUSÃO: A autonomia é um elemento essencial à filosofia dos cuidados paliativos e capaz de conferir sustentabilidade ética ao projeto terapêutico desses doentes.

Cuidados paliativos; Equipe multiprofissional; Comunicação; Bioética


OBJETIVOS: Analizar el concepto que el equipo de salud que actúa en el contexto de cuidados paliativos tiene de la autonomía del enfermo sin posibilidades de cura e identificar cual es la actitud de esos profesionales delante de la manifestación de esa autonomía. MÉTODOS: Se trata de un estudio exploratorio descriptivo con abordaje cualitativo. Fueron entrevistados 22 miembros de un equipo de salud de cuidados paliativos. Los datos fueron analizados según la metodología de análisis de contenido. RESULTADOS: Fueron obtenidas tres categorías distintas para cada grupo de profesionales (Grupos I y II); ellas evidenciaron la comprensión de la autonomía de los enfermos sin posibilidades de cura en el contexto de los cuidados paliativos, las reacciones de esos profesionales en lo cotidiano asistencial, y, las limitaciones en esa relación (autonomía vs cuidados paliativos) CONCLUSIÓN: La autonomía es un elemento esencial en la filosofía del cuidado paliativo, capaz de conferir sustentabilidad ética al proyecto terapéutico de esos enfermos.

Cuidados paliativos; Equipo multiprofesional; Comunicación; Bioética


OBJECTIVES: To analyze the concept that a health teamwork, acting on the field of palliative care, has about the terminal patient's autonomy and to identify the attitude of professionals facing the manifestation of that autonomy. METHODS: Exploratory and descriptive study with a qualitative approach. 22 members of a palliative care team were interviewed. The data was analyzed using the content analysis methodology. RESULTS: Three different categories were obtained from each professional group (Groups I and II): understanding the autonomy of terminal patients in a palliative care context, reactions of professionals on the daily assistance services, and, limitations of the relationship (autonomy vs. palliative care). CONCLUSION: Autonomy is an essential component in the palliative care philosophy; it must be able of creating ethical sustainability, applicable to therapeutic projects of terminal patients.

Palliative care; Multiprofessional team; Communication; Bio-ethics


ARTIGO ORIGINAL

Autonomia em cuidados paliativos: conceitos e percepções de uma equipe de saúde* * Estudo desenvolvido na Enfermaria de Cuidados Paliativos do Hospital do Servidor Público Estadual "Francisco Morato de Oliveira" HSPE-FMO - São Paulo (SP), Brasil.

Autonomía en cuidados paliativos: conceptos y percepciones de un equipo de salud

Aline Cristine de OliveiraI; Maria Júlia Paes da SilvaII

IEnfermeira do Grupo de Pesquisa e Comunicação em Saúde da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo - USP - São Paulo (SP), Brasil

IIProfessora Titular do Departamento de Enfermagem Médico-Cirúrgica da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo - USP - São Paulo (SP), Brasil

Autor Correspondente Autor Correspondente: Aline Cristine de Oliveira R. João Alfredo da Silveira, 180 São Paulo, SP, Brasil - CEP 04775190 E-mail: oliveiraeeusp@hotmail.com

RESUMO

OBJETIVOS: Analisar o conceito que a equipe de saúde inserida no contexto de cuidados paliativos tem da autonomia do doente sem possibilidades de cura e identificar qual é a atitude desses profissionais diante da manifestação dessa autonomia.

MÉTODOS: Trata-se de um estudo exploratório descritivo com abordagem qualitativa. Foram entrevistados 22 membros de uma equipe de saúde de cuidados paliativos. Os dados foram analisados segundo a metodologia de análise de conteúdo.

RESULTADOS: Foram obtidas três categorias distintas para cada grupo de profissionais (Grupos I e II). Elas evidenciaram a compreensão da autonomia dos doentes sem possibilidades de cura no contexto dos cuidados paliativos, as reações desses profissionais no cotidiano assistencial e suas limitações nessa relação (autonomia vs cuidados paliativos).

CONCLUSÃO: A autonomia é um elemento essencial à filosofia dos cuidados paliativos e capaz de conferir sustentabilidade ética ao projeto terapêutico desses doentes.

Dêscritores: Cuidados paliativos; Equipe multiprofissional; Comunicação; Bioética

RESUMEN

OBJETIVOS: Analizar el concepto que el equipo de salud que actúa en el contexto de cuidados paliativos tiene de la autonomía del enfermo sin posibilidades de cura e identificar cual es la actitud de esos profesionales delante de la manifestación de esa autonomía.

MÉTODOS: Se trata de un estudio exploratorio descriptivo con abordaje cualitativo. Fueron entrevistados 22 miembros de un equipo de salud de cuidados paliativos. Los datos fueron analizados según la metodología de análisis de contenido.

RESULTADOS: Fueron obtenidas tres categorías distintas para cada grupo de profesionales (Grupos I y II); ellas evidenciaron la comprensión de la autonomía de los enfermos sin posibilidades de cura en el contexto de los cuidados paliativos, las reacciones de esos profesionales en lo cotidiano asistencial, y, las limitaciones en esa relación (autonomía vs cuidados paliativos)

CONCLUSIÓN: La autonomía es un elemento esencial en la filosofía del cuidado paliativo, capaz de conferir sustentabilidad ética al proyecto terapéutico de esos enfermos.

Descriptores: Cuidados paliativos; Equipo multiprofesional; Comunicación; Bioética

INTRODUÇÃO

Os cuidados paliativos, enquanto filosofia assistencial, destinam-se a assistir os doentes sem possibilidade de cura e buscam consolidar um modelo de cuidado que considera o processo de morrer como inerente à vida. Essa filosofia fundamenta-se no desenvolvimento de projetos terapêuticos capazes de oferecer a esse doente um cuidado orientado para a racionalidade terapêutica, aumento da qualidade de vida, minimização de sintomas, reconhecimento e respeito aos direitos individuais. É importante mencionar que a família é um elemento que pode potencializar a construção e consolidação desses projetos e que também deve ser assistida(1-6).

Em 2002, a Organização Mundial da Saúde apresentou sua definição mais recente de cuidados paliativos e os consideram como:

"Uma abordagem que promove a qualidade de vida, dos pacientes e seus familiares diante de doenças que ameaçam a continuidade da vida, através da prevenção e alívio do sofrimento. Requer a identificação precoce, avaliação e tratamento impecável da dor e de outros problemas de ordem física, psicossocial e espiritual"(7).

Tendo em vista esses aspectos pode-se afirmar que os cuidados paliativos dependem de uma abordagem multidisciplinar para produzir uma assistência harmônica e convergente ao individuo sem possibilidades de cura e à sua família. Sendo assim, fica explícito que o foco da atenção deixa de ser a doença a ser curada e se volta ao indivíduo que é visualizado como um ser biográfico, complexo em suas dimensões físicas, psíquicas e espirituais, ativo e com direito a informação e a autonomia plena para suas decisões a respeito de seu tratamento, além da atenção individualizada a sua família e a busca da excelência no controle dos sintomas(8).

A estrutura desse modelo assistencial estabelece intima relação com os princípios bioéticos considerados na vertente principialista: a beneficência, não maleficência, justiça e autonomia. Eles são capazes de sustentar a oposição a distanásia ou obstinação terapêutica, inerente a prática médica moderna(9-11).

Diante dessa proposta de cuidados que procura resgatar valores éticos e humanos, a autonomia individual se destaca como um dos valores centrais na busca de fundamentação e excelência dos cuidados paliativos.

Na maioria das sociedades ocidentais, a autonomia é um valor central que dá expressão a um conjunto básico de ideais jurídicos e políticos que são reconhecidos pelo nome de liberalismo. No que se refere a esfera político-jurídica é traduzida como independência, e implícito nesse conceito estão os significados de auto-afirmação, reflexão crítica, conhecimento do próprio interesse, qualidades estas relacionadas, indeterminadamente, com conceitos de ações, crenças e razões para agir. Sob essa perspectiva, os indivíduos estão livres das interferências externas ou sociais e o Estado posiciona-se de forma neutra diante desse direito. Nesse contexto, o indivíduo não tem consideradas suas limitações sociais, econômicas e/ou físicas, e o Estado, se protege em sua neutralidade e na postura de não-interferência(10).

O domínio político-jurídico não é coextensivo com a vida humana e certamente não esgota o domínio da ética, uma vez que diz respeito ao relacionamento entre o indivíduo e o Estado desconsiderando as interfaces com os relacionamentos sociais(12).

A autonomia é um fenômeno muito mais complexo quando abordado cotidianamente, constrói-se em meio a relações sociais e humanas, que não dispensam considerações relativas ao desenvolvimento humano e aos relacionamentos, aos quais a autonomia, efetivamente, se opera, nesse caso específico, no contexto dos cuidados paliativos(11-12).

Fundamentados nas bases conceituais e políticas dos cuidados paliativos apresentadas pela Organização Mundial da Saúde em 2002, na perspectiva do Beuchamp & Childress como regente de princípios essenciais da bioética e Agich que considera a autonomia um conceito multidimensional e relacionado ao interstício da vida cotidiana, capaz de ser validado na fragilidade e no comprometimento através da reabilitação do indivíduo em sua autonomia residual, pela ação de cuidadores treinados e capazes de reconhecê-la e maximizá-la. Sob essas perspectivas este estudo procurou identificar, na equipe de saúde envolvida com a filosofia dos cuidados paliativos, a relação com a autonomia dos doentes sem possibilidades de cura(7,12).

OBJETIVOS

Analisar o conceito que a equipe de saúde inserida no contexto de cuidados paliativos tem da autonomia do doente sem possibilidades de cura, e identificar qual é a atitude desses profissionais diante da manifestação dessa autonomia.

MÉTODOS

O presente estudo é do tipo exploratório descritivo e foram utilizados recursos da abordagem qualitativa. A investigação foi desenvolvida em um hospital público do Município de São Paulo, em uma enfermaria de cuidados paliativos, pioneira no Brasil.

Após aprovação do projeto de pesquisa pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Instituição (Processo CEP/IAMSPE nº 0109/06) e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido pelos sujeitos de pesquisa, a coleta de dados ocorreu por meio de uma entrevista individual semi-estruturada, previamente agendada, que foi gravada e posteriormente transcrita.

A abordagem dos sujeitos, e consequente determinação da amostra, se fez através de um convite formal por parte da pesquisadora a toda equipe de saúde da enfermaria de cuidados paliativos. Foram excluídos da possibilidade de integrar o grupo de sujeitos, aqueles que recusaram fazê-lo, os funcionários que estavam afastados pelo eventual cumprimento de licenças, férias, entre outros. A partir dessa pré-seleção, o processo metodológico foi determinante na delimitação dos sujeitos de pesquisa até que os discursos que eram obtidos através de suas entrevistas demonstrassem saturação de conteúdo, ou seja, até que as informações coletadas mostrassem repetições de conteúdo.

Os dados foram coletados a partir das seguintes questões norteadoras:

O que é, para você, um paciente ter autonomia?

Você acha possível um doente sem possibilidades de cura ter autonomia? Se sim, como? Dê um ou mais exemplos.

Como você acha que os profissionais de saúde reagem diante das manifestações de autonomia do doente sem possibilidades de cura?

Os dados coletados foram analisados segundo a metodologia de análise de conteúdo, que propõe um conjunto de técnicas de análise da comunicação verbal, aplicadas aos discursos, para obter indicadores, qualitativos ou não, que permitam a descrição do conteúdo das mensagens dos entrevistados. O princípio desta metodologia consiste em desmontar as estruturas e elementos do conteúdo, analisados por meio de estudo minucioso das palavras e frases que o compõe, procurando seu sentido e intenções, reconhecendo, comparando, avaliando e selecionando-os para esclarecer suas diferentes características e extrair sua significação(13).

RESULTADOS

Os indivíduos entrevistados integram uma equipe de saúde, que desenvolve um trabalho pioneiro no Brasil, e a assistência por eles prestada caracteriza-se por lidar cotidianamente com o processo de morrer humano, sob a ótica do paradigma do cuidado, característica inerente a filosofia assistencial dessa enfermaria.

Dos profissionais entrevistados três são enfermeiros, 12 auxiliares enfermagem, uma técnica de enfermagem, quatro médicos, um psicólogo, um capelão, totalizando 22 profissionais. A idade dessa população variou de 25 a 56 anos e a média de idade foi de 37,5 anos, enquanto o tempo de exercício profissional variou de 2 a 30 anos e o tempo médio foi de 10,1 anos.

A equipe de saúde, objeto deste trabalho, não se mostrou homogênea em seu discurso, embora esteja formada e desenvolvendo atividades assistenciais há pelo menos dois anos. Assim, não foi possível categorizar os dados obtidos desconsiderando suas particularidades. Foi necessário subdividir a população estudada em dois grupos, Grupo I [Enfermeiros (ENF), técnico de enfermagem (TE), auxiliares de enfermagem (AE) e capelão (CA)] e Grupo II [Médicos (MED) e psicólogo (PSI)].

Os dados obtidos com os Grupos I e II foram categorizados e originaram três categorias distintas cada um.

Grupo I

Os discursos do Grupo I puderam ser agrupados e permitiram a caracterização da autonomia do doente sem possibilidades de cura, o estabelecimento de critérios para o reconhecimento desse doente como ser autônomo, assim como a percepção das reações da equipe de saúde frente ao exercício da autonomia desse indivíduo.

Categoria Ia: Caracterizando o que é o paciente fora de possibilidade terapêutica de cura ter autonomia.

Nesta categoria, os profissionais caracterizaram a autonomia do indivíduo fora de possibilidades terapêuticas de cura como algo que perpassa a capacidade de escolha individual sobre sua terapêutica, seja ela de cura ou não.

Esta capacidade de escolha vem, muitas vezes, agregada a termos como liberdade, razão, domínio próprio, que acabam representando pressupostos a este ato ou consequências dele, ou seja, "sou livre" logo, sou capaz de escolher, ou ainda, tenho razão e esta legitima minha capacidade de escolha; o mesmo ocorre com o termo domínio próprio. Esse processo agrega ao termo autonomia os pressupostos de inflexibilidade e soberania, assim a autonomia exercida ou manifesta se revela suprema e inquestionável.

AE06(...) é ele ter razão em tudo (...)

TE01 (...) ele tem autonomia, ele tem vontade própria de fazer o que ele quer na hora que ele quer (...)

ENF03 (...) Ter autonomia é ele ter conhecimento de sua necessidade e saber controlar, ver a sua dificuldade, falar da sua dificuldade, falar o que está acontecendo com ele, onde está o problema que ele veio nos trazer e em que nós podemos ajudá-lo, saber passar para a equipe de enfermagem, para a equipe médica (...) uma autonomia, ter o domínio próprio.

Categoria Ib: Identificando os critérios para que o doente em fase final de vida seja reconhecido como ser autônomo.

Os discursos revelaram que o nível de consciência do doente e as informações que ele dispõe são indispensáveis ao exercício de sua autonomia. A equipe de saúde também apontou que o reconhecimento do indivíduo como ser autônomo depende, ainda, de que ele manifeste o desejo e a vontade para exercitar sua autonomia, no sentido de administrar seu processo de vida e morte.

ENF01 (...) desde que o paciente, mesmo fora de possibilidade terapêutica de cura, ele tenha consciência, inclusive de seu problema, ele tem o poder de decidir sua vida, sobre seu tratamento, o que é melhor ou não para ele (...)

AE12 (...) a partir do momento que ele tenha o desejo de ter essa autonomia (...)

Categoria Ic: Reconhecendo a reação da equipe de saúde frente à manifestação de autonomia dos doentes em serviços de cuidados paliativos e de outras especialidades.

As reações frente à autonomia dos doentes sem possibilidades de cura se manifestaram de duas formas: a primeira se deu a partir do contraponto entre as equipes de saúde que seguem a filosofia de cuidados paliativos e daquelas que não o fazem. E a segunda, se restringiu a reconhecer a reação da equipe de saúde envolvida exclusivamente com os cuidados paliativos.

De acordo com a primeira vertente, a filosofia de cuidados paliativos funciona como um "divisor de águas" na produção de qualidade em serviços de saúde, na medida em que suas bases fundamentam e resgatam em sua proposta, a essência contida no paradigma do cuidado.

AE01 (...) nos outros lugares tem de ser "naquela hora" ele não tem direito de escolher; eles perdem totalmente a identidade e aqui não, ele tem direito a escolher (...)

AE06 (...) desde que fundou os paliativos a gente já vem com essa idéia de que o paciente decide(...) fora daqui eu acho que a enfermagem ainda tem um pouco de restrição, nesse caso eu acho que elas não aceitam (...) você já começa desde os médicos, até o último fica ali, massacrando, entubando, mesmo sabendo que a possibilidade é remota, então a enfermagem é difícil aceitar(...)

AE08 (...) eu acho que de momento, isso assusta um pouco, principalmente os médicos que não estão acostumados do paciente pedir o que quer, aqui na nossa equipe de CP, os médicos estão muito bem preparados, esse é o trabalho deles, então eles conseguem respeitar a autonomia e os direitos dos pacientes (...)

Na segunda vertente, os discursos não fazem essa diferenciação, reconhecem que a filosofia de cuidados paliativos representa algo novo e não totalmente consolidado, o que justifica este momento como um processo de transição de paradigmas e assimilação de uma nova filosofia de cuidado.

AE09(...) de início a gente fica meio(...)é uma situação meio complicada no início, mas depois a gente aprende a lidar com isso(...)

AE12 (...) às vezes é mais cômodo para nós, da enfermagem, não deixarmos ele ter essa autonomia, deixar ele na cama, dar um banho de leito (...) a gente se esforça porque tem alguns que querem tomar banho no chuveiro, de aspersão, mas eles estão debilitados, tem colegas que não querem. "Ai, minha coluna!" e isso, aquilo e aquilo outro (...)

ENF01 (...) a classe médica interpreta de uma maneira melhor; a enfermagem, ela trabalha assim "mais ou menos dança" conforme a música (...) não é muito questionadora, pelo menos a equipe de auxiliares de enfermagem, elas não questionam muito esse tipo de coisa, mesmo porque muitas dessas informações não chegam a elas. Às vezes, o paciente comunica uma decisão dele à equipe médica, eles tomam uma conduta e a gente simplesmente executa (...)

Grupo II

Os discursos do Grupo II puderam ser agrupados e revelaram conceitos de autonomia, as possibilidades que esse doente tem de manifestar sua autonomia e os princípios que norteiam as ações das equipes de saúde de cuidados paliativos ou não diante da autonomia desses pacientes.

Categoria IIa: Conceituando a autonomia do doente fora de possibilidades terapêuticas de cura

Esse grupo conceitua autonomia como um princípio básico de estruturação social e que, consequentemente, faz parte da capacidade do indivíduo atuar em sociedade, e com ele esse indivíduo é capaz de agir em conformidade com aquilo que acredita e com o que espera de si e dos outros. Na doença, a autonomia, desse indivíduo vai ao encontro das escolhas que dizem respeito às decisões e condutas relativas ao seu tratamento e ao processo de reestruturação de seu modus vivendi.

Fica evidente, nos discursos, que a doença desencadeia um processo de perdas e limitações que só poderão ser superadas, minimizadas e reorganizadas se o exercício da autonomia desse indivíduo for preservado.

MED02(...) É um princípio básico de estruturação social, inclusive quer dizer, para que nós possamos conviver, eu e você, em sociedade, é obrigatório que eu respeite o seu direito sobre a sua própria conduta (...). Sobre mim, quem é que mais sabe? Quem é que mais conhece? E quem é que tem que em última instância tomar as decisões a respeito de si próprio?Quer dizer sobre mim tenho que ser eu.

MED04(...) Autonomia faz parte da capacidade do indivíduo em atuar, em viver em sociedade, em ser ele mesmo, se você tem autonomia você pode, em sociedade agir em conformidade com aquilo que você acredita, com o que você espera (...) isso é autonomia e sem autonomia você pode não viver.

PSI01(...) Autonomia tem muito a ver com direito e capacidade de escolha (...) o paciente já está com a doença que já tira muita coisa dele, a saúde, as possibilidades (...) então ele tem que ter autonomia para escolher o que ele quer, se ele quer investir no tratamento, se ele não quer, se ele quer ficar em casa, se ele quer optar por uma medicina mais intervencionista (...)

Categoria IIb: Reconhecendo as possibilidades do doente em fase final de vida manifestar sua autonomia

O reconhecimento do doente como ser autônomo implica em uma avaliação de suas funções neurológicas, mas não se esgota nessa avaliação. É imprescindível, segundo o Grupo II, que o profissional participe desse processo como alguém capaz de informar o doente de suas possibilidades com verdade e respeito, reconhecendo que as limitações impostas pela doença conferem a este indivíduo menos alternativas que para todos os outros envolvidos nesse processo, família e equipe de saúde. Seus discursos revelam ainda, que maiores serão as possibilidades de preservação da autonomia desses indivíduos, tão logo tenham acesso a serviços de cuidados paliativos.

MED01(...) O paciente fora de possibilidade de cura, muitas vezes, é um paciente que tem uma performance perfeita, ele está bem e tem capacidade de decidir, de raciocinar e deve ser abordado dessa forma, até quando possível, pelo menos enquanto ele tem esse discernimento. Paciente na fase final da vida nem sempre consegue tomar decisões, por isso que é muito importante que o CP comece o mais cedo possível, ainda em uma fase que ele tenha a possibilidade de decidir (...)

MED01(...)Se você pretende ou se você se dispõe a preservar a autonomia do doente, você tem a obrigação antes de informá-lo o mais preciso possível do que ele tem, do que pode ser feito, os efeitos do tratamento, inclusive a possibilidade de não se submeter a esse tratamento, tem que ser muito verdadeiro(...)

PSI01 (...) Se o paciente tem capacidade de contactuar e tem preservado o aspecto neurológico, ele tem sim possibilidade de autonomia, é ele que está ali sofrendo, vivendo perdas e se despedindo da vida, então ele tem que viver a fase final da maneira como ele acredita, deseja (...)

Categoria IIc: Identificando os princípios que norteiam a reação da equipe de saúde diante da autonomia do doente em tratamento paliativo e em outros serviços

Foi reconhecido que as equipes de saúde, de modo, têm dificuldade frente ao exercício de autonomia do doente; por outro lado, as de cuidados paliativos têm conseguido lidar com a autonomia desses indivíduos de forma natural e em sintonia com a proposta da filosofia de cuidados paliativos e com as aspirações de um novo paradigma na área de saúde, o paradigma do cuidado.

Os princípios apontados por esses profissionais dizem respeito à necessidade de se discutir dilemas na prática de cuidados paliativos, ao buscar alternativas a condutas frente ao doente sem possibilidades de cura; a percepção de que as questões relacionadas a esse doente delegam ao conhecimento técnico de cada área, uma pequena parcela na tomada de decisões, pois as condutas inerentes à terapêutica em cuidados paliativos são transcendentais e demandam uma discussão alternativa ao modelo biomédico de assistência à saúde; o abandono da supremacia dos profissionais de saúde que estabelecem uma relação desigual para com esses indivíduos, ou seja, "(...) de alguém sadio para alguém doente, de alguém que sabe para alguém que não sabe (...)"; e fundamentar a terapêutica em cuidados paliativos em um processo de comunicação compartilhada e escuta ativa desses doentes.

MED02 (...) a tomada de decisão com a complexidade dessa que são objeto de suas perguntas, são questões transcendentais, quer dizer, quanto tempo me falta de vida, quanto tempo eu ainda tenho de vida, essas questões, todas elas são muito maiores do que só situações que envolvem respostas que envolvem questões de caráter técnico, e aí então, não resta a menor dúvida de que isso não é domínio meu e de nenhum profissional sozinho e isolado, e sim, é preciso que exista um grupo, e se possível, bastante variado de profissionais olhando para o paciente e o entorno onde ele vive, que inclui os familiares, os amigos, que inclui o seu modo de vida(...) e mesmo que a gente chame todos os profissionais envolvidos, falta o ator principal, essa é a pessoa que, em última instância, tem o voto de Minerva e, não resta a menor dúvida que é o primeiro, a opinião, a decisão do paciente e na impossibilidade do paciente se manifestar por ele mesmo, da família(...)

MED03Num serviço de CP bem estruturado como o nosso, a gente reage muito bem, na verdade a gente sugere para o paciente um tipo de tratamento, mas a decisão é do paciente, a gente chama isso de comunicação compartilhada (...)

MED04(...) a autonomia do paciente é um direito do paciente e que esse direito precisa, no mínimo, ser ouvido. Essa autonomia, essa manifestação precisa ser ouvida e que ele, como profissional, tem que se destinar um tempo a essa escuta, que o que nós em CP chamamos de escuta ativa. Na minha percepção ainda, a reação dos profissionais é muito mais de "Como?", "Você está questionando o meu papel?", "Você está questionando a minha decisão?", "Eu sou o médico, eu sou o enfermeiro, eu sou o farmacêutico e eu que digo o que você tem que fazer e, você simplesmente faz, o profissional não é educado para ouvir o paciente e quando eu falo, ouvir não é apenas o verbal, ouvir - se isso é possível - e eu acho que é o não-verbal, a gente pode ver o não-verbal, pode ouvir o não-verbal, sentir o não-verbal e o paciente, ele tem todas as condições de se manifestar dessa forma, basta que o profissional queira ouvir o que o paciente tem a dizer. (...)

Os princípios estabelecidos funcionam como norteadores de ações que se configuram como condição sine qua non para a validação do exercício da autonomia dos doentes sem possibilidades de cura no modelo assistencial proposto pelos cuidados paliativos.

DISCUSSÃO

As percepções da autonomia do doente sem possibilidades de cura se mostraram heterogêneas, para essa equipe de saúde, embora se encontre orientada para uma filosofia comum.

A autonomia caracterizada pelo Grupo I apresentou conotações que estabelecem relação com a concepção político-jurídica da autonomia, que foca exclusivamente o poder de decisão do indivíduo, não sendo capaz de considerar as interfaces com as relações sociais e elementos inerentes ao seu modus vivendi(12). Sob esse ponto de vista, a autonomia individual não estabelece relação com a equipe de saúde ou com quaisquer outros agentes, mas se configura como uma ação, tem origem no indivíduo e a ele será direcionada, sendo assim a equipe de saúde se posiciona à margem do projeto terapêutico e da própria filosofia dos cuidados paliativos que trazem implícita em sua estrutura a inter-relação entre equipe de saúde, doente e família como elementos fundamentais a reorganização psíquica, física e social do indivíduo sem possibilidades de cura, o que inclui também sua autonomia.

O nível de consciência, de informações sobre sua doença e a manifestação do desejo de exercitar a autonomia foram considerados elementos de validação do exercício autônomo. Esses profissionais consideram a autonomia, tal como foi definida nos moldes político-jurídico, livre de interferências externas, ou seja, os profissionais reafirmam sua neutralidade frente a autonomia desses doentes. Diante da autonomia manifesta fica evidente, para esses profissionais, que a filosofia dos cuidados paliativos se constitui como a ferramenta que norteará suas ações, mas somente se manifesta. Por outro lado existem ainda aqueles profissionais que sofrem interferências de seus referenciais internos e admitem que os cuidados paliativos são uma filosofia não consolidada, o que dificulta a uniformidade de suas ações.

O Grupo II percebe a autonomia do doente sem possibilidades de cura a partir da estruturação de um conceito capaz de considerar que a autonomia é um elemento que tem origem no indivíduo, mas é construído na interface com os relacionamentos sociais e com seu modus vivendi(12). O conceito de autonomia por eles desenvolvido considerou as limitações dos doentes sem possibilidades de cura e as implicações delas no cotidiano desse indivíduo. E, através dessas considerações, esse grupo reconhece que os profissionais de saúde e família são elementos indispensáveis no processo de organização do exercício autônomo e podem potencializá-lo. Ao considerar esse aspecto, pode-se afirmar que a autonomia não significa recorrer tão somente à autodeterminação do indivíduo, mas ajudar essa pessoa ir ao limite de si mesma, ajudando-a a descobrir e a escolher o que está de acordo com o sentido do respeito da dignidade humana(11).

Ao incluírem-se no projeto terapêutico do doente sem possibilidades de cura, esse grupo de profissionais permite que a autonomia seja estruturada de forma sólida na trajetória desses indivíduos, assegurando que as condições físicas, tais como diminuição do nível de consciência, não sejam limitantes no desenvolvimento de um plano de cuidado sustentado pela ética. É diante da importância desse aspecto, que o acesso tardio ao serviço de cuidados paliativos é considerado por eles como fator limitante no alcance da plenitude do projeto terapêutico.

A comunicação verbal e não-verbal foram consideradas e citadas como fundamentais para intermediar as relações humanas (família, indivíduo e profissional de saúde) e permitir a sustentabilidade e consolidação da autonomia frente às expectativas individuais. Ao permear as relações humanas no cotidiano assistencial, a comunicação se traduz, simultaneamente, como um elemento diagnóstico e terapêutico, sendo capaz de identificar demandas assistenciais e acolhê-las terapeuticamente, produzindo a legitimação de direitos e a fundamentação de vínculos com os doentes sem possibilidades de cura.

O elemento comunicação no contexto assistencial, e particularmente nos cuidados paliativos, se constitui como um princípio natural, capaz de unir um ser ao outro, e abranger todas as formas pelas quais uma pessoa pode afetar a outra. Implica na percepção consciente e inconsciente dos atos expressivos dos envolvidos no processo de comunicação. Por isso, pode-se afirmar que uma pessoa pode deixar de falar com a outra, mas não de lhe comunicar algo(14-15). E é sob essa perspectiva que a comunicação transcende as limitações inerentes ao cotidiano assistencial em cuidados paliativos.

CONCLUSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS

A autonomia dos doentes sem possibilidades de cura é um elemento inerente à filosofia dos cuidados paliativos e, através desse modelo de cuidado, pode sustentar um projeto terapêutico ético e coerente com as expectativas e com os direitos individuais.

Os Grupos I e II revelaram estar em momentos distintos da compreensão filosófica e técnica dos cuidados paliativos, e esse descompasso permite inferir que a filosofia será mais sólida quanto maior for o entrosamento entre os profissionais de saúde, assim como a delimitação técnica de suas funções, para que sejam capazes de produzir a interdisciplinaridade e a uniformidade de suas ações.

A autonomia no processo de morrer humano e sob a luz dos cuidados paliativos assume particularidades que não são contempladas na essência das teorias bioéticas, portanto, a compreensão da autonomia não deve ser estática, mas manter a orientação nos princípios bioéticos e flexibilizar-se na emergência das necessidades humanas.

A comunicação verbal e a não-verbal reafirmam-se como elementos indispensáveis à delimitação e ao reconhecimento da autonomia dos doentes sem possibilidades de cura, e potencializam a condução e adaptação do projeto terapêutico frente às necessidades individuais.

O envolvimento da equipe de saúde na orientação do exercício autônomo é simbólico ao indivíduo, na medida em que amplia o arcabouço teórico (referenciais internos e externos), locus de onde emergirá a autonomia essencial.

A autonomia dos doentes em fase final de vida tem sustentabilidade e respaldo ético na filosofia dos cuidados paliativos, mas no Brasil ainda enfrenta a imaturidade dessa prática refletida na organização das políticas, serviços e equipes de saúde que recebem interferência ou sustentam resquícios do modelo curativo de assistência.

A educação em saúde é uma alternativa coerente com o momento atual dos cuidados paliativos e assume caráter limitante ao seu desenvolvimento, uma vez que a ignorância, a falta de reflexão e de conhecimento técnico e científico sobre as opções terapêuticas adequadas aos doentes sem possibilidade de cura, e a própria essência dos cuidados paliativos comprometem a autonomia desses indivíduos e a configuração de projetos terapêuticos individualizados e consequentemente na disseminação dessa filosofia de cuidados.

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  • Autor Correspondente:
    Aline Cristine de Oliveira
    R. João Alfredo da Silveira, 180
    São Paulo, SP, Brasil - CEP 04775190
    E-mail:
  • *
    Estudo desenvolvido na Enfermaria de Cuidados Paliativos do Hospital do Servidor Público Estadual "Francisco Morato de Oliveira" HSPE-FMO - São Paulo (SP), Brasil.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Maio 2010
    • Data do Fascículo
      Abr 2010
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