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Validação qualitativa de um jogo para enfrentamento da violência contra a mulher

Validación cualitativa de un juego para el enfrentamiento de la violencia contra la mujer

Resumo

Objetivo

Validar qualitativamente o jogo Violetas para utilização com profissionais que atuam no enfrentamento da violência contra a mulher.

Métodos

Estudo de abordagem qualitativa, realizado com 30 profissionais das Casas da Mulher Brasileira de Brasília, Campo Grande e Curitiba. Os dados foram coletados por meio de Oficinas de Trabalho Crítico-emancipatórias e tratados através da técnica de análise de conteúdo temática, com o apoio do software webQDA.

Resultados

A análise dos dados possibilitou a emergência de três categorias empíricas: Violência contra a mulher: o jogo pergunta e as profissionais respondem; A ação e a omissão recriadas no tabuleiro; O trabalho colaborativo como ferramenta para o enfrentamento da violência contra a mulher.

Conclusão

O jogo Violetas motivou o reconhecimento de diferentes situações de violência comumente perpetradas contra as mulheres, bem como a reflexão sobre as estratégias para a prevenção e o enfrentamento do problema na realidade fictícia. Pela similaridade das questões abordadas no jogo com a realidade concreta, foi possível a ampliação dos conhecimentos e sua aplicação na prática profissional das participantes.

Violência contra a mulher; Jogos experimentais; Adaptação psicológica

Resumen

Objetivo

Validar cualitativamente el juego Violetas para la utilización con profesionales que actúan en el enfrentamiento de la violencia contra la mujer.

Métodos

Estudio de abordaje cualitativo, realizado con 30 profesionales de las Casas de la Mujer Brasileña de Brasília, Campo Grande y Curitiba. Los datos fueron recopilados por medio de Oficinas de Trabajo Crítico-emancipatorias y tratados a través de la técnica de análisis de contenido temático, con el apoyo del software webQDA.

Resultados

El análisis de los datos posibilitó la emergencia de tres categorías empíricas: Violencia contra la mujer: el juego pregunta y las profesionales responden; La acción y la omisión recriadas en el tablero; El trabajo colaborativo como herramienta para el enfrentamiento de la violencia contra la mujer.

Conclusión

El juego Violetas motivó el reconocimiento de distintas situaciones de violencia comúnmente cometidas contra las mujeres, así como la reflexión sobre las estrategias para la prevención y el enfrentamiento del problema en la realidad ficticia. En función de la semejanza de las cuestiones tratadas en el juego con la realidad concreta, se posibilitó la ampliación de los conocimientos y su aplicación en la práctica profesional de las participantes.

Violencia contra la mujer; Juegos experimentales; Adaptación psicológica

Abstract

Objective

To qualitatively validate the game Violetas for professionals who work with violence against women.

Method

Study with a qualitative approach, carried out with 30 professionals from the Casa da Mulher Brasileira in Brasília, Campo Grande and Curitiba. Data were collected through Critical-Emancipatory Workshops and analyzed through thematic content analysis, using the webQDA software.

Results

From the analysis of the data allowed, three empirical categories emerged: Violence against women: the game asks and the professionals answer; Action and omission recreated on the board; and Cooperative work as a tool to confront violence against women.

Conclusion

The game Violetas motivated the recognition of different situations of violence against women and the reflection on strategies for preventing and combating the problem in the fictional reality. Due to the similarity between the questions addressed in the game and the concrete reality, it was possible to expand knowledge and its application in the professional practice of the participants.

Violence against women; Games, experimental; Adaptation, psychological

Introdução

A violência contra a mulher é um problema global que ameaça os direitos humanos das mulheres. De acordo com a Organização das Nações Unidas, 18% das mulheres e meninas, na faixa etária entre 15 e 49 anos, sofreram violência perpetrada por parceiro íntimo no ano de 2019. A despeito disso, 40% das vítimas não denunciaram ou procuraram ajuda.(11. United Nations Women. Gender equality: women’s rights in review 25 years after beijing. United States: United Nations Women; 2020 [cited 2020 Out 1]. Available from: https://www.unwomen.org/en/digital-library/publications/2020/03/womens-rights-in-review
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) Esse dado retrata a pouca visibilidade do fenômeno, pois o número de denúncias não corresponde ao número de violações referidas.

A violência contra a mulher adquire visibilidade, geralmente, por meio de agravos à saúde mental, sexual, reprodutiva e física, com danos a curto, médio e longo prazo.(22. World Health Organization (WHO). Violence against women: intimate partner and sexual violence against women. Geneva: WHO; 2019 [cited 2020 Out 1]. Available from: https://www.who.int/reproductivehealth/publications/vaw-evidence-brief/en/
https://www.who.int/reproductivehealth/p...
) Também pode motivar ausências ao trabalho ou redução da carga horária e aumentar a demanda por serviços sociais e de justiça.(33. Ciaschini C, Chelli FM. Evaluating the impact of violence against women in the macroeconomic input-output framework. Econ Syst Res. 2020;1-36.)

O aumento da demanda por serviços de atendimento às mulheres em situação de violência requer profissionais qualificados para lidar com o problema que é de alta complexidade, a desconstrução dos estereótipos de gênero e a não revitimização. Assim, é necessária uma formação específica e contínua dos profissionais sobre o tema e quanto mais interessante for a estratégia pedagógica adotada, maior poderá ser a adesão dos profissionais.

Revisão sistemática sobre a utilização de jogos de tabuleiro verificou sua efetividade para o aumento do incentivo e da motivação para o aprendizado, além de propiciar maior interação entre os participantes.(44. Noda S, Shirotsuki K, Nakao M. The effectiveness of intervention with board games: a systematic review. Biopsychosoc Med. 2019;13(22):1–21.) Outra revisão de escopo identificou a potencialidade de jogos educativos para veiculação e produção de conhecimentos relacionados à desnaturalização dos padrões sexistas, ao reconhecimento da violência e dos mecanismos de enfrentamento do problema, na perspectiva de gênero.(55. Fornari LF, Fonseca RM. Prevenção e enfrentamento da violência de gênero por meio de jogos educativos: uma revisão de escopo. RISTI. 2019;33:78–93.)

Com base no exposto, este estudo utilizou como mote o jogo “Violetas: cinema e ação no enfrentamento da violência contra a mulher”, para abordagem do tema junto a profissionais de várias áreas de atuação no atendimento a mulheres em situação de violência. Trata-se de um jogo de tabuleiro colaborativo, composto por quatro personagens que integram a rede de enfrentamento. Os jogadores necessitam atuar em conjunto para conter a violência instalada nas cidades do tabuleiro. A atuação ocorre por meio de respostas a questões sobre políticas e práticas vinculadas ao entendimento da violência contra a mulher.(66. Pires MR, Almeida A, Gottems LB, Oliveira RN, Fonseca RM. Gameplay, learning and emotions in the board game Violetas: Movie & action in confronting violence against women. Cien Saude Colet. 2021;26(8):3277-88.)

O jogo comporta no mínimo quatro e no máximo oito jogadores por partida. No início da partida, cada jogador recebe uma carta-referência que irá indicar o personagem e suas possibilidades de ação. Todos os jogadores se movimentam entre as cidades que estão distribuídas em cinco regiões do tabuleiro. O objetivo é cercar os casos de violência contra a mulher. Na medida em que as perguntas são respondidas corretamente, os jogadores acumulam cartas para aquisição de quatro tokens que garantem a vitória. Contudo, quando as respostas são incorretas, a violência se dissemina e pode resultar na derrota da partida.

Em continuidade à análise das dimensões de jogabilidade do Violetas,(66. Pires MR, Almeida A, Gottems LB, Oliveira RN, Fonseca RM. Gameplay, learning and emotions in the board game Violetas: Movie & action in confronting violence against women. Cien Saude Colet. 2021;26(8):3277-88.) verificou-se a necessidade de realizar a validação qualitativa do jogo. Esse tipo de validação se dá por meio de processos metodológicos coerentes e resultados consistentes, que visam contribuir para a descrição e compreensão de um determinado fenômeno.(77. Ollaik LG, Ziller HM. Conceptions of validity in qualitative studies. Educ Pesqui. 2012;38(1):229–41.) Nesta pesquisa, a validade foi realizada por meio das falas dos participantes, considerando o contexto em que estavam inseridos.

O estudo teve como questão norteadora: Qual é a validade do jogo Violetas para o enfrentamento da violência contra a mulher na perspectiva dos profissionais? O objetivo foi validar qualitativamente o jogo Violetas para utilização com profissionais que atuam no enfrentamento da violência contra a mulher.

Métodos

Trata-se de estudo exploratório de abordagem qualitativa. O conceito de validação surgiu no âmbito da pesquisa quantitativa e foi adaptado à qualitativa. Está associado à transparência, coerência e comunicação das interpretações conforme a realidade estudada. Apesar de não ser mensurável, permite maior amplitude e pormenorização dos resultados.(77. Ollaik LG, Ziller HM. Conceptions of validity in qualitative studies. Educ Pesqui. 2012;38(1):229–41.)

O cenário de estudo foi as três primeiras unidades da Casa da Mulher Brasileira (CMB) em funcionamento, localizadas em Brasília (Distrito Federal), Campo Grande (Mato Grosso do Sul) e Curitiba (Paraná). A CMB é uma iniciativa governamental de enfrentamento à violência contra a mulher, responsável por integrar os serviços especializados e multidisciplinares da rede de atendimento.(88. Brasil. Presidência da República. Secretaria Geral. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Decreto n. 10.112, de 12 de novembro de 2019. Altera o Decreto nº 8.086, de 30 de agosto de 2013, para dispor sobre o Programa Mulher Segura e Protegida. Brasília (DF): Presidência da República; 2019 [citado 2020 Out 5]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/decreto/D10112.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
)

Participaram do estudo 30 profissionais das CMB, sendo oito de Brasília, 16 de Campo Grande e seis de Curitiba. Na ocasião da coleta de dados, todos os profissionais foram convidados pelas coordenadoras para participar do estudo. Entretanto, participaram somente aqueles que tinham interesse em conhecer o jogo Violetas e disponibilidade para a coleta de dados, uma vez que se encontravam em horário de trabalho. Foram excluídos os profissionais que não participaram na primeira sessão da coleta de dados. Portanto, todos os profissionais incluídos na pesquisa participaram da primeira e da segunda sessão da coleta de dados.

A coleta de dados foi realizada no período de janeiro a março de 2018, por meio de Oficina de Trabalho Crítico-emancipatória (OTC), construída sobre quatro pressupostos: participação, responsabilidade compartilhada, autoestima e empoderamento.(99. Fonseca RM, Oliveira RN, Fornari LF. Prática educativa em direitos sexuais e reprodutivos: a oficina de trabalho crítico-emancipatória de gênero. In: Programa de atualização em enfermagem: atenção primária e saúde da família: Ciclo 6. Vol. 1. Porto Alegre: Artmed Panamericana; 2017. p. 59–120.) Para a coleta de dados foi utilizada uma programação com questões norteadoras que serviram de guia para a validação qualitativa do jogo.

Para testar a OTC, foi realizada uma oficina piloto com sete profissionais, estudantes dos programas de pós-graduação da Universidade de São Paulo, que apresentaram interesse e disponibilidade em participar voluntariamente. Os dados produzidos foram utilizados exclusivamente para aprimoramento da programação.

A OTC foi realizada em duas sessões de três horas, totalizando seis horas por unidade da CMB. Na primeira sessão, os participantes jogaram uma partida do Violetas e responderam sobre as expectativas apresentadas no início, decorrer e término do jogo. Na segunda sessão, compartilharam as percepções sobre a estrutura e o conteúdo do Violetas para o enfrentamento da violência contra a mulher, durante os momentos individual e grupal. No momento individual, cada participante descreveu a participação no jogo por meio de uma palavra e apresentou a justificativa para o grupo. No momento grupal, os participantes foram divididos em dois grupos para elencar as facilidades e as dificuldades percebidas no jogo. Cada grupo apresentou seu relatório e, em seguida, foi conduzida uma roda de conversa para discussão dos aspectos relacionados à estrutura (personagens, cartas e dinâmica) e ao conteúdo (perguntas) do Violetas.

As OTC foram realizadas conforme a disponibilidade dos participantes e nas próprias unidades da CMB, em espaço físico adequado e de fácil acesso. Foi feita gravação das falas mediante autorização dos participantes.

Após a transcrição das falas foi realizado o tratamento dos dados por meio da técnica de análise de conteúdo temática,(1010. Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2011.) com o suporte do software webQDA.(1111. Costa AP, Moreira A, Souza FN. webQDA - Qualitative data analysis. Aveiro: Universidade de Aveiro; 2019.) No webQDA, as fontes internas foram organizadas de acordo com cada unidade da CMB. Seguindo-se à leitura, foram construídos os códigos árvore que correspondem às categorias empíricas. Nessa etapa, foram consideradas as categorias analíticas gênero, violência de gênero e educação crítico-emancipatória. Para a caracterização das participantes foram utilizados os códigos descritivos.

Foi utilizado o Consolidated criteria for reporting qualitative research (COREQ) para conferência das etapas do método e o estudo atendeu aos critérios propostos pela Resolução 466, de 12 de dezembro de 2012, do Conselho Nacional de Saúde, que dispõe sobre as normas e diretrizes da pesquisa envolvendo seres humanos.(1212. Brasil. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução n. 466, de 12 de dezembro de 2012. Trata de pesquisas em seres humanos. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2012 [citado 2020 Out 5]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2013/res0466_12_12_2012.html
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)

Pelo fato desse estudo apresentar a maior parte dos profissionais do sexo feminino, nas seções subsequentes será adotado o gênero gramatical feminino para referenciar as falas das participantes. A participação foi voluntária e houve garantia de anonimato, substituindo-se o nome dos participantes pela letra “P”, seguida de algarismo arábico.

Esse estudo resultou do desdobramento da tese intitulada “Potencialidades e limites do jogo Violetas para o enfrentamento da violência de gênero”, cujo projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, sob o parecer de número 2.026.647 (CAAE: 66467517.2.0000.5392).

Resultados

Participaram do estudo 27 profissionais do sexo feminino e três do sexo masculino. A maior parte das participantes estava na faixa etária entre 30 e 39 anos (n=13), referiu cor da pele branca (n=20), era solteira (n=13), tinha filhos (n=19) e religião católica (n=15). A maioria apresentava ensino superior completo (n=28), destacando-se como área de formação serviço social (n=11) e psicologia (n=11). Ressalta-se que 19 profissionais tinham mais de 10 anos de prática profissional, 16 ingressaram por meio de concurso público municipal e 10 tinham experiência na CMB inferior a 12 meses. Da análise dos dados emergiram três categorias empíricas: Violência contra a mulher: o jogo pergunta e as profissionais respondem; A ação e a omissão recriadas no tabuleiro; e O trabalho colaborativo como ferramenta para o enfrentamento da violência contra a mulher.

Violência contra a mulher: o jogo pergunta e as profissionais respondem

Nesta categoria, foram validadas as perguntas do jogo. O Violetas é constituído por 35 perguntas; destas, 12 questões são dissertativas e 23 de múltipla escolha. Independente do tipo de questão, observou-se que, durante as partidas, os temas com maior tempo de discussão para decisão da resposta foram: assédio sexual, violência intragênero e intrafamiliar, Lei Maria da Penha e atendimento nos serviços de saúde.

As perguntas do jogo são introduzidas por cenas de filmes que retratam histórias de mulheres que, em algum momento da vida, vivenciaram situações de violência. Verificou-se que o fato de ter assistido ou não aos filmes, não influenciou a construção e a assertividade das respostas. As participantes consideraram que a descrição das cenas associada à pergunta, possibilitou (re)elaborar diferentes perspectivas para identificação e compressão dos tipos de violência.

O jogo estimula um olhar sobre esse fenômeno da violência a partir dos filmes, das diversas formas de violência de gênero. A questão da violência psicológica no filme do Cisne Negro, da violência física no filme Dormindo com o Inimigo e do empoderamento da mulher no filme Chocolate (P10).

As participantes relacionaram as perguntas a situações abordadas no atendimento às mulheres na realidade concreta. A formulação das respostas permitiu refletir sobre relações de poder estabelecidas entre homens e mulheres, estereótipos de gênero e diferentes expressões da violência contra a mulher.

As cenas dos filmes tratam de estereótipos. Então, a gente visualiza melhor os estereótipos de gênero, que são os mesmos que a gente identifica nos relatos das mulheres atendidas (...). As cenas dos filmes auxiliam a refletir sobre os papéis de gênero, especialmente relacionados com os casos que atendemos (P16).

A participação no jogo foi entendida como desafiadora para as participantes, pois consideraram que o processo de formulação das respostas colocou em xeque os conhecimentos e as habilidades construídas no exercício da prática profissional, quando aplicadas na realidade fictícia do jogo.

A ação e a omissão recriadas no tabuleiro

Nesta categoria, foram validados os personagens e as cartas do jogo. O Violetas é composto por um tabuleiro com cidades com nomes de mulheres distribuídas nas cinco regiões geopolíticas brasileiras, por quatro personagens (operadora de direito, educadora/pesquisadora, cidadã do movimento de mulheres e integrante de políticas públicas/profissional de saúde), por quatro tipos de cartas (cine-cidades, violetas x violências, omissões e violetas-cidadãs), por peças violência e cidadania, por estações de redes-cidadãs e por quatro tokens (voz, luz, redes e acolhida).

As participantes consideraram que as personagens foram responsáveis pela promoção de ações para o enfrentamento da violência. Cada personagem tinha uma habilidade especial que garantia a participação ativa das jogadoras e valorizava diferentes áreas do conhecimento como saúde, educação, justiça e assistência social.

O jogo possibilita quatro personagens, não são só quatro pessoas, a função dos personagens era mais por estar jogando, cada um tinha sua função, cada um salvava uma vida. Foi o trabalho colaborativo dos personagens (P1).

Em contrapartida, as participantes referiram que as cartas omissões foram responsáveis pela negligência no enfrentamento da violência. Essas cartas estimularam sentimentos de tensão e passividade, pois reiteravam a cultura sexista por meio de ditados e músicas populares. Também foram associadas à revitimização das mulheres que buscam atendimento, quando são julgadas e culpabilizadas pelas violações sofridas.

[As cartas omissões] embora tragam azar no jogo, também trazem discussões muito importantes. Até coloquei com relação às omissões nas práticas culturais, que nós vemos todos os dias, as músicas de funk tocando nas rádios, que de alguma forma ofendem a imagem da mulher. Tudo isso acaba propiciando a perpetração da violência de uma forma até inconsciente (P20).

As participantes reconheceram que a omissão influenciou diretamente o aumento da violência no tabuleiro e provocou a responsabilização para o enfrentamento do problema. Contudo, consideraram que a contenção da violência não está restrita à ação das profissionais, pois envolve a desconstrução de padrões sexistas produzidos e reproduzidos historicamente na sociedade.

O trabalho colaborativo como ferramenta para o enfrentamento da violência contra a mulher

Nesta categoria houve a validação da dinâmica do jogo. No Violetas, as jogadoras atuam em conjunto para combater um inimigo comum, a violência contra a mulher. As participantes relataram que o trabalho colaborativo foi desenvolvido desde o entendimento das regras do jogo até o término da partida. Observou-se maior engajamento das participantes na elaboração das respostas às questões e no entendimento sobre movimentação das peças no tabuleiro.

A P26 foi a primeira que respondeu à pergunta, foi quando a gente falou: não, a gente pode dividir e nos ajudar na resposta da pergunta. (...) Acho que sororidade é isso, é ter esse olhar voltado para além de você, para além do seu individualismo, olhar para o outro, estar junto realmente com o outro. É extremamente rica essa oportunidade de a gente interagir. O fato de não ser individual, ser o grupo mesmo, acho que isso facilitou muito (P24).

O trabalho colaborativo foi possibilitado pela interação entre as participantes. De acordo com as profissionais, a troca de informações, ideias e experiências foram fundamentais para pensar estratégias para a redução do número de casos de violência nas cidades do jogo.

A gente sabia que tinha um objetivo, mas o mais legal foi poder compartilhar e ajudar. Acho que me divertiu nisso, de ficar torcendo pelo grupo, de conseguir todo mundo chegar no mesmo objetivo. Para mim foi válido por isso. Essa questão de a gente vestir a camisa, não no sentido empresa, mas no sentido das coisas que a gente acredita. O engraçado foi que a gente começou a trabalhar tanto no coletivo que o objetivo chegou mais rápido (P25).

Apesar de nem sempre as decisões tomadas pela equipe terem sido acertadas, verificou-se apoio mútuo nos momentos de alegria e tensão. Esse apoio revelou a importância da presença de cada profissional, do compartilhamento e da articulação entre os saberes e, consequentemente, da ampliação das possibilidades de intervenção no jogo com vistas à vitória contra a violência.

Discussão

As OTC possibilitaram validar qualitativamente o Violetas para o enfrentamento da violência contra a mulher, pois permitiram que as participantes expressassem suas percepções a respeito do jogo e sua relação com a prática profissional. A interpretação das percepções revelou a validação das perguntas, das personagens, das cartas e da dinâmica colaborativa do jogo.

A participação foi importante para a construção de vínculo entre as profissionais que, apesar de estarem inseridas na mesma instituição, referiram desconhecer a atuação das outras especialidades. A afinidade com o tema também possibilitou envolvimento e engajamento na partida, tornando o processo de aprendizagem construtivo e emancipatório.

As cenas dos filmes apresentadas nas perguntas foram destacadas pelas participantes, pois ilustraram formas de violações visíveis e invisíveis perpetradas contra as mulheres nos espaços públicos e privados da sociedade. Os filmes produzem imagens, significados e sentidos que podem ocultar ou revelar fenômenos sociais.(1313. Cole DR, Bradley JP. A pedagogy of cinema. Netherlands: Sense Publishers; 2016. 162 p.) Pesquisa realizada sobre a representação feminina nas telenovelas brasileiras identificou duas concepções de mulher: a primeira como boa, heroína, leal e apaixonada, e a segunda como má, vilã, mentirosa e criminosa.(1414. Caminhas LR. Images of gender violence in brazilian soap operas. Rev Estud Fem. 2019;27(1):e52253.)

Essas concepções de feminilidade reforçam valores morais que atribuem papéis sociais específicos às mulheres e que, por vezes, legitimam as situações de violência. A análise crítica das cenas dos filmes permitiu identificar os estereótipos de gênero e as relações de poder construídas socialmente e que se manifestam por meio das personagens, nas relações intragênero (homem-homem, mulher-mulher) e intergênero (homem-mulher).

A participação das profissionais no jogo esteve centrada no desejo de vencer a partida e validar os conhecimentos e as habilidades para o enfrentamento da violência. Esse desejo motivou a interação e a colaboração entre as participantes para a tomada de decisões. Em alguns momentos, a discussão foi profícua a ponto de esquecerem temporariamente que se tratava de uma realidade fictícia.

Os jogos tornam o processo de aprendizagem atraente, participativo, envolvente, compartilhado, interativo e colaborativo.(1515. Zainuddin Z, Chu SK, Shujahat M, Perera CJ. The impact of gamification on learning and instruction: A systematic review of empirical evidence. Educ Res Rev. 2020;30:100326.) No caso do Violetas, as participantes demonstraram interesse em responder assertivamente às questões sobre violência evidenciadas na partida. Diante da impossibilidade de evitar o problema relataram sensação de impotência, principalmente quando selecionavam a carta omissão.

A sensação de impotência das profissionais infelizmente não está restrita à realidade fictícia do jogo. Pesquisa brasileira realizada com 30 profissionais de uma rede intersetorial também verificou essa expressão quando questionou sobre o atendimento às mulheres em situação de violência.(1616. Vieira EM, Hasse M. Perceptions of professionals in an intersectorial network about the assistance of women in situation of violence. Interface (Botucatu). 2017;21(60):51–62.)

A impotência manifestada pelas profissionais está associada à complexidade do fenômeno. A dificuldade em romper com os padrões sociais que desqualificam as mulheres está associada à dominação masculina que, por meio da opressão, normatiza e legitima a condição de subalternidade nos diferentes espaços da sociedade.(1717. Ruiz A, Luebke J, Hawkins M, Klein K, Mkandawire-Valhmu L. A historical analysis of the impact of hegemonic masculinities on sexual assault in the lives of ethnic minority women. Adv Nurs Sci. 2021;44(1):66-88.)

Acredita-se que a desconstrução da dominação masculina na sociedade envolve reconhecimento, problematização e enfrentamento dos padrões e estereótipos de gênero que consideram as mulheres inferiores aos homens. O Violetas desvelou para as participantes que a violência de gênero não está restrita à vivência das mulheres que procuram atendimento, mas está expressa cotidianamente nos meios de comunicação, nas redes sociais digitais e até mesmo nas rodas de conversa entre amigos.

O Violetas também evidenciou a importância de cada profissional que conforma a rede de enfrentamento. Os saberes individuais e a colaboração entre as participantes foram importantes para a consolidação do aprendizado construído coletivamente. Revisão sistemática sobre facilidades e obstáculos para o cuidado de mulheres em situação de violência no contexto da Atenção Primária a Saúde, verificou que o trabalho em equipe foi apontado como primordial para a abordagem do problema. Entretanto, parte das pesquisas selecionadas na revisão revelaram como dificuldade a atuação integrada dos profissionais no atendimento dos casos.(1818. D’Oliveira AF, Pereira S, Schraiber LB, Graglia CG, Aguiar JM, Sousa PC, et al. Obstacles and facilitators to primary health care offered to women experiencing domestic violence: a systematic review. Interface (Botucatu). 2020;24:e190164.)

As profissionais consideraram que a participação no Violetas representou um exercício de mobilização e responsabilização coletiva para a elaboração de estratégias integradas com vistas ao enfrentamento da violência contra a mulher, envolvendo diversas áreas do conhecimento. Embora os resultados do estudo estejam relacionados à qualificação das participantes, acredita-se que têm potencialidade para gerar impactos positivos para as usuárias e para a implementação das políticas públicas específicas para a superação do problema.

O estudo teve como limitações a participação das profissionais em apenas uma partida do Violetas e a ausência de profissionais dos serviços de saúde, pois estes não integram o conjunto de trabalhadores da CMB. Contudo, essas limitações não invalidam a relevância dos resultados, pelo contrário, reiteram a necessidade de outros estudos com aplicação do jogo em distintos cenários.

Conclusão

O Violetas promoveu construção e compartilhamento de aprendizados para o enfrentamento da violência contra a mulher na realidade fictícia do jogo e na realidade concreta das profissionais. Também estimulou a qualificação por meio da participação ativa das jogadoras para formulação de respostas e estratégias para a redução da incidência da violência. Assim, compreende-se que o jogo tem potencialidade para motivar o enfrentamento de barreiras no atendimento às mulheres em situação de violência. Considera-se que o principal elemento que possibilitou validar qualitativamente o Violetas foi ter permitido às participantes recorrer à experiência concreta vivida no cotidiano do enfrentamento da violência contra a mulher. Diante disso, pode-se concluir que o jogo mostrou fazer sentido para o processo reflexivo, formativo e emancipatório das profissionais em relação à temática.

Agradecimentos

Agradecemos a importante colaboração das pesquisadoras envolvidas na criação do jogo Violetas: cinema e ação no enfrentamento da violência contra a mulher, destacando-se a equipe “Recriar-se”. Apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo n° 2017/11960-6, e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

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Editado por

Editor Associado (Avaliação pelos pares): Ana Lúcia de Moraes Horta (https://orcid.org/0000-0001-5643-3321) Escola Paulista de Enfermagem, Universidade Federal de São Paulo, SP, Brasil

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    21 Out 2020
  • Aceito
    29 Set 2021
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