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Vulnerabilidade, empoderamento e conhecimento: memórias e representações de enfermeiros acerca do cuidado

Resumos

OBJETIVO: Analisar as interfaces entre conhecimento, vulnerabilidade e empoderamento presentes nas memórias e representações sociais acerca do cuidado de enfermagem a pessoas com HIV/Aids. MÉTODOS: Pesquisa qualitativa realizada com trinta enfermeiros de um hospital público.Adotou-se o referencial da abordagem processual da Teoria das Representações Sociais. As entrevistas semiestruturadas foram transcritas e submetidas à análise de conteúdo temática instrumentalizada pelo software Nvivo 9.0. RESULTADOS: A vulnerabilidade foi expressa no medo oriundo da sensação de despreparo, insegurança profissional e escassez de informações científicas. Já o empoderamento corporificou-se na busca por conhecimento científico, na aceitação da natureza do trabalho e no tempo de atuação profissional. CONCLUSÃO: Os dados apontam para um conjunto de interfaces complexas e um processo de naturalização da AIDS realizado pelos enfermeiros para adaptar suas práticas às transformações históricas inerentes à síndrome.

Vulnerabilidade em saúde; Cuidados de enfermagem; Síndrome da imunodeficiência adquirida; Educação continuada em enfermagem; Atenção à saúde


OBJECTIVE: To analyze the interfaces among knowledge, vulnerability and empowerment present in memories and social representations regarding nursing care for people who live with HIV/Aids. METHODS: This was a qualitative research conducted with thirty nurses from a public hospital. The theoretical reference used was the processual approach of the Theory of Social Representations. The semi-structured interviews were transcribed and submitted to thematic content analysis, using the software NVivo 9.0. RESULTS: Vulnerability was expressed in the fear derived from feeling unprepared, professional insecurity and the lack of scientific information. Empowerment was personified in the search for scientific knowledge, in the acceptance of the nature of the work, and the time in professional practice. CONCLUSION: Data indicated a complex set of interfaces and a process of naturalization of AIDS, conducted by nurses to adapt their practices to the historical transformations inherent to the syndrome.

Health vulnerability; Nursing care; Acquired immunodeficiency syndrome, Education, nursing, continuing; Health care


ARTIGO ORIGINAL

Vulnerabilidade, empoderamento e conhecimento: memórias e representações de enfermeiros acerca do cuidado

Érick Igor dos Santos; Antonio Marcos Tosoli Gomes

Faculdade de Enfermagem, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Autor correspondente Autor correspondente: Érick Igor dos Santos Edifício Paulo de Carvalho Boulevard 28 de Setembro, 157, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. CEP: 20551-030 eiuerj@gmail.com

RESUMO

OBJETIVO: Analisar as interfaces entre conhecimento, vulnerabilidade e empoderamento presentes nas memórias e representações sociais acerca do cuidado de enfermagem a pessoas com HIV/Aids.

MÉTODOS: Pesquisa qualitativa realizada com trinta enfermeiros de um hospital público.Adotou-se o referencial da abordagem processual da Teoria das Representações Sociais. As entrevistas semiestruturadas foram transcritas e submetidas à análise de conteúdo temática instrumentalizada pelo software Nvivo 9.0.

RESULTADOS: A vulnerabilidade foi expressa no medo oriundo da sensação de despreparo, insegurança profissional e escassez de informações científicas. Já o empoderamento corporificou-se na busca por conhecimento científico, na aceitação da natureza do trabalho e no tempo de atuação profissional.

CONCLUSÃO: Os dados apontam para um conjunto de interfaces complexas e um processo de naturalização da AIDS realizado pelos enfermeiros para adaptar suas práticas às transformações históricas inerentes à síndrome.

Descritores: Vulnerabilidade em saúde; Cuidados de enfermagem; Síndrome da imunodeficiência adquirida; Educação continuada em enfermagem; Atenção à saúde

ABSTRACT

OBJECTIVE: To analyze the interfaces among knowledge, vulnerability and empowerment present in memories and social representations regarding nursing care for people who live with HIV/Aids.

METHODS: This was a qualitative research conducted with thirty nurses from a public hospital. The theoretical reference used was the processual approach of the Theory of Social Representations. The semi-structured interviews were transcribed and submitted to thematic content analysis, using the software NVivo 9.0.

RESULTS: Vulnerability was expressed in the fear derived from feeling unprepared, professional insecurity and the lack of scientific information. Empowerment was personified in the search for scientific knowledge, in the acceptance of the nature of the work, and the time in professional practice.

CONCLUSION: Data indicated a complex set of interfaces and a process of naturalization of AIDS, conducted by nurses to adapt their practices to the historical transformations inherent to the syndrome.

Keywords: Health vulnerability; Nursing care; Acquired immunodeficiency syndrome, Education, nursing, continuing; Health care

Introdução

Em virtude da emergência e da progressão da aids na tessitura social, o campo da ciência dedicou esforços na busca por sua origem, explicações sobre o seu comportamento epidemiológico, definições de grupos ou práticas que proporcionassem maior risco de adoecimento e, principalmente, o alcance de possíveis recursos terapêuticos. As incertezas oriundas do surgimento da aids, sobretudo no início da década de oitenta, colocaram os enfermeiros em posição delicada em uma atmosfera de tensão, haja vista que, se por um lado os postulados éticos da profissão exigiam ininterrupção e qualidade dos cuidados prestados, por outro o medo do desconhecido e potencialmente fatal, poderia, ao menos em parte, afastar enfermeiros e pacientes.

Em consonância à polissemia, complexidade e usabilidade do conceito de vulnerabilidade por diversas áreas do conhecimento,(1) o campo da saúde se mostra fecundo para sua problematização e aproximações conceituais, posto que é na essência humana, sobretudo em suas fragilidades, que se assenta o fenômeno da vulnerabilidade. Nos últimos anos, as proposições conceituais de vulnerabilidade tem expressado facetas que privilegiam o contexto social dos grupos populacionais,(2-6) sem embargo a seus aspectos quantificáveis que possam potencialmente produzir o adoecimento.

Neste estudo entende-se por vulnerabilidade o estado dinâmico e mutável de fragilidade ou de incapacidade tipicamente humano, possuidor de diferentes dimensões e fruto de diversos fatores e situações intrínsecos e extrínsecos ao usuário do sistema de saúde ou ao profissional imbuído de seus cuidados. Este estado os impulsiona à formulação de estratégias de enfrentamento, configurando-se, assim, o seu empoderamento ante a vivência do intercurso processual saúde-doença-cuidado.(7)

A questão que norteia esta pesquisa é qual o papel do conhecimento na configuração da vulnerabilidade e do empoderamento presentes nas memórias e representações sociais elaboradas por enfermeiros acerca do cuidado de enfermagem a pessoas que vivem com HIV/Aids? Enquanto objeto, definiu-se as interfaces entre conhecimento, vulnerabilidade e empoderamento presentes nas memórias e representações sociais do cuidado de enfermagem a pessoas que vivem com HIV/ Aids para enfermeiros. O objetivo desta pesquisa foi analisar as interfaces entre conhecimento, vulnerabilidade e empoderamento presentes nas memórias e representações sociais acerca do cuidado de enfermagem a pacientes com HIV/Aids elaboradas por enfermeiros.

Métodos

Adotou-se como caminho teórico-metodológico deste trabalho a Teoria das Representações Sociais, em sua abordagem processual, desenvolvida na perspectiva da Psicologia Social. Compuseram a população do estudo 30 enfermeiros que realizavam suas atividades laborais no cenário escolhido para a pesquisa, um hospital público do Rio de Janeiro, referência para o tratamento de portadores de HIV/Aids e tuberculose. A razão para este número é o consenso existente no âmbito da Teoria de Representações Sociais como sendo o quantitativo mínimo para se recuperar as representações sociais em um grupo.(7-9) Foram excluídos os profissionais com menos de seis meses em atividade profissional no contexto do cenário escolhido. Isto se deve pelo fator tempo configurar-se como um determinante na elaboração de representações sociais. Nenhum outro atributo se constituiu como critério de exclusão justificável.

As técnicas escolhidas para coleta de dados foram o questionário sociodemográfico de caracterização dos sujeitos e a entrevista. Os dados foram coletados entre os meses de junho e agosto de 2009. Já como técnica de análise realizou-se a Análise de Conteúdo Temática após sistematização(10) e operacionalização pelo software QSR NVivo 9. Esta ferramenta informatizada se baseia no princípio de codificação e armazenamento de dados em categorias de maneira informatizada.(7)

O desenvolvimento do estudo atendeu as normas nacionais e internacionais de ética em pesquisa envolvendo seres humanos.

Resultados

Os sujeitos são, em sua maioria, do sexo feminino (87%), pertencentes à faixa etária de 41 a 45 anos (27%), de religião católica (40%), com companheiro (70%), pós-graduação lato sensu (90%), 16 anos ou mais de atuação institucional (37%) e junto a portadores do HIV (30%), em função assistencial à época da coleta de dados (63%) e com acesso a informações científicas (77%).

O resultado da análise instrumentalizada pelo NVivo 9 obteve 311 Unidades de Registro (UR), distribuídas em 22 temas e relativas a 100% do corpus analisado. A vulnerabilidade é explicitada pelos sujeitos por meio das deficiências de sua formação profissional para a atividade laboral junto aos portadores de HIV/Aids. As temáticas ligadas à vulnerabilidade possuem conteúdos essencialmente negativos, nos quais pode ser verificada a presença do medo pautado no despreparo, na insegurança e na insuficiência teórica, simultâneo à necessidade de constante prestação de cuidados. Em suas memórias, ao descreverem o início do trabalho em HIV/Aids os enfermeiros relatam ter havido medo por déficit de conhecimentos teóricos acerca da síndrome, o que a tornava uma entidade desconhecida até então.

"Porque é coisa normal a sobrevivência do ser humano. Nós temos medo de uma coisa desconhecida cuja morte é feia. Até então não se conhecia direito. Então o sentimento era medo". (E11)

"[...] eu vim trabalhar no setor de aids e foi assustador por um período. Fiquei bastante assustada. Até mesmo porque nós não tivemos nenhum preparo. Era uma coisa desconhecida para nós e até para os outros profissionais também. Para falar a verdade, eu tinha medo de trabalhar com esse tipo de paciente". (E12)

Percebe-se que a ausência de conhecimento científico disponível está presente nas memórias do cuidado de enfermagem elaboradas pelos sujeitos, que dele necessitavam para o início do trabalho em HIV/Aids. Há indícios de que a escassez de informações científicas mantem interfaces com a vulnerabilidade dos enfermeiros na medida em que os colocou em posição desfavorável, e estes se mostraram assustados e temerosos, mesmo que impossibilitados de demonstrar tais sentimentos.

"Eu sou a enfermeira, eu sou a chefe. Eu posso estar morrendo de medo, mas eu não posso falar que estou com medo". (E10)

Nos recortes discursivos elencados a seguir é possível verificar que o estado de vulnerável é expresso pelos sujeitos por meio da permanência da insegurança proporcionada pelo déficit de conhecimentos teóricos acerca da aids, seu tratamento e os cuidados de enfermagem a pacientes soropositivos, apesar de sua maior disponibilidade em fontes científicas. Desta maneira, os enfermeiros estabelecem uma autocrítica à sua prática e à sua formação profissional.

"Eu não conheço a teoria. Eu não sei. De que forma eu posso fazer diferente? Eu não conheço. [...]. Pra gente isso atrapalha um pouquinho no cuidado". (E3)

"[...] às vezes me sinto insegura ao lidar com certas situações, como medicações que eu não conheço bem. Somos muito mecânicos e às vezes eu sinto falta disso [conhecimento teórico]". (E6)

"[...] a minha parte é falha, eu acho. Eu tenho uma formação que eu acho que deveria aprimorar mais [...]". (E17)

No tocante à sensação de insegurança enfrentada pelos enfermeiros, duas facetas podem ser identifica-das. A primeira diz respeito ao seu insurgir no alvorecer da síndrome e posterior permanência no cotidiano assistencial. A segunda está ligada à sua configuração enquanto obstáculo à plenitude do cuidado. A insegurança, neste sentido, segundo os próprios sujeitos, propicia maior mecanização dos procedimentos, baixa autoestima e dificuldade na prestação de cuidados de enfermagem mais qualificados.

Verifica-se que o medo se constituiu como algo constante à vida profissional dos enfermeiros em face ao desconhecimento acerca do HIV/Aids. Os enfermeiros atribuem a falta de conhecimentos à formação deficitária e à carência de informações fidedignas disponíveis acerca da aids. O primeiro contato profissional com o paciente soropositivo, então, foi relatado como um evento traumatizante, no qual se dispunha de pouco conhecimento para instrumentalizar o fazer.

Em seguida serão descritos os recortes discursivos dos enfermeiros relativos ao empoderamento, ou seja, sobre a sensação da detenção dos recursos necessários para minimizar o estado de vulnerável ao longo da carreira assistencial em HIV/Aids.(6,7) Entre os conteúdos representacionais que apontam para um maior status percebido de empoderado estão a valoração da experiência prática, do tempo de assistência, do conhecimento e da informação - tal como sua propriedade de afastar o medo -, da busca ativa por informações cientificamente mais confiáveis do que aquelas veiculadas na mídia ou não disponíveis na instituição hospitalar, como fomentadores de habilidade e de conhecimento prático acerca do HIV/Aids.

Os enfermeiros, apesar de se sentirem prejudicados pelo déficit de informações no início das atividades assistenciais em HIV/Aids, como já abordado anteriormente, movimentaram-se para a busca ativa de conhecimento. O conhecimento, por sua vez, parece ser mediado pelo interesse despertado ante a fragilidade do paciente sob os cuidados. Desta forma, os enfermeiros atribuem positividade ao conhecimento, quer seja por fortalecer sua autonomia profissional, instrumentalizá-los ao trabalho em HIV/Aids, otimizar o cuidado prestado ou afastar o medo.

"Depois que eu comecei a trabalhar que eu fui me interessando. Porque é uma doença que deprime muito o paciente e ele precisa muito de nós. Aí fui me interessando mais". (E3)

"Quanto mais conhecimento nós tivermos, melhor vai ser o cuidado. Então isto vai refletir diretamente no cuidado. Quem não está preparado, não está capacitado". (E14)

"O que me fez mudar foram, ao longo desses anos, vários cursos e palestras. Aquele tabu de início, aquele impacto que eu tive em relação a HIV/ Aids há 15 anos atrás foi diminuindo conforme o passar dos anos, com a obtenção de informações, de treinamentos, de serviços, de palestras...Então eu fui relaxando. Relaxando não no sentido de deixar de me prevenir, mas de não ficar com aquele temor que eu tinha no início". (E19)

"Só se consegue espaço através do conhecimento, mostrando o saber". (E11)

Verifica-se que nas memórias elaboradas pelos enfermeiros houve superação da tensão no trabalho com HIV/Aids por intermédio do conhecimento obtido. Nas palavras dos enfermeiros, o tabu, o impacto, ou mesmo o medo foram substituídos pelo know-how proveniente das informações obtidas dentro ou fora do ambiente hospitalar.

O conhecimento é concebido como um propulsor à autonomia, ao sucesso do cuidado e à prática qualificada. Os enfermeiros valorizam o conhecimento biomédico na qualidade de norteador das práticas assistenciais em saúde no âmbito da aids. Neste sentido, o conhecimento se enovela aos conteúdos representacionais como instrumento fundamental ao exercício da enfermagem, capaz de fazer frente às dificuldades vivenciadas pelo paciente e pelo profissional.

A experiência manifesta a sua capacidade transformadora nos profissionais nos seguintes trechos.

"Nós acabamos nos acostumando com a situação e aceitando melhor o trabalho. Talvez exatamente por causa do coquetel, da medicação e, talvez também, por se conhecer a doença, saber quais os meios de contaminação. Hoje em dia as pessoas trabalham mais tranquilas com os pacientes HIV e até a maioria ficou mais carinhosa, dando mais atenção ao lado social da pessoa, ouvindo e conversando". (E8)

"No decorrer de certo tempo, seis meses mais ou menos, a coisa [a AIDS] foi se esclarecendo mais e o medo foi sumindo. E depois se tornou uma coisa normal pra mim. Até mesmo porque eu me afeiçoava bastante pelos pacientes, tinha bastante amizade com eles e com a família". (E12)

"E depois do decorrer desses contatos você vai vendo que as coisas não são tão feias quanto parecem. Temos que ter cuidado, mas são pessoas como nós". (E16)

"Hoje em dia eu vejo um paciente como qualquer outro. Como um paciente diabético, hipertenso ou com uma doença crônica que está sendo bem tratada. Não faz diferença de uma doença para outra". (E18)

Como pode ser observado, para alguns sujeitos, a experiência prática parece se estabelecer como soberana na formulação de conhecimentos acerca do HIV/Aids, que estão, por seu turno, sujeitos à confirmação, correção ou refinamento quando realizadas novas buscas por novos conhecimentos.

Entre os recortes acima, destacam-se o papel da afetividade na ressignificação do cuidado de enfermagem, em que pese a influência das interações sociais e do vínculo entre profissional e familiares na visualização da condição de soropositividade de maneira mais positiva e, em adição, a comparação da aids com outros processos crônicos de adoecimento. Isto se funda, entre outras coisas, na sobrevida propiciada pela terapêutica farmacológica e pelo desenhar de políticas públicas voltadas para a promoção de saúde das pessoas que vivem com HIV/Aids.

Discussão

As limitações deste estudo estão relacionadas ao número restrito de sujeitos e a investigação de um único cenário. Contudo os resultados possuem a potencialidade de revelar contextos de fragilidade ou de fortaleza percebidos pelos enfermeiros ao longo da historicidade do HIV/Aids, ambos transversalizados pela influência do (des)conhecimento sobre a síndrome de como cuidar de pessoas que vivem com HIV.

Ao verbalizarem suas memórias sobre o cuidado de enfermagem no contexto da aids, os enfermeiros deste estudo traçaram um paradoxo entre passado e presente a partir de um processo mental de ressignificação dos acontecimentos. Este trabalho possui influências da historicidade do grupo, da subjetividade de seus indivíduos, da natureza do ambiente de trabalho, entre outros fatores.

Os dados empíricos revelam a natureza multifatorial do fenômeno da vulnerabilidade e reiteram sua presença indissociável na vida humana. Por apresentar um campo representacional bem marcado, atitudes positivas ou negativas e um corpo de conhecimentos consolidado, a vulnerabilidade e o empoderamemto se apresentam como objetos de representação, tal como foram explorados por outros autores. Além disto, o estudo em tela reforça a assunção de que as fragilidades que tocam o ser humano, em especial ao enfermeiro por cuidar de outros seres em situação de vulnerabilidade, são respondidas com atitudes, saberes e práticas cujo objetivo é mover os sujeitos para um contexto mais favorável, no qual maior grau de empoderamento possa ser alcançado.(1-8,9,11-16)

Os dados evidenciam que o conhecimento mantem interfaces com a vulnerabilidade, com o empoderamento, com as representações sociais da aids e com as representações sociais do cuidado de enfermagem a pessoa que vive com HIV. Mesmo se tratando de objetos de representação distintos postula-se que há imbricação estre os mesmos, de configurações complexas e que está susceptível às transformações consoantes às relações interpessoais entre os atores sociais envolvidos no cotidiano assistencial e, mais amplamente, às injunções geopolíticas relacionadas ao fenômeno da aids.(11)

Os enfermeiros, que enfrentaram grande dificuldade na estruturação de suas práticas frente à constatação da insuficiência de fontes de conhecimento científico, verbalizam sua condição de vulnerabilidade pautada no medo que sentiram em virtude da sensação de despreparo profissional, na insegurança e na escassez de informações sobre a aids e seus modos de transmissão e tratamento. Este dado se assemelha aos resultados encontrados por outras pesquisas.(5-7,8) Porém, o tempo de atuação em HIV/Aids, o crescente interesse em um processo de adoecimento que gera dependência em múltiplos domínios do ser humano e a aquisição de conhecimentos científicos disponibilizados aos sujeitos ao longo dos anos, sobretudo nos veículos de comunicação em massa e em cursos de capacitação fornecidos pela instituição, contribuíram para aceitação, por parte dos enfermeiros, da atividade de cuidar de pessoas soropositivas para o HIV, o que corporifica os conteúdos representacionais sobre um estado mais favorável de empoderamento. Neste sentido, a busca por conhecimentos, o aumento do interesse sobre a aids e o tempo de atuação neste contexto (os sujeitos, em sua maioria, possuem 16 anos ou mais de atuação) são elementos presentes no bojo das construções representacionais dos sujeitos na qualidade de opositores ao poder fragilizador do medo pautado na incerteza e na iminência do perigo de contaminação percebido.

Pontua-se que o conhecimento que mobiliza os sujeitos de um status percebido de vulnerabilidade para o de empoderamento não necessariamente se trata do conhecimento puramente científico, dado que a prática de cuidado foi verbalizada pelos enfermeiros como fonte importante de recurso para fazer frente ao medo, o despreparo e a insegurança. Por sua construção relacional e simultaneamente biomédica, a prática profissional de enfermeiros é corporificada por construções oriundas tanto do universo reificado quanto do consensual, se apropria das informações disponíveis no cotidiano e na interação com as pessoas e as articula ao corpo de saberes científicos para estruturar-se.

Destaca-se que, diferente de outras formas de enfrentamento mais imediatas,(7,16) aquelas que foram identificadas por esta pesquisa desenvolveram-se gradualmente, em compasso às vivências, as relações interpessoais e as trocas simbólicas partícipes do ambiente de cuidado. Postula-se que, ao longo desta temporalidade, foi desenvolvido um processo de naturalização da aids balisado por sua ressignificação (Figura 1). Neste sentido, sua aceitação e comparação com doenças de caráter crônico sinalizam para uma atitude mais positiva por parte dos sujeitos. Esta possibilidade encontra esteio nos resultados de uma pesquisa recentemente publicada.(14)


Este estudo ponta caminhos para que outras pesquisas possam investigar, sob outras condições e em diferentes contextos, a problemática da vulnerabilidade no cuidado de enfermagem e seu ressignificar por enfermeiros, pacientes e familiares.(12,13) A influência de variáveis como o papel de liderança,(14,15) a proximidade física com o corpo e mente adoecidos das pessoas que vivem com AIDS, a função educativa em um momento histórico no qual pouco se dispunha de conhecimentos técnico-científicos sobre a aids(16) e a relação entre vulnerabilidade e possíveis expressões de espiritualidade/religiosidade,(17) configuram-se como variáveis que podem ser analisadas em associação à vulnerabilidade e o empoderamento presentes no cuidado.

O empoderamento, por seu turno, apresenta como um de seus pilares de sustentação a obtenção de informações de ordem teórico-prática para o trabalho em HIV/Aids.

Conclusão

Os resultados indicam que são complexas as interfaces entre conhecimento (reificado ou consensual), vulnerabilidade e empoderamento de enfermeiros presentes nas memórias e representações sociais que elaboraram acerca do cuidado de enfermagem a pessoa que vive com HIV/Aids. Percebe-se que a sensação de despreparo ou de desconhecimento sobre a aids, seja ela do início da epidemia no cenário de trabalho ou aquela ainda presente na vida profissional dos enfermeiros, se mostra como um terreno frutífero à vulnerabilidade destas pessoas.

Agradecimentos

Esta pesquisa é dedicada à Edna Cristina e Elysa Cristina pelo apoio incondicional à sua realização.

Colaborações

Santos EI e Gomes AMT declaram que contribuíram com a concepção e projeto, análise e interpretação dos dados, redação do artigo, revisão crítica relevante do conteúdo intelectual e aprovação final da versão a ser publicada.

Submetido 16 de Outubro de 2013

Aceito 11 de Novembro de 2013

Conflitos de interesse: não há conflito de interesse a declarar.

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  • Autor correspondente:
    Érick Igor dos Santos
    Edifício Paulo de Carvalho Boulevard 28 de Setembro, 157,
    Rio de Janeiro, RJ, Brasil. CEP: 20551-030
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Jan 2014
    • Data do Fascículo
      2013

    Histórico

    • Recebido
      16 Out 2013
    • Aceito
      11 Nov 2013
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