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As (im)possibilidades de brincar para o escolar com câncer em tratamento ambulatorial

Las (im)posibilidades de jugar para el escolar con cáncer en tratamiento en ambulatorio

Resumos

OBJETIVOS: Identificar os mediadores do brincar na vida da criança com câncer em tratamento ambulatorial e analisar as (im)possibilidades de utilizá-los diante das limitações impostos pelo adoecimento e tratamento. MÉTODOS: A pesquisa qualitativa implementada segundo o método criativo e sensível teve como eixo a dinâmica grupal "O brincar em cena". Participaram 12 escolares em tratamento ambulatorial para câncer, em um hospital no Rio de Janeiro. RESULTADOS: Emergiram dois temas: mediadores das (im)possibilidades do brincar - instrumentos e signos e mediadores das (im)possibilidades do brincar na interação social - pessoas e ambiente. Nas situações de impossibilidades e restrições, os escolares superaram obstáculos e reinventaram alternativas para continuarem brincando dentro de suas possibilidades. CONCLUSÃO: Os profissionais que atendem essas crianças devem buscar conhecimentos acerca das necessidades que elas tem enquanto seres em desenvolvimento, identificando situações que podem determinar (im)possibilidades de brincar e, junto com a criança e família, transformá-las em outras possibilidades.

Jogos e brinquedos; Saúde da criança; Enfermagem pediátrica; Oncologia


OBJETIVOS: Identificar los mediadores del jugar en la vida del niño con cáncer en tratamiento en ambulatorio y analizar las (im)posibilidades de utilizarlos delante de las limitaciones impuestas por la enfermedad y tratamiento. MÉTODOS: Es una investigación cualitativa, implementada según el método creativo y sensible; tuvo como eje la dinámica grupal "El jugar en escena". Participaron 12 escolares en tratamiento de cáncer en ambulatorio, en un hospital en Rio de Janeiro. RESULTADOS: Emergieron dos temas: mediadores de las (im)posibilidades del jugar (instrumentos y signos) y mediadores de las (im)posibilidades del jugar en la interacción social (personas y ambientes). En las situaciones de imposibilidades y restricciones, los escolares superaron obstáculos y reinventaron alternativas para continuar jugando dentro de sus posibilidades. CONCLUSIÓN: Los profesionales que atienden a estos niños deben buscar conocimientos acerca de las necesidades que estos clientes tienen considerando que son seres en desarrollo, identificando situaciones que pueden determinar (im)posibilidades del jugar y, junto con el niño y la familia, transformarlas en otras posibilidades.

Juegos y juguetes; Salud del niño; Enfermería pediátrica; Oncologia


OBJECTIVES: To identify the mediators of play in the lives of children with cancer in outpatient treatment, and review the opportunities of using them, considering the limitations imposed by the disease and the treatment. METHODS: Qualitative research, according to the creative and sensitive method implemented; it was focused on group dynamics "Playing on stage." Twelve (12) children participated, who were being treated for cancer in an outpatient service at a hospital in Rio de Janeiro. RESULTS: Two themes emerged: mediators of the possibilities of play (instruments and signs), and mediators of the possibilities of play in social interaction (people and environment). In situations of impossibilities and restrictions, the children found alternatives to overcome the obstacles and to continue playing, within their abilities. CONCLUSION: The professionals who care for these children must seek knowledge about the needs the children have (as human beings in development), identifying situations that may determine the possibilities of playing and, along with the child and family, transforming them into other possibilities.

Games and toys; Child health; Pediatric nursing; Oncology


ARTIGO ORIGINAL

As (im)possibilidades de brincar para o escolar com câncer em tratamento ambulatorial* * Extraido da dissertação "O brincar na vida da criança com câncer em tratamento ambulatorial: (im)possibilidades de desenvolvimento e contribuições da enfermagem " apresentada na Escola de Enfermagem Anna Nery (EEAN) da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Rio de Janeiro (RJ), Brasil, em 2008.

Las (im)posibilidades de jugar para el escolar con cáncer en tratamiento en ambulatorio

Liliane Faria da SilvaI; Ivone Evangelista CabralII; Marialda Moreira ChristoffelIII

IMestre em Enfermagem pela Escola de Enfermagem Anna Nery (EEAN) da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Rio de Janeiro (RJ), Brasil. Professora Assistente do Departamento de Enfermagem Materno Infantil e Psiquiatrica. Escola de Enfermagem Aurora de Afonso Costa (EEAAC) da Universidade Federal Fluminense - UFF Rio de Janeiro (RJ), Brasil

IIDoutora em Enfermagem. Professora Associada do Departamento de Enfermagem Materno Infantil. Escola de Enfermagem Anna Nery (EEAN) da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Rio de Janeiro (RJ), Brasil

IIIDoutora em Enfermagem. Professora Adjunto do Departamento de Enfermagem Materno Infantil. Escola de Enfermagem Anna Nery (EEAN) da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ - Rio de Janeiro (RJ), Brasil

Autor Correspondente Autor Correspondente: Liliane Faria da Silva R. Marquesa de Santos, 77 apto. 1202 - Laranjeiras Rio de Janeiro - RJ - Brasil Cep: 22221-080 E-mail: lili.05@hotmail.com

RESUMO

OBJETIVOS: Identificar os mediadores do brincar na vida da criança com câncer em tratamento ambulatorial e analisar as (im)possibilidades de utilizá-los diante das limitações impostos pelo adoecimento e tratamento.

MÉTODOS: A pesquisa qualitativa implementada segundo o método criativo e sensível teve como eixo a dinâmica grupal "O brincar em cena". Participaram 12 escolares em tratamento ambulatorial para câncer, em um hospital no Rio de Janeiro.

RESULTADOS: Emergiram dois temas: mediadores das (im)possibilidades do brincar - instrumentos e signos e mediadores das (im)possibilidades do brincar na interação social - pessoas e ambiente. Nas situações de impossibilidades e restrições, os escolares superaram obstáculos e reinventaram alternativas para continuarem brincando dentro de suas possibilidades.

CONCLUSÃO: Os profissionais que atendem essas crianças devem buscar conhecimentos acerca das necessidades que elas tem enquanto seres em desenvolvimento, identificando situações que podem determinar (im)possibilidades de brincar e, junto com a criança e família, transformá-las em outras possibilidades.

Descritores: Jogos e brinquedos; Saúde da criança; Enfermagem pediátrica; Oncologia

RESUMEN

Objetivos: Identificar los mediadores del jugar en la vida del niño con cáncer en tratamiento en ambulatorio y analizar las (im)posibilidades

de utilizarlos delante de las limitaciones impuestas por la enfermedad y tratamiento. Métodos: Es una investigación cualitativa, implementada

según el método creativo y sensible; tuvo como eje la dinámica grupal “El jugar en escena”. Participaron 12 escolares en tratamiento de cáncer

en ambulatorio, en un hospital en Rio de Janeiro. Resultados: Emergieron dos temas: mediadores de las (im)posibilidades del jugar

(instrumentos y signos) y mediadores de las (im)posibilidades del jugar en la interacción social (personas y ambientes). En las situaciones de

imposibilidades y restricciones, los escolares superaron obstáculos y reinventaron alternativas para continuar jugando dentro de sus posibilidades.

Conclusión: Los profesionales que atienden a estos niños deben buscar conocimientos acerca de las necesidades que estos clientes tienen

considerando que son seres en desarrollo, identificando situaciones que pueden determinar (im)posibilidades del jugar y, junto con el niño y

la familia, transformarlas en otras posibilidades.

Descriptores: Juegos y juguetes; Salud del niño; Enfermería pediátrica; Oncologia

INTRODUÇÃO

O câncer envolve um grupo de doenças que tem em comum a proliferação descontrolada de células anormais. Atualmente, é considerado uma importante causa de morbimortalidade infantil no Brasil, cuja incidência cresce aproximadamente 1% ao ano. As formas de cânceres mais freqüentes são as leucemias, os tumores do sistema nervoso central e os linfomas, representando de 0,5% a 3% de todos os tumores na maioria da população(1-3). Com o avanço nas modalidades de tratamento (quimioterapia, radioterapia e cirurgia), a possibilidade de cura pode chegar a 70%, para alguns tipos, se diagnosticados precocemente e tratados em centros especializados.

Com a evolução do tratamento oncológico nas últimas décadas, o câncer infantil deixou de ter um caráter agudo, com morte inevitável, para crônico com possibilidade de cura. Essa mudança contribuiu para uma ampliação na forma de se visualizar a criança com câncer para além dos aspectos biológicos e fisiológicos, incluindo aí a dimensão psicossocial(3-4).

Com o diagnóstico do câncer infantil, a criança e sua família atravessam um período de adaptação à nova realidade e, com isso, toda rotina e dinâmica familiar são modificadas. A criança passa a ter necessidades especiais de saúde, devido tanto ao curso da doença quanto do tratamento, que se caracteriza como longo. Durante esse período, a criança é submetida a vários exames e internações hospitalares prolongadas para tratamentos (quimioterápico, radioterápico, cirúrgico, medicamentoso etc) que, por vezes, provocam limitações e incapacidades físicas e psicológicas. As idas e vindas ao centro de tratamento (para internação ou tratamento ambulatorial) expõem a criança à dor e ao sofrimento, provocam interrupções na escolarização e a afastam do convívio social e familiar, podendo interferir na sua capacidade e desejo de brincar.

A literatura(5-7) tem apontado mais os benefícios da brincadeira para o bem-estar da criança hospitalizada com câncer do que para aquelas em tratamento ambulatorial. Quando a fase de tratamento ambulatorial assume lugar central na vida da criança, ela permanece mais tempo em casa do que no hospital, mudando, assim, o espaço social da brincadeira. Entretanto, pouco se sabe sobre o brincar e a brincadeira que ela participa quando em casa e nos demais espaços da comunidade, incluindo aí o ambulatório hospitalar. Esses múltiplos espaços contribuem para a interação social criança-criança, criançaadulto e criam oportunidades para manipular instrumentos (brinquedos e jogos) capazes de promover o desenvolvimento cognitivo, social, motor e de linguagem (signos), entre outros, todos mediadores socioculturais importantes(8) para o bem-estar da criança.

O desenvolvimento da criança processa-se na relação com o mundo, na interação social, no manejo de instrumentos e no aprendizado sobre o significado dos signos próprios de um dado grupo cultural. Esses elementos funcionam como mediadores do desenvolvimento e da evolução da espécie humana. O instrumento tem a função de regular as ações sobre os objetos, amplia a capacidade da criança de agir sobre a natureza, ajudando-a nas ações concretas. Já o signo, é considerado um instrumento psicológico e tem a função de auxiliar as crianças em suas atividades psíquicas, serve de auxílio para a atenção, memória e acúmulo de informação(8). Nesse sentido, o brincar tem um papel importante no desenvolvimento infantil, pois reúne um conjunto de mediadores, transformando as funções básicas (psicológicas elementares) em funções mais elaboradas (psicológicas superiores)(8).

O desenvolvimento infantil consiste na capacidade de a criança transitar de um nível elementar para um nível mais elaborado de realização de tarefas e de compreender o que acontece ao seu redor. Essa transformação é processual e se dá na relação da criança com os mediadores, como: a interação social da criança com o meio e o uso de signos e instrumentos culturalmente determinados(9).

O brincar é uma necessidade, tanto da criança saudável quanto em processo de adoecimento; através dele a criança cria, recria, se socializa, aprende e se desenvolve(5-6). Essa necessidade não deixa de existir quando a criança adoece(10), porém pode passar desapercebida quando se trata da criança com câncer, tanto no ambiente hospitalar quanto da comunidade e domiciliar, devido à gravidade da doença e à complexidade do tratamento.

OBJETIVOS

Identificar os mediadores do brincar na vida da criança com câncer em tratamento ambulatorial, e analisar as (im)possibilidades de os escolares utilizarem esses mediadores diante das limitações impostas pelo adoecimento e tratamento.

MÉTODOS

A pesquisa qualitativa foi desenvolvida de acordo com o método criativo e sensível, tendo como eixo fundamental a dinâmica grupal de criatividade e sensibilidade. Nessa dinâmica, os participantes da pesquisa elaboraram uma produção do tipo artística mobilizada por uma questão geradora de debate relacionada ao objeto de estudo. A produção mobilizou os participantes a falarem de si através do que produziram, e daí evocaram seus valores e crenças naqueles temas cujos interesses são comuns ao grupo(11-13).

A pesquisadora assumiu o papel de animadora e contou com o apoio de um auxiliar de pesquisa para os registros (verbal, fotográfico e fonográfico) do encontro. Ao término da dinâmica, os seus registros juntaram-se aos do pesquisador, foram anotados em seu diário de campo para compor o relatório da fonte primária de pesquisa.

As crianças em idade escolar são capazes de, por meio da brincadeira, atuar numa esfera cognitiva que depende de motivações externas, mediadas pelo ato de brincar(13). Então, criamos a dinâmica "O brincar em cena" que privilegia o brincar e a brincadeira compatível com o nível de desenvolvimento e as condições de saúde e doença dos participantes da pesquisa. Nesse sentido, a dinâmica resultou da combinação de duas técnicas: a "Modelagem" com uso de massa para modelar e "Minha casa...meu mundo" com desenhos e brinquedos em miniatura(13).

O processo de elaboração da produção do tipo artística pelas crianças foi orientado pela questão geradora de debate "Na minha casa eu brinco de... com... em...". A preferência pela expressão "na minha casa" deveu-se ao fato de a criança com câncer, correntemente, quando se encontra em tratamento ambulatorial, a utilizar em referência ao não estar internada no hospital.

A dinâmica "O brincar em cena" foi implementada em cinco momentos. No primeiro, os participantes se apresentaram e foram identificados com crachás (inclusive pesquisadora e auxiliar de pesquisa) e tomaram contato com materiais a serem usados na elaboração da produção. Para esse momento, a pesquisadora promoveu um ambiente de acolhimento e conforto, de modo que todos se viam e compartilhavam os brinquedos disponíveis no espaço do brincar. Os materiais utilizados pelas crianças foram canetas coloridas, lápis de cor, giz de cera, folhas de papel A4 e folha de papel pardo, brinquedos em miniatura e massa de modelagem. No segundo momento, explicamos a dinâmica, seus objetivos e a produção esperada pelo grupo, com base na questão geradora de debate que foi escrita em um papel ao alcance de todos. O terceiro momento destinou-se à elaboração da produção artística, sendo que cada criança trabalhou individualmente em seu material, compartilhando tudo o que se encontrava no espaço grupal. No quarto, cada um apresentou o material produzido, enunciando coletivamente a sua experiência com a brincadeira e o brincar. O último momento correspondeu à socialização do significado das produções, quando também ocorreu a validação dos dados. O encontro foi registrado com o gravador de voz (fita K7) e as produções foram fotografadas por máquina digital.

Participaram da dinâmica "O brincar em cena", crianças que preencheram os seguintes critérios de inclusão: estar em idade escolar, em tratamento ambulatorial, sem distinção de sexo. Foram excluídas do estudo as crianças que residiam em casas de apoio, já que o enfoque centrava-se na experiência do brincar no ambiente domiciliar e na comunidade.

Para a garantia do anonimato, os(as) escolares foram identificados(as) com a letra inicial de seu nome. Quando houve repetição de letra, adicionamos um número conforme a ordem de participação nas dinâmicas. Adotamos o artigo definido "A" para identificar as meninas e "O" para os meninos.

O cenário de realização da dinâmica foi o ambulatório de oncologia pediátrica de um hospital público de referência para o tratamento da doença, localizado na cidade do Rio de Janeiro. Ao longo da etapa de trabalho de campo, realizamos quatro encontros, totalizando 12 crianças (sete meninas e cinco meninos), nos dias e horários em que elas aguardavam algum tipo de atendimento profissional (consulta médica, exame laboratorial, tratamento de quimioterapia ou radioterapia). O primeiro encontro aconteceu na sala de espera do consultório de oftalmologia e os seguintes aconteceram na sala de reunião do ambulatório.

Após a aprovação do projeto de pesquisa pelo Comitêde Ética em Pesquisa da instituição (Protocolo 023/08), conversamos com os funcionários e responsáveis pelo setor, sobre a natureza da pesquisa, seus objetivos, metodologia e modo de operacionalização. Posteriormente, visitamos o setor com propósito de ambientação e interação com a equipe que atuava no serviço. Observamos a sala de espera, sala de recreação, quimioterapia e os consultórios.

Para captação e seleção dos sujeitos, verificamos a agenda de consultas da semana e aguardamos a criança chegar com seu familiar no dia agendado para o atendimento, quando fizemos o primeiro contato. Primeiramente, apresentamos e explicamos ao responsável, os objetivos da pesquisa, a metodologia, a garantia de anonimato, a voluntariedade, como os encontros ocorreriam e em que circunstâncias (dinâmicas grupais mediadas por brinquedos). Todos que foram contatados expressaram o desejo de participação da criança na pesquisa. Depois, convidamos a criança e a ela explicamos, em linguagem apropriada ao seu nível de desenvolvimento e cognitivo, os mesmo aspectos destacados na conversa com o responsável.

Em seguida, relacionamos os nomes e contatos dos que se voluntariaram, anotando também o próximo dia que a criança voltaria ao hospital. Posteriormente, estabelecemos novo contato telefônico ou no próprio ambulatório com os responsáveis e as crianças, para a composição de quatro grupos. Antes de iniciar as dinâmicas, explicamos as bases do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, para o responsável e de Assentimento, para a criança, antes de sua assinatura, em conformidade com os preceitos éticos definidos pela Resolução n.º 196/96 do Conselho Nacional de Saúde(14).

Para a análise dos dados, adotamos a Análise de Discurso Francesa(15), tomando-se por base os textos gerados nas dinâmicas de criatividade e sensibilidade. A opção por este instrumental de análise se deu pelo fato de as crianças abordarem o brincar como parte do seu cotidiano, cujos sentidos foram produzidos a partir da experiência pessoal.

O movimento da análise de discurso das crianças ocorreu em etapas: inicialmente, o corpus textual foi dessuperficilalizado, ou seja, a superfície lingüística (material empírico bruto) foi transformada em objeto discursivo (materialidade lingüística e marcação do tempo de enunciação). A leitura analítica do objeto discursivo apontou as pistas indicadoras dos dispositivos analíticos constituinte do discurso dos sujeitos(15). Essa etapa teve como objetivo buscar a discursividade do texto, preparando o analista para a configuração da formação discursiva. Entende-se por formação discursiva como aquilo que numa formação ideológica dada, ou seja, a partir de uma posição dada em uma conjuntura sóciohistórica - determina o que pode e deve ser dito(15).

Posteriormente, aconteceu a passagem do objeto discursivo para o processo discursivo. Nesta etapa, relacionaram-se as formações discursivas distintas com a formação ideológica que rege essas relações. Desse modo, atingiu-se a constituição do processo discursivo, responsável pelo efeito de sentido produzido no material simbólico(15).

RESULTADOS

O processo de análise levou à categorização de dois temas: mediadores das (im)possibilidades do brincar instrumentos e signos e mediadores das (im)possibilidades do brincar na interação social - pessoas e ambiente.

Mediadores das (im)possibilidades do brincar instrumentos e signos

Um escolar apontou, simultaneamente, o colete e o skate como instrumentos mediadores da possibilidade e da impossibilidade do brincar. A sua condição de deformidade torácica (pós-neurocirurgia para remoção de neurofibromatose lombar) implica no uso contínuo do colete para correção postural ao longo da semana. Brincar de skate é possível no final de semana, quando durante o dia, ele permanece sem o colete, por recomendação da fisioterapeuta.

... de skate, eu brinco só no fim de semana porque eu fico sem o colete. (O escolar R)

O uso do colete torácico promove restrição física e interfere na mecânica corporal necessária à brincadeira com skate; nisso reside a impossibilidade de brincar com esse instrumento mediador da brincadeira ao longo da semana.

No diálogo entre o escolar N e a pesquisadora de campo (primeira autora), novas impossibilidades são apresentadas.

O tratamento atrapalha, até uma vez que eu fiquei com dor e brincando... Eu sentia dor algumas vezes, mas agora não sinto mais.

(O escolar N)

E quando você sentia dor, como era brincar, pergunto a N?

Eu não queria brincar porque doía minha barriga. (O escolar N)

O tratamento como fonte geradora de dor foi algo que atrapalhou o engajamento da criança na brincadeira. Embora houvesse tentativa para continuar brincando mesmo nos casos de dor fraca e ocasional, quando a dor era aguda, ela não conseguia brincar. Ou seja, a intensidade da dor era determinante da possibilidade ou impossibilidade de brincar; quando a dor era fraca, ela continuava brincando, e quando era forte, não brincava porque doía a barriga. Sendo assim, a dor se configurou como um signo que impôs limites ao engajamento, da criança com câncer, na brincadeira.

No sentido Vygotskyano, a dor foi o signo internalizado como fonte de desprazer, de sofrimento e restrição. Ela representa a experiência da criança e o modo como ela ressignificam o sofrimento e a restrição imposta ao seu modo de viver, incluindo aí o brincar como fonte de prazer. O prazer de brincar comtrapõe-se ao desprazer gerado pela dor.

No diálogo a seguir, o escolar M e a pesquisadora de campo (primeira autora) falam sobre o tratamento quimioterápico como uma fonte geradora de impossibilidade de brincar.

Ah ! Então você pode ir para a rua todo dia? Pergunto a M.?

É! Menos quando estou fazendo quimioterapia... a minha tia vai buscar a gente (ele e o irmão) e, às vezes, no final de semana, quando eu não estou fazendo a quimioterapia, a gente dorme lá na casa dela. (O escolar M)

O tratamento quimioterápico foi um signo que limitou a criança a sair de casa, seja para brincar na rua ou dormir na casa da tia, como costumava fazer regularmente nos finais de semana. Aparentemente, ele se apropriou das vivências, de outros interdiscursos (discursos já ouvidos) e reconstruiu, internamente, que durante o ciclo de quimioterapia precisa manter-se afastado de potenciais fontes de infecção, devido à imunossupressão resultante do medicamento. Assim, o repouso foi um signo adicional, ressignificado como impossibilidade de sair de casa.

A análise de discurso, pelo não dito, aponta para a assertiva de que, quando a criança está fazendo quimioterapia, ela não dorme na casa da tia, não brinca na rua, não interage com outras crianças que não sejam do seio familiar. Consequentemente, suas atividades de brincadeiras restringem-se ao ambiente da casa e mediado por pessoas que participam do seu círculo familiar mais imediato.

Mediadores das (im)possibilidades do brincar na interação social - pessoas e ambiente

A escolar A2 destacou que, antes do adoecimento pelo câncer, sua mãe a deixava brincar fora de casa (na casa de uma amiga) e agora ela não deixa mais.

Antes (de ficar doente) minha mãe deixava eu brincar na casa da Cacá (nome fictício), agora não deixa mais. (A escolar A2)

Já a mãe do escolar M também se preocupa com o seu bem-estar, não o deixando brincar fora de casa durante a fase de tratamento quimioterápico ambulatorial.

Eu não posso sair de casa porque ela (mãe) tem medo de eu pegar sereno, porque eu fico com a imunidade baixa... Por exemplo, se amanhã (sábado) começar a quimioterapia, eu não posso sair para a rua por causa da defesa baixa (neutropenia). Então eu fico em casa, aí minha mãe me deixa pegar meus livros, até quarta-feira (ele faz protocolo de cinco dias de quimioterapia). (O escolar M)

Para ambos, a proteção materna representa uma preocupação com o bem-estar da criança e a prevenção de infecção, devido à imunidade baixa decorrente do tratamento para o câncer.

O antes e o agora demarcam um divisor temporal revelador da proteção materna que, em contrapartida, restringe o leque de pessoas com as quais o escolar interage socialmente e os espaços onde a brincadeira acontece.

A proteção materna impede o escolar M de sair de casa, pois durante a fase de tratamento quimioterápico aumenta a sustentabilidade da criança ao adoecimento devido à baixa imunidade, um efeito adverso comum nesses casos.

Nesse sentido, a exposição ao sereno e o tratamento para o câncer adquiriram duas ressignificações diferentes no imaginário infantil. A primeira foi construída na interação social mãe-criança e a segunda, na interação da criança com os profissionais de saúde e a percepção dos efeitos do medicamento sobre seu corpo. Em ambas as circunstâncias, a proteção foi um signo internalizado no imaginário infantil como impossibilidade de brincar, ao restringir sua interação com as pessoas e ambientes, onde a brincadeira acontece.

A escolar A aponta as impossibilidades de interação social no brincar em outros ambientes, além da própria casa. A possibilidade de ampliação dos ambientes da brincadeira está nos dias em que visita a avó, na casa dela. Lá, ela encontra-se com outras crianças, brinca e interage com elas. Entretanto, na maior parte do tempo, brinca no ambiente da própria casa e interage com sua irmã.

Assim... tem a casa dos meus familiares, mas num tem como eu sair, assim... meu pai trabalha, minha mãe... não tem como sair, mas quando eu vou para casa da minha avó, eu brinco lá, mas eu brinco mais é em casa com a minha irmã. (A escolar A)

Enquanto as impossibilidades de brincar foram demarcadas no interdiscurso e no não dito dos escolares como proteção materna, restrição de ambientes da brincadeira e redução do leque de pessoas com as quais a criança interage, a possibilidade se anunciou como uma alternativa à inclusão do brincar e da brincadeira na vida da criança. Nesse sentido, as limitações impostas pela baixa imunidade decorrente do tratamento para o câncer, as limitações do núcleo familiar para acompanhar a criança nas brincadeiras externas ao ambiente da casa foram compensadas pelas brincadeiras com pessoas da própria família (a irmã) no ambiente da casa e o engajamento em atividades de leitura que demandam menor consumo de energia.

DISCUSSÃO

Entre os mediadores da impossibilidade do brincar destacaram-se a restrição física, a interferência na mecânica corporal, a dor e o tratamento quimioterápico. O colete foi o instrumento mediador da restrição física e da interferência na mecânica corporal para brincar com skate.

As restrições físicas relacionadas à doença e ao tratamento promovem alterações no ritmo de vida das crianças com doença crônica, sendo preciso redobrar os cuidados para que a criança não sofra queda e se machuque. A prevenção de acidentes desta natureza impede a exacerbação dos sintomas e a piora do quadro de adoecimento(16). Nesse sentido, a dimensão temporal e as negociações com a fisioterapia compensaram o desejo das crianças de brincar, reinventado uma nova possibilidade de a brincadeira ocorrer nos finais de semana, quando lhe era permitido ficar sem o colete.

A internalização da dor, como um efeito adverso ao tratamento, constituiu-se pela memória da dor e do desprazer para brincar. A dor funcionou intrapsiquicamente, transformando um elemento interno (a falta de motivação para brincar) em externo (o engajarse no brincar de acordo com a intensidade da dor). A dor foi uma fonte de desprazer, de desmotivação, desconforto e de limitação do escolar na brincadeira. Para a criança com câncer, a dor e o desconforto determinam um quadro de ansiedade, comprometendo os aspectos físicos, emocionais e comportamentais, prejudicando o seu estado geral ou exacerbando o quadro álgico(17).

Portanto, quanto mais intensa é a dor, maior a (im)possibilidade de brincar; diante de menor intensidade da dor, maior a possibilidade de engajar-se em atividades.

Com o desenvolvimento da criança, gradativamente as experiências com o mundo e as pessoas são internalizadas e, com isso, ocorre uma transformação no seu comportamento. A internalização é a reconstrução interna de uma operação externa(8). Nesse sentido, a quimioterapia foi internalizada como uma (im)possibilidade de brincar fora de casa, circular em espaços fora da casa seja durante a semana ou nos finais de semana.

Na (im)possibilidade de sair para brincar no ambiente da rua, devido à proteção materna, traduzida pelo repouso durante o tratamento quimioterápico, surge a possibilidade de brincar com a irmã, com o irmão e ler livros, no sentido de preencher o vazio deixado pela impossibilidade de brincar fora da casa e com outras crianças.

Os ambientes (rua, casa de amiga, casa de familiares etc) foram ressignificados no campo da (im)possibilidade de brincar, por restringir as oportunidades e as interações sociais na brincadeira. A restrição às pessoas com as quais a criança pode relacionar-se, em decorrência da proteção materna, o risco de adoecimento pela baixa imunidade, de acidentes e a dor, limitaram a convivência da criança com seus pares e as interações sociais que dela decorriam.

A fase escolar é o período que a criança se afilia a colegas da mesma faixa etária. O sentido de pertencer a um grupo é de extrema importância para esse grupo infantil, suas brincadeiras envolvem habilidades físicas, intelectuais e fantasias. Durante o adoecimento, os familiares ficam mais seletivos em relação às brincadeiras que envolvam menor risco à integridade física da criança. Consequentemente, há rupturas de relações sociais dessa criança com seus pares, afastamento de amigos com os quais convivia quando não estava doente, e evita-se brincadeiras inadequadas ao seu novo estilo de vida. Essa condição pode favorecer o isolamento da criança e a dificuldade de interação com seus pares que não estão acometidos por um processo patológico semelhante, ou até mesmo com quem elas mantinham contato antes do aparecimento do câncer(16,18-19).

O escolar em tratamento ambulatorial para câncer aprendeu, na interação social e no convívio em diversos ambientes, a aceitar as impossibilidades de brincar e adequar o brincar no campo das possibilidades e das superações, assumindo um comportamento socioculturalmente construído no ambiente em que vive(8).

CONCLUSÕES

Os escolares abordaram as (im)possibilidades mediadas pela proteção materna como um cuidado à manutenção da saúde e diminuição dos riscos decorrentes do tratamento. Essa proteção foi determinada pelo ambiente cultural da família e dos profissionais de saúde com quem a criança interage socialmente. Assim, os ambientes da casa e do hospital forneceram instrumentos (skate, colete, livro) e signos (o tratamento, a dor, restrição física, baixa imunidade entre outros) de mediação cultural, os quais foram internalizados e transformados em comportamento da criança na sua relação com a brincadeira.

Brincar na rua ou em outros ambientes impõe (im)possibilidades e restrições ao engajamento da criança na brincadeira e jogos. No enfrentamento das impossibilidades, os escolares buscam possibilidades, reinventando alternativas para ocupar o tempo vazio deixado pelo não brincar nas brincadeiras habituais, tais como a leitura e a brincadeira na casa da avó.

A equipe de enfermagem, por ter contato direto com a criança e sua família durante a internação hospitalar, assim como no ambulatório, precisa incluir o tema brincadeira/jogos no conjunto das orientações para os cuidados da criança no domicílio, e não apenas focar sua assistência e orientações nas questões relacionadas à doença e seu tratamento.

Este estudo enfocou alguns aspectos das (im)possibilidades de brincar, da criança com câncer em tratamento ambulatorial no contexto domiciliar e da comunidade. É importante realizar outros estudos que abordem o desenvolvimento da criança com câncer. Tendo em vista que o material de análise foi o discurso das crianças, e que elas não apontaram relações entre os tipos de brincadeiras e sua adequação ou não à condição de adoecimento, é necessário aprofundar esse conhecimento por meio de estudos que estabeleçam essas articulações.

Artigo recebido em 25/02/2008 e aprovado em 25/08/2008

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  • Autor Correspondente:
    Liliane Faria da Silva
    R. Marquesa de Santos, 77 apto. 1202 - Laranjeiras
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    Extraido da dissertação "O brincar na vida da criança com câncer em tratamento ambulatorial: (im)possibilidades de desenvolvimento e contribuições da enfermagem
    " apresentada na Escola de Enfermagem Anna Nery (EEAN) da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Rio de Janeiro (RJ), Brasil, em 2008.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Jul 2010
    • Data do Fascículo
      Jun 2010

    Histórico

    • Recebido
      25 Fev 2008
    • Aceito
      25 Ago 2008
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