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América: Uma utopia republicana para crianças brasileiras

América: A republican utopia for Brazilian children

Resumos

Escrito por Coelho Netto e publicado em 1897 pela Editora Bevilacqua & C., América foi provavelmente o primeiro livro de educação cívica em prosa de ficção escrito por um autor brasileiro. Seguindo um modelo que se tornou célebre com o estrondoso sucesso de Coração, de Edmondo de Amicis, América não teve a mesma acolhida do romance italiano e nem mesmo de outros livros brasileiros do gênero, como, por exemplo, Através do Brasil. Este artigo tem como objetivo discutir alguns dos principais tópicos do livro e analisar aspectos que permitem sua leitura como uma espécie de utopia republicana para crianças.

educação; civismo; nacionalismo; literatura infanto-juvenil; Coelho Netto


América, written by Coelho Netto and published in 1897 by Editora Bevilacqua & C., was probably the first civic book in prose fiction written by a Brazilian author. Following the model that became notorious with the extraordinary success of Heart, by Edmondo de Amicis, América did not achieve in Brazil a comparable fame with the Italian novel neither with other Brazilian civic books such as Através do Brasil, for example. This article discusses some of the main topics of the book and analyses features that enable us to read América as a kind of republican utopia for children.

education; civism; nationalism; children's literature; Coelho Netto


Écrit par Coelho Netto et publié em 1897 par l'Editora Bevilacqua & C., América est probablement le premier livre d'éducation civique écrit en prose de fiction par un auteur brésilien. Dans le sillage d'un modèle devenu célèbre par le succès éclatant de Le livre coeur d'Edmondo de Amicis, América n'a pas eu le même retentissement du roman italien, ni d'ailleurs celui d'autres ouvrages brésiliens du genre, comme, par exemple, Através do Brasil. Cet article discute quelques-uns des thèmes du livre et analyse des aspects qui permettent de le lire comme une sorte d'utopie républicaine adressée aux enfants.

éducation; civisme; nationalisme; littérature enfantine; Coelho Netto


ARTIGOS

América. Uma utopia republicana para crianças brasileiras

América. A republican utopia for Brazilian children

Patricia Santos Hansen

RESUMO

Escrito por Coelho Netto e publicado em 1897 pela Editora Bevilacqua & C., América foi provavelmente o primeiro livro de educação cívica em prosa de ficção escrito por um autor brasileiro. Seguindo um modelo que se tornou célebre com o estrondoso sucesso de Coração, de Edmondo de Amicis, América não teve a mesma acolhida do romance italiano e nem mesmo de outros livros brasileiros do gênero, como, por exemplo, Através do Brasil. Este artigo tem como objetivo discutir alguns dos principais tópicos do livro e analisar aspectos que permitem sua leitura como uma espécie de utopia republicana para crianças.

Palavras-chave: educação, civismo, nacionalismo, literatura infanto-juvenil, Coelho Netto

ABSTRACT

América, written by Coelho Netto and published in 1897 by Editora Bevilacqua & C., was probably the first civic book in prose fiction written by a Brazilian author. Following the model that became notorious with the extraordinary success of Heart, by Edmondo de Amicis, América did not achieve in Brazil a comparable fame with the Italian novel neither with other Brazilian civic books such as Através do Brasil, for example. This article discusses some of the main topics of the book and analyses features that enable us to read América as a kind of republican utopia for children.

Key words: education, civism, nationalism, children's literature, Coelho Netto

RÉSUMÉ

Écrit par Coelho Netto et publié em 1897 par l'Editora Bevilacqua & C., América est probablement le premier livre d'éducation civique écrit en prose de fiction par un auteur brésilien. Dans le sillage d'un modèle devenu célèbre par le succès éclatant de Le livre coeur d'Edmondo de Amicis, América n'a pas eu le même retentissement du roman italien, ni d'ailleurs celui d'autres ouvrages brésiliens du genre, comme, par exemple, Através do Brasil. Cet article discute quelques-uns des thèmes du livre et analyse des aspects qui permettent de le lire comme une sorte d'utopie républicaine adressée aux enfants.

Mots-clés: éducation, civisme, nationalisme, littérature enfantine, Coelho Netto

Escrito por Coelho Netto e publicado em 1897 pela Editora Bevilacqua & C., América foi provavelmente o primeiro livro de educação cívica em prosa de ficção escrito por um autor brasileiro, inserindo-se no contexto de surgimento da literatura produzida especialmente para crianças no Brasil no final do século XIX.

De acordo com Sandroni (1980: 110), a constatação da necessidade de leituras em linguagem acessível ao público infantil brasileiro assumiu inicialmente a forma de traduções de clássicos europeus para o português falado no Brasil e de "pastiches" de histórias infantis estrangeiras, em substituição às traduções e aos livros portugueses. Rapidamente, porém, os esforços para promover uma nacionalização da linguagem iriam se estender aos temas e personagens. Daí o surgimento de uma literatura original, possuidora em sua maior parte de caráter cívico, que expressava um conjunto de preocupações que convergiam para o problema da formação da nação brasileira. Traduzindo importantes mudanças sociais em curso na passagem do século XIX para o XX, esses livros apontavam também para uma modernização da sociedade que, entre outras consequências, iria conferir uma posição de maior relevo às crianças.

Não obstante, a literatura infantil, particularmente a literatura cívica anterior a Monteiro Lobato, tem sido menosprezada por historiadores e estudiosos da literatura brasileira, e seus livros mais representativos geralmente têm sido referidos como exemplos de ufanismo. Poucas vezes foram objeto de análise mais profunda ou tiveram o reconhecimento de seu lugar na história da República, ao contrário de seus congêneres de outras nacionalidades em relação aos processos históricos nos quais estão inscritos e dos quais participam.1 1 . As exceções têm concentrado sua atenção em Através do Brasil de Olavo Bilac e Manuel Bomfim. Cf. Botelho (1998), Santos e Oliva (2004), Lajolo (1992 e 2000) e Lajolo e Zilbermann (1996 e 2006).

Constituindo-se numa importante e destacada faceta do nacionalismo na Primeira República, e profundamente comprometidos com a transformação social, na medida em que pretendiam contribuir para superar os entraves que hábitos herdados do recente passado escravocrata e aristocrático impunham à construção de uma nação republicana, livros como América (Coelho Netto, 1897) e Através do Brasil (Bilac e Bomfim, 1910), apesar de este último já vir despertando maior interesse, estão longe de ser comemorados como o italiano Cuore (Amicis, 1886) ou o francês Le tour de France par deux enfants (Bruno, 1877), que lhes serviram de modelo.2 2 . Acerca da repercussão do livro francês, há informações sobre sua vendagem, edições e adaptações para cinema e televisão na Wikipedia em < http://fr.wikipedia.org/wiki/Le_Tour_de_France_par_deux_enfants>, além do artigo dedicado a ele por Ozouf (1997) na famosa coleção dirigida por Pierre Nora. A respeito do Cuore vale destacar alguns estudos mais recentes sobre a carreira extremamente exitosa do livro entre leitores brasileiros desde a sua tradução por João Ribeiro em 1891, como os de Gontijo (2008) e Bastos (2004).

O mais famoso livro da literatura cívico-pedagógica, Porque me ufano do meu país, de Afonso Celso (1901), apesar de ter obtido mais atenção, tem sido objeto de referências invariavelmente superficiais e tem sido tomado por exemplo maior de toda uma literatura que, analisada mais atentamente, apresenta diferenças fundamentais em relação a ele.3 3 . Analisei as clivagens entre Porque me ufano de meu país e outros textos da literatura cívica brasileira na primeira parte de minha tese de doutorado intitulada Brasil, um país novo: literatura cívico-pedagógica e a construção de um ideal de infância brasileira na Primeira República. Acima de tudo, o livro é conhecido por ter dado origem à terminologia que denomina a "atitude mental" que conhecemos como "ufanismo", o que não é pouco, como lembrou Wilson Martins (1978: 174), ressalvando que tal atitude está longe de ser exclusividade brasileira.

Muitos e renomados intelectuais escreveram livros e compêndios escolares para crianças na passagem do século XIX para o XX. Olavo Bilac, Silvio Romero, Afrânio Peixoto e Julia Lopes de Almeida, entre outros, dedicaram-se a esta tarefa.

Coelho Netto,4 4 . Henrique Maximiano Coelho Netto (1864-1934) nasceu em Caxias no Maranhão. Filho do português Antônio da Fonseca Coelho e da índia Ana Silvestre Coelho, mudou-se com seis anos para o Rio de Janeiro. Fez faculdade de Direito e, em São Paulo, apoiou as ideias abolicionistas e republicanas. Concluiu os estudos em 1885 e voltou ao Rio, onde acompanhou José do Patrocínio na campanha abolicionista. Em 1890 casou-se com Maria Gabriela Brandão, filha do educador Alberto Olympio Brandão, com quem teve 14 filhos. Atuou como professor, político, romancista, contista, crítico, teatrólogo, memorialista e poeta. Na imprensa, trabalhou nos jornais Gazeta da Tarde e a Cidade do Rio. É o fundador da Cadeira nº 2 da Academia Brasileira de Letras. Foi nomeado para o cargo de secretário do Governo do Estado do Rio de Janeiro e, no ano seguinte, diretor dos Negócios do Estado. Em 1892, foi nomeado professor de história da arte na Escola Nacional de Belas Artes e, mais tarde, professor de literatura do Ginásio Pedro II. Em 1910, professor de história do teatro e literatura dramática da Escola de Arte Dramática, sendo logo depois diretor do estabelecimento. Na política foi eleito deputado federal pelo Maranhão em 1909, reeleito em 1917. Participou da Liga de Defesa Nacional desde o início. Cultivou praticamente todos os gêneros literários e foi, por muitos anos, o escritor mais lido do Brasil. Em 1928, foi eleito Príncipe dos Prosadores Brasileiros, num concurso realizado pelo O Malho. um dos mais destacados homens de letras de sua época, foi também um dos mais produtivos autores de livros para a infância e a juventude, em sua maioria com forte teor cívico. Junto a Olavo Bilac publicou A terra fluminense (1898), Contos pátrios (1904), Teatro infantil (1905) e A pátria brasileira (1909). De sua autoria exclusiva saíram América (1897), Apólogos (1910), Mistério do Natal (1911) e Breviário cívico (1921). Escreveu também Viagem de uma família ao norte do Brasil, o qual, segundo seu filho e biógrafo Paulo Coelho Netto, foi adquirido pela Livraria Francisco Alves, que nunca o publicou.

É curioso que América, provavelmente o primeiro livro de educação cívica em prosa de ficção escrito para crianças brasileiras, de autor conhecido como era Coelho Netto, venha sendo até hoje ignorado nos estudos que tratam da literatura infanto-juvenil, da história da educação e outros temas afins. Mas é possível supor algumas razões que, somadas, levaram a tal esquecimento.

Em primeiro lugar, deve-se considerar a circulação relativamente restrita do livro em termos de espaço e tempo pois, publicado pela Editora Bevilacqua & C. no Rio de Janeiro em 1897, ele teve somente uma edição. Mesmo assim, deve-se ressaltar que desta edição de 1897 foram impressos pelo menos três milheiros, com algumas diferenças entre os volumes. Essa única edição de América contrasta com as muitas edições de outros livros de Coelho Netto, especialmente os destinados ao público infanto-juvenil escritos em co-autoria com Olavo Bilac e publicados pela Francisco Alves, como é o caso de Contos pátrios e A pátria brasileira.

Em segundo lugar, provavelmente como decorrência da sua reduzida circulação, o livro deixou poucos vestígios em biografias, memórias e outros materiais de que se servem os pesquisadores. Este fato, somado a um título que bem pode ter despistado possíveis interessados na literatura cívica ou infantil, terminou por condenar América ao esquecimento.

Entretanto, se é possível imaginar os motivos que mantiveram o livro desconhecido até hoje, causa estranheza o silêncio dos contemporâneos em relação à iniciativa de Coelho Netto em um momento em que tanto se clamava por uma literatura infantil "nacional". Explicito melhor as razões dessa estranheza citando alguns acontecimentos anteriores à publicação de América.

Em 1890 Sílvio Romero publicou A História do Brasil ensinada pela biografia de seus heróis, livro de "ensino cívico" dirigido às "classes primárias", que foi prefaciado por João Ribeiro. Nessa ocasião, Ribeiro chamou a atenção para a total falta de acordo sobre "que coisa" era a "instrução cívica", ressaltando o caráter inovador do gênero narrativo-biográfico eleito por Romero para promover o civismo. No início do texto, Ribeiro afirma desejar somente tornar público seu "depoimento de um patriota que se regozija em ver os seus grandes conterrâneos descerem à escola como Paul Bert, Sarmiento, Benjamin Franklin, Andrés Bello e falarem às crianças para mais de perto falarem ao futuro". Porém, logo em seguida, concluía baseando-se numa disgressão bastante bem informada a respeito da matéria e da legislação em vários países do mundo:

(...) A instrução cívica constitui um saber inclassificável: nem possui os caracteres de uma ciência, nem de uma arte. (...)

Uma das coisas mais curiosas e dignas de nota é justamente o fato de nenhuma legislação determinar a qualidade nem a quantidade do assunto: uma fala apenas de ações sobre as leis orgânicas, outra requer a história unida às noções da constituição, ainda outra intromete uns rudimentos de economia política e não falta quem peça um pouquinho de heráldica.

Como se vê, ninguém sabe definir a matéria, e a instrução cívica fica reduzida a uma espécie de receituário doméstico onde se acotovelam mesinhas caseiras e doces em calda. (Ribeiro, 1890: VI)

É importante reter aqui o elogio de Ribeiro a Sílvio Romero, por este ter inovado no método de efetuar o ensino cívico. Na falta de uma definição sobre o quê ou como deveria ser tal ensino, Romero investiu no gênero narrativo-biográfico, ressaltando o exemplo dos "heróis" da História do Brasil.

No mesmo ano de 1890, José Veríssimo chamou a atenção para a "indiferença patriótica" dos livros de leitura existentes no Brasil:

Neste levantamento geral que é preciso promover a favor da educação nacional, uma das mais necessárias reformas é a do livro de leitura. Cumpre que ele seja brasileiro, não só feito por brasileiro, que não é o mais importante, mas brasileiro pelos assuntos, pelo espírito, pelos autores transladados, pelos poetas reproduzidos e pelo sentimento nacional que o anime. (Veríssimo, 1890: 6)

Apontando a diferença entre "instrução" e "educação", Veríssimo (1890: 10) sublinhava que "bem compreendida, a educação cívica deve ser a generalização de toda a instrução dada na escola para fazê-la servir ao seu fim verdadeiro, que é a educação nacional".

Vinte anos depois, Olavo Bilac e Manuel Bomfim ainda criticavam a instrução cívica feita através de compêndios ou manuais de caráter "enciclopédico". Na "Advertência e explicação" de Através do Brasil, os autores faziam a defesa do livro de leitura como "livro único" para as classes primárias, o qual deveria oferecer "bastantes motivos, ensejos, oportunidades, conveniências e assuntos, para que o professor possa dar todas as lições, sugerir todas as noções e desenvolver todos os exercícios escolares, para boa instrução intelectual de seus alunos". Nessa concepção, o livro de leitura deveria auxiliar o professor a promover o conhecimento "da leitura e da escrita, a gramática e a prática da língua vernácula, noções de geografia e história, cálculo, sistema dos pesos e medidas, lições de coisas - isto é: elementos de ciências físicas e naturais, e preceitos de higiene e instrução cívica", e não apresentar todos estes conhecimentos de maneira enciclopédica. Uma prática que, de acordo com os autores, era bastante comum (Bilac e Bomfim, 1917: VII-X).

A ideia de que a educação cívica poderia ser realizada por meio dos livros de leitura encontrou no Brasil o seu grande modelo na tradução de um romance italiano editado em 1891 pela Alves & C. É digno de nota o êxito da tradução de João Ribeiro para o Coração de Edmondo de Amicis que, curiosamente, teve mais edições que qualquer livro cívico de autor nacional até pelo menos a década de 1940. Mais ainda, o livro italiano foi muito propagandeado e usado para a formação cívica das crianças brasileiras.5 5 . No "Extrato do Catálogo da Livraria Francisco Alves", impresso em alguns livros da editora na década de 1930 para divulgar entre os leitores outros livros do mesmo gênero, a tradução de João Ribeiro para o livro de Edmondo de Amicis era vendida com o título Coração. Educação Cívica.

Inserido no contexto da Unificação Italiana, o Cuore foi lançado em 1886, e em apenas quatro anos alcançou a 101a edição, a partir da qual foi feita a tradução de João Ribeiro. Pouco depois de sua publicação no Brasil, José Veríssimo utilizaria o livro como pretexto para desenvolver melhor a sua concepção de uma "Educação Nacional", em artigo publicado na Revista Pedagógica de fevereiro de 1892 e incluído na quarta edição brasileira do livro de 1894 (Bastos, 2004: 5). Nesse artigo, intitulado "Educação Nacional (a propósito de um livro italiano)", Veríssimo elogiava o livro e tecia considerações a respeito da sua utilização na formação das crianças brasileiras:

O livro é eminentemente italiano, na sua inspiração e na sua concepção, no seu objeto e no seu fim, no seu espírito e na sua ideia dominante e exclusiva. Eu não sei de nenhuma escola que possua hoje um tão acabado manual de educação moral e cívica. Ao escolar brasileiro, ele ensinará a moral mais elevada e simpática; mas não lhes falará senão de uma pátria que eles não conhecem nem podem amar e cuja vida e cujas glórias, cujas lutas e triunfos, lhe são indiferentes. Para a nossa escola fica, portanto, perdido o máximo valor desse livro. O que lhe convinha não era uma tradução, mas uma adaptação ou imitação. Mas toda imitação de um livro tal não será um pastiche? (apud Bastos, 2004: 5)

Em 1916, ou seja, mais de duas décadas depois, Monteiro Lobato fazia pouco da literatura infantil produzida até então e ironizava o uso do Coração para a educação cívica no Brasil, numa carta para Godofredo Rangel: "É de tal pobreza e tão besta a nossa literatura infantil, que nada acho para a iniciação de meus filhos. Mais tarde só poderei dar-lhes o Coração de Amicis - um livro tendente a formar italianinhos..." (Lobato, 1972: 105).

Coração é narrado como o diário de um ano escolar do menino Henrique. A descrição das pessoas, lições, atividades e acontecimentos do cotidiano escolar é intercalada com as cartas de seus familiares e com a "reprodução" dos contos lidos mensalmente pelo professor, cujos títulos - "O tamborzinho sardo", "O pequeno vigia lombardo", "O pequeno escrevente florentino" - expressam preocupação com aquilo que parecia ser considerado o maior entrave à constituição de uma identidade nacional na Itália pós-Unificação, qual seja, a existência de fortes identidades regionais.

O livro e os clichês patrióticos que divulgou e compartilhou com textos cívicos de outras nacionalidades, inclusive brasileiros, inspiram muitas considerações. Mas nosso foco está na especificidade do livro que é objeto deste artigo, em particular no que diz respeito à criação de um patriotismo capaz de respaldar a superação dos problemas que impediam a formação da nação brasileira. Pois, pode-se dizer, havia um certo consenso em torno da ideia de que o Brasil não era uma nação ou, pelo menos, uma nação "completa", a se considerar a ausência de "sentimento nacional", de "povo", de "laços de solidariedade" e outros elementos vistos como necessários a uma verdadeira formação nacional.

Em outras palavras, o que realmente interessa em América não é o fato de ser uma adaptação ou "pastiche" do Coração, mas sim de se constituir numa forma, podemos dizer utópica, de imaginar a nação brasileira republicana.

Dedicado por Coelho Netto aos seus "jovens patrícios", América narra as lembranças do primeiro ano escolar do menino Renato, constituídas por descrições de colegas, professores e funcionários, situações vividas ou testemunhadas pelo narrador, e "lições", aprendidas dentro e fora da sala de aula, reproduzidas didaticamente como redações lidas em voz alta ou anotações compartilhadas por algum aluno, em geral a pretexto dos feriados e festas da república.

A narrativa tem início com o menino, órfão de pai, despedindo-se das pessoas da casa e viajando com sua mãe para o internato América.

Percebendo a angústia do menino em deixar o lar, é a mãe quem lhe dá a primeira lição de patriotismo e hombridade:

Como ia depressa o carro! (...) Eu ia para o desconhecido, era como se me afastasse da minha terra para aventurar-me em novo país de estranhos homens, de almas indiferentes.

E silencioso, engolindo lágrimas, sentia o coração oprimido, carregado de apreensões, à ideia desse colégio para onde me levavam, com a sua população de meninos, com os seus castigos, com a severidade dos mestres, onde, se adoecesse, se tivesse medo à noite, ninguém acudiria aos meus reclamos.

(...)

- Porque estás assim triste?

- Eu podia continuar os meus estudos em casa com o Dr. Lima, balbuciei.

- Não, meu filho, é necessário que vivas algum tempo no colégio, é a tua iniciação na vida. Vais para um pequeno mundo de exercícios físicos e morais. Em casa poderias educar a inteligência, poderias mesmo, em menos espaço de tempo, aprender mais do que no colégio; ficarias, porém, sem a grande ciência dos homens, o conhecimento indispensável da alma coletiva. É necessário que a tua alma se aproxime de outras para ganhar esplendor.

O diamante pule-se com o diamante, o espírito aperfeiçoa-se no convívio de outros espíritos. É preciso ver novas terras e novas almas, meu filho, para conhecer-se o mundo. Vais ver de perto todas as feições humanas. Vais como para uma estufa onde há todos os exemplares do homem ainda em rebento, de sociedade militante onde encontrarás de tudo, não terás surpresas nem te deixarás prender em ciladas. Vais conhecer a generosidade e vais conhecer a inveja, sobretudo vais lidar com os homens que, como tu, hão de ser os fatores da grandeza da Pátria. Começa hoje a tua conscrição para a batalha da vida em que todos tomam parte e eu quero que te exercites, que conheças todos os perigos e o terreno onde vais pelejar para que não sucumbas na primeira refrega. Vivendo sempre ao meu lado sairás para a vida ingênuo, conhecendo apenas o coração; mas muito há que aprender, meu filho, e o meu dever, justamente porque te amo e muito, é preparar-te para os dias que vêm fortalecendo o teu espírito, dando-te a ver todos os exemplos do Bem e do Mal para que possas, por ti mesmo, escolher o caminho perfeito.

Pensas que não sofro com a separação? Sofro e muito mas resigno-me lembrando-me de que esse sacrifício é para teu proveito. Quero que sejas como teu pai: digno sem altivez, sisudo sem atrevimento, parco sem avareza, meigo sem humildade, forte sem vanglória, modesto com simplicidade, discreto, caridoso e verdadeiro. Sobretudo nunca retires os olhos do céu sob o qual nasceste nem desprezes a terra em que ensaiaste os primeiros passos; ela é mais do que tua mãe, é Mãe da tua raça, é o seio que alimenta, é o ventre que devora - é o prado e é o cemitério. Para que bem a sirvas e dela tudo mereças basta que sejas digno. (Coelho Netto, 1897: 1-4)

Deve-se destacar aqui o inusitado de ser a mãe a esclarecer ao filho os contrastes e oposições contidos neste trecho. Coelho Netto fez de América uma exceção ao conferir este papel a uma mulher, sendo as personagens femininas não dependentes de proteção masculina absolutamente inexistentes no conjunto da literatura cívica. As mulheres representadas no restante dos livros cívicos são, em geral, viúvas necessitadas, senhoras de idade ou velhas escravas.

Contudo, a presença desta mãe independente e esclarecida ocorre somente nas páginas iniciais do livro, explicando ao filho a necessária transição do mundo privado para o público, que guarda aqui estreita relação com a transição do menino para o homem.6 6 . Agradeço a Rafael Aragon Guerra que, a respeito do inusitado desta personagem feminina de Coelho Netto, me sugeriu que ela poderia estar relacionada às representações femininas da república estudadas por Maurice Agulhon (1979 e 1989) para o caso da França e por José Murilo de Carvalho (1990) no Brasil. Acredito que esta intuição está correta, e enriquece a análise do texto a interpretação dessa personagem que parece combinar elementos alegóricos com a concepção da mãe como educadora, papel feminino que começava a ser defendido por vários agentes sociais da época. Nessa mesma perspectiva, é possível também pensar que o autor de América tenha procurado acentuar algumas ideias que atravessam o texto, escolhendo nomes significativos para as diversas personagens, como é o caso de Renato, que significa renascido, e reforça a pretensão de formação de um homem novo representada pela trajetória do protagonista. Aproveito também para agradecer as excelentes sugestões dos pareceristas designados pela Estudos Históricos para a leitura deste artigo, as quais procurei incorporar na versão final. Daí a figura materna desaparecer na medida em que começam as experiências efetivamente transformadoras de Renato no colégio interno, espaço no qual, assim como no Exército, além da ausência física efetuava-se também uma completa "remoção mental da mulher" (Loriga, 1996: 38).

A escola, em particular o colégio interno como um lugar privilegiado de isolamento do menino num universo exclusivamente masculino, é extremamente valorizada pela literatura cívica. O contraste com as influências "negativas" do universo doméstico e da educação privada fica claro na resignação da mãe, ciente da necessidade do sacrifício da separação para ver seu filho transformado em homem.7 7 . Além do "perigo" de infantilização ou efeminação representado pela excessiva influência materna, havia também a preocupação com a sexualidade do menino. Sujeitos no âmbito privado à presença de criadas, muitas vezes ex-escravas, negras ou mulatas, o colégio interno era a solução para resguardar e promover a virilidade do menino, afastando-o dessa influência "desmoralizadora", na visão de muitos. Este assunto, porém, é tabu na literatura cívica brasileira. É a total exclusão da sexualidade na representação da masculinidade presente nestes textos, mesmo nas formas mais sutis, que parece servir para inspirar o seu controle. Em contrapartida, a valorização do colégio interno, como lugar de isolamento do menino em um universo exclusivamente masculino, é uma constante. Cf. Hansen (2007: 206).

Entretanto, contraste maior, não verbalizado por Renato nem por sua mãe, ficará patente na diferença entre o colégio América e o colégio imaginado pelo menino como um lugar de castigos, severidade e solidão.

A metáfora da escola como uma "estufa onde há todos os exemplares do homem ainda em rebento", para além da ideia da criança como miniatura do adulto, remete à percepção do novo papel da criança enquanto "ser social" (Perrot, 1999: 148), a cumprir sua responsabilidade como futuro da família e da sociedade. Uma noção que se difundiu na Europa ao longo do século XIX, e no Brasil conforme se aproximava o final do século.

Mais ainda, Coelho Netto sinalizava a importância que atribuía à escola na concretização de seu ideal de sociedade. As enormes diferenças entre o colégio imaginado e temido por Renato e o América apontam também para a distância entre os ambientes e práticas escolares predominantes, causadores de experiências verdadeiramente traumáticas conforme vários testemunhos da época, e uma escola que, na visão do autor, deveria ser capaz de formar um homem novo, transformando assim a sociedade brasileira.

O colégio fictício, em suas regras e práticas, poderia servir como inspiração para que se viesse a transformar a "cultura escolar"8 8 . Utilizo o conceito de "cultura escolar" seguindo a abordagem de Julia (2001: 10), como "um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidades que podem variar segundo as épocas (finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de socialização). Normas e práticas não podem ser analisadas sem se levar em conta o corpo profissional dos agentes que são chamados a obedecer a essas ordens e, portanto, a utilizar dispositivos pedagógicos encarregados de facilitar sua aplicação, a saber, os professores primários e os demais professores. Mas, para além dos limites da escola, pode-se buscar identificar, em um sentido mais amplo, modos de pensar e de agir largamente difundidos no interior de nossas sociedades, modos que não concebem a aquisição de conhecimentos e de habilidades senão por intermédio de processos formais de escolarização". vigente naquele momento. Porém, pode-se dizer também que América é uma espécie de utopia republicana e, nessa perspectiva, o nome escolhido para representar a instituição escolar que é cenário principal do enredo, e que serve também para dar título ao livro, ganha sentido maior.

O medo do menino Renato começa a se desfazer assim que se depara com o sorriso "cheio de bondade" do diretor que lhe apresenta a escola. A partir daí, as experiências e impressões narradas como lembranças começam a construir a imagem de um mundo em miniatura, no qual prevalece o valor do mérito, a justiça social, a solidariedade e a bondade humana.

É através da observação dos colegas, de seus comportamentos e conflitos, que as lições mais importantes são transmitidas pelo narrador Renato aos leitores. São três as personagens que têm maior importância: Afonso Villar, Castro e Libânio.

Afonso Villar é o companheiro de Renato e espécie de "duplo" do narrador. Logo caracterizado como do seu "tamanho, mais forte, com desenvoltura de homem", o colega mais admirado é um menino exemplar: bom aluno, bom filho e bom amigo. Enfim, o modelo a ser copiado.

Castro, o único a ser referido apenas pelo sobrenome, é o "rico". Mais velho que os demais, fazia pouco caso do colégio, dos professores e era "detestado por todos, até dos criados". É descrito de forma quase repulsiva. No almoço, por exemplo, "sorvia com voracidade" toda a comida, sendo por isso repreendido pelo diretor que o compara a um "irracional".

Libânio é introduzido, por Afonso a Renato, como sendo forte no jogo da "barra". O narrador, que já havia observado Libânio como um "mulatinho" atento "a ouvir a palavra do professor", demonstra curiosidade sobre esse colega e pergunta ao companheiro "quem" era ele:

- É um excelente menino, muito pobre mas um estudante brioso. Tem as melhores notas e como é muito meigo todos lhe querem bem. Hás de gostar dele. É o primeiro em tudo, quer aqui no recreio, quer na aula. E é tão infeliz, coitado!

- Por quê? Perguntei curiosamente.

- Não sei. A mãe é muito pobre, mora muito longe, foi ele mesmo que me disse. Passa os domingos no colégio. Faz pena, não é?

Libânio serve de pretexto para que o autor coloque em pauta uma das questões mais problemáticas para a construção da "comunidade política imaginada" (Anderson, 1981) no Brasil da passagem do século XIX para o XX, a incorporação de ex-escravos e seus descendentes, superando os preconceitos alimentados pelas teorias racistas então em voga.

De acordo com Benedict Anderson, é no "companheirismo profundo e horizontal" que se baseia a concepção moderna de nação, apesar das desigualdades que existem em todas elas. A "fraternidade é que torna possível, no correr dos últimos dois séculos, que tantos milhões de pessoas, não só matem, mas morram voluntariamente por imaginações tão limitadas" (Anderson, 1981: 16).

A construção dos laços de solidariedade entre ricos e pobres, brancos e não brancos, portanto, era a tarefa mais difícil a ser enfrentada por aqueles que pretendiam contribuir para fazer do Brasil uma nação, e da nacionalidade brasileira uma identidade.

Em América, são as figuras antagônicas de Libânio e Castro que protagonizam o evento-chave do livro, momento dramático que serve para esclarecer inequivocamente as regras que vigoram do "portão para dentro" do colégio-utopia.

O capítulo intitulado "A afronta" narra uma briga entre Libânio e Castro durante o recreio, em que o diretor é chamado a intervir pelos outros alunos:

- Insultou sim, disseram vários meninos.

- Que disse ele? Perguntou o diretor num tom severo e imperativo.

- Disse que eu era... um negro... que minha mãe era escrava... e Libânio desatou a chorar. (...)

Depois de um grande silêncio, (...), o diretor falou.

- Senhor Castro, daquele portão para dentro só o mérito estabelece distinções entre os meus alunos: aqui não há castas e se há uma superioridade essa é a que pode alegar o senhor Libânio que, sendo um dos meninos de mais brio que tenho conhecido, é um dos melhores estudantes do meu colégio. (Coelho Netto, 1897: 54-55)

O episódio merece atenção pelo seu caráter emblemático, ao demonstrar o conflito entre duas ordens sociais e políticas distintas e as formas de pensar e agir que estavam a elas ligadas. Note-se que Libânio é a única personagem que não possui sobrenome, e Castro, o único sem prenome. Se o nome singulariza o indivíduo e o sobrenome indica seu pertencimento a uma família ou linhagem, então é significativo que essas duas personagens antagônicas sejam assim apresentadas e tratadas do início ao fim do livro.

Castro, em tudo representando uma visão de mundo aristocrática na descrição de Coelho Netto, não poderia encontrar seu lugar naquela espécie de utopia republicana e meritocrática. Excessivamente rico, o menino que não valorizava os estudos nem o trabalho era "atrasado" em relação aos demais, pois era mais velho e da mesma classe, e só consegue integrar realmente aquela pequena "comunidade imaginada" após uma radical transformação. Tal ocorre quando sua vida sofre uma reviravolta ocasionada pela morte do pai e a ruína financeira da família. Castro se vê então obrigado a se preocupar com o sustento da mãe e dos irmãos mais novos. É somente após uma completa regeneração que Castro passa efetivamente a pertencer àquela pequena e perfeita república representada pelo Colégio América, contando com a solidariedade de todos os colegas, inclusive de Libânio, para recuperar-se nos estudos. Aquilo que Castro acaba por conseguir, afinal, será devido apenas à sua força de vontade, trabalho e mérito.

Quanto a Libânio, não há dúvidas quanto ao seu pertencimento e identificação com aquele ambiente. Sempre se comporta da maneira esperada e é querido por todos. Na república idealizada por Coelho Netto, em que todos nascem iguais, o menino pobre e mulato recebe a mesma educação que brancos e ricos, podendo destacar-se por seu próprio valor e mérito. Ser o "mais forte", o "primeiro em tudo", "brioso" e inteligente, faz de Libânio a negação das teorias raciais que insistiam em desconfiar da possibilidade de grandeza de uma nação miscigenada. A resolução da questão racial na formação nacional, portanto, ocorre por meio do recurso ao discurso meritocrático, componente essencial do ideário burguês e liberal subjacente ao texto.

Em relação à narrativa, o incidente acaba por servir de pretexto para que o diretor exija de Castro uma redação sobre o "Treze de Maio", que tem no texto a sua associação com a Monarquia minimizada, ao passo que sugere-se sua filiação a um certo sentimento republicano:

Essa Lei, posto que se afirme ter derivado do coração imperial, saiu da vontade imperativa do Povo: foi a Nação que a impôs ao trono e já não era possível conter a violência da vaga quando foi corrida a represa - e desde esse dia desapareceu da Pátria o preconceito, todos os homens confraternizaram (...). (Coelho Netto, 1897: 58)

Uma das tarefas a que se propunham os livros cívicos, em sua maior parte, era a de fixar o calendário das festas nacionais instituídas pelo novo regime. Neste sentido, a lição sobre o Treze de Maio apresenta-se como complementar a outra, a do Vinte e um de Abril.

O menino Renato, novato na escola e ainda ignorante de algumas práticas da vida coletiva que só poderiam ser aprendidas em sua passagem por aquele local de socialização, encontra com o professor naquele dia sem saber a razão de ser feriado:

- Não há aula hoje? (...)

- Não; hoje não...

- Por quê? É dia santo?

- Sim, é um dia santificado pelo martírio de um brasileiro. Então não sabe que é hoje o aniversário da execução do Tiradentes?

- Não, senhor. E pela minha resposta ingênua o professor compreendeu que eu nada sabia acerca da vida do precursor de nossa liberdade política.

- Pois já devia saber, senhor Renato. O senhor que vive a dizer que ama tanto a sua pátria...

- Sim, professor: amo. E meus olhos subiram ao céu maravilhoso, baixaram às árvores, alongaram-se até as montanhas distantes como se quisessem acariciar a pátria naqueles trechos da sua grandeza.

- Sim, meu amigo, mas a pátria não é somente o território; não basta amar o céu e as árvores do seu país natal, os rios, as montanhas, as fontes que constituem, por assim dizer, o corpo, é preciso amar os homens, nas suas obras imortais que constituem a História, que é a alma das nações.

José Joaquim da Silva Xavier, (...), era um homem simples, filho do povo. (...)

Reunido a outros brasileiros pôs-se em campo, arrostando todos os perigos, sofrendo toda sorte de privações, aventurando-se a viagens longas e arriscadíssimas mas sem queixa, com uma grande satisfação porque antevia a Pátria livre, sonhava com a realização do ideal de sua alma. Não quis, porém, a sorte que a sua empresa tão nobre fosse realizada. (...)

- E o Tiradentes?

- Subiu ao cadafalso na manhã de 21 de Abril do ano de 1792. Nobre, porém, não acusou um só de seus companheiros de inconfidência e morrendo, com a serenidade com que morreu Jesus pensava, talvez, que um só dos que ficavam bastava para realizar o ideal que o levava ao martírio. Nenhum dos seus companheiros, porém, pôde executar o pensamento do herói e foi ele mesmo, porque foi a sua ideia, quem anos depois rebentando no espírito do povo, fez com que tivéssemos a República. Ele foi o precursor, foi o semeador...

- O professor tem o retrato dele?

- Não, mas para que o retrato? Os heróis são como Deus: estão representados nas suas obras. O retrato do Tiradentes é a República. Hoje é um dia sagrado. E não esqueça mais...

- Não esqueço, professor: (...). (Coelho Netto, 1897: 41-43)

A lição sobre Tiradentes contribuía para fixar o mito do herói republicano, num trecho que demonstra a mobilização de símbolos religiosos na consagração de uma tradição que ainda lutava por um lugar na memória coletiva.9 9 . Cf. a respeito o estudo de Carvalho (1990: 55-73).

Ainda nessa perspectiva, ao nomear seu colégio fictício de América e sublinhar a importância desse nome colocando-o no título do livro, Coelho Netto faz "ecoar" um dos enunciados do Manifesto Republicano de 1870: "Somos da América e queremos ser americanos", um dos principais "discursos fundadores" da república no Brasil.10 10 . Segundo Eni P. Orlandi (1993: 12-14), discursos fundadores são aqueles que "vão nos inventando um passado inequívoco e empurrando um futuro pela frente e que nos dão a sensação de estarmos dentro de uma história de um mundo conhecido: diga ao povo que fico, quem for brasileiro siga-me, libertas quae sera tamen, independência ou morte, em se plantando tudo dá etc. São enunciados que ecoam (...) e reverberam efeitos de nossa história em nosso dia-a-dia, em nossa reconstrução cotidiana de nossos laços sociais, em nossa identidade histórica. (...) O que o caracteriza como fundador (...) é que ele cria uma nova tradição, ele re-significa o que veio antes e institui aí uma memória outra. (...) Cria tradição de sentidos projetando-se para frente e para trás, trazendo o novo para o efeito do permanente. Instala-se irrevogavelmente. É talvez esse efeito que o identifica como fundador: a eficácia em produzir o efeito do novo que se arraiga no entanto na memória permanente (sem limite). Produz desse modo o efeito do familiar, do evidente, do que só pode ser assim".

É essa filiação a uma determinada tradição de sentidos que permite que se faça a leitura do livro infantil América como uma utopia cívica e republicana. O título do livro e nome da escola, que mais do que mero cenário é representação de um (não-)lugar regido por uma ordem social idealizada e perfeita, acrescenta significados para além daqueles que se encontram explícitos no texto. América remete às ideias de "mundo novo", "liberdade", "democracia", "progresso" e "república", e se constitui em uma chave de leitura que confere sentido às experiências narradas pelo menino Renato.

Ainda que não se inscreva no gênero utópico stricto sensu, América certamente se apropria de algumas características desse paradigma de origem humanista, em particular por conceber uma sociedade ideal, isolada do "mundo real" e do qual se constitui em crítica.11 11 . De acordo com Baczko (1985: 342), a Utopia de Thomas Morus estabeleceu um duplo paradigma. No aspecto literário apresenta-se como "narrativa de uma viagem imaginária ao cabo da qual o narrador descobre uma Cidade até então desconhecida e que se distingue por instituições de que o narrador faz uma pormenorizada descrição." Já enquanto "paradigma específico do imaginário social", a utopia é "representação de uma sociedade radicalmente outra, situada no algures definido por um espaço-tempo imaginário; representação que se opõe à da sociedade real, existente hic et nunc, bem como aos seus males e vícios". É desse paradigma do imaginário social que penso aproximar-se América.

Por mais que seja inspirado de maneira bastante óbvia no Coração de Edmondo de Amicis, e de fato possui muitos aspectos em comum com o livro italiano, América foi escrito para difundir civismo e valores republicanos entre as crianças brasileiras no final do século XIX. Se não foi inovador no aspecto literário, enquanto instrumento de pedagogia cívica e republicana o livro conseguiu traduzir algumas das questões mais problemáticas do contexto social, político e econômico do Brasil na primeira década após a Abolição e a República, no que diz respeito à formação da nação.

A utopia republicana de Coelho Netto ofereceu aos contemporâneos um ideal de nação a ser perseguido pelo regime instaurado poucos anos antes, representando a responsabilidade que os jovens leitores brasileiros deveriam assumir na superação dos obstáculos criados pela permanência de valores e modos de pensar e agir que começavam a ser vistos como anacrônicos e impeditivos do progresso.

América, nesse sentido, inscreve-se entre os esforços empreendidos por muitos intelectuais na passagem do século XIX para o XX, os quais, ao vislumbrar uma solução para a formação da nação por meio da educação cívica das crianças, investiram na produção dos primeiros livros infantis dirigidos especificamente ao público brasileiro.

Notas

Artigo recebido em 20 de julho de 2009 e aprovado para publicação em 27 de agosto de 2009.

Patricia Santos Hansen realiza atualmente o projeto "Os primeiros livros infantis brasileiros. Análise da literatura cívico-pedagógica de ficção" (Programa Nacional de Apoio à Pesquisa da Biblioteca Nacional, Brasil) (hansenwagner@gmail.com).

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  • VERÍSSIMO, José. A educação nacional Pará: Tavares Cardoso & C./Livraria Universal, 1890.
  • 1
    . As exceções têm concentrado sua atenção em
    Através do Brasil de Olavo Bilac e Manuel Bomfim. Cf. Botelho (1998), Santos e Oliva (2004), Lajolo (1992 e 2000) e Lajolo e Zilbermann (1996 e 2006).
  • 2
    . Acerca da repercussão do livro francês, há informações sobre sua vendagem, edições e adaptações para cinema e televisão na Wikipedia em <
    http://fr.wikipedia.org/wiki/Le_Tour_de_France_par_deux_enfants>, além do artigo dedicado a ele por Ozouf (1997) na famosa coleção dirigida por Pierre Nora. A respeito do
    Cuore vale destacar alguns estudos mais recentes sobre a carreira extremamente exitosa do livro entre leitores brasileiros desde a sua tradução por João Ribeiro em 1891, como os de Gontijo (2008) e Bastos (2004).
  • 3
    . Analisei as clivagens entre
    Porque me ufano de meu país e outros textos da literatura cívica brasileira na primeira parte de minha tese de doutorado intitulada
    Brasil, um país novo: literatura cívico-pedagógica e a construção de um ideal de infância brasileira na Primeira República.
  • 4
    . Henrique Maximiano Coelho Netto (1864-1934) nasceu em Caxias no Maranhão. Filho do português Antônio da Fonseca Coelho e da índia Ana Silvestre Coelho, mudou-se com seis anos para o Rio de Janeiro. Fez faculdade de Direito e, em São Paulo, apoiou as ideias abolicionistas e republicanas. Concluiu os estudos em 1885 e voltou ao Rio, onde acompanhou José do Patrocínio na campanha abolicionista. Em 1890 casou-se com Maria Gabriela Brandão, filha do educador Alberto Olympio Brandão, com quem teve 14 filhos. Atuou como professor, político, romancista, contista, crítico, teatrólogo, memorialista e poeta. Na imprensa, trabalhou nos jornais
    Gazeta da Tarde e a
    Cidade do Rio. É o fundador da Cadeira nº 2 da Academia Brasileira de Letras. Foi nomeado para o cargo de secretário do Governo do Estado do Rio de Janeiro e, no ano seguinte, diretor dos Negócios do Estado. Em 1892, foi nomeado professor de história da arte na Escola Nacional de Belas Artes e, mais tarde, professor de literatura do Ginásio Pedro II. Em 1910, professor de história do teatro e literatura dramática da Escola de Arte Dramática, sendo logo depois diretor do estabelecimento. Na política foi eleito deputado federal pelo Maranhão em 1909, reeleito em 1917. Participou da Liga de Defesa Nacional desde o início. Cultivou praticamente todos os gêneros literários e foi, por muitos anos, o escritor mais lido do Brasil. Em 1928, foi eleito Príncipe dos Prosadores Brasileiros, num concurso realizado pelo
    O Malho.
  • 5
    . No "Extrato do Catálogo da Livraria Francisco Alves", impresso em alguns livros da editora na década de 1930 para divulgar entre os leitores outros livros do mesmo gênero, a tradução de João Ribeiro para o livro de Edmondo de Amicis era vendida com o título
    Coração. Educação Cívica.
  • 6
    . Agradeço a Rafael Aragon Guerra que, a respeito do inusitado desta personagem feminina de Coelho Netto, me sugeriu que ela poderia estar relacionada às representações femininas da república estudadas por Maurice Agulhon (1979 e 1989) para o caso da França e por José Murilo de Carvalho (1990) no Brasil. Acredito que esta intuição está correta, e enriquece a análise do texto a interpretação dessa personagem que parece combinar elementos alegóricos com a concepção da mãe como educadora, papel feminino que começava a ser defendido por vários agentes sociais da época. Nessa mesma perspectiva, é possível também pensar que o autor de
    América tenha procurado acentuar algumas ideias que atravessam o texto, escolhendo nomes significativos para as diversas personagens, como é o caso de Renato, que significa renascido, e reforça a pretensão de formação de um homem novo representada pela trajetória do protagonista. Aproveito também para agradecer as excelentes sugestões dos pareceristas designados pela
    Estudos Históricos para a leitura deste artigo, as quais procurei incorporar na versão final.
  • 7
    . Além do "perigo" de infantilização ou efeminação representado pela excessiva influência materna, havia também a preocupação com a sexualidade do menino. Sujeitos no âmbito privado à presença de criadas, muitas vezes ex-escravas, negras ou mulatas, o colégio interno era a solução para resguardar e promover a virilidade do menino, afastando-o dessa influência "desmoralizadora", na visão de muitos. Este assunto, porém, é tabu na literatura cívica brasileira. É a total exclusão da sexualidade na representação da masculinidade presente nestes textos, mesmo nas formas mais sutis, que parece servir para inspirar o seu controle. Em contrapartida, a valorização do colégio interno, como lugar de isolamento do menino em um universo exclusivamente masculino, é uma constante. Cf. Hansen (2007: 206).
  • 8
    . Utilizo o conceito de "cultura escolar" seguindo a abordagem de Julia (2001: 10), como "um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidades que podem variar segundo as épocas (finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de socialização). Normas e práticas não podem ser analisadas sem se levar em conta o corpo profissional dos agentes que são chamados a obedecer a essas ordens e, portanto, a utilizar dispositivos pedagógicos encarregados de facilitar sua aplicação, a saber, os professores primários e os demais professores. Mas, para além dos limites da escola, pode-se buscar identificar, em um sentido mais amplo, modos de pensar e de agir largamente difundidos no interior de nossas sociedades, modos que não concebem a aquisição de conhecimentos e de habilidades senão por intermédio de processos formais de escolarização".
  • 9
    . Cf. a respeito o estudo de Carvalho (1990: 55-73).
  • 10
    . Segundo Eni P. Orlandi (1993: 12-14), discursos fundadores são aqueles que "vão nos inventando um passado inequívoco e empurrando um futuro pela frente e que nos dão a sensação de estarmos dentro de uma história de um mundo conhecido: diga ao povo que fico, quem for brasileiro siga-me,
    libertas quae sera tamen, independência ou morte, em se plantando tudo dá etc. São enunciados que ecoam (...) e reverberam efeitos de nossa história em nosso dia-a-dia, em nossa reconstrução cotidiana de nossos laços sociais, em nossa identidade histórica. (...) O que o caracteriza como fundador (...) é que ele cria uma nova tradição, ele re-significa o que veio antes e institui aí uma memória outra. (...) Cria tradição de sentidos projetando-se para frente e para trás, trazendo o novo para o efeito do permanente. Instala-se irrevogavelmente. É talvez esse efeito que o identifica como fundador: a eficácia em produzir o efeito do novo que se arraiga no entanto na memória permanente (sem limite). Produz desse modo o efeito do familiar, do evidente, do que só pode ser assim".
  • 11
    . De acordo com Baczko (1985: 342), a Utopia de Thomas Morus estabeleceu um duplo paradigma. No aspecto literário apresenta-se como "narrativa de uma viagem imaginária ao cabo da qual o narrador descobre uma Cidade até então desconhecida e que se distingue por instituições de que o narrador faz uma pormenorizada descrição." Já enquanto "paradigma específico do imaginário social", a utopia é "representação de uma sociedade radicalmente outra, situada no algures definido por um espaço-tempo imaginário; representação que se opõe à da sociedade real, existente
    hic et nunc, bem como aos seus males e vícios". É desse paradigma do imaginário social que penso aproximar-se
    América.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Jul 2010
    • Data do Fascículo
      Dez 2009

    Histórico

    • Aceito
      27 Ago 2009
    • Recebido
      20 Jul 2009
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