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Conflitos de memória e de identidades no cenário rural: ritualizações e representações de colonos assentados no norte do RS

Memory and identity conflicts in rural scenery: rituals and representations of settlers in the north of RS

Resumos

O texto analisa aspectos do uso da memória coletiva por grupos sociais (no caso assentados, oriundos dos acampamentos da Encruzilhada Natalino e da Fazenda Annoni, na região centro-norte do estado do Rio Grande do Sul) para redefinir e/ou fortalecer sua identidade de sem-terra e enfrentar desafios e conflitos do tempo presente. Objetiva mostrar processos de construção/reconstrução de memórias coletivas através de rituais mediados por várias instituições, os quais buscam fortalecer identidades de pertencimento, manter a mística e os processos de luta de sem-terra ainda que os sujeitos envolvidos não o sejam mais. Centraliza-se na discussão e análise do papel da memória coletiva, das representações sociais, cultura de pertencimento, rituais agregadores, processos de socialização e temporalidades que se cruzam.

memória; imaginário; representações sociais; sem-terra


Le texte analyse quelques aspects de l'utilisation de la mémoire collective par des groupes sociaux (travailleurs ruraux originaires des campements d'Encruzilhada Natalino et Fazenda Annoni, dans le Centre-Nord de l'état de Rio Grande do Sul) dans le but de redéfinir et/ou renforcer leur identité des sans-terre et faire face à des défis et des conflits du temps présent. Il veut montrer les processus de construction/reconstruction des mémoires collectives au moyen de rituels qui cherchent à renforcer des identités et à maintenir la mystique et la lutte des sans-terre, bien que leur condition ait changé; il contient un débat et une analyse sur le rôle de la mémoire collective, les représentations sociales, la culture de l'appartenance, les rituels d'agrégation, les processus de socialisation et les temporalités que se croisent.

mémoire; imaginaire; représentations sociales; sans-terre


This article analyses some aspects of the use of collective memory by social groups (in this case rural workers who stem from the settlements of Encruzilhada Natalino and Fazenda Annoni, in the center and northern region of the state of Rio Grande do Sul) in order to redefine and/or strengthen their identity as landless people, and to face current challenges and conflicts. It intends to show the collective memories construction/reconstruction processes by means of rituals which are meant to strengthen identities and to maintain the mystic and the struggle of the landless, even if this is not their condition any more. It is a discussion and analysis of the role of collective memory, social representations, patrimonial culture, aggregating rituals, socialization processes, and crossed temporalities.

memory; imaginary; social representations; landless


ARTIGOS

Conflitos de memória e de identidades no cenário rural: ritualizações e representações de colonos assentados no norte do RS

Memory and identity conflicts in rural scenery: rituals and representations of settlers in the north of RS

João Carlos Tedesco

RESUMO

O texto analisa aspectos do uso da memória coletiva por grupos sociais (no caso assentados, oriundos dos acampamentos da Encruzilhada Natalino e da Fazenda Annoni, na região centro-norte do estado do Rio Grande do Sul) para redefinir e/ou fortalecer sua identidade de sem-terra e enfrentar desafios e conflitos do tempo presente. Objetiva mostrar processos de construção/reconstrução de memórias coletivas através de rituais mediados por várias instituições, os quais buscam fortalecer identidades de pertencimento, manter a mística e os processos de luta de sem-terra ainda que os sujeitos envolvidos não o sejam mais. Centraliza-se na discussão e análise do papel da memória coletiva, das representações sociais, cultura de pertencimento, rituais agregadores, processos de socialização e temporalidades que se cruzam.

Palavras-chave: memória, imaginário, representações sociais, sem-terra

ABSTRACT

This article analyses some aspects of the use of collective memory by social groups (in this case rural workers who stem from the settlements of Encruzilhada Natalino and Fazenda Annoni, in the center and northern region of the state of Rio Grande do Sul) in order to redefine and/or strengthen their identity as landless people, and to face current challenges and conflicts. It intends to show the collective memories construction/reconstruction processes by means of rituals which are meant to strengthen identities and to maintain the mystic and the struggle of the landless, even if this is not their condition any more. It is a discussion and analysis of the role of collective memory, social representations, patrimonial culture, aggregating rituals, socialization processes, and crossed temporalities.

Key words: memory, imaginary, social representations, landless

RÉSUMÉ

Le texte analyse quelques aspects de l'utilisation de la mémoire collective par des groupes sociaux (travailleurs ruraux originaires des campements d'Encruzilhada Natalino et Fazenda Annoni, dans le Centre-Nord de l'état de Rio Grande do Sul) dans le but de redéfinir et/ou renforcer leur identité des sans-terre et faire face à des défis et des conflits du temps présent. Il veut montrer les processus de construction/reconstruction des mémoires collectives au moyen de rituels qui cherchent à renforcer des identités et à maintenir la mystique et la lutte des sans-terre, bien que leur condition ait changé; il contient un débat et une analyse sur le rôle de la mémoire collective, les représentations sociales, la culture de l'appartenance, les rituels d'agrégation, les processus de socialisation et les temporalités que se croisent.

Mots-clés: mémoire, imaginaire, représentations sociales, sans-terre

Introdução

Neste estudo lidaremos com um conjunto de representações e ritualizações que levam grupos sociais - no caso assentados, oriundos dos acampamentos da Encruzilhada Natalino (1980-84) e da Fazenda Annoni (1984-89), na região Norte do estado do Rio Grande do Sul -, através das preocupações do tempo presente em relação à sua identidade de sem-terra e de outros conflitos no cotidiano, a reconstruir aspectos de sua história no acampamento, principalmente no campo das lutas, na dimensão do sacrifício, dos enfrentamentos e das vitórias na conquista da terra.

O grupo que forma o Assentamento 16 de Março,1 1 . Denominação temporal e comemorativa referente ao dia do sorteio dos terrenos para o atual assentamento na área da Fazenda Annoni. espaço de maior expressão de nossa pesquisa, é uma grande referência para o MST em nível nacional e no âmbito político regional, como experiência de trabalho e de moradia com dinâmicas de expressão coletiva. Alguns de seus membros participam dos quadros políticos do MST em nível nacional e estadual. Há, entre esses membros, uma grande referência em termos de base social e de mobilização para as lutas sociais da entidade que os congrega (o MST).

O que queremos demonstrar é a importância dos rituais coletivos para a afirmação histórica da identidade de sem-terra, bem como da memória do acampamento como vivido, que, ao ser selecionada e presentificada, se ritualiza no presente. As lutas sociais constituem um patrimônio coletivo, uma práxis social que cristaliza desejos, interpretações do mundo, mediações culturais e históricas temporalizadas e contextualizadas de agrupamentos sociais que necessitam ser ritualizadas, (re)contadas, (re)lembradas, (re)significadas e sensibilizadas no coletivo.

Nossa hipótese gira em torno do fato de que as construções simbólicas dos grupos, das comunidades e da identidade de sem-terra requerem domínios e apreensões simbólicas de objetos, de um acervo linguístico comum e de uma herança histórica partilhada no espaço e no tempo. Nesse sentido, temos a convicção de que, através da memória/lembrança, é possível que os grupos envolvidos (sem-terra), em seus rituais, reconstruam o elo com o mundo vivido nos acampamentos. Entendemos que o estudo das memórias individuais e coletivas pode ser uma chave para compreender indivíduos e grupos que geram, produzem e transmitem narrativas e significados sobre o vivido nos territórios que habitaram.

A pesquisa foi realizada em assentamentos da antiga Fazenda Sarandi,2 2 . A Fazenda Sarandi é a grande unidade-mãe que originou vários latifúndios nas décadas de 1950 e 1960. Ela possuía, na metade do século XX, cerca de 50 mil hectares. A Fazenda Annoni, com aproximadamente 12 mil hectares, é oriunda da fragmentação da anterior e, como foi desapropriada, transformou-se em cenário para vários assentamentos. palco de acampamentos em vários momentos nos anos de 2006, 2007 e 2008, por meio de entrevistas com lideranças, professores das escolas, padres e pastores que deram - alguns ainda dão - assistência religiosa nos vários rituais e festejos comunitários que aconteceram nesses anos (festas na comunidade de assentados, encontros comunitários nas escolas, festejos em comemoração da conquista da terra, reuniões de grupos para preparar encontros etc.). Visitamos cooperativas de assentados, um frigorífico e agroindústrias para ver como atuam, como é o processo de trabalho e de gerenciamento coletivo; estivemos presentes em espaços de assentados que organizam sua produção de forma individual e que se desvincularam do grupo; participamos do grande festejo de comemoração dos 22 anos de conquista da terra na Annoni, ritualizado de várias formas e com milhares de pessoas presentes, fazendo parte das comemorações oficiais do MST em nível nacional.

É importante ressaltar que, na região, ocorrem ainda fortes e intensos movimentos sociais, como é o caso do Acampamento na Fazenda Coqueiros, latifúndio de 9 mil hectares, também oriundo da antiga Fazenda Sarandi, que faz limite com os assentamentos da Fazenda Annoni. Trata-se, portanto, de um cenário de lutas e profundas contradições em torno da propriedade da terra, realidade que se estende desde 1980 com o Acampamento Natalino, e se prolonga em 1985, com o da Annoni, e em 2004, com o da Fazenda Coqueiros. É interessante frisar esse aspecto, pois parte dos rituais desenvolvidos nos assentamentos também tem a intenção de fortalecer a luta dos que ainda estão em busca de terra na região.

A memória coletiva e o coletivo na memória

As manifestações e ritualizações de memória dos acampamentos de sem-terras 20 anos após sua experiência podem ser uma expressão do desejo de testemunhar o passado, pois são qualificadas a partir do contexto em que são geradas, ressaltando aspectos contraditórios e conflituosos tanto na forma como emergiram no interior do grupo quanto no conteúdo das próprias produções (Rocha e Eckert, 2005).

Inúmeros autores que se referiram ao campo da memória e suas formas de recordação defendem que há sempre seleção, síntese e reconstrução da memória coletiva em razão dos interesses do presente; que a memória é um fator de identidade dos indivíduos/grupos, mas também a expressão e manifestação do momento presente (Halbwachs, 1990). Segundo Le Goff (1979), o desejo de conservação do passado caminha com a mesma intensidade com a qual se distancia dele. Determinados eventos continuam a ganhar espaço de lembrança porque continuam a significar para os grupos sociais. Diz-nos uma assentada:

No dia 16 de março de 1993, criamos a Comunidade 29 de Outubro, este nome em homenagem à data da ocupação da Fazenda Annoni, tendo em vista que todas as famílias desta comunidade são assentadas. Em 1994, no dia 16 de março de 1994, começamos a comemorar a data de aniversário do assentamento na comunidade. Em 1995, houve a importante tomada de decisão de transformar e consolidar a nossa igreja em um espaço ecumênico que é um local de celebração da Igreja Católica, Luterana e congregacional, onde cada igreja tem a sua agenda de celebrações. Em 1998, verdadeiramente tomamos a decisão de retomar a comemoração do aniversário da ocupação da Fazenda Annoni, sempre no dia 29 de outubro.

Seguidamente fizemos painel de resgate da nossa história após o acampamento e durante também. Na escola montamos barracos para mostrar como era a vida de todos aqueles anos de acampamento, montamos grupos, e cada dia um fica responsável por ficar o dia todo no barraco, fazem comida, montam as camas de taquara, o jipão que era só a chapa do fogão, como cozinha coletiva; passam para as crianças os vídeos de Terra para Rose e O sonho de Rose. Todas as famílias do núcleo vão lá e contam como era o acampamento. Isso tudo no pátio da escola. É na escola o ponto das comemorações e da memória, pras crianças verem; nós temos isso na memória, as crianças e adolescentes não. Fazem o seminário daí.

As outras áreas de assentamentos começaram também a ritualizar, começaram a sentir a necessidade. Mas ainda tá muito devagar. (...) Nós sentimos que é uma obrigação nossa levar pra frente a história de luta. Os grupos acham que não tem mais sentido ou que foi muito penoso e não tem porque repassar isso pras crianças. Nós não. (...)

Em 2004, por exemplo, aconteceu a inauguração da cruz de pedra que é o marco histórico da luta pela terra e a pintura gigante do MST no ginásio de esportes da comunidade.

As Áreas todas fizeram a cruz de pedra com as famílias dos 32 municípios que acamparam na Annoni. É mais coisa de Igreja, daí a pressão do padre e dos mais velhos. Mas é também uma forma de recordar. Desde 1998 é feita todos os anos essa festividade de comemoração do assentamento e da ocupação e luta na Annoni.

Como percebemos pelo longo depoimento, datas passam a ser significativas; rituais são dinamizados pelo coletivo após alguns anos de assentamentos, como "obrigação de levar pra frente", de garantir futuro a algo do passado que foi significativo para o vivido do grupo.

Os grupos no interior dos assentamentos, e os assentamentos todos da região e das várias áreas da Fazenda Annoni transformam-se num lugar de reprodução de memória, produzem acontecimentos discursivos, representações de memórias coletivas, encenadas de forma teatral, em rituais considerados místicos, em canções e entoações de palavras de ordem disseminadas no interior do MST.

A ocupação/acampamento, com o passar dos anos, passa a ser lugar de memória, espaço de resistência e de sociabilidades diversas, principalmente no campo político e discursivo, reelaborando formas de organização da vida e produzindo a dita cultura dos assentamentos. Há momentos considerados de maior expressão e espaços considerados de maior dinamismo - neste último caso estão a escola primária e a capela. Percebemos também que a grande expressão de memória passa a ser aquela que ritualiza e comemora o 29 de outubro, data da ocupação da fazenda, da constituição do acampamento, que é, portanto, altamente significativa. Essa data é preparada, esperada, envolvida numa ritualidade ampla e de grande repercussão social; serve para mostrar para todos os que estão na luta que "o que temos foi também fruto de muito sofrimento, e para os nossos filhos, que temos uma história, e uma história que ninguém tem o direito de jogar fora e todos têm o dever de recordar sempre. Fizemos esse juramento de mostrar para todas as gerações depois de nós" (entrevista direta com esposa de acampado, líder do MST em nível de estado).

Fortalecer o grupo

Segundo Jeudy (1990), há uma tentativa de simbolização, de interpretação ativa do que ocorreu no passado e que será constitutivo da lembrança; há um jogo social de construção de sentidos; mediadores, guardiões da memória são acionados com o intuito de fazer com que determinadas dimensões de vividos e fatos sejam mantidas na memória social de um grupo. Dependendo da correlação de forças, da intensidade dos conflitos e dos consensos, determinadas formas de expressão e ritualização do passado produzem a dita memória social, enquadrando uma e deixando outras no horizonte subterrâneo da lembrança e dos ritos, fortalecendo pertencimentos, sentimentos compartilhados, identidades e referências (Pollak, 1992).

Esse processo produz complicadas relações sociais, pois, para o caso em questão, nem todos os acampados e mesmo os assentados comungam das mesmas interpretações e visões de mundo, nem no campo da política, nem mesmo na intenção das perspectivas de futuro em termos de relações e processos de trabalho e de vida familiar/social. Por isso, os rituais de memória, lembrando situações de sacrifício e de enfrentamento no acampamento, têm a intenção de cimentar concepções, comungar e integrar em torno de determinadas estratégias de ação no presente, principalmente renovando a intenção passada do trabalho coletivo e da manutenção da identidade de sem-terra para fortalecer a luta de outros que passam atualmente pelo mesmo caminho traçado por eles (Halbwachs, 1990).

Concordamos com Jedlowski (1989) quando diz que a memória é um conjunto móvel de processos e de representações que produzem autopercepções de tempo e espaço, mas no conjunto social, em meio aos processos identitários e/ou de pertencimento, tende a ser fortalecida e vivificada pelo grupo. Nessa mobilidade de processos, de seleção de elementos, "filtros culturais" mutantes em relação ao presente, múltiplas diferenças e identidades coletivas produzem diversos pertencimentos e diversas relações com a memória. A lembrança do indivíduo se forma no contato social com outros mais ou menos significativos no âmbito das relações formais ou informais por meio de mediações comunicativas linguísticas e culturais diversas.

É nesse sentido que há na lembrança rememorações e vazios. A memória é marcada pela descontinuidade dos registros de tempo e pela heterogeneidade dos níveis que a compõem. Aliás, como diz Lucena (1999), sempre que é possível tenta-se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado. E aí entra o papel da memória coletiva, que é o de sustentar, em nível cognitivo e simbólico, o sentido de identidade coletiva. A memória coletiva pode assumir uma veste mais ou menos institucionalizada, objetivando-se em práticas específicas, em lugares de cultos ou em coisas/objetos significativos, mas a sua origem e a sua reprodução se situam no nível das práticas comunicativas, cuja função principal é favorecer a coesão do grupo social e garantir sua identidade.

O depoimento de um religioso que acompanhou e ainda presta assistência religiosa aos assentados caminha por esse viés:

É importante recuperar a memória histórica, ajudar as crianças a recuperar o acampamento. Isso dá mais sustentação pro grupo; eles precisam e seria bom pra luta que conseguissem viver em grupo, no trabalho, nas decisões, na vida comunitária como grupo. A Igreja sempre fortaleceu no meio social essa ideia. A ideia da salvação era individual. Hoje se pensa que isso é um equívoco. (...) Os da Encruzilhada, ou os da Macali e da Brilhante não fazem praticamente nada de recuperação da memória, ou pelo menos de uma forma mais consistente, pública e coletiva, como fazem alguns da Annoni. (...) também se envolveram na cultura da soja, na modernização e na técnica, e o passado ficou só na lembrança de quem o viveu. Só neles. Há os monumentos na Encruzilhada, mas sem muita ritualidade, estão lá pra serem vistos por quem passa. Fizemos aqui na sede do acampamento da Annoni o translado da cruz do acampamento para a portaria da igreja na comunidade. A cruz ficou na igreja, porque no local que tava, tava se estragando toda, e o pessoal queria plantar soja, trouxemos ela pra igreja então. Na cruz tá o nome dos municípios que formaram a Annoni, muitos dos assentamentos produziram uma outra agora de pedra, com os nomes pra marcar a região de origem dos assentados.

No relato do padre que acompanhou a luta há ressentimentos e desencantos pela ausência de ritualização religiosa em assentamentos mais antigos na região; ele também sente pelo fato de ter havido uma insignificante valorização da cruz que foi o símbolo central da mediação da Igreja no meio dos camponeses acampados, bem como o sentido de sua mística de luta. O tempo se encarregou de alterar os quadros de significação desses grupos. Em grande parte, a cruz foi substituída pela bandeira do MST. É nesse sentido que a memória coletiva manifesta um conjunto de representações do passado que permanecem conservadas e são transmitidas entre seus membros por sua função prática de integração; outras são esquecidas. A memória do grupo evolui também sob influência do ambiente. As memórias coletivas se metamorfoseiam ao adotar novas ideias e as habilitar para novas representações. Isso não significa dizer que as memórias coletivas rejeitam totalmente seu passado; elas o reinterpretam e o reordenam nos quadros de suas novas noções (Coenen-Huther, 1994). Enfim, os novos quadros coletivos devem se adaptar às novas condições de existência; por isso são dinâmicos e podem andar pelo canal do esquecimento.

Lembranças e rituais em ação

As memórias são compostas da multiplicidade de imagens que constituem vários passados; vão e voltam atendendo às solicitações do presente (Lucena, 1999). Essa relação é capaz de estabelecer contemporaneidade com o passado pela voz do narrador; dessa forma, algo do passado é restaurado no presente.

Sabemos que se passaram mais de 20 anos da conquista da terra tanto para os assentados da Fazenda Annoni como para os da Encruzilhada Natalino e, em nome do pragmatismo do "ter de dar certo", muitas vezes, como vários nos disseram, é difícil retomar a linguagem do passado, não tanto para louvar os efeitos, mas para aperfeiçoar significados e entender seus próprios vividos (consciência e ressignificação, reavaliação do presente em relação ao passado, melhor seleção daquilo que do ontem passa a ser importante para o hoje e para o amanhã).

Vimos que, em geral, a memória do sofrimento é bastante ritualizada e serve como força subjetiva, ativa e que vem à tona não só pela lembrança das ações, mas do corpo, da dimensão do "judiado" que evoca sofrimento (a barraca preta, a repressão policial, ressentimentos e angústias em torno de mortes e prisões, e outras formas de violência mais significativas), enfrentamento, merecimento (a ética e o ethos do sacrifício), produzindo efeitos sobre o sujeito evocador e os mais jovens. É nesse sentido que as gerações mais velhas de assentados temem a perda da memória da luta pelas gerações mais jovens. A memória da luta e do sacrifício corre o risco de ser subsumida e abafada pelas exigências e o pragmatismo do presente.

As histórias e os fatos narrados e ritualizados na atualidade são marcados por representações, valores e processos internalizados histórica e culturalmente no âmbito do gênero, das relações de trabalho e nas práticas cotidianas de vida dos membros envolvidos. Essas construções se processam no âmbito individual e coletivo, fruto do vivido cotidiano e das mediações produzidas; revelam tessituras que identificam identidades, discursos, imagens que pressionam a memória de agora no horizonte do assentamento e da vida na agrovila do Assentamento 16 de Março. Discursos, símbolos, práticas, narrativas políticas, místicas e projetivas da vida futura no local efetivo da propriedade definem realidades da vida coletiva e subjetividades, as quais vão localizando os indivíduos e as lembranças de memória significativas expressas.

Revelações dos limites da vida, da propriedade, dos bloqueios fundiários anteriores ao acampamento atestam a precariedade da vida rural durante a década de 1970 e metade dos anos 1980, anos de expressão de pertencimento do grupo que lutou pela terra. Limites fundiários, de possibilidade de herança, de constituição de novas unidades por ocasião de matrimônios, as formas de vida e de relações de trabalho (meeiros, arrendatários, peões, assalariados temporários), entre outras, alimentam e justificam o desejo de lutar pela terra, intenção esta considerada justa e necessária para a reprodução e obrigação da permanência da família no meio rural. Em todas as conversas que tivemos com assentados foi muito comum a lembrança de agrupamentos mais tradicionais, como a família, sua necessária e valorativa reprodução como unidade camponesa rural, bem como a presença e importância da Igreja, em geral católica, do trabalho, da propriedade da terra, como centros de identificação de um pertencimento coletivo que agiu e lutou, permitiu e fortaleceu disposições, uma espécie de ethos coletivo que conforma a lembrança atual de grupos, das filiações e origens comuns.

É por isso que pertencer, fazer parte das ditas origens comuns, da ideia de uma ressonância moral e compromissos, de vizinhança, de compartilhar do mesmo sangue, do mesmo espaço, de uma contratualidade cultural e simbólica acima de tudo, de cooperação solidária e afetiva, carrega consigo a necessidade de ancorar o grupo/comunidade a algo que dê garantia de continuidade, de eternidade tanto para o futuro quanto para o passado, ainda que esse processo possua uma base histórico-temporal de curta duração. Nesse sentido, entendemos que a memória coletiva é importante para manter a integridade e a sobrevivência do grupo no tempo e no espaço. A memória coletiva é caracterizada por um intenso componente afetivo, que nasce da estreita interação e do consequente intercâmbio de experiências entre os membros do grupo.

A lembrança da noite de 29 de outubro, por exemplo, e das dificuldades enfrentadas, das idealizações, dos temores, da descrença misturada com os sonhos e projeções de vitória estão presentes em todos os depoimentos e cimentam uma intenção comum, um contrato de pertencimento, um desejo integrado na luta pela terra e, o que é mais importante, "pela aquela terra, a Annoni". Uma assentada, no dia 3 de novembro de 2007, por ocasião dos festejos de comemoração dos 22 anos de acampamento, fez um relato que acabou sendo um dos pontos altos do evento, pois todos o comentavam. Relatou como fora a viagem de madrugada até o espaço do futuro acampamento, o encontro com uma viatura da polícia e o despiste efetuado, a entrada na fazenda, os sonhos, as dúvidas, o temor até clarear o dia etc. Esse relato é apresentado em todos os encontros, refeito, ampliado, reincorporando fatos e significados pelo grupo.

Praticamente todos recordam elementos comuns a esse fato marcante e significativo para a memória coletiva: a quantidade imensa de gente (em torno de duas mil pessoas), a situação da noite, o arame, o mato, os bichos, os limites de vários gêneros (falta de cobertores, mosquitos, matagal), a noite que não terminava, a vigília até clarear o dia, o planejamento para o dia seguinte, a viagem até o local do acampamento etc. Os medos foram expressos como mais fortes em relação aos resultados positivos que poderiam ser construídos.

A dimensão do coletivo/grupo e da mediação de grupos foi expressa como segurança diante do que estaria por vir. Isso é expresso como importante no processo, pois fez repensar na insegurança misturada com coragem em romper com uma vida de limites e bloqueios, mas que não apresentava perigo, medo, imprevisibilidade, da casinha com a família para o meio do capim, no meio do mato e à noite; são todas expressões de sentimentos vividos desde o ato de sair e, muito mais, no momento de entrada e localização no território do outro.

Nas narrativas de enfrentamento há muito heroísmo, bem como menção à alegria que tomou conta do grupo ao chegar ao local e realizar o primeiro grande feito após a viagem: o rompimento das cercas de arame. Esta já foi uma primeira ação coletiva em terra, definindo a luta pela terra, que deveria necessariamente passar pela ocupação do latifúndio.

Percebemos que homens e mulheres relatam o tempo e os fatos vividos com diferenças que manifestam incorporações históricas e culturais de papéis, representações, obrigações valorativas, que vão desde as dimensões do âmbito coletivo, como a família, até a subjetividade, a esfera política, o cotidiano vivido no interior da lona preta, a falta de alimentação, as doenças. Os homens valorizam mais esferas do terreno público, estratégias de organização, a luta externa, as caminhadas, as diversas tentativas de ocupação de várias fazendas no interior do estado. As mulheres ritualizam e lembram a comida, a chapa do fogão, as doenças das crianças, o temor de alguma morte pela polícia, o medo de que fazendeiros pudessem invadir o acampamento atirando em todo o mundo, a ausência de aula no início do acampamento, as doenças de familiares que ficaram no espaço de origem, o fato de não terem o que fazer durante o dia, o calor, o frio, os mosquitos, a fumaça no interior das lonas e do acampamento como um todo, o fato de terem de reconstruir novas relações e nova vida com pessoas desconhecidas, a desconfiança, etc.

Ainda que as lembranças das mulheres entrevistadas girem em torno de fatos mais comuns daquilo que podemos chamar de cotidiano, isso não significa que sua participação no movimento tenha sido incipiente. É comum nos relatos a presença das mulheres em várias comissões/brigadas, principalmente nos campos da alimentação, saúde, educação, higiene, nas caminhadas e manifestações, na esfera dos rituais religiosos, nos encontros de família, nos enfrentamentos com a polícia, nas ocupações de áreas etc. Nos festejos de comemoração em geral "quem se envolve mais somos nós as mulheres; os homens apoiam sim, mas eles tão preocupados mais com outras coisas também necessárias". Elas reconhecem que "já avançaram muito" e que seus filhos serão socializados de uma forma diferente, com mais participação e igualdade em primeiro lugar dentro de casa. "As mudanças começam aí, né, em dividir tarefas com a família e não só entre nós as mulheres. Isso reproduzimos pros filhos, mostramos pra eles nos barracos que fizemos na escola que o esforço era esse, de mudar a cabeça dos homens e as nossas também".

Escola como espaço de socialização de lembranças

Algumas instituições, em especial a escola, desenvolvem práticas ritualísticas de memória da luta do grupo. É o que nos diz uma entrevistada:

De uns anos pra cá, todos os anos, os alunos da escola, na semana de 29 de outubro, organizam pesquisas, apresentações sobre temas ligados à terra, à realidade da terra, da produção; já é o quarto ou o quinto seminário. Isso serve para relembrar a luta coletiva de mais de 20 anos.

Após 10 anos de retomada do assentamento, sei que também foram feitos aqui rituais religiosos com mística, celebrações; sempre se entregam mudas e sementes para a campanha de embelezamento, retomam a história do acampamento até a organização aqui.

A intenção é fazer com que o dia-a-dia seja também comentado sobre o acampamento. Eles tão junto em nossas discussões, planejamento, quando falamos de como era antes; quando vem algum membro da executiva nacional sempre se recorda. A memória, eu acho, é a vida do dia-a-dia; temos muito hoje na organização do que foi planejado ainda no acampamento. A memória ajuda a manter viva a chama.

O relato enfatiza que, no cotidiano, a memória se produz e se revela. Há rituais que são cotidianos, informais, muitas vezes pouco refletidos, porém são vividos e compreendidos como experiências que configuram incorporações de tempos e espaços do acampamento. No entanto, essa realidade é vivida em ambientes pouco institucionais, planejados ou organizados de forma deliberada e coletiva. É na escola que esse processo se evidencia institucionalmente e envolve grande parte da agrovila e de outros assentamentos.

É no que se aposta mais. Não é porque é lá que tão as crianças todas do assentamento e outras também; é lá que eles podem trocar ideias; mas sempre digo pro meu marido que aqui em casa se deve dar exemplo e mostrar que no passado não era assim e eu tava errado. Muita coisa tá errada ainda, não é tudo as mil maravilhas, mas na medida do possível se discute sobre as tarefas, se tem mais abertura agora porque tanto eu quanto ele [o marido] passamos pelo acampamento e tivemos tempo pra ver como as coisas deveriam ser em quase quatro anos de acampamento.

O indivíduo necessita de referências, de representações sociais do tempo, de testemunhos, de um discurso coletivo, de memórias e experiências de outros, de influência social, narrações, símbolos compreensíveis e códigos de percepção comuns para poder se guiar no tempo e no espaço e para constituir categorias comuns que permitam conhecer e comunicar tempos passados, recordações de formas de memória singulares e grupais. Nesse sentido, a memória é o componente essencial para a identidade do indivíduo e sua integração social. Um padre que por muitos anos acompanhou as lutas pela terra na região e tornou-se uma das grandes referências do quadro mediador institucional dos sem-terra relata:

A memória atualmente é mais institucionalizada, ou seja, os grupos de formação do Instituto Educar, antigo Cetap, reconstituem a história da luta, comemoram vitórias relacionadas aos assentamentos, aos acampamentos etc. Muitas vitórias e desafios são relembrados nesses institutos, mas é mais como mística, como formação política, pois não foram eles que viveram a realidade, ainda que nessas instituições estudem filhos de assentados. (...) Muita coisa poderia ser estudada hoje, pesquisada sobre o passado. (...) A Igreja ajuda um pouco, mas fica nisso, fica no campo religioso e, talvez, um pouco mais nas escolas, mas é esporádico, não coisa da vivência dos grupos de assentados. As lideranças se nacionalizaram, aí tá o grande problema da formação de lideranças no pós-acampamento; o pessoal pensa e atua mais no útil, nos resultados, e sofre a partir daí a interferência da vida normal e limitada da colônia, de pequenos proprietários, de produtores de soja. O passado vai se esvaindo, ruindo com o tempo. Quem sabe reativando o que eles viveram, a luta, né, melhore um pouco.

Percebemos que idealizações, diretrizes gerais, orientações e novas aprendizagens convivem com resistências produzidas histórica e culturalmente no seio camponês do colono, que, ao conquistar a terra, subsume outras conquistas e aprendizagens viabilizadas no tempo do acampamento. É por isso que a identidade/identificação dos grupos altera-se com a continuidade das transformações, bem como a produz.

As dimensões do imaginário

Vários elementos foram e continuam sendo importantes para construir, fortificar e difundir as representações e simbologias de sem-terra. A tentativa foi e continua sendo a produção de um coletivo que se alimenta de uma utopia, de ideias-imagens que ordenam sonhos coletivos e orientam os indivíduos na sua realidade e nas suas lutas. Os imaginários são socialmente construídos e passam pelos processos de institucionalização, envolvendo linguagens para a construção de realidades objetivas e socialmente compartilhadas (Bazcko, 1986); revelam tensões, interesses, jogos de forças, de capital social, de representações e disputas por significados dos símbolos e rituais.

O imaginário envolve o uso de imagens (se alimenta dele), símbolos, ideias, representações. Dessa forma, permite que indivíduos ou grupos sociais identifiquem a si mesmos e aos outros; exprimam crenças e valores comuns; informem, apelem, induzam a comportamentos. Todos são horizontes e/ou teias de significados que se entrelaçam com a noção de experiência, pois ambos envolvem mediações linguísticas, vividos e sociabilidades.

Percebemos por ocasião dos festejos dos 22 anos de ocupação da Fazenda Annoni uma grande quantidade e variedade de objetos presentes no cenário montado para os rituais, todos convergindo para a esfera da terra, do trabalho na terra, da luta pela terra. A terra é o elemento que congrega as representações que vão formar os imaginários em torno da luta e da identidade coletiva.

A cruz, por exemplo, no interior do Movimento Sem Terra, vai além de seu sentido e/ou influência religiosa. Símbolos e objetos podem produzir identificações ressignificadas no coletivo, não sendo inteligíveis tão facilmente, pois, em geral, são movidos por dimensões emocionais que resultam de interações simbólicas engendradas pelos grupos a partir de suas necessidades profundas, de suas tradições históricas no campo religioso popular do meio rural.

Vimos que há um conjunto imenso de simbologias e rituais que embasam a experiência da luta pela terra no imaginário dos sem-terra: imagens e experiências negativas do latifúndio, imagens e representações negativizadas, produzidas pela ideologia da possessividade individualista e da propriedade da terra.

Por isso, é possível entender que é na experiência da luta, em seus múltiplos sentidos, ações e estratégias, que se constrói a categoria de sem-terra; trata-se de uma consciência identitária que cresce a partir das necessidades concretas sentidas e vividas no interior do acampamento, nas suas relações com o mundo externo, nas discussões, celebrações, planejamentos. Acampamento e ocupação são duas dinâmicas, dois processos estratégicos que buscam unificar, coletivizar consciências e ações, funcionando como campos simbólicos que constituem a dimensão da luta.

Rituais expressivos do campo político e do campo religioso, ou de ambos em significação, eram muito desenvolvidos no interior do acampamento, mas atualmente são recordados nos assentamentos, como é o caso do aniversário da morte em batalha de Sepé Tiaraju, em sua luta em defesa do território,3 3 . Encenada em bela representação, com quase uma centena de atores, por ocasião da comemoração dos 22 anos de ocupação da Annoni, no dia 3 de novembro de 2007, no Assentamento 16 de Março. do Dia do Agricultor, das datas de ocupação de fazendas, da distribuição dos lotes, da entrada nos lotes etc. Na Semana Santa, segundo depoimento de lideranças religiosas da região, há ainda certa reflexão adaptada à vida do acampamento e dos problemas enfrentados pelos agricultores hoje.

A cruz, que sempre foi uma centralidade simbólica, continua hoje nos assentamentos (Hoffmann, 1990); expressa um código profundo de representação que pode ir da luta pela solidariedade à integração dos rituais religiosos (missa, terço, estudos bíblicos, entre outros), como na luta pela terra em sua mescla e mística com a dimensão da fé; é uma síntese de representação religiosa, mas que dá outros sentidos às condutas do grupo, regulando ações/comportamentos (Pasquetti, 2007). A cruz carrega a sensibilidade do sofrimento, agrega, nesse sentido, os sofredores do campo: pequenos produtores, pequenos arrendatários, posseiros da área indígena, peões, diaristas, agregados, parceiros e posseiros em geral. Ela integra experiências comuns; produz, induz, baseia-se e informa um discurso religioso, uma verdade revelada de longa data (Abraão, Moisés, a caminhada para a terra prometida, o povo escolhido para um luta sagrada); codifica expectativas e esperanças, lutas e sua redenção/ressurreição/libertação.

Uma entrevistada enfatiza a importância da Igreja e seus símbolos centrais, como a cruz, e relativiza a dimensão racionalizadora do movimento:

Sem a cruz, o MST deixa de ter uma marca principal. Botemos ela na entrada dos assentamentos. Foi orientação do MST, onde a Igreja marcou pé conosco. Aqui, na Encruzilhada, é a marca; o MST surgiu com a companheirada da Igreja. O pessoal lia a Bíblia, aprendia a Bíblia através dos ensinamentos populares do padre e das freiras. (...) A cruz veio deles. (...) Depois o MST, na Annoni, tomou conta maior da luta, mas a cruz, a Igreja mesmo, deu sempre mais a mística. A Igreja sempre continuou sendo importante pra nós. Hoje somos comunidade rural como outra qualquer, então os padres não podem tá aqui toda hora, mas são a base de nossa luta.

Há um conjunto de símbolos que produziram representações coletivas em torno da identidade de sem-terra e que os assentados pesquisados manifestam, revelam, republicizam, identificam publicamente e funcionam como rituais promotores da lembrança de tempos e de fatos. A bandeira vermelha, por exemplo, continua sendo colocada em espaços públicos no interior dos assentamentos, nas marchas de sem-terra, em manifestações variadas de que sujeitos do MST participam; foi o símbolo de luta e compromisso social entregue a todos os que tiveram participação por ocasião dos festejos de ocupação da Annoni; é o símbolo do MST e auxiliou imensamente na construção da identidade coletiva, na aceitação e consenso em torno de determinados valores; é referência simbólica do campo político; produz, também, mística, pois significa pertencimento, motivação, materialização de ideais, identificação de classe, de agrupamento político, do sentir-se como coletivo ou coletividade já reconhecida publicamente e autossensibilizada no interior dos grupos que lutam pela terra (Pasquetti, 2007).

Percebemos a bandeira em várias casas de assentados; não são incomuns ilustrações (fotos, cartazes, recortes de jornais etc.) afixadas em paredes de casas com a bandeira vermelha do MST. A bandeira, em correspondência com o boné vermelho e as ilustrações nele contidas, tornou-se marca e presença obrigatória em espaços públicos e familiares dos integrantes do movimento. É sua identificação.

Não há dúvida de que os rituais atuais perderam em muito sua dimensão celebradora, mediadora do campo religioso; porém, grande parte dos motivadores desse campo foi formada no interior do campo religioso e, ao seu modo, reproduz aspectos redirecionados e apreendidos pelo campo religioso. Porém, sem dúvida, há mais dimensões da política institucional nos rituais envolvendo eleições, pressões políticas, ocupações de prédios do Incra, de bancos, e participação em movimentos sociais de maior amplitude e variabilidade (greves, concentração no primeiro de maio etc.).

Nas representações mediadas pelo campo religioso e por sujeitos do campo eclesiástico presentes cotidianamente no passado do acampamento, observam-se aspectos do catolicismo popular brasileiro, no qual o caboclo (em geral, pequeno camponês empobrecido), integrante, em grande medida, dos acampamentos, manifesta e incorpora muito mais do que descendentes de imigrantes europeus. Os rituais religiosos também se utilizaram dessa dimensão tradicional do catolicismo arraigada no ethos camponês, para ressemantizá-la através de símbolos, cantos, rezas, festas populares, celebrações carregadas de simbologia, canções populares, caminhadas, participação, centralidade da cruz como horizonte do sacrifício/luta e superação; signos expressivos de desejos inconscientes de sair dessa situação de bloqueios, limites e precariedades do meio rural e do próprio acampamento, foco central de força e de mística de transformação social numa sociedade e num meio (rural), sem grandes mediações, referências, auxílios e visibilidade de futuro promissor.

Muitos dos assentados atuais da região possuem formação religiosa ressemantizada, passaram pelo horizonte do conflito religioso produzido pela práxis religiosa e política do acampamento. Por isso, uma liderança de um assentamento nos disse que "não é qualquer padre que mandam pra cá, tem de tá afinado com nós, senão não resiste". Tivemos oportunidade de participar de uma celebração eucarística na capela onde se constituiu o acampamento da Annoni e pudemos ver que o ritual e a simbologia, bem como o conteúdo dos comentários que ligam os rituais narrativos, continuam incorporando uma linguagem do cotidiano da vida dos colonos; há uma dimensão política presente; muitos dos cantos são ainda os do acampamento; há uma visível comunhão de intencionalidades e de pertencimento identitário entre os fiéis; há o alerta do presidente da celebração e dos comentaristas para a necessidade da luta, do engajamento social e religioso, da dimensão coletiva etc.

Muitos dos assentados participam das Romarias do Trabalhador (em várias edições) pelo Rio Grande do Sul, no dia 25 de julho, Dia do Colono; há ritualidades religiosas e manifestações dos assentados no sentido de lembrar suas lutas e a renovação da mística, do desejo e da obrigação moral de lutar pela categoria, pela agricultura familiar, pelo ambiente rural e produtivo sustentável. É o que pudemos ver em panfletos e em imagens de celebrações eucarísticas que obtivemos em residências de assentados, cujos depoimentos apontavam para essa direção: fotos de participação em romarias, em eventos fora do assentamento por ocasião do 1º de maio, em movimentos camponeses - Via Campesina - em nível nacional, entre outros.

Em geral, nos rituais nas escolas, segundo o relato de uma professora, há também o reconhecimento dos conflitos, das diferenças internas, das incertezas e tensões internas entre sair ou ficar, ir para o Mato Grosso ou lutar por terra na região ou no espaço de ocupação mesmo; espaço do sofrimento, da repressão policial, das barreiras na estrada, da esperança e da solidariedade, das músicas ("Classe roceira e classe operária", "A grande esperança"), "principalmente se lembradas como o padre Arnildo tocava e animava a gente". É sempre reforçada a importância do MST como entidade agregadora e de maior pertencimento, como força mediadora e segurança nas demandas presentes e futuras. Para isso, as bandeiras, a presença de representantes do movimento, símbolos, discursos que reforçam o envolvimento, pertencimento, identificação, autorreferências, obrigações, reconhecimento, herança, identidade de sem-terra, enfim, a dimensão coletiva.

Há necessidade de demonstração pública e doméstica do pertencimento, pois ela ritualiza uma comunidade que se constrói pela identificação: "Essa é a nossa mística; fico sempre fortalecida como nesse dia de festa aqui na Annoni porque a gente se identifica, é tudo de um grupo só". Os cantos considerados sociais do movimento, os gestos de erguer o braço esquerdo por ocasião da estrofe do hino oficial do MST, as palavras e frases de ordem em suas perguntas e respostas, entre outras coisas, auxiliam na construção dessa narrativa mística do pertencimento.

Enfim...

Vimos em nossa pesquisa de campo que há uma nítida intenção de reforçar símbolos agregadores, coletivos; que há identificações e seleções do que e como recordar e socializar com as crianças e, mesmo, reforçar as representações nos que participaram do processo. O episódio com Rose (acampada que foi atropelada e morta deliberadamente por um caminhão durante uma manifestação na estrada próxima ao acampamento) é sempre lembrado como experiência traumática de limite, porém outras também são ritualizadas e simbolizadas. A centralidade do sofrimento, do sacrifício, do coletivo como dimensão projetada do acampamento para o assentamento, a importância da mediação religiosa (em especial da católica), de fortalecer laços de pertencimento etc. revelam que a memória é fundamental, que ela pode auxiliar na contraposição de influências negativas do tempo presente, tais como tendências individualizantes, migração de jovens dos assentamentos para trabalhos urbanos, esquecimento do passado, pragmatismo da vida cotidiana, entrada sem medida no modelo produtivista de agricultura etc.

Os rituais de lembrança revelam o passado dos acampamentos, as lutas enfrentadas nas ocupações. Revivificam fatos e tempos com a intenção de mostrar a necessidade de cada um, no coletivo, ser um sujeito da história, de "manter a chama acesa, contar para os outros; a luta não pode ser esquecida". Reorganizam acontecimentos, reinventam outros, produzem emoções, eternizam fatos para "ficar na história, para continuar contando", afrontando tempos e conjunturas adversas. Nesse sentido, a poética narrativa sociabiliza significados, muitos dos quais produzidos socialmente como conjunto significante.

Percebemos que os sem-terra constroem espaços de memória, signos daquilo que passou no tempo (o acampamento), lugares de memória, como construção simbólica (marcos, placas, nomes de assentamentos, plantio de árvores, ajardinamento das casas etc.); porém, há memórias subterrâneas, que não as projetadas pelo movimento (saberes, visões de mundo, culturas, ressentimentos, conflitos vividos etc.). Os rituais e símbolos que agregam os sem-terra no interior dos acampamentos, e mesmo nos assentamentos, são recheados de dimensões místicas que provocam sentimentos, representações, emoções, energias, convicções, paixões mobilizadoras, vontades de mudança, identidades de sem-terra que se sobrepõem a todas as diferenças de várias ordens no interior dos acampamentos; revelam aspectos sociais do campo teológico, resistências para suportar sofrimentos, repressão, limites da vida sob as lonas, apelos de desvinculação do grupo, perda de companheiros; são manifestações objetais, assim como gestuais, narrativas, momentos coletivos de adesão a algum movimento, que fazem com que a razão receba uma dose de sensibilidade e um espírito de consciência coletiva. No fundo, todos vão contribuindo para formar uma mística, uma tradução simbólica da identidade que alimenta os imaginários sociais dos sem-terra.

Por isso, entendemos que a memória social e coletiva dos assentados pode servir de agregação, de fortalecimento do coletivo e de um subjetivo coletivo - os sem-terra - que sustenta os propósitos da conquista. As lembranças partilhadas que legitimam o passado e suas ações se fundamentam na experiência vivida com emoções profundamente sentidas, ideológica e culturalmente mediadas. O relembrar coletivamente e em momentos especiais (nos festejos) permite confrontar territórios do passado e o espaço conquistado. O assentado retoma a família, o trabalho, a festa, a igreja, espaços e tempos das heranças culturais, da estrutura patriarcal, da/na vida em família; promove momentos de recordação em ambientes e tempos festivos, em espaços institucionais, com a intenção de fortalecer a dimensão comunitária e o desejo/"obrigação" de dar certo no presente e garantir presença do passado no futuro, mediado por ações ritualizadas coletivamente no presente. A lembrança e a memória coletiva devem ter algum papel nisso tudo, pois, acima de tudo, representam um patrimônio histórico e um vivido que se reproduz tendo como base as representações ritualísticas que vão realimentando imaginários sociais.

Notas

Artigo recebido em 10 de outubro de 2008 e aprovado em 30 de janeiro de 2009.

João Carlos Tedesco é professor do Programa de Mestrado em História da UPF (jctedesco@upf.br)

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  • 1
    . Denominação temporal e comemorativa referente ao dia do sorteio dos terrenos para o atual assentamento na área da Fazenda Annoni.
  • 2
    . A Fazenda Sarandi é a grande unidade-mãe que originou vários latifúndios nas décadas de 1950 e 1960. Ela possuía, na metade do século XX, cerca de 50 mil hectares. A Fazenda Annoni, com aproximadamente 12 mil hectares, é oriunda da fragmentação da anterior e, como foi desapropriada, transformou-se em cenário para vários assentamentos.
  • 3
    . Encenada em bela representação, com quase uma centena de atores, por ocasião da comemoração dos 22 anos de ocupação da Annoni, no dia 3 de novembro de 2007, no Assentamento 16 de Março.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Jul 2010
    • Data do Fascículo
      Jun 2009

    Histórico

    • Aceito
      30 Jan 2009
    • Recebido
      10 Out 2008
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