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"O pássaro e a sombra": instrumentalização das revoltas escravas pelos partidos políticos na província de São Paulo nas últimas décadas da escravidão

"The bird and the shadow": the use of slave rebellions by political parties in the province of São Paulo in the last decades of slavery

Resumos

Ao focalizar as revoltas escravas como movimento social, confrontando uma determinada linha interpretativa sobre o tema com fontes primárias, este artigo busca mostrar que, nas disputas partidárias presentes na província de São Paulo durante as últimas décadas da escravidão, o partido da oposição usava as revoltas escravas para criticar, especialmente através da imprensa, as ações empreendidas pelo então partido da situação para combater essas revoltas, as quais teriam como finalidade atender aos interesses de seus afiliados.

história regional; revolta de escravos; Brasil Imperial; movimentos sociais; partidos; política


This article focuses on slave rebellions as social movements occurred in the province of São Paulo during the last decades of slavery in Brazil, comparing historical interpretations to primary sources. It shows how the opposition party used those uprisings to attack the government party through the newspapers, condemning it for fighting those movements in order to satisfy the interests of its own supporters.

regional history; slave rebellions; Imperial Brazil; social movements; political parties; politics


L'article étudie les révoltes d'esclaves en tant que mouvements sociaux ayant eu lieu dans la province de São Paulo pendant les dernières décénnies de l'esclavage au Brésil, en comparant des interprétations historiques à des sources primaires. On montre comment le parti d'opposition utilisait ces révoltes pour attaquer par les journaux le parti au pouvoir, en accusant celui-ci de reprimer ces mouvements pour satisfaire les intérêts de ses membres.

histoire régionale; révoltes d'esclaves; Brésil impérial; mouvements sociaux; partis politiques; politique


ARTIGOS

"O pássaro e a sombra":1 1 "O pássaro e a sombra" é uma referência à observação de um político do Partido Conservador, então no poder, que, ferido pelos ataques da oposição, disse que ela deveria mirar no pássaro e não na sombra, isto é, em D. Pedro II, e não no ministério de que fazia parte. É também o título do segundo capítulo do livro Do Império à República, de Sérgio Buarque de Holanda. instrumentalização das revoltas escravas pelos partidos políticos na província de São Paulo nas últimas décadas da escravidão

"The bird and the shadow": the use of slave rebellions by political parties in the province of São Paulo in the last decades of slavery

Artur José Renda Vitorino; Eliana Cristina Batista de Sousa

Artur José Renda Vitorino é doutor em história social do trabalho e professor-pesquisador da PUC-Campinas (SP) arturvitorino@uol.com.br

Eliana Cristina Batista de Sousa, graduada em história, foi bolsista de iniciação científica sob a orientação de Artur J. R. Vitorino nalinamark@ig.com.br

RESUMO

Ao focalizar as revoltas escravas como movimento social, confrontando uma determinada linha interpretativa sobre o tema com fontes primárias, este artigo busca mostrar que, nas disputas partidárias presentes na província de São Paulo durante as últimas décadas da escravidão, o partido da oposição usava as revoltas escravas para criticar, especialmente através da imprensa, as ações empreendidas pelo então partido da situação para combater essas revoltas, as quais teriam como finalidade atender aos interesses de seus afiliados.

Palavras-chave: história regional; revolta de escravos; Brasil Imperial; movimentos sociais; partidos; política.

ABSTRACT

This article focuses on slave rebellions as social movements occurred in the province of São Paulo during the last decades of slavery in Brazil, comparing historical interpretations to primary sources. It shows how the opposition party used those uprisings to attack the government party through the newspapers, condemning it for fighting those movements in order to satisfy the interests of its own supporters.

Key words: regional history; slave rebellions; Imperial Brazil; social movements; political parties; politics.

RÉSUMÉ

L'article étudie les révoltes d'esclaves en tant que mouvements sociaux ayant eu lieu dans la province de São Paulo pendant les dernières décénnies de l'esclavage au Brésil, en comparant des interprétations historiques à des sources primaires. On montre comment le parti d'opposition utilisait ces révoltes pour attaquer par les journaux le parti au pouvoir, en accusant celui-ci de reprimer ces mouvements pour satisfaire les intérêts de ses membres.

Mots-clés: histoire régionale; révoltes d'esclaves; Brésil impérial; mouvements sociaux; partis politiques; politique.

1. A rebeldia escrava e a historiografia

Sem o intuito de fazer um balanço crítico da historiografia da rebeldia escrava, que inclui, entre outros estudos realizados em diferentes momentos, os de Graham (1970), Robles de Queiroz (1987), Reis (2000), Schwartz (2001) e Lara (1992, 1995 e 2005), este artigo pretende, a partir das considerações contidas nas obras de Azevedo (2004), Machado (1991) e Marçal de Queiroz (1995), sugerir novos caminhos e possibilidades para o entendimento da rebeldia escrava e sua relação com os partidos políticos.

A província de São Paulo da segunda metade do século XIX foi marcada pelo acirramento dos movimentos abolicionistas. Sua elite intelectual-política estava segmentada da seguinte forma: havia os defensores abertos da abolição, os que eram a favor da libertação gradual, e os que se precaviam contra a possível falta de mão-de-obra criando leis que incentivavam projetos imigrantistas. A chamada Lei do Ventre Livre, promulgada em 28 de setembro de 1871, não apresentou mudanças concretas substanciais, mas "de qualquer modo ela decretara o fim do caráter absoluto da instituição escravista" (Azevedo, 2004:156).

Célia Maria Marinho de Azevedo considera que o aumento do número de crimes praticados por escravos contra seus senhores nas últimas décadas da escravidão na província de São Paulo foi conseqüência do tráfico interprovincial Norte-Sul, que "despejava" em São Paulo o "negro mau vindo do Norte" - conforme designação do chefe de polícia Elias Antônio Pacheco e Chaves -, sendo esse escravo o responsável pelo crescente número de revoltas então ocorridas. Assim, é a partir da questão do tráfico interprovincial, gerador do aumento de negros na província de São Paulo, que a autora desenvolve o tema central de seu estudo: o medo. O medo das elites brancas em relação aos negros teria sido a mola propulsora dos esforços empreendidos no processo de substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre. A autora considera também que a percepção do fim próximo da escravidão levava os escravos a se sentirem mais à vontade para resistir a seus senhores.

Maria Helena Pereira Toledo Machado também mostra que nas últimas décadas do século XIX houve um agravamento das lutas entre senhores e escravos, e um aumento do número de crimes praticados contra os senhores e seus prepostos. Esse acirramento dos conflitos seria conseqüência da constante "queda-de-braço" entre cativos e senhores, e a partir daí a historiadora busca enfatizar a ação autônoma dos próprios escravos em busca de liberdade. As insurreições seriam manifestações de um modo de se libertar da escravidão encontrado pelos escravos, que não se resignariam a ser atores passivos do processo abolicionista que crescia nos últimos anos do século XIX.

Para as duas historiadoras, a palavra "revolta" assume, portanto, significados diversos de acordo com a interpretação dos diferentes segmentos envolvidos e afetados por ela: os senhores de escravos, por certo, davam-lhe um sentido pejorativo, por a considerarem rebeldia sem propósito e demonstração de ingratidão. Jonas Marçal de Queiroz, em desacordo com Célia Marinho de Azevedo Maria Helena P. T. Machado, é mais incisivo na análise dessa questão, ao mostrar que "o termo 'insurreição' era empregado de maneira indiscriminada". O autor ressalta "que o fato de nos depararmos com insistentes declarações no sentido de que estavam ocorrendo revoltas de escravos não significa necessariamente que alguma tenha se dado". E completa: "os jornalistas e as próprias autoridades empregavam o termo [insurreição] para qualificar os mais diversos atos, como um crime cometido individualmente ou uma simples fuga" (Queiroz, 1995: 2ª parte, 156-7).

Afinal, ocorreram ou não revoltas de escravos em São Paulo nas últimas décadas da escravidão no Brasil? Elas foram resultado do grande volume de escravos introduzidos na província pelo tráfico interprovincial, como defende Célia Marinho de Azevedo? Evidenciariam elas que, muito mais do que a liberdade, os cativos buscavam garantir aquilo que poderia ser chamado de "direitos adquiridos" dentro do sistema de trabalho escravo, nas "margens de acomodação ao sistema" - conforme sugere Maria Helena Machado? Ou a divulgação das revoltas na imprensa paulista era arma bem manejada nas disputas partidárias do contexto político do fim do século XIX, como mostra Jonas de Queiroz em seu estudo?

Partindo dessas questões, faremos uma análise das possíveis revoltas de escravos ocorridas na província de São Paulo nas décadas anteriores à Abolição, e de suas implicações nas relações político-administrativas paulistas no período. Para tanto, entrelaçaremos os estudos historiográficos de Célia Marinho de Azevedo, Maria Helena P. T. Machado e Jonas Marçal de Queiroz sobre o tema, cotejando-os com pesquisas realizadas em jornais editados na província de São Paulo no período indicado. Dessa maneira, procuraremos mostrar de que modo as revoltas de escravos foram utilizadas nas disputas partidárias, através dos jornais que se diziam representantes de cada uma das três ideologias políticas do Império (Partido Monarquista Liberal, Partido Monarquista Conservador e Partido Republicano), com o objetivo de desestabilizar o partido então no poder, em um constante embate entre oposição e situação.

2. Revoltas de escravos e imprensa partidária

Nas páginas dos jornais paulistanos Diário Popular e Correio Paulistano, as disputas pelo poder eram claras e acirradas. O Diário Popular, assim como A Gazeta de Campinas, era um jornal republicano. Seus proprietários eram José Maria Lisboa e Américo de Campos, que desempenhavam, respectivamente, as funções de gerente e redator responsável. As principais colunas do Diário Popular estavam distribuídas na primeira página. 2 2 Os nomes das colunas e seções, bem como os trechos citados, tiveram a grafia atualizada. Ali se encontravam as "Cartas do Rio", nas quais Aristides Lobo comentava os fatos políticos e econômicos mais relevantes da Corte, e as "Cartas do interior", destacando as ocorrências importantes da província paulista. A seção "Comentários" expressava a posição política do jornal sobre fatos ocorridos tanto no Brasil como no exterior, e era escrita por diversos colaboradores. A coluna "Assuntos do dia" , como o próprio nome diz, comentava notícias e fatos relevantes da semana. Tais colunas não eram diárias, mas se revezavam de acordo com os acontecimentos: se um fato ocorrido na província de São Paulo fosse mais relevante, sacrificava-se a coluna "Cartas do Rio", para que fosse comentado nos "Assuntos do dia".

Uma seção bastante interessante era a "Seção livre", pois nela se publicavam artigos que nem sempre expressavam a mesma opinião. Num mesmo dia poderiam ser publicadas, na mesma coluna, posições pró e contra determinado assunto. Assim, por exemplo, na coluna de 12 de novembro de 1887, publicada na página 2, lê-se o seguinte:

Libertação da província

Os abaixo assinados convidam os lavradores, residentes nesta capital, a reunirem-se domingo, 13 do corrente, ao meio-dia, na casa n. 5 da rua do Barão de Itapetininga, para tratarem de constituir uma sociedade que promova a emancipação dos escravos existentes na província, no mais curto prazo possível, sem desorganização do trabalho agrícola.

S. Paulo, 11 de novembro de 1887

Leôncio e Carvalho

Rafael de Barros

Logo abaixo desse convite, um vigilante abolicionista assim se manifestava:

Abolicionistas, alerta!

Está convocada para amanhã, nesta capital, uma reunião só de lavradores, para tratar-se da fundação de uma sociedade que promova a emancipação dos escravos existentes nesta província. Parece que é isto um novo meio de distrair a nossa atividade do trabalho sustentado há 16 anos, em favor da infeliz raça escravizada. Hoje, no caminho da vitória em que nos achamos, não podemos trocar os nossos deveres de abolicionistas pelo oficio de emancipadores. Isso seria capitular, e quem capitula será vencido. Já basta de explorar o homem, e neste caso não devemos pagar para que ele seja livre desde já. [...]"

Abolicionista intransigente

Da mesma maneira, se num dia fosse publicado um artigo defendendo a abolição imediata, poderia ser veiculado outro que defendesse os interesses dos lavradores e a emancipação gradual. Portanto, a "Seção livre" era um espaço teoricamente destinado à divulgação de opiniões diversas. No entanto, não se verificou na coluna a publicação de um assunto que confrontasse diretamente a ideologia republicana do jornal.

As críticas à monarquia eram contundentes. Elas abundavam nas "Cartas do Rio", nos "Comentários", no "Assunto do dia". Para o Diário Popular, "parece incrível que haja alguém que advogue ainda a continuação do regime a que a nação deve todos os seus infortúnios de que atualmente gozamos, além dos males que nos estão iminentes. As instituições monárquicas estão esgotadas, e depois delas e além delas não há mais imprevistos" (Diário Popular, 12/10/1887, p. 2.). O jornal paulistano criticava todas as políticas monárquicas, independentemente de qual partido estivesse no poder, pois considerava que, para combater os males que assolavam o país, nem conservadores nem liberais teriam o remédio:

O partido conservador [...] entende que salvará o doente com dieta [...], agasalho [...] e uma ou outra medida mais enérgica, insuspeita em relação à garantia das instituições [...].

O partido liberal entende que com uma medicação moderada - as reformas de seu celebrizado e nunca realizado programa - curará o doente (Diário Popular, 3/5/1887, p. 1).

Dessa forma, quando, com o fortalecimento do movimento abolicionista, irromperam em São Paulo as chamadas insurreições de escravos, foi sobre o governo, com sua "brutal resistência ao impulso abolicionista", que o jornal jogou a culpa. "O que está acontecendo em S. Paulo", diria o Diário, "é o fruto da política imbecil e irritante que ultimamente ali se tem praticado" (Diário Popular, 24/10/1887, p. 1).

Sendo um jornal fundado em 1884, numa época em que a consciência do fim da escravidão era muito grande, Diário Popular tinha uma posição diante da questão do elemento servil diferente da de A Gazeta de Campinas: seu primeiro assunto era a abolição, enquanto as páginas do jornal campineiro traziam a imigração como matéria principal. 3 3 A partir da década de 1870, os escritos da época passaram a se referir à "escravidão" como a "questão do elemento servil".

Um fato que chama a atenção nas páginas do jornal é a denúncia de maus tratos a escravos. Conforme Maria H. Machado, as denúncias ocorriam porque:

o acirramento das tensões envolvendo escravos, já nos primeiros anos da década de 80, colocando a questão servil na ordem do dia, atraía para as atividades policiais de controle dos movimentos escravos a atenção da opinião pública que, informada pelos jornais, os quais no seu dia-a-dia procuravam acompanhar a evolução dos conflitos entre senhores e escravos, sensibilizava-se pelas denúncias das arbitrariedades policiais (Machado, 1991: 79-80).

De fato, aparecem no jornal paulistano notícias envolvendo ações arbitrárias por parte do corpo policial: em 2 de setembro de 1887, por exemplo, o Diário noticiava a prisão de 37 escravos do senhor Antônio Américo, perto de Água Branca, por praças de linha. Sendo os escravos escoltados e transportados de Água Branca para Jaguari, ao descerem na estação de Campinas, "havia muito povo à espera do trem. Ao serem mudados os escravos para a Mogiana, mandou o capitão às praças abrir caminho por entre o povo a coronhadas, sem ter havido da parte deste o menor motivo para isso [...]" (Diário Popular, 2/9/1887, p. 2). O periódico paulistano informava a seus leitores que extraíra tal notícia do jornal campineiro Diário de Campinas, acrescentando ainda que o comandante da força policial era o alferes Pedro da Costa Leite.

Através de Queiroz sabemos que essa força de linha chegara da Corte no dia 1º de setembro de 1887, e era comandada pelo capitão Florismundo Colatino dos Reis Araújo Góes, que se fazia acompanhar do tenente Felix Barreto Muniz Telles e dos alferes Agnello Petra de Almeida e do já citado Pedro da Costa Leite (Queiroz, 1995: 2ª parte, 138-9). O episódio ocorrido entre os soldados e a população em Campinas gerou polêmicas, segundo Queiroz, entre o Diário de Campinas (divulgador original da notícia sobre o confronto) e o Correio Paulistano. O jornal campineiro acusou os militares de usar de violência contra os manifestantes. Por causa disso, surgiram boatos de que o capitão Colatino pretendia destruir a tipografia do Diário. Indignado com tudo isso, o capitão se defendeu das acusações por meio de artigos publicados na imprensa. Ora, a atitude do capitão contrariava as determinações do Ministério de Guerra, que proibia militares de usar a imprensa para se defender. Mesmo assim, o Correio Paulistano saiu em defesa do militar, dizendo que "os jornais que acusavam o Capitão estavam adulterando os fatos com o propósito de 'desrespeitar um valente e brioso oficial'" (Queiroz, 1995: 2ª parte, 140).

Defender o capitão Colatino era apoiar as medidas da administração provincial quanto ao uso de militares para capturar e escoltar escravos. Dessa maneira, o periódico paulistano passou a publicar manifestações de apoio ao capitão da parte de fazendeiros e comerciantes de Campinas, ao mesmo tempo que criticava outros jornais que teriam apoiado o proprietário do Diário de Campinas na sua polêmica com o capitão Colatino. Denúncias de arbitrariedade policial, portanto, faziam parte do jogo político-partidário entre jornais da oposição e da situação.

Em comparação com as denúncias de arbitrariedade policial, as notícias sobre a violência dos senhores eram mais freqüentes nas páginas do Diário Popular. Sempre com o título "Cenas da escravidão", tais notícias davam conta de maus tratos infligidos aos cativos. Um dos relatos trazia a história do escravo Raimundo, negro entrado na província através do tráfico interprovincial. "Escravo de um fazendeiro cuja feroz concubina era o algoz de todos os servos", o negro se tornara, ao que parece, o bode expiatório da fazenda. A partir do dia em que apareceu morto um animal de estimação da mulher do fazendeiro, esta passou a "votar-lhe um ódio de morte e então começou a sofrer toda a sorte de torturas diariamente". Com açoites cotidianos, o corpo de Raimundo se transformou em chaga viva, e seu estado piorou a cada dia, levando-o à morte. Desesperada, a escrava Salustiana culpou a senhora e seu administrador pela morte do marido Raimundo. "A. era o administrador, tão cruel como a senhora, e ficou tão furioso que ordenou que Salustiana fosse posta no tronco, ao que se opôs tenazmente a enfermeira", única pessoa da fazenda que ajudou a escrava a cuidar de seu marido doente. Filomena, a enfermeira, enfrentou o administrador impedindo-o de açoitar a escrava, não somente naquele dia, mas também nos outros. "E sabe o leitor onde tudo isto se passou? Na fazenda de um padre!!!" (Diário Popular, 14/4/1888, p. 1).

Diante de notícias como esta, surgem algumas questões: qual era o intuito do Diário Popular ao denunciar a violência de senhores e feitores contra seus escravos? Tal atitude era fruto, como diz Machado, da "maior atenção e sensibilização da opinião pública"? Era resultado do trabalho dos abolicionistas? Tais denúncias expressavam, realmente, uma mudança de postura em relação à escravidão? Denunciar, nas páginas de um jornal republicano, as atrocidades cometidas contra escravos era uma manobra tão-somente política? Devemos reconhecer que, em relação a esse fato em especial transcrito do periódico paulistano, não podemos afirmar que as pessoas auto-intituladas Civis tivessem segundas intenções ao denunciar a ocorrência de tais atrocidades na fazenda de um padre. Os Civis anônimos deixaram também anônimo o padre proprietário de Raimundo e Salustiana, o que não nos permite cair no erro de julgar tal caso pelo viés partidário, já que não sabemos a que partido estavam ligados denunciantes e denunciado. Mas percebe-se um juízo de valor na notícia, já que os Civis enfatizam o fato de escravos serem maltratados pela concubina de um padre. Poderíamos inferir que questões políticas escondiam-se nessa denúncia, já que os republicanos eram defensores de um Estado laico e, ao denunciar um padre escravocrata e sua concubina, poderiam estar criticando também o sistema de governo que combatiam? Difícil dar uma resposta a tais perguntas, já que para isso precisaríamos aprofundar o estudo sobre o republicanismo, e não é esse o nosso objetivo neste texto.

Mas como a questão escrava estava na ordem do dia, o republicano Diário Popular trazia notícias diárias sobre a situação. Em 18 de outubro de 1887, por exemplo, publicava o seguinte:

Revolta de escravos - Domingo houve no município de Capivari um levante de mais de 60 escravos que, reunidos partiram, segundo há notícias, da vila de Monte-mor em direção a Itu. Como houvesse telegrama para esta cidade foram daí despachadas oito praças armadas [...] ao encontro dos fugitivos, o que se deu na estrada de Itu ao Salto, travando-se ali um conflito entre a polícia e os escravos, de que resultou ficarem todas as praças desarmadas, e sem roupa, sendo que o estado de três deles consta ser grave.

Depois do conflito, o bando de fugitivos que já tinha engrossado, entrou em Itu e atravessou a cidade sem resistência alguma e sem praticar violências, causando entretanto pânico à população.

Consta que vieram para esta capital. As autoridades daqui mandaram ontem 20 praças ao seu encontro (Diário Popular, 18/10/1887, p. 2).

No dia seguinte, o jornal trazia alguns acréscimos à notícia, dizendo que o número dos escravos fugitivos, em sua marcha em direção à capital, havia aumentado para "400 mais ou menos" ao chegarem à vila de Santo Amaro, e "falava-se que tinha havido um encontro entre eles e a força partida ontem, constando haver feridos e mortos". No final, o jornal fazia uma ressalva: "Estas informações devem ser lidas com reserva, porquanto não nos foi possível até a última hora obter notas oficiais sobre o caso" (Diário Popular, 19/10/1887, p. 2). As duas notícias não traziam informações sobre as ocorrências anteriores à fuga dos escravos, e portanto não é possível saber se houve conflito entre os fugitivos e seu senhor. Quanto ao encontro dos escravos com a força pública destacada para capturá-los, pode-se supor que os primeiros tivessem reagido, já que, mesmo desarmados, eram em maior número.

De toda forma, a partir da notícia de 18 de outubro podemos introduzir a análise de Queiroz sobre o movimento das fugas em massa das fazendas paulistas, que se tornaram tão comuns entre os plantéis nos últimos anos antes da Abolição. Com o aumento das fugas, as autoridades provinciais passaram a designar forças policiais para capturar os escravos. Tal medida, no entanto, gerou grandes polêmicas. Queiroz mostra em seu estudo que, entre os principais jornais da província, criou-se um clima de constantes acusações e críticas.

No final do ano de 1885 ocorreu a chamada inversão partidária, ou seja, os liberais foram destituídos de seus cargos no gabinete ministerial, e formou-se um novo gabinete composto por membros do Partido Conservador, liderado pelo Barão de Cotegipe. Um dos mais importantes jornais da capital paulista, o Correio Paulistano, deixou então sua posição de jornal oposicionista e passou à de defensor do governo, já que era o principal órgão representante do Partido Conservador na província de São Paulo.

Queiroz explica que "assim que o Gabinete Cotegipe tomou posse, a redação do Correio Paulistano passou a publicar sucessivos artigos editoriais prometendo que, ao contrário dos ministérios constituídos por liberais, o dos conservadores garantiria o direito de propriedade e a instauração da tranqüilidade e segurança públicas" (Queiroz, 1995: 2a parte, 100). Para isso, o jornal conservador defendia o uso de todas as forças policiais, e também do Exército, na captura de escravos fugidos. O redator do Correio Paulistano defendia que "o principal papel do Exército brasileiro [...] era auxiliar a vida administrativa provincial" e, "como uma das 'mais graves' incumbências da Administração consistia na boa organização policial" (Queiroz, 1995: 2ª parte, 109), era dever dos militares ajudar as autoridades provinciais nessa tarefa.

Tal posicionamento, no entanto, visava claramente a fazer a defesa das medidas e atuações das autoridades policiais nomeadas pelo Partido Conservador paulista, visto que os jornais da oposição criticavam todas as atitudes tomadas por elas: o Diário Liberal acusava o aumento de furtos cometidos na capital, e o Diário Mercantil acusava a polícia de invadir propriedades particulares para capturar escravos. Todos os periódicos oposicionistas denunciavam a "ilegalidade do emprego de tropas militares de terra e mar na captura de escravos fugidos" (Queiroz, 1995: 2ª parte, 132).

Um exemplo disso foi a publicação, pelo Diário Popular, da carta de um santista trazendo críticas ao uso particular das forças públicas. O desagrado da sociedade ficava sugerido na carta enviada de Santos por um tal J. R., publicada na coluna "Seção particular" do jornal em 22 de outubro de 1887 com o título "A polícia negreira?", na qual o remetente criticava o "conflito travado entre escravizados fugidos e a polícia". Argumentando que a polícia "não tem por [dever] tornar-se agradável aos fazendeiros, cujos escravizados são exclusivamente seus e não do público", o santista afirmava que o pequeno número de policiais em Santos seria insuficiente para controlar as ocorrências na cidade. Segundo ele, "a polícia devia ter outras ordens mais terminantes para com o público e não para com particulares" (Diário Popular, 22/10/1887, p. 2).

Por serem os fazendeiros os únicos prejudicados pela fuga de seus escravos, J. R. considerava que a captura dos mesmos devia caber tão-somente aos donos, pois a obrigação da polícia era zelar pelos interesses do público, manter a ordem e a segurança públicas. A carta trazia uma discussão sobre a questão da liberdade dos cativos, concluindo que os senhores deveriam dar melhor tratamento a seus escravos; assim, não os exporiam "a terem idéia de abandonar suas fazendas", nem os submeteriam à sedutora "voz agradável que lhes anuncia a sua liberdade". Além disso, dizia J. R., "tenhamos em devida conta a vida dos nossos poucos soldados, cuja divisa é nobre, e cujos corações sabem sentir para [...] impor a uma ordem que, quanto à perseguição de escravos, deve ser totalmente abolida" (Diário Popular, 22/10/1887, p. 2).

Assim, mesmo publicada em uma seção aberta a diferentes opiniões, podemos inferir que a carta corroborava a opinião do periódico republicano sobre esse assunto e, da mesma maneira que a denúncia da arbitrariedade policial, a insatisfação com o uso das forças militares na captura de escravos seria usada com fins políticos pela oposição.

Outras notícias que se tornaram freqüentes nos jornais paulistas eram as de casos de indisciplina militar. Ainda antes da inversão partidária, os periódicos noticiaram conflitos entre praças da Companhia de Cavalaria e um tenente do Corpo Policial Permanente.

Jonas Queiroz mostra que as relações entre os militares e o governo chamavam a atenção dos jornais desde o assassinato do jornalista Apulcro de Castro em 1883 por oficiais do 1º Regimento de Cavalaria da Corte. Depois, em 1884, o apoio de Antônio Sena Madureira, comandante da Escola de Tiro, a Francisco do Nascimento, líder do movimento emancipador da província do Ceará, gerou desentendimentos entre ele e o Visconde da Gávea, general-ajudante que convocou Madureira a explicar-se sobre a recepção festiva dada ao cearense. Como o comandante declarou que só se explicaria perante o Conde D'Eu, que era o comandante-geral da artilharia, criou-se um clima desconfortável nas relações do Exército com o governo. Madureira foi transferido para o Rio Grande do Sul, onde, em jornal republicano, narrou o que lhe acontecera. Diante disso, o ministro da Guerra, Felipe Franco de Sá, expediu um Aviso proibindo oficiais do Exército de serem nomeados para cargos políticos e de se justificarem em órgãos da imprensa, medidas que considerava úteis para evitar novos casos de indisciplina militar (Queiroz, 1995: 2ª parte, 106-108). Todavia, os casos de indisciplina militar se intensificaram, na medida em que aumentava o uso de soldados do Exército como sabujos dos senhores de escravos. Em São Paulo, boatos divulgados nos jornais sobre possíveis insurreições de escravos bastavam para que a administração provincial solicitasse ao governo central o envio de tropas para auxiliar na captura de escravos.

No início da administração conservadora, Queiroz mostra que os jornais conservadores eram os principais divulgadores de notícias de revoltas de escravos. Dessa maneira, o Correio Paulistano, como o mais importante jornal conservador, tinha a oportunidade de mostrar aos oposicionistas que as autoridades provinciais agiam prontamente para debelar qualquer problema que pudesse ocorrer. O historiador conclui que, "como em todas as outras vezes em que circulavam boatos inauditos sobre a preparação de levantes de escravos, nenhum indício nesse sentido foi registrado" (Queiroz, 1995: 2ª parte, 121), o que leva a crer que "o deslocamento de tropas para sufocar uma insurreição forjada era uma tentativa evidente de conquistar a simpatia e o apoio dos fazendeiros" (Queiroz, 1995: 2ª parte, 126).

Mas o autor também chama a atenção para a coincidência entre o movimento de tropas entre a Corte e São Paulo e a realização de eleições na província.

No dia 14 de junho de 1887, por exemplo, o

Correio

noticiou a chegada do 10º batalhão de infantaria de linha, composto de 42 praças e vários oficiais; este contingente ficou destacado em Campinas até o dia 13 de agosto, quando regressou ao Rio de Janeiro. Entre o dia da chegada e o da partida do batalhão, foram realizadas duas importantes eleições, nos dias 18 e 29 de junho. Elas definiram a reeleição de Rodrigo Silva para a Câmara dos Deputados, por ter sido nomeado ministro da Agricultura, e a eleição de Elias Antônio Pacheco Chaves para substituir Antônio Prado na mesma Câmara, em virtude de ter sido este nomeado senador. Ambas, portanto, foram vencidas pelo Partido Conservador. Além disso, durante os últimos meses do ano, quando era ainda mais intenso o movimento de tropas na província, houve eleições para a escolha de deputados provinciais (Queiroz, 1995: 2ª parte, 130).

Por essa explicação fica evidente o uso político do Exército pelo Partido Conservador, gerando contundentes críticas da oposição. A justificativa dada pelo Correio Paulistano era a de que as forças militares eram um reforço solicitado ao governo central para restabelecer e manter a ordem e segurança públicas na província, já que o número de evasões de escravos aumentara muito. Entretanto, a população começou a se insurgir cada vez mais contra a captura de escravos realizada pelo Exército. Em setembro de 1887, jornais paulistanos noticiaram que um contingente de 50 soldados da infantaria chegara a São Paulo e embarcara para Campinas escoltando 37 escravos capturados. Assim que o comboio chegara a essa cidade, um grupo de pessoas impedira a continuação do translado dos presos para a fazenda de seu dono. Os jornais oposicionistas se referiram aos militares como "servis pegadores de pretos fugidos" e os acusaram de usar de violência contra os manifestantes (Queiroz, 1995: 2ª parte, 139).

Dentro dos quartéis, a indisciplina militar aumentava cada dia mais. Insuflados por manifestações abolicionistas, os soldados começaram a desobedecer às ordens para capturar escravos fugidos. O mesmo Diário Popular, do qual transcrevemos a notícia do dia 18 de outubro sobre a fuga dos escravos de Capivari, publicou em 26 do mesmo mês a informação de que alguns oficiais militares se haviam recusado a ir para Cubatão interceptar a passagem daqueles escravos, que por certo se dirigiam ao quilombo de Jabaquara, localizado nas proximidades de Santos. Outro oficial teria sido punido por ter proibido seus subordinados de perseguir os mesmos escravos quando estes passavam pela região de Santo Amaro (Diário Popular, 26/10/1887, p. 2). Queiroz afirma que, além de provocar muitos casos de indisciplina militar como estes, a prática de utilizar o Exército para capturar escravos acabou por gerar, também, uma profunda crise no Partido Conservador de São Paulo.

Já dissemos que a oposição apontava a ilegalidade de se utilizar os serviços militares para prender escravos fugitivos. Ao lado disso, os abolicionistas afirmavam que a lei brasileira não considerava crime a fuga de escravos e que, portanto, eles só poderiam ser presos caso praticassem algum crime. Nesse sentido, Queiroz afirma que em sua pesquisa não encontrou registro de qualquer ato de violência praticado pelos escravos durante as fugas em massa. O que parece ser evidente é que, no encontro dos escravos com a força pública destacada para capturá-los, ocorria o que poderia ser denominado "ação e reação", ou seja, quando tratados com agressividade pelos militares, os escravos reagiam da mesma maneira. O historiador conclui que "ao abandonarem as fazendas em grupos e evitando deliberadamente cometer atos que pudessem ser caracterizados como uma ameaça à segurança pública, os escravos não apenas conquistavam a simpatia e aquiescência de setores cada vez mais amplos da sociedade como também mobilizavam estes mesmos grupos contra as autoridades que tentavam impedi-los de fugir" (Queiroz, 1995: 2ª parte, 150). Como se vê pelos casos de oficiais que se negavam a prendê-los, pode-se deduzir que os escravos também conquistavam a simpatia dos militares para sua causa.

Em relação à noticia dada no dia 18 de outubro sobre a fuga dos escravos de Capivari, à primeira vista o Diário Popular parece fazer simples menção à ocorrência de um fato. Mas devemos observar que, após falar sobre o conflito ocorrido no encontro de praças e escravos, a notícia ressaltava que o bando atravessara a cidade de Itu "sem praticar violências", o que nos leva a pensar que o jornal só associava atos violentos aos escravos quando estes se encontravam com seus perseguidores.

Essa posição se confirma após a leitura do jornal do dia 26 de outubro de 1887, onde, na coluna "Cartas do Rio", o jornalista Aristides Lobo comenta as modificações feitas na lei que determinava as penas para os crimes de escravos: com a revogação do artigo 60 do Código Criminal e da Lei nº 4 de 10 de junho de 1835, ficava estabelecido que os escravos seriam submetidos às mesmas penalidades impostas a quaisquer delinqüentes. Depois de expor as determinações dos artigos 113, 114 e 115 do Código Penal, ao mostrar as características de uma insurreição escrava, ele argumentava: "Se aos escravos foram impostas as mesmas penas decretadas pelo código e mais legislação em vigor para outros quaisquer delinqüentes, [...] e se é certo que os delinqüentes livres não podem cometer o crime de insurreição, é claro que este crime e a sua penalidade desapareceram e que as disposições dos artigos 113, 114 e 115 do código criminal foram revogadas". Daí, o jornalista perguntava: "Em vista desta disposição [aplicação aos escravos das mesmas penas previstas para os 'livres'] subsistem os crimes e as penas de insurreição?" (Diário Popular, 26/10/1887, p. 1). Pois, dizia Lobo, mesmo revogadas as penas, o governo pretendia aplicar as disposições dos citados artigos para controlar a situação em São Paulo, agravada a partir da fuga dos escravos de Capivari.

Partindo desse ponto, o articulista do Diário mostrava que, no desenrolar desse processo de fugas em massa, os escravos abandonavam as fazendas pacificamente, sem empregar força, "elemento substancial do delito", e passavam pelas cidades sem "fazerem a menor violência e nem sequer ameaçarem a quem quer que fosse. Somente depois de atacados pela força pública, reagiram e trataram de se defender. Como, pois, incorreram eles no crime de insurreição? A fuga do cativeiro não é um crime, não há lei alguma que como tal a qualifique" (Diário Popular, 26/10/1887, p. 1). Se, para Aristides Lobo, o ato de fugir não podia ser classificado como insurreição, soa contraditório o fato de o jornal ter intitulado "Revolta de escravos" a notícia dada em 18 de outubro sobre a fuga dos cativos de Capivari. Mas o que podemos comprovar pela análise do artigo é que a verdadeira intenção do Diário Popular era criticar as ações do governo no trato da questão da emancipação da escravidão e no uso da força militar para capturar escravos fugidos. Como mostra Queiroz (1995: 2ª parte, 150), os jornais da oposição "procuravam tirar proveitos políticos da crise provocada pela tentativa de captura dos escravos fugidos".

Além disso, a oposição tinha a percepção "de que a maneira como se processavam as fugas de escravos [pacificamente, como dizia Aristides Lobo] estava gerando uma crise política sem precedentes na história do Império" (Queiroz, 1995: 2ª parte, 150), e talvez por isso o Diário fizesse questão de enfatizar que o periódico da situação mantinha-se em silêncio sobre a questão das fugas em São Paulo. Em 20 de outubro daquele ano de 1887, o periódico republicano assim se referiu ao jornal conservador: "Coordenamos como melhor nos parece os boatos que correm, desprezando muitos por inverossímeis, a propósito da batalha de Santo Amaro. O Correio, órgão oficial, em seu número de hoje, não traz nem meia palavra a respeito, autorizando a que se diga que guarda esse estranho silêncio porque não ousa referir a verdade" (Diário Popular, 20/10/1887, p. 2). Tal crítica repete-se no dia 25 de outubro, um dia antes de o jornal noticiar, como já foi dito acima, os casos de indisciplina militar que se davam pela recusa dos oficiais e seus soldados de se embrenhar nas matas em perseguição aos escravos de Capivari.

Assim, somando-se o jogo político-partidário da oposição, os casos de indisciplina militar, a pressão de abolicionistas, o posicionamento da população a favor dos escravos fugitivos e contra a atitude das autoridades provinciais, a crise dentro do Partido Conservador paulista cresceu de tal maneira que culminou com o pedido de exoneração do Barão de Parnaíba do cargo de presidente de província.

Queiroz considera que a crise agravou-se ainda mais depois que o senador Antônio Prado mudou totalmente de posição, passando a defender medidas que acelerassem o processo de emancipação, visto que em São Paulo aumentavam sobremaneira as pressões contra as tentativas de restituir escravos fugidos aos seus senhores (Queiroz, 1995: 2ª parte, 151). O senador, que, nos primeiros meses de 1887, quando na presidência da Assembléia Legislativa Provincial paulista, se recusara a aprovar um projeto que revogava a Lei nº 36 de 7 de julho de 1869, no ano seguinte fez até um eloqüente discurso apoiando um projeto semelhante ao que não aprovara no ano anterior (Queiroz, 1995: 2ª parte, 151-152). O projeto, apresentado em 1888 com algumas modificações pelo mesmo deputado liberal que o assinara antes, propunha que os senhores não mais pudessem contar com a ajuda das forças policiais para reaver seus escravos fugidos. O apoio de Antônio Prado a tal projeto indica que sua mudança de posição relacionava-se com o aumento das pressões dos vários setores da sociedade contra o uso das forças públicas para fins particulares. O jornal Correio Paulistano, de propriedade desse senador, passou a ser o difusor de sua mudança de posição e, em uma série de artigos publicados nos últimos meses de 1887 e nos primeiros de 1888, passou a incentivar os fazendeiros a não resistir ao movimento de fugas, a modificar o sistema de trabalho, a conceder alforrias mediante prestação de serviços e a pagar salários aos negros, procurando convencer os agricultores das vantagens do trabalho livre.

Queiroz mostra que o Correio também conclamava as Câmaras Municipais a intervir na condução do movimento emancipatório nas cidades (Queiroz, 1995: 2ª parte, 152). Ao que parece, tal conclamação surtia efeito, visto que aumentavam nas páginas dos jornais da província as notícias sobre a libertação dos escravos em várias cidades, por iniciativa dos fazendeiros e das autoridades municipais. As libertações nas cidades eram comemoradas com festas nas ruas e, quando da libertação na capital, o Diário Popular fez elogios ao empenho do senador Prado na "obra da libertação da província":

Libertação da capital - Deram-se no sábado as festas anunciadas, sendo circunstância importante o haver cessado a chuva e concertado o tempo à noite.

Aspecto brilhantíssimo ofereciam as ruas centrais da cidade, embandeiradas e iluminadas abundantemente com arcos de gás de lanternas. [...].

Era descomunal a multidão que circulou pelas ruas desde o anoitecer até tarde, constando que grandíssimo contingente do interior viera engrossar a massa dos mirones.

Dir-se-ia que a cidade rejubilava-se em plena e deslumbrante Quinta-feira Santa. [...]

Foram naquela ocasião entregues àquele cidadão os diversos mimos que lhe eram destinados [...], [e] foram inúmeros os telegramas e cartas de congratulação que recebeu da Corte e do interior da província o senador Prado, pela obra da libertação da província, por ele tão criteriosamente secundada e dirigida. (Diário Popular, 27/2/1888, p. 2)

O elogio do jornal republicano ao proprietário do periódico conservador, depois de tantas disputas, se explica pela constatação de que a mudança de posição do senador Prado em relação ao movimento da emancipação da escravidão não ficou impune: o Diário Popular de 12 de novembro de 1887 registrou em sua "Seção livre" um pequeno artigo intitulado "Aos fazendeiros", cujo autor dizia que "nesta última fase da questão servil, tem aparecido muita cousa ridícula". Em seguida, criticava a atitude do senador Godoy, que apresentara no Senado um projeto de solução imediata para a "questão servil", dizendo que, com tal projeto, o senador pensava que sairia de "sua nulidade". A crítica seguinte, o autor (identificando-se apenas como Um fazendeiro) dirigia ao senador Prado, o qual, juntamente com Leôncio Carvalho e Rafael de Barros, buscava aumentar sua popularidade, convidando fazendeiros para estabelecerem prazo para a emancipação dos escravos, numa imitação clara do senador Godoy, "com medo de alguém roubar-lhes as glórias". O fazendeiro anônimo terminava conclamando seus pares a não comparecer à reunião convocada por Leôncio de Carvalho e Rafael de Barros, evitando, assim, compactuar com "leviandades em negócios sérios". Ao invés disso, o fazendeiro aconselhava: "mandem plantar batatas esses ridículos imitadores do senador Godoy" (Diário Popular, 12/11/1887, p. 2). Ao elogiar Antônio Prado, o jornal republicano mostrava que aderira à conclamação do Correio Paulistano para que fossem esquecidos os "ódios partidários" e para que todos juntassem "esforços em prol dos interesses da pátria e, particularmente da província" (Queiroz, 1995: 2ª parte, 152 e 154).

O fato é que, provavelmente, os rumores sobre o projeto da Lei Áurea se faziam ouvir mais alto naqueles primeiros meses de 1888. Independentemente da posição ideológica de cada jornal, seus redatores sabiam que a escravidão chegara ao fim e que a aprovação da Lei representaria apenas a oficialização da abolição. Pode-se presumir, portanto, que o elogio do jornal republicano à "obra de libertação tão criteriosamente secundada e dirigida" pelo senador Prado representava a constatação de que a questão escrava não era mais um tema interessante para ser usado como munição nas "guerras" político-partidárias.

3. Considerações finais

De acordo com Célia Marinho de Azevedo, foi o tráfico interprovincial de cativos que fez concentrar-se na província de São Paulo um grande número de negros provenientes do Norte, provocando o agravamento das lutas entre senhores e escravos e o aumento do número de crimes e revoltas escravas. Dessa forma, ela considera que as medidas adotadas pelos deputados provinciais para impedir a entrada de mais escravos e favorecer o estabelecimento de um programa de imigração européia em São Paulo foram impulsionadas pelo crescente "medo branco", provocado pela "onda negra" proveniente das províncias do norte do Império.

A historiadora Maria Helena Machado, por sua vez, quer recuperar a "história dos grupos sem história", "daqueles cujos registros históricos se fizeram na ausência dos interessados e sempre à sua revelia" (Machado, 1991: 6). Para isso, resgata fatos envolvendo escravos ocorridos em finais do século XIX, aos quais se refere como movimentos sociais, e através deles busca mostrar que os cativos não eram simples marionetes nas mãos dos abolicionistas. Como Célia Azevedo, Maria Helena Machado pensa que havia um "espocar" de rebeliões escravas por toda a província; mas diferentemente daquela, considera-as expressões do anseio dos negros de alcançar a liberdade dentro de uma concepção própria. Contrapondo-se, assim, à noção de "coisificação" do negro, 4 o que a autora procura afirmar é a autonomia do escravo na sua busca por liberdade.

Já para Jonas Marçal de Queiroz, as insurreições escravas tão propagadas pelas duas autoras acima citadas eram armas bem manejadas pelos mais variados interesses em disputa no período. Enfocando as disputas político-partidárias ocorridas em finais do século XIX, o autor mostra que um mesmo fato envolvendo cativos assumia versões bastante diferentes: como as autoridades policiais sempre ocupavam o centro das polêmicas geradas por tais fatos, havia críticas de um lado e elogios de outro.

Sendo as autoridades policiais escolhidas em função dos interesses políticos, ao acontecer um crime de escravos a oposição ao governo o noticiava como um fato de grandes proporções, criticando a polícia por não ser capaz de garantir a segurança e a tranqüilidade públicas. Para a situação, no entanto, o ocorrido servia para exaltar as qualidades de uma autoridade que prontamente sufocara uma tentativa de insurreição (Queiroz, 1995: 2ª parte, 181).

As disputas político-partidárias também estavam presentes no momento da aprovação da lei antitráfico de São Paulo. Queiroz mostra que todas as tentativas anteriores a 1881 foram barradas pelas disputas entre os partidos pelo controle do poder político na província e que, mesmo que tenha havido uma convergência de interesses para a promulgação da Lei Antitráfico de 25 de janeiro de 1881, o poder dos conflitos partidários era mais decisivo que o dos fazendeiros. Isso ficou evidente no caso do projeto antitráfico apresentado em 1878, quando a disputa entre a Assembléia Legislativa, composta em sua maioria por deputados conservadores, e a administração provincial, controlada pelos liberais, foi mais decisiva para vetá-lo do que as pressões no mesmo sentido feitas pelos fazendeiros diretores do Clube da Lavoura de Campinas.

Ao argumentar que até mesmo os contemporâneos dividiam-se quanto à questão do aumento das revoltas escravas, Jonas Queiroz mostra que não há, nas fontes primárias, indícios seguros de que elas vinham crescendo, e é por esse caminho que discute o tema das insurreições de escravos presente na historiografia. Assim, pode parecer que nossa análise neste artigo tenha sido condicionada pela posição de Jonas Queiroz em seu estudo. No entanto, foi a análise e contraposição das fontes primárias que nos levou a corroborar as afirmações desse historiador. Não negamos a existência de conflitos entre escravos e seus senhores, mas acreditamos que eles existiram durante os mais de 300 anos de escravidão no Brasil. Não existem dados suficientes e seguros que nos permitam afirmar categoricamente que as revoltas e rebeliões de escravos contra seus senhores e prepostos foram numerosas neste ou naquele período.

Em uma análise mais detalhada dos jornais paulistas do período aqui retratado, é possível verificar que havia discordâncias marcantes entre eles. Tomando como exemplo dois jornais publicados no ano de 1878, um republicano, A Gazeta de Campinas, e outro conservador, Correio Paulistano, vê-se que o redator do primeiro considerava que os crimes cometidos por escravos eram um problema grave, mas não um problema novo, já que os fazendeiros conviviam com ele havia muito tempo. Quanto ao aumento do número desses crimes, o jornal campineiro não trazia referências, donde se pode inferir que seu redator não compartilhava tal opinião. 4 Já o jornal paulistano, em artigos publicados quase na mesma época, se posicionava de outra maneira: considerava que era inegável o crescimento dos crimes de escravos, indo bem mais longe ao dizer que o responsável por tal situação era o próprio Imperador e sua política de comutação da pena de morte para os escravos em condenação à galé perpétua. 5 5 Editoriais publicados em A Gazeta de Campinas no decorrer do mês de dezembro de 1878.

Não há como negar o peso das disputas político-partidárias no contexto da época. Afinal, todos os contemporâneos tinham plena consciência de que a escravidão era uma instituição em franca decadência, certamente fadada a desaparecer mais cedo ou mais tarde. Justamente por isso, os boatos sobre revoltas escravas tinham uso político: a oposição usava-as para criticar; a situação, para se elogiar; os escravocratas, para legitimar e prolongar a escravidão, acenando com o perigo de se libertar sem critério escravos que eram violentos e estariam despreparados para assumir a condição de livres; os abolicionistas, por sua vez, as apontavam como uma reação à própria violência intrínseca à instituição escravagista.

Mas os crimes cometidos pelos escravos podem ser analisados pelo viés da ação e da reação? Depois de verificarmos em vários jornais que os escravos, muitas vezes, cometiam o crime, fugiam e logo em seguida se entregavam à polícia, podemos observar e inferir que muitas das ações classificadas pela historiografia como revoltas escravas nada mais eram que a reação dos negros a uma tentativa de repreensão por parte de seus senhores. Além do mais, as fontes primárias mostram que, na década de 1880, cresceu o apoio aos escravos. O fato de os escravos empreenderem fugas em massa, mas pacíficas e ordeiras, havia conquistado a simpatia das pessoas e até mesmo das forças policiais encarregadas de capturá-los - o que demonstra a perspicácia dos escravos ao atribuir credibilidade às suas ações, mesmo sendo elas contrárias à ordem legal. As fugas maciças e pacíficas empreendidas pelos escravos expressavam sua inconformidade com a ordem vigente, mas naquele momento elas alimentavam a sensibilidade moral da maior parte da sociedade de finais do século XIX, que não mais desejava compactuar com a escravidão negra.

Notas

4 Chalhoub (1991) refere-se à "teoria do escravo-coisa" quando atribui às obras de Cardoso (1962), Fernandes (1965) e Ianni (1962) uma análise da escravidão, em termos de economia-política, segundo a qual senhores e escravos eram levados a se relacionar como "personificação" ou "suporte" de categorias econômicas, negando, assim, a possibilidade de existência do escravo como sujeito histórico.

6 Editoriais publicados no Correio Paulistano durante o mês de outubro de 1878.

Referências Bibliográficas

Fontes primárias

Fontes secundárias

Artigo recebido em 25 de maio e aprovado para publicação em 8 de setembro de 2008.

Nota dos autores: Em sua primeira versão, este texto foi discutido por professores e alunos da Faculdade de História da PUC-Campinas ligados ao Grupo de História Regional, aos quais agradecemos. Também somos gratos às sugestões e críticas dos pareceristas anônimos que examinaram o artigo, e à revisão de Pedro E. Portilho de Nader.

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  • 1
    "O pássaro e a sombra" é uma referência à observação de um político do Partido Conservador, então no poder, que, ferido pelos ataques da oposição, disse que ela deveria mirar no pássaro e não na sombra, isto é, em D. Pedro II, e não no ministério de que fazia parte. É também o título do segundo capítulo do livro
    Do Império à República, de Sérgio Buarque de Holanda.
  • 2
    Os nomes das colunas e seções, bem como os trechos citados, tiveram a grafia atualizada.
  • 3
    A partir da década de 1870, os escritos da época passaram a se referir à "escravidão" como a "questão do elemento servil".
  • 5
    Editoriais publicados em
    A Gazeta de Campinas no decorrer do mês de dezembro de 1878.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Mar 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2008

    Histórico

    • Aceito
      08 Set 2008
    • Recebido
      25 Maio 2008
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