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Do (in)visível ao risível: o negro e a "raça nacional" na criação caricatural da Primeira República

From the (in)visible to the laughable: black people and the "national race" in the cartoons of the First Republic

Resumos

A partir de caricaturas e de textos de humor publicados nas revistas ilustradas cariocas na Primeira República - sobretudo entre 1898 e 1918 -, o artigo analisa o lugar do negro e a reatualização da ideia de "raça nacional". Discute-se em que medida o humor é capaz de evidenciar mecanismos pouco visíveis, repercutindo o preconceito racial da época e revelando ao mesmo tempo a emergência de novas tradições culturais de origem africana e estratégias de resistência. À luz da historiografia recente sobre o período, demonstra-se como também no universo caricatural se tecia uma imagem da "raça brasileira" apoiada na mestiçagem. Essa busca de uma identidade brasileira mestiça é renovada no contexto da Primeira Guerra Mundial, quando os caricaturistas insistem na representação da decadência dos países tidos como civilizados e se interrogam sobre o lugar do Brasil no mundo.

caricatura; Primeira República; negro; raça nacional; mestiçagem; pós-abolição; Revolta dos Marinheiros; Primeira Guerra Mundial


Based on humorous cartoons and texts published in Rio de Janeiro magazines during the First Repubic - specially between 1898 e 1918 -, the paper analyses the place of the blacks and the idea of "national race". It discusses in what extent humor can expose mechanisms that are barely visible, reflecting racial prejudices, and can reveal new cultural traditions of African origin as well as resistance strategies. Evoking recent historiography about the period, it also demonstrates how, in the cartoon universe, the image of a "Brazilian race" based on the crossing of races was being framed. This search for a Brazilian mixed identity is renewed during the First World War, when the cartoonists insist on the representation of the decadence of the countries seen as civilized and interrogate themselves about the place of Brazil in the world.

cartoon; First Republic; black; national race; crossing of races; post-abolition of slavery; Mariner's Rebellion; First World War


À partir des caricatures et des textes d'humour publiés par les magazines de Rio de Janeiro pendant la Première République - surtout entre 1898 e 1918 -, l'article analyse la place des noirs et l'idée de "race nationale". On discute à quel point l'humour peut exposer des mécanismes peu visibles, réflétant des préjugés raciaux, et révéler en même temps l'émergence de nouvelles traditions culturelles d'origine africaine et des stratégies de résistance. À l'aide de l'historiographie récente sur la période, on montre comment, dans l'univers caricatural lui aussi, on était en train de construire l'image d'une "race brésilienne" appuyée sur le métissage. Cette quête d'une identité brésilienne métissée est renouvelée à l'époque de la Première Guerre Mondiale, quand les caricaturistes insistent sur la représentation de la décadence des pays considérés civilisés et s'interrogent sur la place du Brésil dans le monde.

caricature; Première République; noir; race nationale; métissage; l'après-abolition de l'esclavage; Révolte des Matelots; Première Guerre Mondiale


ARTIGOS

Do (in)visível ao risível: o negro e a "raça nacional" na criação caricatural da Primeira República

From the (in)visible to the laughable: black people and the "national race" in the cartoons of the First Republic

Silvia Capanema AlmeidaI; Rogério Sousa Silva II

IDoutora em História pela École des Hautes Études en Sciences Sociales e professora adjunta da Universidade Paris 13, Paris, França (silvia.capanema@gmail.com)

IIDoutorando em História na PUC-SP, São Paulo, Brasil, e bolsista da CAPES

RESUMO

A partir de caricaturas e de textos de humor publicados nas revistas ilustradas cariocas na Primeira República – sobretudo entre 1898 e 1918 –, o artigo analisa o lugar do negro e a reatualização da ideia de "raça nacional". Discute-se em que medida o humor é capaz de evidenciar mecanismos pouco visíveis, repercutindo o preconceito racial da época e revelando ao mesmo tempo a emergência de novas tradições culturais de origem africana e estratégias de resistência. À luz da historiografia recente sobre o período, demonstra-se como também no universo caricatural se tecia uma imagem da "raça brasileira" apoiada na mestiçagem. Essa busca de uma identidade brasileira mestiça é renovada no contexto da Primeira Guerra Mundial, quando os caricaturistas insistem na representação da decadência dos países tidos como civilizados e se interrogam sobre o lugar do Brasil no mundo.

Palavras-chave: caricatura; Primeira República; negro; raça nacional; mestiçagem; pós-abolição; Revolta dos Marinheiros; Primeira Guerra Mundial.

ABSTRACT

Based on humorous cartoons and texts published in Rio de Janeiro magazines during the First Repubic – specially between 1898 e 1918 –, the paper analyses the place of the blacks and the idea of "national race". It discusses in what extent humor can expose mechanisms that are barely visible, reflecting racial prejudices, and can reveal new cultural traditions of African origin as well as resistance strategies. Evoking recent historiography about the period, it also demonstrates how, in the cartoon universe, the image of a "Brazilian race" based on the crossing of races was being framed. This search for a Brazilian mixed identity is renewed during the First World War, when the cartoonists insist on the representation of the decadence of the countries seen as civilized and interrogate themselves about the place of Brazil in the world.

Keywords: cartoon; First Republic; black; national race; crossing of races; post-abolition of slavery; Mariner's Rebellion; First World War.

RÉSUMÉ

À partir des caricatures et des textes d'humour publiés par les magazines de Rio de Janeiro pendant la Première République – surtout entre 1898 e 1918 –, l'article analyse la place des noirs et l'idée de "race nationale". On discute à quel point l'humour peut exposer des mécanismes peu visibles, réflétant des préjugés raciaux, et révéler en même temps l'émergence de nouvelles traditions culturelles d'origine africaine et des stratégies de résistance. À l'aide de l'historiographie récente sur la période, on montre comment, dans l'univers caricatural lui aussi, on était en train de construire l'image d'une "race brésilienne" appuyée sur le métissage. Cette quête d'une identité brésilienne métissée est renouvelée à l'époque de la Première Guerre Mondiale, quand les caricaturistes insistent sur la représentation de la décadence des pays considérés civilisés et s'interrogent sur la place du Brésil dans le monde.

Mots-clés: caricature; Première République; noir; race nationale; métissage; l'après-abolition de l'esclavage; Révolte des Matelots; Première Guerre Mondiale.

No primeiro número da revista Careta, em 1908, um texto de humor intitulado Henriette, assinado com o pseudônimo Frei Antonio, chama a atenção pela forma como a questão racial é abordada:

Paulo Gomes era um homem feliz, mas, como não ha ventura completa, tinha, como todos os mortaes, um grande desgosto – ser negro, porque Paulo Gomes era negro e legitimo: retinto e de ventas esborrachadas.

Era rico. Em S. Paulo, por morte de um fazendeiro, que passava por seu pae, (...) recebeu por herança vastissimas fazendas. (...)

Cubiçou a felicidade de ser instruido. Adquirio bibliothecas, tomou professores, estudou. (...) O saber trouxe-lhe a natural ambição de viajar (...).

Viu mares e (...) pisou todas as terras, excepto as africanas, pois não queria conhecer a tostada terra donde lhe viera, com seus antepassados, a côr pretissima.

Installou-se em Paris, onde o seu dinheiro fazia esquecer as inconveniencias da sua côr.

Mas em Paris teve a notavel desventura, talvez ventura, de apanhar a sua primeira paixão.

Apaixonou-se por uma francezita sabiamente loira (...).

Muito soffreu, com essa paixão (...).

Ella tão loira, elle tão preto! (...) Ella franceza, elle brasileiro! (...)

Mas teve fim a sua desventura. (...)

Casaram-se. Vieram residir no Brasil. (...)

Paulo Gomes rico, erudito, viajado e doidamente amado, (...) sentia, perpetua, ferir-lhe a alma a invencivel tristeza de ser negro.

Por isso, ancioso, cheio de esperanças, palpitou-lhe o coração, quando, lendo uma revista norte-americana, deparou com o annuncio de um remedio maravilhoso que transformava a nigerrima côr dos pretos na côr alvissima dos brancos.

(...)

Recebeu-o, por fim. (...)

Bebeu-[o] e dormio feliz.

Ao outro dia accordou infeliz. Aos gritos escandalisados da esposa, que o desconhecera (...) oh! que desventura, a cor branca dava-lhe um destaque hediondo a chateza brutal das ventas, á grossura africana dos beiços, aos duros crespos da carapinha.

Henriette fulminou-o:

– Separemo-nos. Vae-te. És horrivel, pareces um macaco pintado de branco. (...)

– Deixa-me! Perdeste o que eu amava. (...) amava a tua côr. Amava o preto e detesto o branco.

(...)

Maldito remedio!

São muito exquisitas as francezas!

(Careta, 6 de junho de 1908)

Através do humor, o texto apresenta uma série de tensões típicas do contexto: preconceito de cor, inversão de valores e exotismo. Paulo Gomes encarna um conjunto de características que parecem ser bastante conflitantes com as hierarquias sócio-raciais dominantes da época: negro, rico, instruído, viajado, fugindo aos traços estereotipados das populações afrodescendentes. O desfecho do texto mostra exatamente um desencontro entre os anseios dos dois personagens: enquanto a esposa francesa demonstra um gosto exótico que podia escapar aos padrões hegemônicos de beleza, o marido negro deseja mudar de condição passando a ser branco.1 1 O desejo do branqueamento foi alvo da indústria de cosméticos femininos nos Estados Unidos do pós-abolição, combinando racialismo, formas de organização capitalista e possibilidades de ascensão social (Côrtes, 2012). Monteiro Lobato, em O Presidente negro ou o choque das raças (1926), também aponta esse desejo do branqueamento ao retratar a invenção de uma máquina que despigmentaria a pele dos negros.

A crônica aborda a necessidade – e a dificuldade – da convivência com a ascensão social de negros e mulatos e sua presença nos meios da boa sociedade. Entre os momentos finais do século XIX e o começo do XX, essa presença podia despertar incômodos, reforçando a ideia de ascensão pelo branqueamento, seja ele projetado ou idealizado, através da mestiçagem e incentivo à imigração europeia (Schwarcz, 2005). Ao mesmo tempo, após a abolição, a racialização das relações sociais será um recurso frequente das camadas dominantes como uma forma de reforçar o lugar inferior do negro na sociedade, demarcar territórios e produzir limites para a cidadania (Albuquerque, 2009).

Henriette demonstra que a identidade cultural negra e os aspectos físicos das populações de ascendência africana podiam ser fatores conflituosos tanto para brancos quanto para negros e mestiços. Nas mesmas revistas ilustradas semanais, encontramos outras fontes que indicam esse conflito: as caricaturas. Este artigo propõe analisar essas representações – compreendidas como discursos (Foucault, 1999) – tendo como recorte espacial o Rio de Janeiro e as revistas referidas entre 1898 – momento de surgimento dessas publicações e contexto de transformações sociais significativas na capital do país, além de um marco de consolidação da República após uma década de instabilidade – e o fim da Primeira Guerra Mundial – quando a questão racial se mescla com a identidade nacional em um mundo em violenta agitação. O estudo leva em conta as representações do negro e da "raça nacional" no "texto e traço" dos humoristas (Lustosa, 2006) a partir de peças extraídas de Careta (1908-1960), O Mercurio (1898), O Tagarela (1902-1904), O Malho (1902-1920), Revista da Semana (1900-1959), Fon-Fon! (1907-1912) e D. Quixote (1917-1927). Tais revistas eram produtos culturais destinados às classes letradas da sociedade brasileira, num momento em que a cultura de massa se iniciava. Estabeleciam um diálogo profundo com a sociedade e com a modernidade carioca, inaugurando novas formas de leitura (ler e ver imagens; incorporar sons do cotidiano) e captando as mudanças políticas e de costumes, os novos ritmos sociais, as inovações tecnológicas e gráficas, as correntes artísticas recentes (Oliveira et al., 2010).

Os caricaturistas percebiam os diferentes lugares sociais do negro e também as nuances desses lugares, agindo, na expressão de Gardes (2011), como verdadeiros "sismógrafos" das vibrações da vida cotidiana de seu tempo e como mediadores entre a cultura popular e a erudita.2 2 Chamamos a atenção aqui para o fato de muitos dos caricaturistas deixarem em seu próprio trabalho traços de sua presença nos ambientes boêmios e populares de samba da capital, como Raul Pederneiras e Calixto (Dealtry, 2009). Na então capital da República, a cultura das ruas tem nos negros a sua principal manifestação (Velloso, 2004). As representações dos caricaturistas vão de crítica à posição social do negro ao ocultamento, passando pelos insultos por meio de piadas e manifestações sutis ou explícitas de preconceito. Vale observar que muitos artistas eram negros ou pardos, como Crispim do Amaral, Amaro ou Calixto (Lima, 1963),3 3 Sobre Crispim do Amaral em particular, Herman Lima cita um texto anônimo publicado em O Paiz na ocasião de sua morte, em 17 de dezembro de 1911: "o artista, filho da terra de sol ardente e pródiga, nunca se preocupou de medir o que gastava, e os recursos que levava esgotaram-se: foi quando o pintor brasileiro, caricaturista por índole e talento, passou, para manter-se, a trabalhar nas páginas de Le Rire. Só esse fato, sabendo-se as poucas facilidades oferecidas nesse domínio ao estrangeiro na grande capital, tratando-se, além do mais, de um homem que tinha contra si o preconceito da raça – basta para dar ideia do efetivo valor desse artista, que vigorosamente se impunha." (1963: 1065, grifo nosso). o que não impediu que, em determinados momentos, visões hegemônicas de preconceito estivessem presentes em suas obras.

A historiografia atual apontou diversas particularidades sobre as questões raciais no pós-abolição e a elaboração de uma cultura brasileira mestiça no período da Primeira República. Na virada do século, as ideias evolucionistas ganhavam terreno, criando espaço para se justificar a mestiçagem como forma de branquear e melhorar a raça brasileira, como defendia Silvio Romero (Dantas, 2009). O racismo científico, bastante presente no Brasil desde meados do século XIX – a partir dos trabalhos de Gobineau, Agassiz, Nina Rodrigues, entre outros (Schwarcz, 2005; Skidmore, 2012) – , não era incompatível com o surgimento de um elogio da mestiçagem e a valorização, embora com limitações, da cultura negra. Ao contrário, ele servia de enquadramento para que diversos intelectuais, de maneiras diferentes, defendessem a mestiçagem como especificidade brasileira bem antes da elaboração do paradigma da democracia racial nos anos 1930 e 1940.

Carolina Dantas (2009) demonstra como havia muitos tons favoráveis à mestiçagem nos discursos dos intelectuais. É o caso de Manuel Bonfim, que refutava abertamente as teses de inferioridade racial do negro – o problema eram as particularidades históricas do Brasil, como escravidão e colonização, formas de exploração que a obsessão pela inferioridade da raça ocultava – e de Olavo Bilac, que propunha a valorização da cultura negra no processo de mestiçagem e, indiretamente, debatia a proposta de branqueamento. Muitos dos autores que esboçavam uma teoria da identidade brasileira mestiça teriam participado do movimento abolicionista e republicano ou sido sensíveis aos seus impactos, compartilhando, de certa maneira, um mesmo "desejo de modernidade". Assim, formava-se no país um ambiente intelectual propício para a recepção das teses de Gilberto Freyre e a publicação de Casa grande & senzala em 1933 (Gomes, 2000).

Também no âmbito cultural, os intelectuais e artistas do período buscavam na mestiçagem, no folclore, no regionalismo, nas contribuições da vertente africana, uma expressão da arte nacional. A música popular se torna, assim, um sinônimo da música nacional (Abreu & Dantas, 2012). De forma semelhante, o teatro musical ligeiro do Rio de Janeiro construía-se como um laboratório para a assimilação da cultura negra – linguajar, jeitos, danças – na cultura popular brasileira. Exemplo representativo é o da peça Forrobodó, grande sucesso de 1912 (Lopes, 2006). O musical causou sensação por trazer para o palco personagens e falas típicos da Pequena África no Rio de Janeiro,4 4 Região em torno da Praça Onze, com importante concentração de afro-brasileiros. Ver também Moura (1995). ainda que essa transmissão tivesse seus limites: poucos atores eram negros e até a personagem da mulata – incorporação da sensualidade – era representada por uma atriz branca. A peça, cuja trilha sonora assinara Chiquinha Gonzaga, foi escrita por Carlos Bittencourt, repórter policial, e Luís Peixoto, ilustrador e caricaturista.

Os caricaturistas aqui estudados vão refletir, à sua maneira, essas tendências. Seus desenhos são bastante polifônicos: ora colocam em evidência as particularidades culturais, ora ironizam as elites pelo olhar do negro, ora reproduzem os preconceitos de cor dominantes. Neste artigo, serão discutidos três diferentes tópicos da representação racial nas revistas de humor. Primeiro, serão abordados diferentes exemplos do lugar do negro na caricatura da Primeira República. Em seguida, se explorará a caricatura de marinheiros, em particular os envolvidos na revolta de 1910, e as nuances reveladas sobre raça, resistência e República. Por fim, será colocada em evidência a emergência de uma visão particular de raça, que se mistura com o conceito de nação e é evidenciada no contexto da Grande Guerra, em contraste com os povos europeus submersos na carnificina.

Lugares do negro na caricatura pós-escravidão

Em O cultivo do ódio, Peter Gay (1995) descreve o humor como parte dos instintos agressivos das sociedades, tendo como foco de análise o mundo do Atlântico Norte entre a queda de Napoleão e a eclosão da Primeira Guerra Mundial. Saliba (2002) afirma a falta de um cultivo do ódio no humor nacional, enquanto Lustosa (2006) sugere a existência de uma tradição cordial do humor nacional. Se for olhado o contexto e o corpus documental proposto aqui, se irá perceber que se ri de tudo. No campo étnico, por exemplo, a origem hebraica de David Campista era por vezes colocada como motivo de riso, e o mesmo pode-se dizer do perfil alemão de Lauro Müller (em especial depois de 1914); os imigrantes que transitavam pelas ruas do Rio de Janeiro tinham seus sotaques e características culturais ressaltados. Porém, vale a pena lembrar, nenhum desses grupos se encontrava em posição social tão desvantajosa e desigual quanto os negros.

Como mostrou Lustosa analisando a tradição do humor brasileiro na representação do negro em um tempo mais longo (do século XIX ao final do século XX), seu lugar inferior é constantemente marcado, mas também se verifica, sobretudo a partir da década de 1920, um movimento de valorização social do componente afro-brasileiro.5 5 Na caricatura brasileira, essa cultura africana, em especial a dança e a música, é tema de referência nos trabalhos de Seth, sobretudo a partir do fim da década de 1920 e nos anos 1930 (período posterior ao recorte do nosso artigo). Também no século XIX, havia espaço para um negro "romantizado" nas produções, como durante a campanha abolicionista (Balaban, 2009). No entanto, no pós-abolição, o negro perde até mesmo esse espaço (Lustosa, 1991).

No final do século XIX e início do XX, há uma tensão entre a imagem do negro na escravidão e na liberdade, a permanência de antigos estereótipos e o surgimento de novos. Na caricatura do período, as representações da criadagem não eram exclusivamente negras ou mestiças, mas as mais comuns procuram mostrar os vínculos de tal atividade com o trabalho escravo. E é exatamente isso que Raul Pederneiras6 6 Raul Paranhos Pederneiras (1874-1953) nasceu no Rio de Janeiro e atuou em várias revistas da cidade, em especial em O Mercúrio, O Malho, O Tagarela, Fon-Fon, Revista da Semana e D. Quixote (Lima, 1963: 988-1013). apresenta em suas Scenas da vida carioca em 1898 (Figura 1).


Em A bisca em família, dois homens e duas mulheres de meia idade jogam cartas, perto de um garoto. Ao lado, um casal troca olhares insinuantes, enquanto um idoso, na ponta da mesa, cochila. No canto direito do desenho, fora da mesa, uma mulher negra tem um bebê no colo e, diante dela, uma criança brinca com um cavalinho de madeira. Raul, sempre preso aos detalhes próprios das caricaturas de costumes, percebe a dimensão da intimidade familiar. A imagem da mulher negra cuidando das duas crianças, em um Brasil de abolição recente, surge como a permanência dos traços de escravismo no trabalho doméstico que se manteria ao longo do século XX. O traço de Raul marca uma cena familiar aparentemente harmônica, mas em que transparecem tensões, hierarquias e exclusões.

Nas ruas, as camadas populares encontram-se num ambiente mais livre das convenções sociais, e seus olhares para os valores vindos da "boa sociedade" tornam-se mais críticos. Em uma imagem de O Tagarela, Vaidade feminina, de 1902 (Figura 2), Raul Pederneiras representa, de um lado, um casal de brancos que, pela maneira de se vestir, pertence a um setor social privilegiado; do outro lado, há um casal de negros, cuja indumentária indica posição social inferior. Os olhares trocados entre as duplas geram estranhamentos, e a personagem negra lança uma visão ousada para a sua antípoda, comentando: "Ó, Chico, repara que diabo de máu gosto, o d'aquelle chapéu da madama..."


Esse olhar contém elementos críticos, tensões raciais típicas e evidencia a necessidade de os afrodescendentes se imporem nesse contexto. A dinâmica social mostra que as camadas subalternas não teriam ficado estáticas diante das simbologias e modelos de beleza que vinham de cima. Mais do que isso, elas reivindicavam espaços de atuação efetiva na sociedade pós-emancipação.

Em outro exemplo mais à frente no tempo, uma criação de Julião Machado7 7 Julião Machado (1863-1930) nasceu em Luanda, estudou e trabalhou em Portugal. No Brasil, fundou com Olavo Bilac as revistas A Cigarra e A Bruxa.Trabalhou também em O Paiz, Jornal do Commercio, Jornal do Brasil, Era Nova e D. Quixote (Lima, 1963: 963-985). para D. Quixote (Figura 3) propõe uma clara inversão de papéis. Com o título 13 de Maio – publicação comemorativa dos 29 anos da Lei Áurea –, a caricatura representa uma senhora negra bem vestida atendida por um vendedor branco em uma loja de sapatos. Ela diz: "Ande di pressa, moço! São duas horas e já divia está no instituto di belleza!"


A fala modificada, com traços fortes da oralidade e da africanidade do português, era uma prática da caricatura de negros. Era também um recurso do teatro ligeiro do período para retratar negros e populares, muitas vezes também apresentados, de maneira cômica, nas formas desastradas com que se esforçavam para usar o registro culto da língua (Lopes, 2006). Porém há aqui uma flagrante mudança de lugares: a negra como "madame", dando ordens a um empregado branco (com um ar de clara subserviência). Os caricaturistas expressavam as tensões e conflitos sócio-raciais por espaços no pós-abolição. A igualdade e a cidadania seriam capazes de inverter a ordem social? Provavelmente não de forma completa, pois o humor se garante na imagem justamente pelo caráter inusitado da cena. Mas havia sim a possibilidade de se pensar em mudanças futuras abertas pela abolição. Note-se que a cena não se passa por acaso em uma loja de sapatos, já que, como sabemos, os escravos eram marcados por andarem descalçados.

Uma outra composição, assinada por Petiz (Figura 4), faz referência à Festa das Flores, atividade comemorativa que ocorreu durante anos na capital do país, sendo a primeira realizada em 15 de agosto de 1903. A festa instituída pela administração de Pereira Passos tinha o intuito de exaltar a natureza da cidade. Ela ocorria no Campo de Santana, e membros da elite carioca desfilavam em carros enfeitados e jogavam flores nas pessoas.


A ausência popular inspirou o caricaturista a criar a imagem, intitulada Flor da lyra, de um homem negro, com chapéu de abas largas, terno branco, sapato de bico fino e bengala – a representação precisa do "povo da lira", como eram conhecidos, na capital federal, grupos de "negros e mulatos capoeiristas e apreciadores, em muitos casos, de violão e cantoria" (Dias, 1997: 331). Os capoeiristas da "lira" eram reconhecidos na imprensa da época também por "não gostarem de trabalhar" e por aparecerem com frequência como "guarda-costas de políticos" (Idem). A legenda deixa clara a posição social do personagem, de exclusão e marginalização: "A flor que não figurou na batalha". A palavra lyra, segundo Raul Pederneiras, que, além de caricaturista, foi um estudioso da linguagem popular, significa: "Viola, violão, musica. Povo, pessoal da lyra, gremio de capadocios ou capoeiras serenatistas" (Pederneiras, 1922: 32). Não há dúvida de que a imagem do malandro carioca, transformada em estereótipo e transmitida à caricatura, está ali colocada, misto de questionamento social, por meio da ausência de uma "ética do trabalho", de masculinidade negra e habilidade física da capoeira.

Entretanto, as imagens dos negros ligados à capoeiragem não eram apenas de questionamento de valores vigentes. A utilização de suas habilidades marciais nos processos eleitorais aparecia em muitas das composições das revistas de humor. Ao contrário da representação anterior que concede ao personagem um caráter simpático, ainda que coerente com a ironia, em Os interessados (Figura 5), de 1902, os atores negros são ligados à violência e à marginalidade, sendo uma espécie de lumpemproletariado urbano. Pederneiras mostra a ligação dos capangas com o processo político, na visão do autor, uma maneira de arrumar uma atividade remunerada. No desenho, quatro homens negros, vestidos à moda do "povo da lira", inclusive carregando bengalas – também identificadas como "cacetes usados para agredir" (Dias, 1997: 331) –, se questionam: "Então? Ha ou não ha eleição para Vice Presidente da Republica?" O desenho também mostra o nível de distanciamento da maior parte dos brasileiros em relação aos processos políticos formais do país, a ponto de os interessados não estarem certos da ocorrência do pleito.


A análise das fontes iconográficas indica ainda outras recorrências, como algo que foi brevemente tratado na caricatura 13 de Maio, de Julião Machado: a inserção de negros em espaços sociais que não eram considerados naturalmente seus. A prática de distinção racial no Brasil apoiava-se bastante no fator cor – combinado à posição econômica e social – e não se definia somente pelos critérios de descendência ou origem, mesmo se muitas pessoas buscassem ocultá-las para evitar preconceitos. Mas, de maneira geral, a ascensão dependia "da aparência (quanto mais 'negroide', menos mudança social) e do grau de 'brancura' cultural (educação, maneiras, renda)" (Skidmore, 2012: 82). Pode-se, assim, falar da existência de um preconceito racial, em certa medida, de fenótipo. O professor Hemetério José dos Santos, o príncipe zulu, como foi chamado em O Malho (20 de setembro de 1902), encarnou isso como poucos na época. Intelectual brilhante, foi professor, gramático, filólogo e escritor. Cursou a Escola de Artilharia e Engenharia e conquistou a patente de major. Seria equivocado dizer que a totalidade das representações caricaturais em torno dele tenham sido somente de achincalhe. Muitas vezes elas permitiam múltiplas interpretações. Raul Pederneiras, por exemplo, na caricatura Instrução publica (Figura 6), mostra-o, por um lado, confortável como um entre tantos nas questões da educação e formação dos jovens de classe privilegiada na capital federal. Por outro lado, há também no exemplo uma certa dose de ironia: um negro que se mete a discutir instrução pública. A sua presença no meio escolar é, como o artista percebe, tão atípica que chega a desviar as atenções. Enquanto todos se interessam pelo negro professor que, segundo a legenda, dá "dous dedos de grammatica em discussão", seu colega atrás "arrebanha as alumnas da escola normal."


Negro, erudito, ocupando um alto posto em um Brasil de recente abolição, Hemetério atraía olhares de desconfiança, desdém, inveja, e dava vazão àquilo que Henri Bergson vê como um dos fatores geradores do riso, a anormalidade de determinadas situações (Bergson, 2007). Assim, outra estratégia utilizada pelo humor da época procurava ironizar a postura social de Hemetério julgando-o "branco" em seu comportamento, pois ele não se enquadrava nos estereótipos mais comuns atribuídos aos negros e, mais do que isso, ameaçava ao ousar sair do "lugar social" de negro subalterno, usando e manipulando em seu benefício elementos (brancos) de distinção social. Na Figura 7, exaltam-se suas qualidades intelectuais inegáveis, mas é sempre lembrada a sua cor. No texto, Hemetério é comparado ao príncipe Obá, negro do folclore das ruas do Rio que lutou no Paraguai e era visto como um preto pobre com "fumaças de nobreza" (Lustosa, 1991).


Falsttaff,8 8 Augusto do Santos era especialista em "portrait-charge", como o caso da figura 7. Trabalhou na Nova Semana Ilustrada, depois em Careta, O Malho e O Tagarela (Lima, 1963: 988). que assina a caricatura que acompanha o texto da Figura 7, mostra-o como um homem extremamente bem vestido, de óculos, bigode, e fumando. Ele carrega embaixo do braço esquerdo um livro intitulado Manual de civilidade, o que visa a mostrar, de forma irônica, seu enquadramento nos valores vigentes. Importante lembrar que Hemetério também se manifestou com relação à questão racial, escrevendo uma carta a Machado de Assis publicada em 1908. Nela, exprime sua decepção com o escritor por crer que ele teria negligenciado o "problema do negro" e renegado "seus irmãos de cor" (Dantas, 2009: 74). O próprio professor, apesar de sofrer preconceitos, enxergava o Brasil como uma "obra de tolerância e amor, na qual os negros tinham um papel importantíssimo" (Idem: 73).

Deve-se pensar também, mais do que numa simples contraposição entre negros e brancos, na existência de diversas tensões implicando diferentes atores, inclusive separando negros e mulatos. Os mulatos que eram socialmente brancos, e os negros que ascendiam e adotavam modos vistos como próprios dos brancos eram constantemente expostos nas revistas humorísticas. A seção intitulada Novo Diccionario, da Fon-Fon!, define assim o vice-presidente mulato Nilo Peçanha (que se torna presidente após a morte de Afonso Pena): "Nilo – Rio africano de origens desconhecidas que atravessa o Estado do Rio de Janeiro e desemboca na vice-presidência da República" (Fon-Fon! 8 de junho, 1907).

Outra personalidade pública negra desse período inicial da República que chama bastante atenção dos caricaturistas é o conselheiro municipal e depois deputado federal Monteiro Lopes, também advogado e um dos primeiros políticos negros a ter a causa da questão racial como pauta. A maior parte dessas representações procura racializá-lo constantemente. J. Carlos,9 9 José Carlos de Brito e Cunha (1884-1950) era carioca e começou em O Tagarela em 1902. Trabalhou em Careta, Fon-Fon!, O Malho, Para Todos, O Cruzeiro (Lima, 1963: 1970-1125). por exemplo, em Monteiro Lapis (Figura 8), mostra-o como um descendente de escravos em uma linha evolutiva: ele aparece na África diante de um traficante ("o que era"), em seguida, amarrado para ser vendido ("o que foi") e, enfim, surge com roupas elegantes no seu formato atual, apesar de mais magro ("o que é"). A imagem de pouco sério e de cultura inferior era reforçada nas caricaturas e nos textos satíricos, colocando-o claramente como um estranho em um ambiente que não era o seu. Nesse exemplo, o caricaturista não parece estar muito próximo dos "populares" e "dos homens das ruas", deixando transparecer um alto nível de racismo em sua representação de um homem negro que ousou desafiar as hierarquias do pós-abolição.


Há também nos casos de ascensão "uma caricaturização das falas". Sobre Monteiro Lopes, Lustosa (1991:168) cita a recepção de seu discurso de estreia na Câmara. Segundo uma testemunha, ele foi prejudicado pela má dicção, uma fala em que "não aparecem os rr e as palavras longas não se concluem", e tornou-se motivo de riso. Além disso, em seu discurso há várias referências eruditas, citações em inglês, mas "sua voz não tem legitimidade, sua fala é uma fala de negro, tem uma 'estranha' forma de pronunciar as palavras". Assim, como a autora conclui, "ser negro deixa de ser só uma questão de cor".

As caricaturas de negros ilustres que apareciam em patamares sociais mais elevados tinham também como característica comum uma ênfase nas roupas de grande luxo. Raul Pederneiras, em O Mercurio, apresenta um casal de negros com roupas de gala (Figura 9). O homem chama sua companheira para dançar polca: "– Vancê sabe porká?", e ela responde: "Uê, gentes! Si eu subesse porká pokaria."


Raça, revolta e república: a caricatura dos marinheiros nacionais

O humor nessas revistas se constitui em um momento histórico de formação nacional no qual a racialização das relações sociais era um dado evidente. Daí a necessidade de evitar, apagar e ignorar o negro em muitas delas. Bastante emblemático, como apontou o estudo de Silva (1990), é o fato de que o Zé Povo (personagem comum a muitos caricaturistas usado para representar os setores populares) raramente era negro, ou mesmo mulato. São ainda reveladoras as críticas que se faziam às imagens que as revistas argentinas criavam em torno do Brasil – particularmente Caras y Caretas – nas quais um homem negro, apelando-se para traços simiescos, era usado para simbolizar o país.

Um fragmento desse ambiente cultural aparece em uma edição de O Malho de 1905. Segundo um boato, oficiais da Marinha brasileira teriam sido destratados em um hotel nos EUA por não serem brancos. Apesar de desmentido, o mal-estar com a "acusação" ficou bastante evidente:

Felizmente, para desannuviar o espirito publico, (...) chegou-nos pelo telegrapho o desmentido formal á noticia de que os hoteleiros de Norfolk haviam recusado servir os officiaes do nosso Benjamin Constant, sob o pretexto de que não eram brancos (...) Mas, que diabo! (...) Tantos progressos feitos... o Sr. Roosevelt tão amigo dos homens de côr, inclusive os japonezes! (O Malho, Rio de Janeiro, 1/07/1905)

O cultivo do ódio surgia em momentos de maior tensão. Durante a Revolta dos Marinheiros de 1910, o humor cerrou fileiras com os detratores dos revoltosos (majoritariamente negros ou pardos) e colaborou para a sua marginalização. A República de 1889 era portadora de um projeto de cidadania e igualdade, na prática, para os brancos, embora houvesse uma igualdade de direitos civis para todos (Guimarães, 2011). Os marinheiros que se rebelaram em novembro de 1910 por melhores condições de trabalho e o fim dos castigos corporais, na chamada "Revolta da Chibata", haviam compreendido a mudança de regime e reivindicavam a extensão da cidadania para si. Eles se definiam como "marinheiros, cidadãos brasileiros e republicanos", exigindo a igualdade pressuposta pela Constituição de 1891, e assumiram o comando de quatro dos principais navios de guerra, sendo reconhecidos entre si e por uma parte da imprensa como verdadeiros oficiais da esquadra rebelada, "comandantes, almirantes, imediatos, capitães" (Capanema, 2009; Morel, 2009; Nascimento, 2007).

Essa inversão de lugares foi também representada nas peças de humor, como é o caso de uma criação de J. Carlos publicada em Careta no dia 10 de dezembro de 1910 (Figura 10). O marinheiro negro representa provavelmente João Cândido. Interessante observar como J. Carlos contrasta os tipos humanos representados: enquanto os marinheiros brancos têm traços finos, bigodes, olhos claros, o "oficial" negro é representado com lábios extremamente largos, orelhas gigantes, animalizado. Observe-se também mais um detalhe: os marujos brancos, fazendo continência, estão descalços, enquanto o comandante negro usa sapatos, apesar de seus pés tortos e com acentuados joanetes, indicando a falta de hábito com os calçados, cuja ausência estava diretamente relacionada com o estigma da escravidão. Ele porta uma medalha na qual se lê 23 de novembro de 1910 (dia posterior à revolta), tomada no desenho como data fundadora de novos tempos na Marinha.


No momento em que J. Carlos desenha, a revolta do batalhão naval ainda não tinha ocorrido,10 10 A revolta do Batalhão Naval acontece no dia 9 de dezembro de 1910. Depois desse levante, houve centenas de mortes na ilha das Cobras e diversas prisões, bem como a deportação de mais de 200 pessoas para o Acre em condições desumanas. e embora aproximadamente mil marujos já tivessem sido expulsos, a opinião pública ainda sentia o impacto da anistia concedida pelo governo no dia 26 de novembro. Aos olhos do caricaturista, algo de estranho ocorria na inversão da ordem, como dizia o título da criação, de forma irônica, "a disciplina do futuro". O marinheiro (branco) na legenda propõe: "Aquelle homem affirma que eu não passo de um mero cabide de espada que não acompanha o desenvolvimento material das marinhas europeas". Os marujos rebeldes de 1910 foram reconhecidos na época por serem ótimos navegantes e dominarem a tecnologia dos mais avançados encouraçados importados da Inglaterra. A inversão dos lugares sociais também seria uma consequência da modernidade? Interroga-se nas entrelinhas J. Carlos, com seu olhar aguçado para as transformações do seu tempo.

Em O Malho publicada no mesmo dia, há uma caricatura de Storni,11 11 Alfredo Storni (1881-1966) era gaúcho. Fundou em seu estado a revista O Gafanhoto. Trabalhou mais tarde em O Malho. Produzia para a revista O Filhote com o pseudônimo Bluff. Colaborou no Correio da Noite, na Revista da Semana e n'O Tico-Tico (Lima, 1963: 1226). Actualidades na Marinha, que mostra um marinheiro negro fumando, sendo saudado por um oficial branco, bem menor em tamanho. A postura relaxada do marujo acentua o que diz a legenda, "disciplina invertida: continencia ao 'almirante'". O Malho tinha uma postura mais conservadora, enquanto Careta, no período, era apontada como um periódico que apoiava os civilistas, não sendo contrária à anistia dos marinheiros (Nascimento, 2007). Porém a diferença de postura editorial não significava necessariamente uma leitura diferente do lugar do negro no Brasil recém-republicano.

Mas nem só os comandantes da Marinha deveriam agora se curvar diante dos marinheiros. A boa sociedade também, como demonstra Raul Pederneiras em Depois da festa, publicada na Revista da Semana de dezembro de 1910. Nela, um marujo atônito recebe os cumprimentos de homens respeitáveis, bem vestidos, e de uma senhora (Figura 11).


Observe-se que o tom de pele do marinheiro é um pouco mais claro e que seus traços também não são tão deformados quanto nos desenhos anteriores. Porém, diferente dos outros homens da imagem, ele não usa bigode, apesar de o líder da rebelião, o marujo João Cândido, portar bigodes bem visíveis. A ausência de bigodes quase como uma unanimidade nas representações caricaturais dos marujos negros é um detalhe que reforça esse lugar que ocupavam no imaginário social. A maior parte dos homens públicos maduros da "boa sociedade" portava bigode no período (Freyre, 2000). O bigode era um indício de respeitabilidade social e de maturidade masculina (Capanema, 2009), lugares não atribuídos ao negro naquele contexto.

Outros marinheiros aparecem nas caricaturas do contexto. J. Carlos, mais uma vez, publica uma criação (Figura 12) em que se vê nitidamente um marujo negro, com traços que reforçam a sua proximidade com o macaco. A imagem é de 1903 e trata de "rumores" de rebeliões no meio da marujada que corriam pela cidade – e da vigilância policial. A legenda diz: "Co' esses boato de revorta a gente nem pode i a terra vê as tripa dum puliça!" A animalidade e os traços simiescos são associados ao marujo brasileiro, arruaceiro e rebelde, cujo direito de frequentar a cidade (ir a terra) era limitado pela ação das autoridades policiais. Isso mesmo antes da Revolta da Chibata.


Um ano depois, em 1904, um marujo aparece na capa da Revista da Semana, num desenho de Amaro Amaral12 12 Amaro do Amaral (1875-1922) nasceu em Olinda e era irmão do caricaturista Crispim do Amaral. Trabalhou na Revista da Semana e no Jornal do Brasil. Fundou a revista Figuras e Figurões (Lima, 1963: 1128-1133). (Figura 13). A edição homenageia a Marinha brasileira no aniversário da Batalha do Riachuelo no contexto da Guerra do Paraguai (11 de junho de 1865). Gloria a Marinha Brasileira mostra um marujo uniformizado, do alto do mastro de um navio, que carrega a bandeira do Brasil. Esse marinheiro, usado para representar a pátria e com legitimidade para isso, é jovem e branco.


Raça e nação: o espelho da Primeira Guerra Mundial

Como demonstrou Dantas (2009), os intelectuais e homens de letras da Primeira República esboçavam, nas revistas da época, um discurso da identidade nacional que se apoiava na afirmação da mestiçagem brasileira, como uma forma de negociação das tensões criadas pela presença do negro em diferentes espaços e lugares sociais. As polêmicas nacionais introduzidas no contexto da Primeira Guerra Mundial são um terreno fértil para se observar isso (Skidmore, 2012). A Grande Guerra foi um catalisador importante do sentimento nacional, provocando tanto as opiniões públicas (Compagnon, 2010) quanto os imaginários coletivos, como a sensibilidade dos caricaturistas foi capaz de captar, indicando continuidades e transformações no debate.

Uma forma de pensar identidade brasileira é reatualizada a partir da consciência da barbárie da guerra. Seria o fim da civilização? Ou, afinal, os povos ditos civilizados não seriam, eles, os bárbaros? Os alemães aparecem então como os culpados pela guerra e os responsáveis pelo fim dos padrões de civilização que muitos acreditavam ser unicamente ocidentais. Esse lugar da Alemanha está presente em muitas representações feitas nos próprios países europeus (Grand-Carteret, 1916). Porém, no caso brasileiro, o que há de especial é que os caricaturistas concretizam uma inversão de estereótipos, racializando as representações: o alemão passa a ocupar o lugar tradicional do selvagem brasileiro.

Há uma peça bastante emblemática, de autoria de Sá Roriz, publicada na capa de D. Quixote, na qual uma mulher de tez branca, cabelos negros e longos, trajando um vestido em que aparece escrita a palavra civilização, está amarrada a um tronco (Figura 14). À sua volta aparecem cerca de dezoito homens que são uma interessante mistura antropológica de alemães – marcados pelos pickelhaubes e um tipo de barba e bigodes próprios dos europeus, inclusive dos colonizadores – com indígenas – identificados pelos trajes sumários e as lanças.


O título da caricatura traz mais um elemento híbrido: Nos sertões da Europa. A palavra sertão é comumente relacionada a lugares longínquos, agrestes e distantes da civilização.13 13 Importante evocar aqui o trabalho de Euclides da Cunha (1903). Nutrido pelo determinismo e pelo racismo científico, Euclides demonstra como o atraso moral e físico do sertanejo encontrava em seu meio geográfico (o sertão) uma forma de evidenciação de sua miséria humana. Sua aplicação ao cenário europeu em guerra é bastante original. A legenda ajuda a explicar uma boa parte das intenções: "Não poderá o governo emprestar à Europa nosso coronel Rondon?" A Alemanha destruidora ocupava o lugar dos indígenas e do sertão, que, em uma visão de época, eram símbolos da barbárie.

Em julho de 1917, Calixto Cordeiro publica na D. Quixote uma caricatura que expressa o espírito da redação desse semanário nos momentos próximos à entrada do Brasil no conflito. Nela, um capoeirista aplica uma rasteira em um personagem alemão que tem características semelhantes às do kaiser Guilherme II (Figura 15). Pelos traços físicos, particularmente o tipo de cabelo desenhado – cabelos lisos que contrastam com crespos –, conclui-se que a intenção do artista foi criar um mulato. Com o título de A Desfeza Nacional a legenda diz: "Uma disparada do nosso 42 (bico largo)".


A mestiçagem aparecia, desse modo, como um destino que o Brasil deveria cumprir, e o negro iria se diluir em meio a outras raças, reforçando e refletindo o debate intelectual racial da época, que possuía também sua vertente na produção cultural. Na caricatura Aos sabichões do choucroute (Figura 16), de Raul Pederneiras, um homem vestido sobriamente, mas tendo nos cabelos duas penas, um traço indígena,14 14 Destacamos que essa imagem acompanha uma longa tradição de representar a nacionalidade brasileira pelo índio – não o real, mas idealizado e fundamentalmente branco (Schwarcz, 1996). dirige-se a dois sujeitos cujos indícios levam a crer serem alemães. Um deles, de nariz avantajado e óculos, carrega uma pasta onde se lê a palavra Kultur. O primeiro personagem citado, que representa o Brasil, indaga capciosamente: "Francamente... Qual de nós é o selvagem?"


Considerações finais: lições da guerra para a raça nacional

O correspondente da Revista da Semana em Paris conhecido pelo pseudônimo Paulo de Gardênia, no artigo Diálogo parisiense sobre o Brazil, descreve um jantar em que três amigos, dois franceses e um brasileiro, discutem sobre o futuro dos povos americanos. O brasileiro se posiciona depois de ouvir os dois companheiros:

Quando eu medito nos destinos do Brazil (...) vejo o futuro de minha patria. Ella será grande. Mais culto que o norte-americano, com uma sensibilidade maior, o povo brazileiro reúne um grande idealismo a um grande sensualismo. Herdeiros do pensamento greco-latino, educados pela cultura franceza, iremos crear um expressão de arte desconhecida. (...) imagine-se nesse ambiente babylonico uma raça mixta, complexa, por isso mesmo mais apta a comprehendrer, a exprimir e a crear sensações novas e novas idéias...15 15 Revista da Semana, 27 de março de 1920.

Tais palavras remetem a uma tradição intelectual bastante enraizada naquele tempo e exemplificada na obra Por que me ufano de meu país (1903), de Afonso Celso, que ressalta as vantagens geográficas, históricas, étnicas e culturais do Brasil. O elemento diferencial nas palavras de Gardenia é o contexto de uma crise da civilização ocidental. A Europa passara por uma experiência devastadora, uma catástrofe material e espiritual sem precedentes. O Brasil aparecia como uma civilização dos trópicos que poderia dar continuidade ao legado greco-romano com outros tons. O jornalista exalta o papel da cultura francesa na formação dos intelectuais ao mesmo tempo em que dilui na mestiçagem o papel das culturas africanas e indígenas na formação brasileira. Mesmo se essa ideia não era novidade em si, como já pensava Silvio Romero em 1888 (Skidmore, 2012: 73), a mestiçagem como "solução brasileira" e como um caminho para melhorar a raça através do branquemento surge nesse momento renovada. Essa "sociedade nova" poderia ser uma alternativa à "velha Europa" e, paralelamente, dar ao mundo um modelo diferente do representado pelos EUA que se tornava cada vez mais hegemônico.

Porém esse cenário positivo visto pelo jornalista passava por sacrifícios e ajustes. O negro continuava a ser um estranho no lar. Julião Machado mostra assim um homem branco, com trajes refinados, dirigindo-se de maneira aparentemente educada a uma mulher negra muito bem vestida. Em sua estola aparece o nome de "Hulha Nacional" (Figura 17), espécie de carvão mineral que, naquele contexto de conflito bélico, representava um elemento importante para a indústria de diferentes países. O autor faz um jogo de palavras e imagens. A cor negra da hulha e da pele da mulher personificam a exploração. Abaixo do desenho lê-se: "A HULHA NACIONAL - Pa cozinhá. O INDUSTRIAL – Para tudo, minha nega, para tudo!"


Esses são apenas alguns exemplos de como a guerra no hemisfério norte suscitou, também no Brasil, diversas questões de identidade nacional (Compagnon, 2009). Alguns intelectuais viam o povo brasileiro como uma "raça nova", latina, mestiça, "civilizada", na medida em que se encontrava distante da barbárie europeia. Entretanto, a presença do negro ainda era um "problema" com o qual não sabiam lidar e surgia como um obstáculo à ocidentalização do Brasil.

A polifonia quanto ao lugar do negro e a "solução pela mestiçagem" são elementos presentes nas representações dos humoristas nas revistas ilustradas semanais, em desenhos ou textos. A frequente imersão dos artistas em um preconceito hegemônico – deturpando traços e falas – é bastante perceptível, mas há outras evidências presentes nos detalhes e, portanto, um pouco menos visíveis, que são também bastante reveladoras: os jogos de poder, as inversões de lugares, as reivindicações por igualdade, as permanências das posições herdadas do escravismo. Percebemos como esse incômodo era também provocado pelo fato de o afro-brasileiro se impor como rebelde, contestador, ou pela sua simples presença em posições sociais que não eram tradicionalmente as suas, como fica evidente na leitura do tópico sobre os "lugares do negro" e sobre o caso particular da revolta dos marinheiros.

A Primeira Guerra é um momento em que a questão da raça aparece na caricatura de forma diferente, pois os artistas se empenharam em representar as nações do conflito e também o Brasil diante dele. Desenha-se então o mestiço, e a ideia de "nação mestiça" adquire um lugar, correspondendo, agora em imagens humorísticas, a um discurso já existente na época que buscava enxergar a originalidade nacional na cultura popular e na mestiçagem. Não se trata aqui de propor um "novo marco zero" para a questão da mestiçagem como síntese do projeto de ideia nacional, como bem refutou Carolina Dantas (2009: 79), mas de compreender os contextos de elaboração, surgimento e reelaboração das ideias, bem como as nuances que a análise dos documentos iconográficos nos permite perceber.

Notas

Artigo recebido em 1 de julho e aprovado para publicação em 10 de setembro de 2013.

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  • 1
    O desejo do branqueamento foi alvo da indústria de cosméticos femininos nos Estados Unidos do pós-abolição, combinando racialismo, formas de organização capitalista e possibilidades de ascensão social (Côrtes, 2012). Monteiro Lobato, em
    O Presidente negro ou o choque das raças (1926), também aponta esse desejo do branqueamento ao retratar a invenção de uma máquina que despigmentaria a pele dos negros.
  • 2
    Chamamos a atenção aqui para o fato de muitos dos caricaturistas deixarem em seu próprio trabalho traços de sua presença nos ambientes boêmios e populares de samba da capital, como Raul Pederneiras e Calixto (Dealtry, 2009).
  • 3
    Sobre Crispim do Amaral em particular, Herman Lima cita um texto anônimo publicado em
    O Paiz na ocasião de sua morte, em 17 de dezembro de 1911: "o artista, filho da terra de sol ardente e pródiga, nunca se preocupou de medir o que gastava, e os recursos que levava esgotaram-se: foi quando o pintor brasileiro, caricaturista por índole e talento, passou, para manter-se, a trabalhar nas páginas de
    Le Rire. Só esse fato, sabendo-se as poucas facilidades oferecidas nesse domínio ao estrangeiro na grande capital, tratando-se, além do mais, de um homem que tinha
    contra si o preconceito da raça – basta para dar ideia do efetivo valor desse artista, que vigorosamente se impunha." (1963: 1065, grifo nosso).
  • 4
    Região em torno da Praça Onze, com importante concentração de afro-brasileiros. Ver também Moura (1995).
  • 5
    Na caricatura brasileira, essa cultura africana, em especial a dança e a música, é tema de referência nos trabalhos de Seth, sobretudo a partir do fim da década de 1920 e nos anos 1930 (período posterior ao recorte do nosso artigo).
  • 6
    Raul Paranhos Pederneiras (1874-1953) nasceu no Rio de Janeiro e atuou em várias revistas da cidade, em especial em
    O Mercúrio, O Malho, O Tagarela, Fon-Fon, Revista da Semana e
    D. Quixote (Lima, 1963: 988-1013).
  • 7
    Julião Machado (1863-1930) nasceu em Luanda, estudou e trabalhou em Portugal. No Brasil, fundou com Olavo Bilac as revistas
    A Cigarra e A Bruxa.Trabalhou também em O Paiz, Jornal do Commercio, Jornal do Brasil, Era Nova e D. Quixote (Lima, 1963: 963-985).
  • 8
    Augusto do Santos era especialista em "portrait-charge", como o caso da figura 7. Trabalhou na
    Nova Semana Ilustrada, depois em
    Careta, O Malho e
    O Tagarela (Lima, 1963: 988).
  • 9
    José Carlos de Brito e Cunha (1884-1950) era carioca e começou em
    O Tagarela em 1902. Trabalhou em
    Careta,
    Fon-Fon!,
    O Malho, Para Todos,
    O Cruzeiro (Lima, 1963: 1970-1125).
  • 10
    A revolta do Batalhão Naval acontece no dia 9 de dezembro de 1910. Depois desse levante, houve centenas de mortes na ilha das Cobras e diversas prisões, bem como a deportação de mais de 200 pessoas para o Acre em condições desumanas.
  • 11
    Alfredo Storni (1881-1966) era gaúcho. Fundou em seu estado a revista
    O Gafanhoto. Trabalhou mais tarde em
    O Malho. Produzia para a revista
    O Filhote com o pseudônimo Bluff. Colaborou no
    Correio da Noite, na
    Revista da Semana e
    n'O Tico-Tico (Lima, 1963: 1226).
  • 12
    Amaro do Amaral (1875-1922) nasceu em Olinda e era irmão do caricaturista Crispim do Amaral. Trabalhou na
    Revista da Semana e no
    Jornal do Brasil. Fundou a revista
    Figuras e Figurões (Lima, 1963: 1128-1133).
  • 13
    Importante evocar aqui o trabalho de Euclides da Cunha (1903). Nutrido pelo determinismo e pelo racismo científico, Euclides demonstra como o atraso moral e físico do sertanejo encontrava em seu meio geográfico (o sertão) uma forma de evidenciação de sua miséria humana.
  • 14
    Destacamos que essa imagem acompanha uma longa tradição de representar a nacionalidade brasileira pelo índio – não o real, mas idealizado e fundamentalmente branco (Schwarcz, 1996).
  • 15
    Revista da Semana, 27 de março de 1920.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Mar 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2013

    Histórico

    • Recebido
      01 Jul 2013
    • Aceito
      10 Set 2013
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