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A vivência de estudantes transgênero na universidade

La vivencia de estudiantes transgénero en la universidad

Resumo

Objetivo

Compreender a vivência de estudantes transgênero na universidade.

Métodos

Estudo qualitativo, realizado com método da História Oral Temática. Foram realizadas entrevistas com nove estudantes trans de uma universidade pública do estado de São Paulo. Utilizou-se a técnica de bola de neve para selecionar tais participantes, que responderam às questões do roteiro semiestruturado. Os depoimentos foram gravados, transcritos, transcriados e submetidos à análise de conteúdo.

Resultados

Emergiram três categorias: “Ser trans”, “A vivência na universidade” e “Apoio ao(à) estudante trans na universidade”. Embora tenham-se percebido como pessoas trans ainda na infância, o processo transexualizador teve início concomitante ao ingresso na universidade. Esse ambiente, considerado heteronormativo e transfóbico, potencializou sentimentos de insegurança e não pertencimento, o que comprometeu a permanência estudantil. O apoio de outros estudantes e ações institucionais foram apontados como possibilidades de enfrentamento dessas dificuldades.

Conclusão

Garantir a permanência de estudantes trans na universidade depende da criação de políticas de inclusão específicas para essa população e que envolvam toda a comunidade acadêmica. Assim, ações concretas de combate à transfobia e promoção do bem-estar desses estudantes poderão transformar a universidade num local seguro e acolhedor.

Estudantes; Pessoas transgênero; Diversidade de gênero; Universidades; Relações interpessoais

Resumen

Objetivo

Comprender la vivencia de estudiantes transgénero en la universidad.

Métodos

Estudio cualitativo, realizado con el método de la historia oral temática. Se encuestó a nueve estudiantes trans de una universidad pública del estado de São Paulo. Se utilizó la técnica de bola de nieve para seleccionar a los participantes, que respondieron las preguntas del guion semiestructurado. Los relatos fueron grabados, transcriptos, transcreados y sometidos a análisis de contenido.

Resultados

Surgieron tres categorías: “Ser trans”, “La vivencia en la universidad” y “Apoyo al(a la) estudiante trans en la universidad”. A pesar de haberse percibido como personas trans en la infancia, el proceso de transexualización comenzó simultáneamente al ingreso a la universidad. Este ambiente, considerado heteronormativo y transfóbico, potencializó sentimientos de inseguridad y no pertenencia, lo que comprometió la permanencia estudiantil. El apoyo de otros estudiantes y acciones institucionales fueron señaladas como posibilidades de afrontamiento a estas dificultades.

Conclusión

Garantizar la permanencia de estudiantes trans en la universidad depende de la creación de políticas de inclusión específicas para esta población y que incluyan a toda la comunidad académica. De esta forma, acciones concretas de combate a la transfobia y de promoción del bienestar de estos estudiantes podrán transformar la universidad en un lugar seguro y acogedor.

Estudiantes; Personas transgénero; Diversidad de género; Universidades; Relaciones interpersonales

Abstract

Objective

To understand transgender students’ experience at college.

Methods

This is a qualitative study, carried out using the Thematic Oral History method. Interviews were conducted with nine trans students from a public college in the state of São Paulo. The snowball technique was used to select such participants, who answered the semi-structured script questions. The testimonies were recorded, transcribed, transcreated and submitted to content analysis.

Results

Three categories emerged: Being a trans; The college experience; Support for trans students at college. Although they perceived themselves as trans people in their childhood, the transsexualization process began concomitantly with their admission to college. This environment, considered heteronormative and transphobic, potentiated feelings of insecurity and non-belonging, which compromised student permanence. The support of other students and institutional actions were pointed out as possibilities to face these difficulties.

Conclusion

Ensuring the permanence of trans students at college depends on the creation of specific inclusion policies for this population and that involve the entire academic community. Thus, concrete actions to combat transphobia and promote the well-being of these students can transform the college into a safe and welcoming place.

Students; Transgender persons; Gender diversity; Universities; Interpersonal relations

Introdução

Transgênero, popularmente conhecida como pessoa trans, é a denominação atribuída a um grupo diversificado de pessoas cujas identidades de gênero diferem, em diversos graus, do sexo com o qual foram designadas ao nascer. Já cisgênero são pessoas que apresentam correspondência entre a designação social ao nascer e sua identidade de gênero performada. Os limites dessas definições são imprecisos, dinâmicos e sofrem influências de questões históricas, ideológicas, políticas, culturais e religiosas.(11. Kattari S, Whitfield D, Walls N, Langenderfer-Magruder L, Ramos D. Policing Gender Through Housing and Employment Discrimination: Comparison of Discrimination Experiences of Transgender and Cisgender LGBQ Individuals. J Soc Social Work Res. 2016;7(3):427-47.)

A imprecisão do conceito e o conjunto dessas influências, que por vezes atuam de maneira discriminatória, podem estar relacionadas à escassez de informações sociodemográficas sobre a população trans nos censos demográficos dos países. Um estudo americano estima uma relação de 390 adultos trans por 100.000, perfazendo quase um milhão de pessoas trans nos Estados Unidos. Sugere, ainda, que o maior contingente de pessoas trans esteja na população mais jovem.(22. Meerwijk EL, Sevelius JM. Transgender population size in the United States: a meta-regression of population-based probability samples. Am J Public Health. 2017;107(2):e1-e8.)

Do ponto de vista da saúde, a resolução n°2.265 do Conselho Federal de Medicina dispõe sobre o cuidado específico à pessoa transgênero, como atenção integral à sua saúde durante todo o ciclo de vida.(33. Brasil. Resolução n°2.265 de 20 de setembro de 2019. Dispõe sobre o cuidado específico à pessoa com incongruência de gênero ou transgênero e revoga a Resolução CFM nº 1.955/2010. Brasília (DF): Diário Oficial da União. Página 96, Edição 6, Seção 1. Publicado em: 09/01/2020.) Essa resolução avança no sentido de despatologizar as identidades trans, ao mesmo tempo que é a partir do diagnóstico médico que seguros de saúde em alguns países e mesmo o Sistema Único de Saúde brasileiro asseguram o acesso da população trans aos cuidados específicos em saúde e aos processos de afirmação de gênero.

Uma pesquisa com estudantes trans numa universidade americana apontou experiências variadas, mas todos os relatos evidenciaram incidentes de marginalização por professores e colegas.(44. Pryor JT. Out in the Classroom: Transgender Student Experiences at a Large Public University. J College Student Development. 2015;56(5):440-55.)Assim como no Brasil, nos Estados Unidos não existem leis específicas que protejam explicitamente as pessoas trans da discriminação na educação.(55. Schroth PW, Erickson-Schroth L, Foster LL, Burgess A, Erickson NS. Perspectives on Law and Medicine Relating to Transgender People in the United States. Am J Comparative Law. 2018;66(1):91-126.)Cerca de 80% das pessoas trans que abandonaram o ensino médio no mundo estão no Brasil, motivo pelo qual é escassa a presença de estudantes transgênero no ensino superior brasileiro, que representam apenas 0,02% dos estudantes universitários.(66. Benevides BG, Nogueira SN. Dossiê dos assassinatos e da violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2019. São Paulo: Expressão Popular, ANTRA, IBTE, 2020. 136 p.)

Estudos recentes apontam que a percepção de inclusão e socialização de estudantes trans na universidade é um fator primordial para sua permanência.(77. Goodman K, Cole D. Using Data-Informed Decision Making to Improve Student Affairs Practice. Miami: Jossey-bass; 2017. 112 p.) Nesse sentido, o clima do campus é um componente amplamente pesquisado para a compreensão dos aspectos ambientais que podem influenciar nessa percepção. Entende-se por clima no campus as atitudes, comportamentos e práticas relacionadas ao acesso, inclusão e nível de respeito pelas necessidades individuais e de grupos,(88. Rankin S, Reason R. Transformational Tapestry Model: A comprehensive approach to transforming campus climate. J Diversity Higher Education. 2008;1(4):262-74.) compreendido neste estudo como o processo de inclusão e socialização.

Em virtude da construção social e histórica do que é homem e do que é mulher, determinada a partir da matriz biológica feminino/masculino e de concepções morais e religiosas que estigmatizam as identidades de gênero que não correspondem à norma imposta, transexuais e travestis podem sofrer transfobia e serem excluídas/os de ambientes sociais por estarem associadas/os ao pecado, à marginalidade e à patologia.(99. Lima T. Educação básica e o acesso de transexuais e travestis à educação superior. Rev Inst Estud Bras. 2020;1(77):70-87.)

A ausência de dados oficiais e a escassez de estudos no Brasil sobre pessoas trans no ambiente universitário,(99. Lima T. Educação básica e o acesso de transexuais e travestis à educação superior. Rev Inst Estud Bras. 2020;1(77):70-87.) torna necessária a produção de conhecimento sobre essa temática, o que pode fornecer dados para formulação e remodelamento de políticas de inclusão e permanência de estudantes no ensino superior, incluindo sua identidade de gênero como um fator relevante no processo. O presente estudo teve por objetivo compreender a vivência de estudantes transgênero na universidade.

Métodos

Trata-se de um estudo qualitativo descritivo-exploratório, realizado por meio da História Oral Temática, método no qual é estabelecida a temática central do fenômeno a ser estudado e são conduzidas entrevistas com participantes que relatam suas vivências.(1010. Meihy JC, Barbosa FH. História oral: como fazer, como pensar. São Paulo: Contexto. 2007. 175 p.)

Como local do estudo foi escolhida uma universidade pública localizada no estado de São Paulo, que conta com aproximadamente 13 mil estudantes e que possui ações afirmativas direcionadas às pessoas trans. Participaram da pesquisa estudantes trans cujas matrículas haviam sido efetuadas nos cursos de graduação há, no mínimo, um ano, considerando a necessidade de um período de permanência no ambiente universitário para que pudessem descrever as experiências vividas. Utilizou-se a técnica de bola de neve para selecionar tais participantes, de modo que a cada entrevista eram realizadas indicações e, a partir delas, feitos novos convites. O primeiro estudante convidado a participar da pesquisa foi um membro do Núcleo Trans da universidade, onde são desenvolvidas pesquisas, atividades de extensão e assistência às pessoas trans. A partir dele, seguiu-se o convite às outras pessoas. Dentre os 16 convites, realizados por telefone ou rede social, nove foram aceitos e essas pessoas compuseram a população.

Entrevistas semiestruturadas foram realizadas por uma autora deste estudo, utilizando um roteiro com perguntas sobre a caracterização de participantes e a questão norteadora “Como você descreveria suas experiências no campus, sendo estudante transgênero?” Houve o acréscimo de outras questões, pertinentes ao objeto de estudo, de acordo com o desenrolar de cada narrativa. As entrevistas ocorreram entre os meses de junho e setembro de 2019, em locais reservados e horários convenientes para a pesquisadora e participantes. Três delas foram presenciais e seis via Skype, segundo a disponibilidade e preferência de cada estudante, duraram, em média, 15 minutos e foram gravadas com um aparelho digital.

Os depoimentos foram transcritos pela pesquisadora, revisados por outro autor e validados pelos(as) participantes do estudo. Realizou-se, então, a transcriação das narrativas, a fim de aproximar os trechos que se referiam ao mesmo tema e transformar a linguagem oral em escrita. Um terceiro autor validou o conteúdo transcriado, comparando-o ao transcrito para garantir a fidedignidade do texto(1111. Neves VR, Sanna MC. Conceitos e práticas de ensino e exercício da liderança em Enfermagem. Rev Bras Enferm. 2016;69(3):686-93.) e, finalizado esse processo, o material foi submetido à análise de conteúdo.(1212. Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2016.)

Foram identificadas 142 Unidades de Registro, correspondentes a 27 códigos, que originaram 24 subcategorias agrupadas em três categorias, como demonstra o quadro 1.

Quadro 1
Codificação e agrupamento de subcategorias para elaboração das categorias deste estudo

O projeto de pesquisa foi aprovado pelo parecer nº 3.439.516 (CAAE: 12443919.9.0000.5505) e todos(as) participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, que garante, entre outros direitos, o anonimato.

Resultados

Participaram deste estudo sete homens trans, um não-binário e uma mulher trans, que tinham entre 20 e 26 anos e cursavam graduação nas áreas de exatas (três), humanas (um) e saúde (cinco). Cinco estudantes declararam-se brancos(as) e quatro negros(as). A renda familiar mensal foi, em média, de seis salários mínimos.

As categorias “Ser trans”, “A vivência na universidade” e “Apoio ao(à) estudante trans na universidade” são apresentadas a seguir.

Ser trans

Perceber-se como pessoa trans foi um processo que se iniciou durante a infância, mas concretizou-se anos depois:

“Desde criança eu não entendia porquê só os meninos faziam xixi em pé, eu queria fazer também. Quando eu percebi que tínhamos órgãos diferentes, fiquei esperando que tivesse acontecido algum erro na maternidade e fosse crescer alguma coisa em mim. Eu não sabia o nome disso, mas já entendia um pouco.” [E5]

O ingresso na universidade coincidiu, majoritariamente, com o processo de assumir sua identidade de gênero, através das mudanças corporais e performatividade. Ainda assim, houve relatos em que o ingresso no local de estudo ocorreu após o término desse processo, levando a outro modo de vivenciar essa experiência.

“Eu iniciei a transição em janeiro de 2018, pouco depois de descobrir que tinha passado no vestibular. […] Foi meio estratégico mudar para Guarulhos, onde as pessoas não conheciam minha identidade anterior, e iniciar esse processo, porque achei que seria mais fácil do que fazer a transição na minha cidade, onde todos me conheciam.” [E2]

Independente do momento em que ocorreu o processo de transição, os relatos apontaram dificuldades de autoafirmação no ambiente universitário, dado o medo do julgamento e a preocupação com a passabilidade:

“Meus amigos e colegas não perceberam que eu sou uma pessoa trans e eu também não comento, porque não quero causar algum tipo de problema e alguém dizer ‘Ah, isso é vitimização.’.” [E3]

Questões relacionadas à saúde mental também foram apontadas como parte da vida de estudantes trans, comprometendo suas experiências na universidade:

“Eu sempre me senti desconfortável, mas eu não tinha ideia do que poderia ser, então eu tive um relacionamento e o término foi como uma explosão… Eu passei por uma fase agoniante e quase cometi suicídio. Eu não sabia o que estava acontecendo, mas sabia que alguma coisa estava errada.” [T6]

“Tenho alguns problemas psicológicos, como depressão e ansiedade, que acabam me impedindo de ir para aula e comprometem meu aproveitamento.” [T4]

Cabe ressaltar que questões de saúde mental e a ideação suicida são fenômenos complexos e multifatoriais e o estudo não teve a pretensão de criar relações diretas de causas e efeitos.

A vivência na universidade

A vivência de estudantes transgênero na universidade foi marcada por dificuldades de convívio nos diversos espaços acadêmicos. A universidade apresentou-se como um ambiente permeado pela heteronormatividade e transfobia, o que gerou sentimentos de insegurança e não pertencimento:

“Foi difícil, porque tive que trancar minha matrícula no curso duas vezes por problemas de saúde mental. Foi uma situação vexatória, porque por mais que eu pensasse ‘Ah, eu vou voltar e pegar a matéria com eles’, reencontrar algumas pessoas da turma deixava o clima bem estranho.” [E9]

Além disso, situações de violência velada foram mencionadas nos depoimentos, o que dificulta sua confirmação e o desenvolvimento de ações diretas para combatê-la.

“Já aconteceram casos de transfobia dentro da universidade. Já fui insultado, mas é sempre um preconceito muito velado. As pessoas são preconceituosas, mas elas fingem que não são. [E7]

Tal preconceito também compromete a participação de estudantes trans em atividades acadêmicas e esportivas, bem como sua inserção no ambiente universitário.

“Na hora que eu estava em campo, a comissão [esportiva] me chamou e disse que eu não poderia participar porque não tinha apresentado um exame hormonal de sangue.” [E3]

O uso do banheiro emergiu nos discursos como uma situação geradora de estresse, insegurança e medo por parte de estudantes trans. A falta de uma política explícita de diversidade no uso dos banheiros faz com que estudantes fiquem com receio de serem julgados e sofrerem algum tipo de violência.

“Usar o banheiro masculino foi difícil, no começo eu não ia. Eu usava o feminino, que depois de um tempo começou a ficar desconfortável também. Deixei de usar o banheiro na universidade, [...] mas depois passei a usar o masculino.” [E2]

A normatização do uso do nome social pelos membros da comunidade acadêmica é uma legislação que reconhece os direitos da pessoa trans na universidade e, em meio a um cenário de inseguranças e medo, traz uma oportunidade de estudantes exercerem sua cidadania.

“Eu gostei do fato de poder usar meu nome social na universidade. Foi bem simples e eu acho que isso é uma coisa boa.”[E2]

Apoio ao(à) estudante trans na universidade

Estudantes trans buscam estratégias de enfrentamento das situações vivenciadas no ambiente universitário, mesmo as legais e já reconhecidas como direito em decretos.

“Quando ainda não tinha nome social, fui procurar o coletivo feminista e não me deram assistência alguma. Além disso, poucos professores se disponibilizaram a alterar meu nome na lista chamada.” [E9]

Foi relatada sensação de impotência frente à falta de conhecimento dos professores e funcionários para lidar com situações de transfobia, resistência ao uso do nome social, sensação de invisibilidade e outros problemas enfrentados pela população transgênero. Tais fatores dificultam a qualidade da permanência na universidade e comprometem a inserção de estudantes trans em alguns espaços e atividades acadêmicas.

“[...] promover esse assunto dentro da universidade já seria bom, porque as pessoas iriam saber que nós existimos e, a partir daí, respeitar ou, pelo menos, entender quem nós somos.”[E7]

Discussão

A percepção de si como pessoa trans pode acontecer a qualquer momento do ciclo vital e impulsionar o desejo de modificar o corpo.(1313. Braz C, Almeida AS. Espera, paciência e resistência: reflexões antropológicas sobre transexualidades, curso da vida e itinerários de acesso à saúde. Rev Antropol. 2020;63(2):1-17.) Neste estudo, os relatos apontaram a infância como o período desse despertar e a coincidência do ingresso na universidade com o início do processo de assumir sua identidade de gênero. Esse processo, caracterizado pela utilização de hormônios e/ou realização de procedimentos cirúrgicos, abrange não apenas mudanças físicas, mas também transformações psíquicas e sociais.(1313. Braz C, Almeida AS. Espera, paciência e resistência: reflexões antropológicas sobre transexualidades, curso da vida e itinerários de acesso à saúde. Rev Antropol. 2020;63(2):1-17.,1414. Popadiuk GS, Oliveira DC, Signorelli MC. The National Policy for Comprehensive Health of Lesbians, Gays, Bisexuals and Transgender (LGBT) and access to the Sex Reassignment Process in the Brazilian Unified Health System (SUS): progress and challenges. Cien Saude Colet. 2017;22(5):1509-20.)

Os resultados deste estudo apontaram a universidade como um ambiente que traz o início de um novo ciclo da vida. Cursar a graduação coincidiu, para a maioria, com o início da fase adulta, de maior liberdade de expressão, autonomia e alguma distância do cerceamento familiar. Ressalta-se que muitas pessoas trans vivenciam preconceito e manifestações de violência dentro da própria família.(1515. Braz DG, Reis MB, Horta AL, Fernandes H. Experiences of families in the gender transition process. Acta Paul Enferm. 2020;33:1-8.)

Os participantes aproveitaram o momento de ingresso na academia para serem conhecidos precocemente pelo nome social e promover mudanças corporais para afirmação de gênero. O uso do nome social foi apontado pelos estudantes como uma possibilidade de reconhecimento da sua identidade de gênero e exercício da cidadania. Estabelecer uma política do nome social na universidade é, além de assegurar um direito, fundamental para combater o controle dos corpos, a inferiorização e o apagamento das pessoas trans no ambiente acadêmico.(1616. Lazcano C. A Política do Nome Social na UFSC: reflexões sobre inclusão e cidadania. Cad Gênero Diversidade. 2020;6(1):154-80.)

No Brasil, foi instituída a obrigatoriedade do uso do nome social em instituições de educação no ano de 2015.(1717. Brasil. Resolução n° 12 de 16 de janeiro de 2015. Estabelece parâmetros para a garantia das condições de acesso e permanência de pessoas travestis e transexuais e todas aquelas que tenham sua identidade de gênero não reconhecida em diferentes espaços sociais - nos sistemas e instituições de ensino, formulando orientações quanto ao reconhecimento institucional da identidade de gênero e sua operacionalização. Brasília (DF): Diário Oficial da União. Página 3, Seção 1.) No entanto, os depoimentos evidenciaram o não cumprimento dessa legislação e estudos apontam que normatizar o nome social isoladamente não é uma medida suficiente para que esse estudante se sinta acolhido nas suas peculiaridades.(1818. Wittmann I. “O Corpo Nasce de uma Identidade”: reflexões sobre a construção do corpo em experiência transgênero. Cad de Campo. 2019;28(2):86-107.)

Tal situação é mais complexa no Brasil, considerando as leis que tramitam nas casas legislativas com o intuito de proibir a suposta “ideologia de gênero” nas escolas/educação. Trata-se de retrocessos na garantia aos direitos humanos, à educação, à igualdade de gênero e à erradicação da discriminação e violência motivadas por gênero, orientação sexual e identidade de gênero. Pautam-se em argumentos falaciosos de uma suposta destruição da família “tradicional”, da legalização da pedofilia, ao fim da “ordem natural” e das relações entre os gêneros, além de negar toda violência contra mulheres e pessoas LGBTQIA+.(1919. Reis T, Eggert E. Ideologia de gênero: uma falácia construída sobre os planos de educação brasileiros. Educ Soc. 2017;38(138):9-26.)

Autoafirmar-se como estudante trans na universidade é um processo relacionado à passabilidade, definida como um conceito atribuído pela própria pessoa trans quanto à identidade de gênero com a qual se identifica e que é fundamental para o conforto emocional.(1818. Wittmann I. “O Corpo Nasce de uma Identidade”: reflexões sobre a construção do corpo em experiência transgênero. Cad de Campo. 2019;28(2):86-107.) Nesse sentido, Buttler evidenciou o confronto entre as pessoas trans não passáveis e a sociedade, situação que pode originar sentimentos que oscilem entre raiva e esperança e agravar as manifestações de discriminação e violência.(2020. Buttler J. Quadros de Guerra: Quando a vida é passível de luto?. Tradução de Marina Vargas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2015. 288 p.)

Os achados deste estudo apontaram a universidade como um ambiente transfóbico, catalisador de insegurança e sentimento de não pertencimento, o que dificulta o convívio e leva ao isolamento social. Pessoas que são consideradas diferentes num determinado grupo social sofrem esse isolamento quando prevalece o hábito dos seres humanos de se agregarem àqueles que consideram seus comuns.(2121. Lacerda MC, Almeida G. Exclusão “da” e “na” educação superior: os desafios de acesso e permanência para a população trans. Rev Em Pauta. 2021;47(19):232-47.)

Esse cenário pode comprometer a saúde mental de estudantes trans. Ansiedade, depressão e ideação suicida foram evidenciadas nos depoimentos, corroborando os achados de diversos estudos que, além desses, identificaram autoagressão, dependência de álcool e tentativas de suicídio como problemas que afetam essa população.(2222. Crossway A, Rogers SM, Nye EA, Games KE, Eberman LE. Lesbian, gay, bisexual, transgender, and queer athletic trainers: collegiate student-athletes’ perceptions. J Athl Train. 2019;54(3):324-33.

23. Reisner SL, Biello KB, White Hughto JM, Kuhns L, Mayer KH, Garofalo R, et al. Psychiatric diagnoses and comorbidities in a diverse, multicity cohort of young transgender women: baseline findings from Project LifeSkills. JAMA Pediatr. 2016;170(5):481-6.
-2424. Corrêa FH, Rodrigues BB, Mendonça JC, Cruz LR. Pensamento suicida entre a população transgênero: um estudo epidemiológico. J Bras Psiquiatr. 2020;69(11):13-22.) O afastamento, o auto isolamento social e a discriminação por parte de estudantes e professores(as) são considerados causas de transtornos mentais.(2525. Holloway IW, Miyashita Ochoa A, Wu ES, Himmelstein R, Wong JO, Wilson BD. Perspectives on academic mentorship from sexual and gender minority students pursuing careers in the health sciences. Am J Orthopsychiatry. 2019;89(3):343-53.) Nota-se, portanto, a importância da atuação de profissionais de saúde mental junto aos(às) estudantes trans na universidade, abarcando desde ações preventivas, como a identificação de riscos, a promoção da inclusão e o combate à violência, até o acompanhamento e encaminhamento à Rede de Atenção à Saúde quando necessário.(2626. Seelman KL. Transgender adults’ access to college bathrooms and housing and the relationship to suicidality. J Homosex. 2016;63(10):1378-99.)

O uso do banheiro está entre as situações geradoras de estresse, insegurança e medo para estudantes trans. A organização do espaço físico baseada no binarismo fere direitos fundamentais das pessoas trans, como o respeito à dignidade, liberdade, privacidade e igualdade.(2121. Lacerda MC, Almeida G. Exclusão “da” e “na” educação superior: os desafios de acesso e permanência para a população trans. Rev Em Pauta. 2021;47(19):232-47.) Para além da garantia desses direitos aos(às) estudantes trans, fundamentais para sua permanência na universidade, promover o uso do banheiro de acordo com a identidade de gênero fomenta um debate necessário à comunidade acadêmica, por meio do qual informações são compartilhadas e a universidade se apresenta como um espaço democrático, palco da diversidade e propulsor de transformação social, sobretudo no que diz respeito ao combate à transfobia.(2727. Ferrari A, Bezerra CS, Castro RP. Tensões e enfrentamentos na campanha ‘libera meu xixi’ e a presença de pessoas trans na Universidade. Rev Diversidade Educ. 2020;8(2):21-45.)

A realização de atividades esportivas na universidade também foi apontada como um entrave para a inclusão e socialização. Esse achado converge com os resultados de um estudo norte-americano, que analisou a percepção de estudantes LGBT atletas quanto à sua aceitação na universidade e identificou que a dificuldade é maior quando se trata de estudantes trans.(2828. Crossway A, Rogers SM, Nye EA, Games KE, Eberman LE. Lesbian, gay, bisexual, transgender, and queer athletic trainers: collegiate student-athletes’ perceptions. J Athl Train. 2019;54(3):324-33.) Além disso, pesquisa realizada com estudantes de nível médio na Nova Zelândia demonstrou que pessoas LGBT são mais propensas a tentativas não saudáveis de controle de peso, apresentam maus hábitos alimentares, tendem ao sedentarismo e pouco participam das atividades esportivas oferecidas na escola.(2929. Lucassen MF, Guntupalli AM, Clark T, Fenaughty J, Denny S, Fleming T, et al. Body size and weight, and the nutrition and activity behaviours of sexual and gender minority youth: findings and implications from New Zealand. Public Health Nutr. 2019;22(13):2346-56.)

Os depoimentos evidenciaram a busca de estratégias de enfrentamento das dificuldades vivenciadas na universidade, como o despreparo de professores e outros profissionais para lidar com as questões inerentes a estudantes transgênero. Nesse sentido, um estudo realizado numa escola de Enfermagem norte-americana ressaltou a importância do papel da universidade na criação de espaços acolhedores e que facilitem a afirmação de gênero por estudantes trans, sobretudo diante da alta prevalência de discriminação e violência contra essas pessoas no ambiente acadêmico. Dentre as ideias apresentadas pelos autores, e corroboradas por outros estudos,(99. Lima T. Educação básica e o acesso de transexuais e travestis à educação superior. Rev Inst Estud Bras. 2020;1(77):70-87.,3030. Scote FD, Garcia MR. Trans-formando a universidade: um estudo sobre o acesso e a permanência de pessoas trans no ensino superior. 2020;38(2):1-25.) está o treinamento de todos os profissionais que atuam no campus, a fim de que não apenas compreendam e respeitem as pessoas trans, mas também ofereçam suporte para a afirmação de gênero e cultivem um ambiente de apoio, compaixão e cuidado.(3131. Cicero EC, Wesp LM. Supporting the Health and Well-Being of Transgender Students. J Sch Nurs. 2017;33(2):95-108.)

Conclusão

Os resultados deste estudo apontam a necessidade de políticas de inclusão para a população trans na universidade. O ambiente universitário, apesar da vanguarda da ciência e inovação na sociedade, apresenta características discriminatórias e pouco inclusivas com estudantes transgênero. Cabe aos membros da comunidade acadêmica a sensibilização para as demandas da população trans, o que pode ser alcançado por meio de treinamento dos professores e outros funcionários, criação de oportunidades para discussão e reflexão sobre o tema na universidade e normas para a defesa contra o assédio e a violência, além do estabelecimento de uma rede de suporte para o acompanhamento de estudantes trans por profissionais de saúde mental, quando necessário. Todas essas questões devem ser avaliadas continuamente para melhor inserção do estudante transgênero na universidade. A despeito da democratização do acesso ao ensino superior no Brasil, ocorrida na última década, especificamente no ensino público, persistem barreiras relacionadas à aceitação da diversidade de gênero no ambiente universitário.

Referências

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Editado por

Editor Associado (Avaliação pelos pares): Thiago da Silva Domingos (https://orcid.org/0000-0002-1421-7468) Escola Paulista de Enfermagem, Universidade Federal de São Paulo, SP, Brasil

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    21 Jul 2021
  • Aceito
    19 Jan 2022
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