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Influência da espiritualidade sobre a função renal em pacientes transplantados renais

Resumo

Objetivo:

Avaliar a influência da espiritualidade na função renal de pacientes transplantados renais.

Métodos:

Estudo transversal, conduzido em um hospital de clínicas, público e de grande porte, situado no interior do Estado de São Paulo, Brasil, que incluiu 81 pacientes transplantados renais, entre 30 dias e 60 meses de pós-transplante, seguidos por 12 meses. Com base na Escala de Religiosidade de DUREL os pacientes foram divididos em dois grupos considerando-se a mediana da espiritualidade, sendo estes o grupo espiritualizado (n=52) e o menos espiritualizado (n=29). Para a análise estatística foram utilizados testes indutivos e a análise de modelos lineares mistos, com nível de significância de 5% (p<0,05).

Resultados:

As características clínicas, de imunossupressão, apoio social, adesão ao tratamento medicamentoso, qualidade de vida e depressão não apresentaram diferenças entre os grupos. A função renal ao longo de um ano foi significativamente maior no grupo espiritualizado a partir do nono mês. Ao fim de 12 meses, a percentagem de pacientes com clearance de creatinina superior a 60ml/min. foi de 61,5% no grupo espiritualizado e 34,5% no grupo menos espiritualizado (p=0,02). A análise multivariada mostrou que o grupo menos espiritualizado apresentou um risco de 4,7 vezes [1,4 – 16,8] maior para pior função renal (p=0,01).

Conclusão:

Pacientes mais espiritualizados apresentaram melhor função renal no decorrer de um ano de transplante. Esse efeito foi independente de características clínicas, do apoio social e da adesão à terapia imunossupressora. Assim, uma abordagem holística no atendimento, com ênfase no cuidado espiritual, é encorajada.

Descritores
Espiritualidade; Transplante de rim; Doença crônica; Religião; Religião e medicina

Abstract

Objective:

To evaluate influence of spirituality on renal function of kidney transplant patients.

Methods:

This cross-sectional study included 81 kidney transplant patients who had undergone transplantation between 30 and 60 months previously. Patients were followed up for 12 months. The analysis was carried out in a large public hospital in the countryside of São Paulo, Brazil. Based on the Duke University Religion Index-religiosity and spirituality scale, we divided patients into two groups (spiritualized [n=52] and less spiritualized [n=29]), considering the median spirituality. For statistical analysis, we used inductive tests and analysis with linear mixed models, with a level of significance of 5% (p<0.05).

Results:

Clinical characteristics, immunosuppression, social support, adherence to drug therapy, quality of life, and depression did not differ between groups. Renal function after 12 months was significantly higher in the spiritualized group from 9 months on. After 12 months, the percentage of patients with creatinine clearance higher than 60 ml/min was 61.5% in the spiritualized group and 34.5% in the less spiritualized group (p=0.02). Multivariate analysis showed that the less spiritualized group had a 4.7 times greater risk [1.4 – 16.8] for worsening in renal function (p=0.01).

Conclusion:

More spiritualized patients had better renal function after 1 year of transplantation. This result was independent of clinical features, social support, and adherence to immunosuppressive therapy. A holistic approach in health with emphasis on spirituality is encouraged.

Keywords
Spirituality; Kidney transplantation; Chronic disease; Religion; Religion and medicine

Introdução

A Doença Renal Crónica configura-se como um problema de saúde pública mundial.(11. Bayoumi M, Harbi A, Suwaida A, Ghonaim M, Wakeel J, Mishkiry A. Predictors of quality of life in hemodialysis patients. Saudi J Kidney Dis Transpl. 2013; 24(2):254-9.) No Brasil, admite-se existirem aproximadamente 123 mil pacientes em tratamento dialítico. No entanto, ressalta-se que incidência anual é crescente.(22. Sociedade Brasileira de Nefrologia [Internet]. 2016. Censo de diálise SBN 2016. [citado 2017 Jul 13]. Disponível em http://sbn.org.br/pdf/censo_2016_publico_leigo.pdf.
http://sbn.org.br/pdf/censo_2016_publico...
)

A hemodiálise, a diálise peritoneal e o transplante renal constituem as modalidades de tratamento disponíveis. Contudo, são consideradas substitutivas e não curativas. O transplante renal é apontado como a melhor modalidade terapêutica por promover maior qualidade de vida e menor mortalidade, além de reduzir custos ao sistema de saúde.(33. Neipp M, Jackobs S, Klempnauer J. Renal transplantation today. Langenbecks Arch Surg. 2009; 394(1):1-16.)

Embora o número de transplantes renais no Brasil seja crescente, admite-se estar aquém do ideal.(44. Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos. Dados numéricos da doação de órgãos e transplantes realizados por estado e instituição no período: janeiro/junho 2016. RBT: Reg Bras Transpl. 2016; 22(2):1-17.) Apesar das vantagens advindas dessa terapêutica, os pacientes enfrentam desafios, necessitando aderir a muitas recomendações que incluem mudanças em suas atividades diárias, uso contínuo de medicações imunossupressoras, prevenção de infecções, uma vez que apresentam alterações na função imunológica, consultas médicas periódicas, cuidados dietéticos e realização de atividades físicas rotineiras.(33. Neipp M, Jackobs S, Klempnauer J. Renal transplantation today. Langenbecks Arch Surg. 2009; 394(1):1-16.,55. von der Lippe N, Waldum B, Brekke FB, Amro AAG, Reisæter AV, Os I. From dialysis to transplantation: a 5-year longitudinal study on selfreported quality of life. BMC Nephrol. 2014; 15:191.)

Assim, o desenvolvimento ou estabelecimento de estratégias de enfrentamento são necessários. Dentre elas, destacam-se a espiritualidade e a religiosidade.(66. Khanna S, Greyson B. Near-death experiences and spiritual well-being. J Relig Health. 2014; 53(6):1605-15.,77. Unterrainer H. F, Lewis A. J, Fink A. Religious/Spiritual well-being, personality and mental health: a review of results and conceptual issues. J Relig Health. 2014; 53(2):382-92.) Nesse contexto, importantes publicações científicas têm se voltado à essa temática, evidenciando sua relevância na prática clínica.(88. Zaben F, Khalifa DA, Sehlo MG, Al Shohaib S, Binzaqr SA, Badreg AM, et al. Religious involvement and health in dialysis patients in Saudi Arabia. J Relig Health. 2015; 54(2):713-30.1010. Borges DC, Furino FO, Barbieri MC, Souza RO, Alvarenga WA, Dupas G. The social network and support of kidney transplants. Rev Gaúcha Enferm. 2016; 37(4):e59519.)

Estudo apontou a correlação entre religiosidade e a redução do risco de mortalidade.(1111. Lucchetti G, Lucchetti AL, Koenig HG. Impact of spirituality/religiosity on mortality: comparison with other health interventions. Explore (NY). 2011; 7(4):234-8.) Esse benefício também foi observado em pacientes com doenças renais crónicas, embora em associação com melhor suporte social.(1212. Spinale J, Cohen SD, Khetpal P Peterson RA, Clougherty B, Puchalski CM, et al. Spirituality, social support, and survival in hemodialysis patients. Clin J Am Soc Nephrol. 2008; 3(6):1620-7.) Outras pesquisas apontaram os benefícios da espiritualidade e/ou da religiosidade para a saúde geral de pacientes com doença renal crônica.(1313. Valcanti CC, Chaves EC, Mesquita AC, Nogueira DA, Carvalho EC. Religious/spiritual coping in people with chronic kidney disease undergoing hemodialysis. Rev Esc Enferm USP. 2012; 46(4):838-45.1515. Cruz JP, Colet PC, Qubeilat H, Al-Otaibi J, Coronel EI, Suminta RC. Religiosity and health-related quality of life: a cross-sectional study on filipino christian hemodialysis patients. J Relig Health. 2016; 55(3):895-908.)

No pós-transplante renal, a espiritualidade foi correlacionada à adesão ao tratamento, sugerindo uma possível relação entre essas variáveis.(1616. Silva AN, Moratelli L, Tavares PL, Marsicano EO, Pinhati RR, Colugnati FA, et al. Self-efficacy beliefs, locus of control, religiosity and nonadherence to immunosuppressive medications in kidney transplant patients. Nephrology (Carlton). 2016; 21(11):938-43.) Ainda, possuir maior religiosidade relacionou-se com menor risco comportamental e melhor adesão.(1717. Hatah E, Lim KP Ali AM, Shah MN, Islahudin F. The influence of cultural and religious orientations on social support and its potential impact on medication adherence. Patient Prefer Adherence. 2015; 9:589-96.)

Ao que nos consta, até o momento não há estudos na literatura que tenham abordado a espiritualidade e a evolução da função renal em pacientes transplantados, apontando-se a relevância desta publicação. A hipótese do estudo é que a espiritualidade esteja associada à melhora na função renal nesses pacientes.

Assim, o objetivo desta investigação consistiu em avaliar a influência da espiritualidade na função renal de pacientes transplantados renais.

Métodos

Trata-se de um estudo transversal, conduzido no Serviço Multidisciplinar de Transplante Renal de um hospital de clínicas, público e de grande porte, situado no interior do estado de São Paulo, Brasil.

A população constou de pacientes transplantados renais, acompanhados na instituição. A amostra consecutiva foi de 81 participantes. Os critérios de inclusão foram possuir idade maior ou igual a 18 anos e tempo de transplante superior a 30 dias e inferior a 60 meses. Foram excluídos os pacientes com transplante duplo: de pâncreas e rim ou de rim e outros órgãos. Os pacientes foram divididos em dois grupos com base na mediana da espiritualidade da amostra total, compreendendo o grupo espiritualizado (n=52) e menos espiritualizado (n=29).

A coleta de dados iniciou-se após aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Instituição sob o número CAAE: 20869413.8.0000.5411. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, obedecendo aos preceitos da Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde sobre pesquisas envolvendo seres humanos.

Os pacientes foram recrutados para o estudo entre outubro de 2013 a julho de 2014, sendo acompanhados até julho de 2015 quanto à função renal.

Como desfecho primário, buscou-se avaliar e comparar a evolução da função renal ao longo de 12 meses, em ambos os grupos. Foram analisadas as mudanças em relação ao basal, aos três, seis, nove e 12 meses, após o início do estudo. A função renal foi estimada pela fórmula de Cockcroft-Gault e corrigida pela superfície corpórea.

Como desfecho secundário, buscou-se avaliar a incidência de perda do enxerto, rejeição celular aguda e óbito, em ambos os grupos. Foram avaliadas as correlações entre a escala de religiosidade/espiritualidade e as escalas de adesão à terapia imunossupressora, e seu impacto na função renal ao fim de 12 meses. Ainda, foram consideradas as variáveis idade, sexo, tempo após o transplante, escolaridade e religião.

Foram avaliados os fatores de possível confusão associados à piora da função renal, que incluíram: tipo de doador (vivo ou falecido), painel de reatividade classe 1, número de incompatibilidades HLA (mismatches), tempo de transplante, terapia imunossupressora e rejeição aguda comprovada por biópsia no período de 12 meses.

A creatinina foi avaliada no momento basal e após três, seis, nove e 12 meses da primeira avaliação. Avaliou-se o nível sérico dos imunossupressores utilizados nesse mesmo período, incluindo: ciclosporina, tacrolimus, sirolimus ou everolimus.

Como instrumentos de coleta de dados foram aplicados seis questionários validados, sendo: Escala de Religiosidade e Espiritualidade de DUREL;(1818. Lucchetti G, Granero Lucchetti AL, Peres MF, Leão FC, Moreira-Almeida A, Koenig H.G. Validation of the Duke Religion Index: DUREL (Portuguese version). J Relig Health. 2012; 51(2):579-86.) Inventário de Depressão de BECK;(1919. Beck AT, Ward CH, Mendelson M, Mock J, Erbaugh J. An inventory for measuring depression. Arch Gen Psychiatry. 1961; 4:561-71.) Inventário de Ansiedade Traço e Estado (IDATE);(2020. Craven JL, Rodin GM, Littlefield C. The Beck Depression Inventory as a screening device for major depression in renal dialysis patients. Int J Psychiatry Med. 1988; 18(4):365-74.) Escala de Apoio Social (MOS);(2121. Sherbourne CD, Stewart AL. The MOS social support survey. Soc Sci Med. 1991; 32(6):705-14.) Questionário de Qualidade de Vida (WHOQOL-BREF,)(2222. The World Health Organization Quality of Life Assessment (WHOQOL): development and general psychometric properties. Soc Sci Med. 1998; 46(12):1569-85.) e Questionário de Adesão à Terapia Imunossupressora de Basel (BAASIS).(2323. Dobbels F, Berben L, De Geest S, Drent G, Lennerling A, Whittaker C, et al. The psychometric properties and practicability of self-report instruments to identify medication nonadherence in adult transplant patients: a systematic review. Transplantation. 2010; 90(2):205-19.)

A Escala de DUREL é composta por cinco itens utilizados para mensurar a religiosidade. Visa a mensurar os três maiores domínios da religiosidade (organizacional, não organizacional e intrínseca ou espiritualidade). Para comparar os grupos, cada dimensão foi analisada separadamente, uma vez que não é recomendado somar pontuações das diferentes dimensões.(1818. Lucchetti G, Granero Lucchetti AL, Peres MF, Leão FC, Moreira-Almeida A, Koenig H.G. Validation of the Duke Religion Index: DUREL (Portuguese version). J Relig Health. 2012; 51(2):579-86.)

O Inventário de Depressão de Beck foi utilizado para avaliar sintomas de depressão. Quanto maior o valor, maior a presença de sintomas depressivos. Um corte acima do valor 15 tem sido usado como indicativo de depressão.(1919. Beck AT, Ward CH, Mendelson M, Mock J, Erbaugh J. An inventory for measuring depression. Arch Gen Psychiatry. 1961; 4:561-71.,2424. Craven JL, Rodin GM, Littlefield C. The Beck Depression Inventory as a screening device for major depression in renal dialysis patients. Int J Psychiatry Med. 1988; 18(4):365-74.)

O IDATE foi utilizado para avaliar a ansiedade. É composto por duas escalas distintas elaboradas para medir dois conceitos de ansiedade (estado e traço). O escore total da escala varia de 20 a 80, sendo que valores mais altos indicam maior grau de ansiedade.(2020. Craven JL, Rodin GM, Littlefield C. The Beck Depression Inventory as a screening device for major depression in renal dialysis patients. Int J Psychiatry Med. 1988; 18(4):365-74.)

A MOS foi utilizada para avaliar o apoio social. É composta por quatro dimensões: material, afetiva, emocional e interação social positiva. Os índices dessas dimensões compreendem pontuações entre 20 e 100. Quanto mais alta a pontuação, maior o apoio social.(2121. Sherbourne CD, Stewart AL. The MOS social support survey. Soc Sci Med. 1991; 32(6):705-14.)

Para avaliar a qualidade de vida foi utilizado o WHOQOL-Bref. Esse instrumento é composto por 26 questões divididas em quatro domínios: saúde física, psicológica, relações sociais e meio ambiente. Escores mais elevados representam melhor qualidade de vida.(2222. The World Health Organization Quality of Life Assessment (WHOQOL): development and general psychometric properties. Soc Sci Med. 1998; 46(12):1569-85.)

A BASSIS foi utilizada para avaliar a adesão ao tratamento imunossupressor. Essa escala consiste em quatro questões com avaliações sobre o uso das medicações nas últimas quatro semanas. Uma resposta positiva para qualquer item foi definida como não adesão.(2323. Dobbels F, Berben L, De Geest S, Drent G, Lennerling A, Whittaker C, et al. The psychometric properties and practicability of self-report instruments to identify medication nonadherence in adult transplant patients: a systematic review. Transplantation. 2010; 90(2):205-19.)

Na análise estatística, para as variáveis paramétricas, utilizou-se o Teste t-Student. Para as não paramétricas, utilizou-se o Teste de Mann-Whitney. Para as variáveis categóricas foram utilizados os Testes Qui-quadrado ou Exato de Fisher, quando apropriados. Para a análise do desfecho primário foi utilizada a análise de modelos lineares mistos (“linear mixed models’") no decorrer dos meses. Foram consideradas as medidas repetidas no decorrer de cinco avaliações (zero, três, seis, nove e 12 meses), utilizando-se, como variável dependente, o clearance de creatinina estimado, e como fatores fixos, o tempo e o grupo (espiritualizado e menos espiritualizado).

Foi construída a análise multivariada de regressão logística binária para os fatores de risco associados a pior função renal ao fim de 12 meses. Considerou-se como variável dependente o clearance de creatinina estimado inferior a 60ml/min., e como covariáveis, aquelas com p<0,20 na análise univariada e outras incluídas por estarem fortemente relacionadas a pior desfecho, incluindo: a idade do receptor, o grupo, o tipo de terapia de indução, o tempo de transplante, tipo de doador, painel de reatividade classe 1, presença de rejeição aguda e não adesão. Desfechos secundários: a análise de correlação entre as escalas de religiosidade e a espiritualidade e escala de adesão foi feita pelo Teste de Spearman. As correlações entre as escalas de espiritualidade e não adesão com o clearance de creatinina foram feitas pelo Teste de Person. O nível de significância para todos os testes foi de 5% (p<0,05).

Resultados

Foram avaliados, inicialmente, 114 pacientes. Destes, foram excluídos 21 devido ao tempo de transplante ser superior a 60 meses, sete por recusa na participação no estudo e cinco por possuírem idade inferior a 18 anos. Assim, 81 pacientes compuseram a amostra. A média de idade foi de 42 (±12) anos. Predominou o sexo feminino (53%), com tempo mediano de transplante de oito meses.

A amostra foi dividida em dois grupos com base na mediana da espiritualidade, que apresentou o valor de quatro. Assim, foram divididos os grupos em espiritualizado (n=51) e menos espiritualizados (n=29).

Predominaram os pacientes submetidos a transplante renal de doador falecido (63,5%), com painel de reatividade classe 1 baixo e pouca percentagem de retransplante, em ambos os grupos. O tipo de indução predominante foi o basiliximab e a combinação mais comum foi o uso de tacrolimus com micofenolato, sem diferenças entre os grupos. Quanto à patologia de base, observou-se predomínio da indeterminada em ambos os grupos, sem diferença entre eles. A percentagem de rejeição celular aguda comprovada por biópsia foi de 9,8% no grupo espiritualizado e de 7,1% no grupo menos espiritualizado. A creatinina e o clearance de creatinina inicial também foram semelhantes entre os grupos (Tabela 1).

Tabela 1
Características basais, risco imunológico e imunossupressão nos grupos espiritualizado e menos espiritualizado (n=81)

Os grupos foram semelhantes quando à escolaridade, com predomínio de até o segundo grau, em ambos os grupos. A religião prevalente foi a católica, sem diferenças entre os grupos (Tabela 2).

Tabela 2
Escolaridade, religião e questionários basais nos grupos espiritualizado e menos espiritualizado (n=81)

A escala de DUREL mostrou maior religião organizacional no grupo espiritualizado, com mediana de dois [1-3] e mediana de dois [2-4] no grupo menos espiritualizado (p=0,001). A religiosidade organizacional também foi maior no grupo espiritualizado [2; 2-2] em relação ao grupo menos espiritualizado [2; 2-5] (p=0,01). A escala de religiosidade/espiritualidade foi utilizada para a divisão entre os grupos. As demais variáveis (depressão, ansiedade, qualidade de vida, apoio social e adesão ao tratamento imunossupressor) não apresentaram diferenças entre os grupos (Tabela 2).

A percentagem de pacientes considerados não aderentes também não diferiu entre os grupos, sendo 19,2% no grupo espiritualizado e 27,6% no grupo menos espiritualizado (p=0,41) (Tabela 2).

Em relação ao desfecho primário, a análise de medidas não mostrou diferenças na creatinina no decorrer do tempo e entre os grupos. Ao fim de 12 meses, a média da creatinina no grupo espiritualizado foi de 1,47 (±0,6) e no grupo menos espiritualizado de 1,95 (±1,7) (Tabela 3).

Tabela 3
Análise de medidas repetidas da creatinina e clearance de creatinina nos momentos basais, três, seis, nove e 12 meses após a primeira avaliação, nos grupos espiritualizado e menos espiritualizado (n=81)

Analisando o clearance de creatinina, observamos que não houve diferenças entre os grupos em relação ao tempo nos 12 meses avaliados. Em relação aos grupos, o espiritualizado apresentou clearance de creatinina significativamente maior a partir do nono mês (p=0,009) (Tabela 3).

Ao fim de 12 meses, a percentagem de pacientes com clearance de creatinina superior a 60ml/min. foi de 61,5% no grupo espiritualizado e de 34,5% no grupo menos espiritualizado (p=0,02) (Tabela 3).

A análise multivariada de fatores de risco associados a apresentar clearance de creatinina inferior a 60ml/min. ao fim de 12 meses mostrou que pertencer ao grupo menos espiritualizado associou-se a um risco de 4,7 vezes [1,4 – 16,8] maior para pior função renal (p=0,01). Ainda, associou-se a piora da função renal aos 12 meses à idade do paciente OR=1,01 [1,001 – 1,13] por ano de vida, ao tempo de transplante OR=1,09 [1,03 – 1,15] por meses adicionais e a receptores de doador falecido OR=12,4 [7,17 – 88,3].

Quanto aos desfechos secundários, a perda do enxerto foi zero no grupo espiritualizado e 6,9% no grupo menos espiritualizado (p=0,12). Não houve diferenças referentes a óbito entre os dois grupos (Tabela 1).

A religiosidade não organizacional correlacionou-se com a espiritualidade (r=0,449 e p<0,001). A religiosidade organizacional correlacionou-se com a espiritualidade (r=0,328 e p=0,003). Não houve correlação da adesão aos imunossupressores com a espiritualidade (r=0,072 e p=0,52). A espiritualidade correlacionou-se inversamente com o clearance de creatinina aos 12 meses (r=-0,259 e p=0,02). A adesão aos imunossupressores correlacionou-se de forma inversa com o clearance de creatinina aos 12 meses (r=-0,381, p<0,001). A análise multivariada de fatores associados ao clearance de creatinina aos 12 meses mostrou que a espiritualidade correlacionou-se inversamente e de forma independente com a função renal (beta=-3,701 e p=0,03) e ao tempo de transplante (beta=-0,627 e p=0,001).

Discussão

As limitações desta investigação referem-se à natureza monocêntrica e o desenho transversal, que não permitem a generalização dos resultados e o estabelecimento de relações causais. Assim, são necessários mais estudos para entender melhor a relação entre a religiosidade e o resultado do transplante renal.

No entanto, as contribuições desta investigação são evidentes e inclui um relatório minucioso das características clínicas e dos perfis imunológicos dos participantes do estudo, o que não é observado rotineiramente em investigações sobre a religiosidade e o controle de potenciais fatores de confusão associados a resultados ruins, como a não adesão, depressão, ansiedade e apoio social. Outro aspecto positivo a ser considerado diz respeito à escala de religiosidade utilizada neste estudo, que é de fácil aplicabilidade e reprodutível.

Contudo, a principal contribuição desta investigação para a prática clínica relacionou-se ao fortalecimento da hipótese de que a espiritualidade pode influenciar positivamente a função renal em pacientes transplantados, uma vez que os resultados apontaram essa melhora após 12 meses do procedimento como variável independente. Portanto, o atendimento com ênfase no bem-estar espiritual faz-se necessário.

Evidenciou-se que o nível de religiosidade foi alto entre os pacientes transplantados renais investigados. De fato, 67,3% dos participantes apresentaram altos índices de religiosidade intrínseca e foram, portanto, atribuídos ao grupo de maior espiritualidade. Esse achado sugere que pacientes com doenças crônicas apresentam maior religiosidade/espiritualidade quando comparados à população em geral.

Possuir fé ou crer em algo superior contribui para o enfrentamento e, consequentemente, com o complexo processo que envolve o transplante renal, principalmente no que diz respeito à superação dos medos e da ansiedade, entre outros sentimentos negativos.(1010. Borges DC, Furino FO, Barbieri MC, Souza RO, Alvarenga WA, Dupas G. The social network and support of kidney transplants. Rev Gaúcha Enferm. 2016; 37(4):e59519.)

A religiosidade/espiritualidade é apontada como importante recurso para o ajustamento e gerenciamento de situações estressantes, que, portanto, exigem dos indivíduos nova postura frente a determinadas situações.(2525. Taheri Kharame Z, Zamanian H, Foroozanfar S, Afsahi S. Religious wellbeing as a predictor for quality of life in Iranian hemodialysis patients. Glob J Health Sci. 2014; 6(4):261-9.,2626. Russell CL, Ashbaugh C, Peace L, Cetingok M, Hamburger KQ, Owens S, et al. Time-in-a-bottle (TIAB): a longitudinal, correlational study of patterns, potential predictors, and outcomes of immunosuppressive medication adherence in adult kidney transplant recipients. Clin Transplant. 2013; 27(5):E580-590.) Aproximar-se de Deus, da igreja e seus integrantes favorece o apoio emocional aos indivíduos transplantandos.(1010. Borges DC, Furino FO, Barbieri MC, Souza RO, Alvarenga WA, Dupas G. The social network and support of kidney transplants. Rev Gaúcha Enferm. 2016; 37(4):e59519.)

No grupo menos espiritualizado, a função renal foi pior aos 12 meses. A análise multivariada mostrou que esse efeito foi independente da aderência à terapia de imunossupressão e dos fatores clínicos associados a piores resultados. Assim, a pior função renal observada neste grupo não pode ser explicada pela presença de características clínicas.

Ambos os grupos, espiritualizado e menos espiritualizado, mostraram predominância de risco imunológico moderado, tipo de doador falecido e painel de baixa reatividade, e receberam imunossupressão de manutenção similar (tacrolimus combinado com prednisona e micofenolato) e terapia de indução (basiliximab), na maioria dos casos.

Um melhor apoio social e uma melhor qualidade de vida, tradicionalmente associados à religiosidade/espiritualidade(88. Zaben F, Khalifa DA, Sehlo MG, Al Shohaib S, Binzaqr SA, Badreg AM, et al. Religious involvement and health in dialysis patients in Saudi Arabia. J Relig Health. 2015; 54(2):713-30.,99. Jazieh AR, Al Sudairy R, Abulkhair O, Alaskar A, Al Safi F, Sheblaq N, et al. Use of complementary and alternative medicine by patients with cancer in Saudi Arabia. J Altern Complement Med. 2012; 18(11):1045-9.) também não explicam a melhor função renal observada nos participantes de maior espiritualidade, uma vez que, os escores de depressão, ansiedade, suporte social e qualidade de vida não diferiram entre os grupos.

Uma das características fortemente associadas com um mau resultado no transplante renal é a adesão à terapia de imunossupressão.(2727. Gupta G, Abu Jawdeh BG, Racusen LC, Bhasin B, Arend LJ, Trollinger B, et al. Late antibody-mediated rejection in renal allografts: outcome after conventional and novel therapies. Transplantation. 2014; 97(12):1240-6.) A não adesão tem sido associada à rejeição mediada pelo anticorpo tardio e consequente pior função renal.(2828. Garcia MF, Bravin AM, Garcia PD, Contti MM, Nga HS, Takase HM, et al. Behavioral measures to reduce non-adherence in renal transplant recipients: a prospective randomized controlled trial. Int Urol Nephrol. 2015; 47(11):1899-905.) Assim, dos fatores de confusão abordados neste estudo, a adesão é de especial importância, considerando-se que o período de estudo incluiu o pós-transplante inicial, durante o qual o risco de não adesão é mais elevado.(2929. Bonaguidi F, Michelassi C, Filipponi F, Rovai D. Religiosity associated with prolonged survival in liver transplant recipients. Liver Transpl. 2010; 16(10):1158-63.)

No entanto, os escores na escala de adesão não diferiram entre os grupos. Além disso, não houve correlação entre a religião intrínseca e os escores de adesão, embora os escores em ambas as escalas se correlacionaram inversamente com a função renal aos 12 meses. Assim, esses achados sugerem que a espiritualidade pode refletir indiretamente a soma do apoio social, adesão e qualidade de vida, que, provavelmente leva à melhora na função renal.

Sabe-se que os pacientes tendem a negar qualquer não adesão à terapia medicamentosa ao responderem questionários. Contudo, quando os questionários de religiosidade/espiritualidade são aplicados, os pacientes parecem responder de forma mais adequada, possivelmente por não estarem diretamente relacionados ao não cumprimento.

No presente estudo não foram encontradas diferenças na mortalidade entre os grupos. Isso pode ser explicado pela baixa taxa de eventos adversos observados nos 12 meses de acompanhamento. Investigações anteriores que abordaram a mortalidade em pacientes na lista de espera para transplante hepático e com doença renal crônica em diálise também associaram maior religiosidade/espiritualidade à menor mortalidade.(1212. Spinale J, Cohen SD, Khetpal P Peterson RA, Clougherty B, Puchalski CM, et al. Spirituality, social support, and survival in hemodialysis patients. Clin J Am Soc Nephrol. 2008; 3(6):1620-7.)

Por fim, sugere-se que a religiosidade e espiritualidade sejam consideradas para identificar pacientes em risco de pior evolução pós-transplante renal, além da necessidade de integração dessas variáveis no processo de cuidar em saúde para estes pacientes.

Conclusão

Os pacientes transplantados renais apresentaram elevado grau de religiosidade e espiritualidade. Os pacientes mais espiritualizados apresentaram melhor função renal no decorrer de um ano de transplante. Esse efeito foi independente de características clínicas, do apoio social e da adesão à terapia imunossupressora. Assim, uma abordagem holística no atendimento, com ênfase no cuidado espiritual, é encorajada.

Referências

  • 1
    Bayoumi M, Harbi A, Suwaida A, Ghonaim M, Wakeel J, Mishkiry A. Predictors of quality of life in hemodialysis patients. Saudi J Kidney Dis Transpl. 2013; 24(2):254-9.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Oct 2017

Histórico

  • Recebido
    08 Ago 2017
  • Aceito
    24 Out 2017
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