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Preservar, demolir, construir ou ocupar a creche Ninho Jardim Condessa Marina R. Crespi: de todos os riscos, o risco

Preserve, demolish, build or squat the daycare Ninho Jardim Condessa Marina R. Crespi: of all risks, the risk

Resumo

Este artigo aborda a interrelação entre o patrimônio cultural industrial e o território urbano através dos processos de patrimonialização e de ocupação pela população sem-teto da creche Ninho Jardim Condessa Marina R. Crespi, no bairro da Mooca, em São Paulo. Analisaremos esses processos à luz da problematização das noções de risco, perda, demolição e mercado desenvolvidas por J. R. Gonçalves, entendendo-as como o avesso do patrimônio cultural, bem como de sua vinculação aos processos de gentrificação urbana. Para este fim, baseamo-nos na análise de documentos e na realização de entrevistas qualitativas.

Palavras-chave:
patrimônio industrial; mercado imobiliário; ocupação; riscos; gentrificação

Abstract

The present paper discusses the relation between industrial cultural heritage and urban territory examining the process concerning heritage and the occupation by squatters of the daycare center Ninho Jardim Condessa Marina R. Crespi, in Mooca district, São Paulo. These processes are studied in the light of the problematization of the notions of risk, loss, demolition and market, developed by J. R. Gonçalves, seen as the reverse of cultural heritage, as well as of their relation to processes of urban gentrification. We based our work on the analysis of documents and qualitative interviews.

Keywords:
industrial heritage; real state; occupation; risks; gentrification

Résumé

Cet article porte sur la relation entre patrimoine culturel industriel et territoire urbain en examinant les processus de patrimonialisation et d'occupation de la Garderie Ninho Jardim Condessa Marina R. Crespi, dans le quartier Mooca à São Paulo. Nous étudions ces processus à la lumière de la problématisation des notions de risque, perte, démolition et marché développées par J. R. Gonçalves, en les considérant comme l'envers du patrimoine culturel, e aussi de leur relation avec les processus de gentrification urbaine. Nous appuyons sur l'analyse de documents e sur la réalisation d'interviews qualitatifs.

Mots-clés:
patrimoine industriel; marché immobilier; occupation; risques; gentrification

A condensação de vários riscos na apropriação da creche Ninho Jardim Condessa Marina R. Crespi - a "deterioração", a incorporação pelo mercado imobiliário, a ocupação pela população sem-teto, os processos de tombamento e de reintegração de posse - expõe a dinâmica da inserção do patrimônio cultural no território das cidades (Meneses, 2006_____. A cidade como bem cultural. Áreas envoltórias e outros dilemas, equívocos e alcance na preservação do patrimônio ambiental urbano. In: MORI, Vitor Hugo et al. Patrimônio: atualizando o debate. São Paulo: 9º. SR/Iphan, 2006.; Arantes, 2006ARANTES, A. O patrimônio cultural e seus usos nas cidades contemporâneas. In: MORI, Vitor Hugo et al. Patrimônio: atualizando o debate. São Paulo: 9º SR/Iphan, 2006., 2009_____. Patrimônio cultural e cidade. In: FORTUNA, C. & PROENÇA, R. Plural de cidade: novos léxicos urbanos. Coimbra: Almedina/CES, 2009.) e suas relações com o mercado imobiliário, a ordenação urbana, a estetização arquitetônica, a formação de novos estilos de vida, consumo e lazer, a valorização histórica e memorial, a segregação socioespacial e as mudanças das atividades econômicas (Meneses, 2006_____. A cidade como bem cultural. Áreas envoltórias e outros dilemas, equívocos e alcance na preservação do patrimônio ambiental urbano. In: MORI, Vitor Hugo et al. Patrimônio: atualizando o debate. São Paulo: 9º. SR/Iphan, 2006.; Arantes, 2006ARANTES, A. O patrimônio cultural e seus usos nas cidades contemporâneas. In: MORI, Vitor Hugo et al. Patrimônio: atualizando o debate. São Paulo: 9º SR/Iphan, 2006., 2009_____. Patrimônio cultural e cidade. In: FORTUNA, C. & PROENÇA, R. Plural de cidade: novos léxicos urbanos. Coimbra: Almedina/CES, 2009.), ou com a articulação desses processos, como ocorre nos fenômenos de gentrificação urbana.

A creche, assim como o conjunto do Cotonifício Crespi, o qual ela integra, revela hoje o bairro da Mooca como um local considerado estratégico, já que constitui um enclave da industrialização primeva, subordinada ao café (Cano, 1981CANO, W. Raízes da concentração industrial em São Paulo. Rio de Janeiro: Difel, 1977.), em pleno "centro expandido" na cidade de São Paulo, cujo legado levou-a a sofrer um boom imobiliário, e a preparar-se para receber um grande projeto, a Operação Urbana "Bairros do Tamanduateí" (2014). Atualmente, a creche se insere num conjunto de processos de preservação cultural do patrimônio industrial que inclui o próprio cotonifício e os Grandes Moinhos Minetti-Gamba (Pereira, 2013PEREIRA, V. S. La photographie dans la patrimonialisation du paysage industriel: le Moulin Minetti & Gamba à Sao Paulo, Espaces et Sociétés, v. 152-153, 2013.), marcados pelo caráter conflitivo não apenas do tombamento dos edifícios em si, mas também da sua relação com o entorno e a cidade. Revela assim o patrimônio cultural como um conjunto de práticas e discursos, não restrito à sua dimensão reificada, como um produto, mas como um fato social (Gonçalves, 2002GONÇALVES, J. R. S. A retórica da perda. Os discursos do patrimônio cultural no Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/ Iphan, 2002.; Meneses, 2006_____. A cidade como bem cultural. Áreas envoltórias e outros dilemas, equívocos e alcance na preservação do patrimônio ambiental urbano. In: MORI, Vitor Hugo et al. Patrimônio: atualizando o debate. São Paulo: 9º. SR/Iphan, 2006.; Arantes, 2006ARANTES, A. O patrimônio cultural e seus usos nas cidades contemporâneas. In: MORI, Vitor Hugo et al. Patrimônio: atualizando o debate. São Paulo: 9º SR/Iphan, 2006., 2009MENESES, U. T. B. A paisagem como fato cultural. In: YAZIGI, Eduardo (org). Turismo e paisagem. São Paulo: Contexto, 2002.) que demanda a problematização de suas condições de produção, enfim, de sua patrimonialização.

Neste sentido, a diferença e os antagonismos também instituem o patrimônio cultural, ligado a uma esfera axiológica, ao envolver uma dinâmica de atribuição de valores e sentidos em disputa - arquitetônicos, históricos, estéticos, funcionais, afetivos, econômicos (Arantes, 2006ARANTES, A. O patrimônio cultural e seus usos nas cidades contemporâneas. In: MORI, Vitor Hugo et al. Patrimônio: atualizando o debate. São Paulo: 9º SR/Iphan, 2006.). Sua expressão seria formadora de uma arena política (Idem), cuja expansão recente reflete a democratização das sociedades, na qual o Estado, através das agências de preservação, perde o monopólio das decisões sobre o que e como preservar, dividindo-as com a sociedade civil e o mercado (Arantes, 2006ARANTES, A. O patrimônio cultural e seus usos nas cidades contemporâneas. In: MORI, Vitor Hugo et al. Patrimônio: atualizando o debate. São Paulo: 9º SR/Iphan, 2006., 2009_____. Patrimônio cultural e cidade. In: FORTUNA, C. & PROENÇA, R. Plural de cidade: novos léxicos urbanos. Coimbra: Almedina/CES, 2009.; Gonçalves, 2007_____. Os limites do patrimônio. In: LIMA, M., BELTRÃO, J. F., ECKERT, C. (orgs.). Antropologia e patrimônio cultural. Diálogos e desafios contemporâneos. Blumenau: Nova Letra, 2007., 2012, 2015_____. O mal-estar no patrimônio: identidade, tempo e destruição, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 28, nº 55, p. 211-228, janeiro-junho, 2015.).

O mercado imobiliário, os órgãos de preservação, os poderes legislativo e judiciário, as associações de bairro, as ONGs e a mídia protagonizaram esses conflitos, mas no caso da creche, diferentemente dos processos de patrimonialização anteriores (Pereira, 2013PEREIRA, V. S. La photographie dans la patrimonialisation du paysage industriel: le Moulin Minetti & Gamba à Sao Paulo, Espaces et Sociétés, v. 152-153, 2013.), não apenas fazem-se presentes novos atores, como a população sem-teto e o tráfico de drogas, mas ampliam-se - e/ou acumulam-se - os riscos, geralmente restritos à perda do patrimônio em seus sentidos materiais e imateriais.

Abordaremos a interrelação entre o patrimônio cultural e o território urbano através da história da patrimonialização da creche; observaremos como ela amplia a noção de risco, extravasando-o para além daqueles tradicionalmente atribuídos às práticas e discursos patrimoniais construídos pela "retórica da perda" (Gonçalves, 2002GONÇALVES, J. R. S. A retórica da perda. Os discursos do patrimônio cultural no Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/ Iphan, 2002.), e, por fim, em que medida esses riscos estão vinculados aos processos de gentrificação urbana.

A metodologia baseia-se na análise documental de dois processos, o de tombamento e o de reintegração de posse, bem como em materiais de imprensa: por meio deles reconstruímos os acontecimentos e o processo de atribuição de valores ao edifício e à ocupação. Complementamos com a prática etnográfica, que envolve o mapeamento do território, entrevistas qualitativas de roteiro semiaberto e a observação participante em reuniões associativas.

A Creche Ninho Jardim Condessa Marina R. Crespi e seus riscos

O Ninho Jardim Condessa Marina Regoli Crespi faz parte do conjunto fabril do Cotonifício Crespi S.A. estabelecido pelo empresário Rodolfo Crespi em 1897 no bairro da Mooca, no qual se integram os edifícios da fábrica, erigidos entre o final do século XIX e os anos 40 do século XX, e o estádio do Clube Atlético Juventus, cedido em 1925 (Martins, 2010MARTINS, A.F. Creche Marina Crespi. Pedido de tombamento de edifício em demolição. Minha Cidade, São Paulo, ano 10, n. 119.05, Vitruvius, jun. 2010 <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/10.119/3473>.
http://www.vitruvius.com.br/revistas/rea...
). O cotonifício, ao contrário da creche, tem um lugar reconhecido pela historiografia, como palco da Greve de 1917 (Lopreato, 1997LOPREATO, C. S. R. A semana trágica: a greve geral anarquista de 1917. São Paulo: Museu da Imigração, 1997.) e das Revoluções de 1924 (Cohen, 2007COHEN, I. S. Bombas sobre São Paulo. A revolução de 1924. São Paulo: Editora UNESP, 2007.) e 1932.

Construída em 1933 e inaugurada em 1936, a creche foi idealizada juntamente com a esposa do empresário, Marina Crespi, para atender aos filhos dos trabalhadores do cotonifício. O fechamento deste na década de 1960 não impediu o prosseguimento das atividades da creche, assumidas pela Fundação Ninho Jardim Condessa Marina R. Crespi (Martins, 2010MARTINS, A.F. Creche Marina Crespi. Pedido de tombamento de edifício em demolição. Minha Cidade, São Paulo, ano 10, n. 119.05, Vitruvius, jun. 2010 <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/10.119/3473>.
http://www.vitruvius.com.br/revistas/rea...
). Seu conselho curador era formado por membros da família do empresário, e sua direção estava a cargo da associação religiosa Santo Agostinho (ASA), então responsável pelo atendimento às crianças da região.

Em convênio com a prefeitura, a creche ofereceu atendimento gratuito para cerca de 180 crianças de até 6 anos de idade até dezembro de 2009, quando então a Secretaria Municipal de Educação solicitou sua desativação devido à "precariedade" do prédio, "sem condições de habitabilidade" (São Paulo, cidade, 2010SÃO PAULO (Cidade). SMC/CONPRESP. Processo nº: 2010-0 188-620 - 4. Demolição Casarão Marina Crespi - R. João Antônio de Oliveira esquina com Rua dos Trilhos, 2010.). Tal situação fora constatada meses antes, quando foi recomendada a mudança para outro prédio ou a diminuição do atendimento, condicionada à realização de uma reforma. No entanto, a Fundação alegou falta de recursos, levando a prefeitura a exigir a desativação em virtude dos "riscos" oferecidos (Idem). As crianças passaram então a ser realocadas em outras instituições da região.

Nesse ínterim, no final de outubro de 2009, foi firmado um contrato de compra e venda entre a Fundação e a Bergamo Incorporadora S/A, a EZTEC, cujo objetivo era construção de um empreendimento imobiliário. A consumação do contrato tinha como condição a demolição integral do edifício. A execução física da demolição ficaria a cargo da Fundação, que por sua vez outorgou à Incorporadora a tarefa de conseguir junto ao poder público a autorização necessária (Idem).

Segundo a Fundação, a venda do edifício tinha entre seus objetivos a compra de um imóvel menor para abrigar a creche, motivo pelo qual o Ministério Público, em janeiro de 2010, autorizou sua alienação. A partir daí, a solicitação de alvarás de demolição e de construção de uma nova edificação foi encaminhada para a Secretaria de Habitação e entrou em análise (Idem).

No período entre o encerramento das atividades da creche e a solicitação de seu tombamento em caráter emergencial, partes do edifício começaram a ser extraídas, outras demolidas, e surgiram rumores entre a vizinhança a respeito dos autores dessas intervenções: seriam os catadores de ferro velho ou seus futuros proprietários, no caso, uma construtora?

No pedido de tombamento feito em 28 de junho de 2010, o autor, arquiteto Alexandre Franco Martins, respaldado por representantes do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), seção SP, fez um alerta ao Departamento do Patrimônio Histórico (DPH), afirmando que o imóvel "começou a ser demolido na semana passada. Ainda estão removendo a cobertura do último pavimento" (Idem). Ainda segundo Martins, a destruição estava ocorrendo sem chamar a atenção devido ao muro e à existência de grandes árvores na frente do terreno, que prejudicavam a visibilidade do edifício.

Acolhendo o pedido, o DPH solicitou ao Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp), em caráter de urgência, a abertura do processo de tombamento do imóvel, que seria aprovada em reunião do órgão no dia 29 de junho. Em seu ofício, o DPH afirmava que a "edificação está relegada por seus proprietários, com sinais de vandalismo e deterioração, que podem levar à perda integral desse bem arquitetônico". Ao acolher a denúncia de "possível demolição", o DPH constatou após vistoria do edifício que "o imóvel está vazio, praticamente abandonado, com sinais de destruição de alguns elementos do último andar (telhado, esquadrias, forro etc.) e de outros pontos do edifício, além da evidência de vandalismo" (Idem).

No dia 1º de julho, quando da publicação da abertura do processo de tombamento, os responsáveis pelo edifício foram notificados pelo órgão sobre suas possíveis sanções penais.

Três vistorias no edifício foram realizadas no mês de julho: na primeira, no dia 8, a subprefeitura constatou que o edifício estava "dilapidado pela população de rua e agravado pela inexistência de teto por mais de um ano (...) sem que os proprietários tomem providências"; no dia 16, o DPH constatou que estava "tudo calmo e estancado", com fotos do prédio vazio; no entanto, na terceira vistoria, no dia 27, confirmaram-se as denúncias de depredação (Idem).

Assim, um mês após o pedido de tombamento, no dia 28 de julho, o Conpresp fez uma segunda notificação e pediu providências à Fundação e à Incorporadora, virtual compradora do imóvel, com objetivo de "impedir a destruição, demolição ou mesmo mutilação" do imóvel, responsabilizando-as legalmente por depredações, mesmo que feitas por "terceiros não identificados" (Idem, grifos nossos). Para este fim o órgão propôs uma reunião a ser realizada no dia 4 de agosto.

A Incorporadora e a Fundação responderam às notificações do Conpresp, bem como ao posterior processo de reintegração de posse. A Incorporadora alegou não ter nem a propriedade nem a posse do edifício, não assumindo nenhuma responsabilidade pela sua guarda. "Efetivamente a empresa tinha interesse na aquisição do imóvel, que lhe foi ofertado, contudo em face ao procedimento instaurado, não há mais como concluir qualquer transação" (Idem).

Restava à Fundação o ônus da responsabilidade. Os boletins de ocorrência, que iriam basear sua defesa perante o Conpresp, bem como seu pedido de reintegração de posse perante a Justiça, só começaram a ser registrados por ela a partir de 2 de julho - um dia após a notificação de abertura do processo de tombamento, disparado pela depredação do edifício.

Na sua resposta ao Conpresp, em documento datado do dia 13 de agosto, a Fundação citava a contratação de segurança privada de janeiro a março de 2010 e, devido à falta de recursos, a contratação de um guarda diurno até o mês de junho, quando teria ocorrido sua "expulsão por indivíduos desconhecidos" (Idem). E alegava que, "enquanto a incorporadora cuidava da elaboração de projetos técnicos e arquitetônicos e de outras providências que viabilizassem a transmissão definitiva do imóvel, não pod[ia] mais a Fundação exercer sobre o imóvel vigilância", situação em que ocorreram "atos de invasão e de pilhagem", conforme atestariam os boletins de ocorrência (Idem).

O primeiro, de 2 de julho, registrava ocorrência datada de 29 de junho, "em hora incerta", configurada como "furto qualificado" de extintores, hidrômetros, "madeiras e ferros". O segundo, registrado em 7 de julho, referia-se à ocorrência datada do mesmo dia. Nele, um representante da creche relatava ter observado a presença de "dois indivíduos" que teriam substituído o cadeado da creche por um próprio, e que os mesmos "Não lhe ameaçaram, nem tampouco impregaram (sic) qualquer violência física" (Idem, grifos nossos).

No terceiro e último boletim, emitido na mesma data do documento de resposta à notificação do Conpresp, era registrada uma ocorrência datada de 2 de agosto na qual, em "hora incerta", a Fundação teria observado a presença de "aproximadamente noventa famílias", configurando-se assim "esbulho possessório" (Idem), o que a levara a entrar na Justiça Cível para pleitear a reintegração de posse.

A Fundação concluiu, por fim, que o prédio sofrera "pesada e maciça invasão de dezenas de pessoas (falamos em mais de 50 famílias) que se alojaram no edifício munidos de armas brancas, ameaçando, inclusive, representantes desta entidade que para lá se dirigiram tão logo informados do ocorrido, além de profissionais da imprensa" (São Paulo, Estado, 2010SÃO PAULO (Estado). 28ª Vara Cível Foro Central. Processo nº: 583.00.2010. 174207-0. Fundação Ninho Jardim Condessa Marina R. Crespi. Ação de Reintegração de Posse, 2010.).

Frente à Justiça, a Fundação argumentou que o imóvel vazio estaria sendo alvo de "vândalos" que "aos poucos" extraíram "portas, janelas, esquadrias e, até mesmo, o portão de entrada". A contratação de seguranças não conseguira impedir a "ação dos criminosos", denunciada nos boletins de ocorrência. Quanto à "invasão" do imóvel, a Fundação afirmava que esta fora noticiada pela mídia; e no relato das ameaças, que estas teriam sido feitas por "dezenas de pessoas, dentre as quais muitas crianças que, munidas de armas brancas, ameaçam representantes" da Fundação (Idem, grifos nossos).

Um conjunto de imputações acerca da deterioração do edifício envolvia os vários atores. Embora tivesse três pavimentos, constituídos pelo térreo, o primeiro e o segundo andares, parte deste último era utilizado como um terraço, posteriormente coberto para dar lugar a salas sem comprometimento de sua qualidade, segundo Martins (São Paulo, cidade, 2010).

A destruição do teto da creche e a retirada das esquadrias do último andar não nos esclarecem acerca do tipo de ação nem de sua autoria. Por um lado, elas nos sugerem uma ação sistemática de demolição do edifício devido à sua extensão e ao modo de intervenção,1 1 Observamos a demolição de um edifício de três andares na rua da Mooca, que se iniciava de cima para baixo, com a retirada do teto e esquadrias, num padrão semelhante ao da creche. não sendo descartada a hipótese do simples desabamento do teto pelo seu estado avançado de deterioração.2 2 Hipótese aventada por um técnico do DPH a partir de observação de fotografia.

Por outro lado, a imprensa local, ao noticiar a ocupação da creche, afirmou que os ocupantes, cerca de 100 indivíduos ("quase metade crianças"), ou 56 famílias, estavam fazendo adaptações no imóvel, entre elas "recolocar as janelas que, aparentemente, foram arrancadas antes da ocupação" (Rodrigues, 2010RODRIGUES, G. Antes da pleiteada preservação histórica, imóvel na Mooca está na iminência de virar um cortiço. Folha da Vila Prudente, São Paulo, 13 a 19 de agosto de 2010. Edição 946 - Ano 19., grifos nossos). Esse tipo de ação "reconstrutiva" pelos sem-teto foi por nós testemunhada, ao verificarmos barracos construídos no pátio. Existem, portanto, indícios de que o edifício já estava sofrendo um processo de demolição, que foi interrompido com a iminência do pedido de tombamento.

Nota-se um processo de desvalorização material da edificação com sua respectiva revalorização fundiária, interrompido pela revalorização arquitetônica e histórica do tombamento, e retomado quando ocorreu a ocupação. Esta tornou-se oportuna, em primeiro lugar, porque sobre os catadores recaiu a responsabilização pela demolição frustrada e/ou desabamento, que se confirmaria pela sequência de furtos de materiais, acelerando a deterioração do edifício, e eximindo seus mantenedores da autoria da destruição frente ao órgão de preservação, muito embora a abertura de alvarás de demolição e de construção de nova edificação já tivessem sido formalizados anteriormente pela incorporadora junto à prefeitura, e tais providências fossem condição do fechamento do contrato de venda do imóvel.

Figura 1
Demolição ou desabamento?

Em segundo lugar, a posterior ocupação da população sem-teto permitiria a retomada e a continuidade, durante os três anos que se seguiram, do processo de deterioração física e valorização fundiária do imóvel, inviabilizando sua valorização histórica pelo tombamento. A fragilidade da segurança do edifício terminou por estimular sua deterioração e ocupação, como também permitiu atribuí-las aos catadores e sem-teto. É o que sugere a simultaneidade entre o início do processo de tombamento e a data do primeiro boletim de ocorrência registrado imediatamente após a primeira notificação do Conpresp. Além disso, a constatação de pessoas no interior do prédio e a troca de cadeado registradas no dia 7 de julho eram anúncios evidentes da ocupação,3 3 A vulnerabilidade à entrada de estranhos foi por nós testemunhada. No dia 29 de junho de 2010, por coincidência, na mesma data de abertura do processo de tombamento, entramos no edifício, pois seu portão encontrava-se aberto. Percebemos apenas a presença de dois rapazes que perambulavam pelo imóvel, lixo espalhado, bem como o teto, as janelas e as esquadrias do terceiro andar retiradas. que só ocorreria um mês depois, tendo sido portanto relativamente retardatária, considerando-se a ausência de vigilância e o fato de o entorno, próximo à "Baixa Mooca", ser conhecido como uma área de inúmeras ocupações.

Figura 2
A creche no dia do tombamento.

O tombamento como impedimento do negócio foi confirmado três anos depois pelo próprio curador da Fundação e proprietário do edifício, o empresário Silvio Crespi, ao admitir que "a possibilidade de tombamento acabou interferindo nos planos da família para o local - a intenção era construir um condomínio no local (sic)" (Rodrigues, 2013_____. Proprietário de imóvel invadido afirma que justiça determinou reintegração de posse. Folha da Vila Prudente, São Paulo, 21 de junho de 2013.).

De acordo com a própria Fundação, "o pior, contudo, estava por ocorrer" (São Paulo, Estado, 2010SÃO PAULO (Estado). 28ª Vara Cível Foro Central. Processo nº: 583.00.2010. 174207-0. Fundação Ninho Jardim Condessa Marina R. Crespi. Ação de Reintegração de Posse, 2010.): tratava-se da notificação de tombamento, que, segundo os proprietários, os surpreendeu. De fato, a creche não constava da lista sugerida pela população no Plano Diretor Regional (2004), mas foi enquadrada pelos órgãos de preservação como Zona Especial de Preservação Cultural (ZEPEC).

Segundo o Conpresp, a solicitação de medidas para a proteção do prédio foram infrutíferas, como o demonstrou a ocupação nas semanas "subsequentes" ao pedido de tombamento, entre 9 e 15 de agosto de 2010 (São Paulo, cidade, 2010SÃO PAULO (Cidade). SMC/CONPRESP. Processo nº: 2010-0 188-620 - 4. Demolição Casarão Marina Crespi - R. João Antônio de Oliveira esquina com Rua dos Trilhos, 2010.). Em 19 de agosto de 2010, a Fundação entrou com uma ação de reintegração de posse, alegando a "pressão" exercida pelo Conpresp e a ameaça de degradação do edifício pelos sem-teto (São Paulo, Estado, 2010SÃO PAULO (Estado). 28ª Vara Cível Foro Central. Processo nº: 583.00.2010. 174207-0. Fundação Ninho Jardim Condessa Marina R. Crespi. Ação de Reintegração de Posse, 2010.).

Logo no início da ocupação, o Conpresp indagou à municipalidade sobre o interesse na desapropriação do prédio. Um ano depois, a Subprefeitura da Mooca manifestou interesse em abrigar sua sede no edifício, "apesar de estar invadido por terceiros", ao que o DPH e Conpresp responderam favoravelmente, desde que respeitadas as normas de preservação. Essa proposta não foi adiante. Surgiu então um novo interessado, o Clube Atlético Juventus, que em junho de 2013 afirmou ao Conpresp que tinha

projetos de revitalização da área, e se caso se concretizar o referido pedido ora em exame pelo Conpresp, viria deitar por terra todos os sonhos da comunidade juventina em transformar a rua Javari em um ponto de atração para a sociedade paulistana e os visitantes que acorrerem a São Paulo, conhecida como a capital da gastronomia e do turismo de negócios (São Paulo, cidade, 2010SÃO PAULO (Cidade). SMC/CONPRESP. Processo nº: 2010-0 188-620 - 4. Demolição Casarão Marina Crespi - R. João Antônio de Oliveira esquina com Rua dos Trilhos, 2010.).

O patrimônio e o mercado, a perda e a destruição

Gonçalves (2002)GONÇALVES, J. R. S. A retórica da perda. Os discursos do patrimônio cultural no Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/ Iphan, 2002., em sua análise dos discursos das práticas e narrativas oficiais - integradoras - que historicamente instituíram o patrimônio no Brasil, critica as externalidades e dicotomias que opõem as noções de preservação às de mercado, de perda e de destruição constitutivas da chamada "retórica da perda".

Para o autor, as regras gerais e os princípios do mercado estão contidos no patrimônio cultural, mas com a diferença de que este último estaria submetido ao controle social e institucional que conservariam nele o caráter de bem "inalienável" (Idem, 2007_____. Os limites do patrimônio. In: LIMA, M., BELTRÃO, J. F., ECKERT, C. (orgs.). Antropologia e patrimônio cultural. Diálogos e desafios contemporâneos. Blumenau: Nova Letra, 2007.). De acordo com Gonçalves, a existência de um prédio tombado como "patrimônio cultural" tem como pressuposto a limitação de sua condição de mercadoria, ao não poder ser vendido ou sofrer mudanças. Todavia, essa condição de mercadoria faz-se presente não apenas na possibilidade de sua alienação, mas também no seu caráter de suporte de uma imagem a ser consumida, seja ela a história nacional, a cultura popular, ou a história de antigas áreas de uma cidade.

Uma segunda dicotomia, aquela que divide a obsessão preservacionista e a noção de destruição e de perda, tem como referente a mudança nos regimes de autenticidade, bem como de representação do tempo (Gonçalves: 2012, 2015_____. O mal-estar no patrimônio: identidade, tempo e destruição, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 28, nº 55, p. 211-228, janeiro-junho, 2015.), vinculados à dinâmica da modernidade. A imagem da perda "pressupõe uma situação original ou primordial de integridade e continuidade, enquanto a história é concebida como um processo contínuo de destruição daquela situação" (Gonçalves, 2002GONÇALVES, J. R. S. A retórica da perda. Os discursos do patrimônio cultural no Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/ Iphan, 2002.: 87). Neste sentido, na imagem da perda, as diferenças e a fragmentação seriam postas para fora das práticas de apropriação como algo externo a elas, e não como algo imanente (Idem). Por este ângulo, a destruição - e as demolições - não apenas as produzidas pela natureza, mas também aquelas sociais e históricas, não seriam pensadas apenas como ameaça, mas também como fonte de criação: dos valores de antiguidade dos monumentos (Riegl, 2014RIEGL, A. O culto moderno dos monumentos: a sua essência e a sua origem. São Paulo: Perspectiva, 2014.); no interior das práticas preservacionistas, através das concepções de restauro vinculadas aos novos modos de uso dos edifícios; por impelir uma iniciativa concentrada à preservação (Gonçalves, 2015_____. O mal-estar no patrimônio: identidade, tempo e destruição, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 28, nº 55, p. 211-228, janeiro-junho, 2015.), mas também por implicar um reaproveitamento por garis, catadores, demolidores, do que foi destruído em outros circuitos de seleção/descarte reforma/reconstrução da cidade (Goyena, 2014GOYENA, A. Espólio arquitetônico: partilha, circulação e retorno do patrimônio demolido, Ponto Urbe [Online] 15, 2014. Disponível em: http://pontourbe.revues.org/2034; DOI : 10.4000/pontourbe.2034. Acesso em: 22 nov. 2015.
http://pontourbe.revues.org/2034...
; Goyena apud Gonçalves, 2015GOYENA, A. Espólio arquitetônico: partilha, circulação e retorno do patrimônio demolido, Ponto Urbe [Online] 15, 2014. Disponível em: http://pontourbe.revues.org/2034; DOI : 10.4000/pontourbe.2034. Acesso em: 22 nov. 2015.
http://pontourbe.revues.org/2034...
).

No caso da creche, a atuação destes agentes reflete sua inserção num mercado de ferro-velho e recicláveis que resiste no bairro desde o início do século XX, quando era controlado por imigrantes espanhóis (Klein, apud Truzzi e Sacomano Neto, 2007TRUZZI, O. M. S. & SACOMANO NETO, M. Economia e empreendedorismo étnico: balanço histórico da experiência paulista, Revista de Administração de Empresas, vol. 47, n 2, abril-junho 2007, p. 37-48.). Essa atuação, como a da população sem-teto, é também útil ao mercado imobiliário formal, pois de forma indireta abrevia o rent gap, hiato entre investimento-desinvestimento fundiário (Smith, 1996SMITH, N. The new urban frontier: gentrification and the revanchist city. Routledge, 1996.), ao acelerar a depreciação do edifício, dificultando sua valorização cultural - pelo tombamento - e tornando-o mais rentável da perspectiva da valorização fundiária. Paradoxalmente, sua presença na creche pode desacelerar a demolição através do seu valor de utilidade como abrigo temporário, que exige a permanência da estrutura: os barracos significam destruição para os órgãos de preservação, mas o inverso para a ocupação.

Ao mesmo tempo, justamente a deterioração e/ou demolição do edifício vai colocar o tombamento não apenas como uma necessidade, mas como uma premência.

A creche, sua construção como patrimônio cultural e inserção no ordenamento urbano

O reconhecimento da importância da creche pelos moradores do bairro e sua relação de afeto levava-os a lamentar sua desativação sem que isso implicasse, no entanto, uma mobilização associativa contrária.

Em entrevista à imprensa local, uma representante da Fundação ressaltou "que a entidade sem fins lucrativos não recebeu auxílio da comunidade para evitar o encerramento das atividades - o que poderia evitar os atuais problemas" (Rodrigues, 2010RODRIGUES, G. Antes da pleiteada preservação histórica, imóvel na Mooca está na iminência de virar um cortiço. Folha da Vila Prudente, São Paulo, 13 a 19 de agosto de 2010. Edição 946 - Ano 19.). Enquanto objeto patrimonial, a creche sequer constou da lista de bens a serem preservados, elaborada pelos moradores para o Plano Regional Estratégico (2004)Planos Regionais Estratégicos do Município de São Paulo - Subprefeitura Mooca (PRE - MO). São Paulo: SEMPLA, 2004. (Série Documentos)., que indicou apenas o cotonifício e o estádio. Foi o início das demolições/depredação que gerou uma mobilização de militantes preservacionistas do bairro, já engajados na defesa do cotonifício e o do Moinho Minetti-Gamba.

A reprovação da imprensa à arquitetura moderna do edifício na época de sua inauguração e, mais de meio século depois, a sua omissão pelos moradores na lista de bens a serem preservados, sugerem que o valor de arte do prédio é relativo, por não atender aos padrões estéticos desses atores, o que o torna um monumento não volível (Riegl, 2014RIEGL, A. O culto moderno dos monumentos: a sua essência e a sua origem. São Paulo: Perspectiva, 2014.) - cuja origem não responde às necessidades memoriais ou históricas, mas funcionais.

Talvez isto ocorra porque, no caso dos moradores, os valores de utilidade e afetivos têm primazia, em detrimento do reconhecimento do valor artístico - estético - e histórico. Este último dependerá da mediação da erudição do especialista, em associação (ou não) com os militantes, de mediadores culturais entre os moradores e os órgãos de preservação, numa espécie de pedagogia política do patrimônio (Poulot, 2009POULOT, D. Uma história do patrimônio no Ocidente. São Paulo: Estação Liberdade, 2009.).

Nos argumentos que embasam o pedido de tombamento, Martins (2010)MARTINS, A.F. Creche Marina Crespi. Pedido de tombamento de edifício em demolição. Minha Cidade, São Paulo, ano 10, n. 119.05, Vitruvius, jun. 2010 <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/10.119/3473>.
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compara o Complexo do Cotonifício a seu congênere, a Cia Nacional da Juta e a Vila Maria Zélia, e diferencia o primeiro, caracterizado pela dispersão de suas edificações, construídas em períodos distintos, do segundo, que, concentrado, seguia "um projeto arquitetônico e pode-se até dizer, urbanístico" (Idem: 2).

O valor histórico da creche não seria apenas local, mas abrangeria a história paulistana e paulista, devido ao lugar da industrialização na formação da metrópole e na urbanização, sendo o edifício um "representante físico das novas funções criadas pela industrialização" (Idem: 4). Esta importância compreende a história do trabalho, expressa no empreendedorismo do imigrante italiano Rodolfo Crespi, bem como na "materialização das conquistas sociais do operariado brasileiro, juntamente com as leis trabalhistas" (Idem).

O autor salienta a excepcionalidade do edifício na cidade, projetado pelo arquiteto italiano Giovanni Battista Bianchi (1885-1942), "quer seja por sua arquitetura, (...) que o aproxima da composição de navios e embarcações, quer seja pela função, (...) próprio para creche" (Idem). Baseando-se em Salmoni e Debenedetti, reitera seu caráter moderno:

Apesar de ter sido terminado quase oito anos depois da inauguração da primeira casa de Warchavchik, a creche, com suas delgadas colunazinhas de base, as faixas horizontais de tijolos, delineadas por alvenaria, e as amplas janelas, pareceu tão radicalmente moderno, que alguns dos jornais insurgiram-se e o censuraram (apud Martins, 2010MARTINS, A.F. Creche Marina Crespi. Pedido de tombamento de edifício em demolição. Minha Cidade, São Paulo, ano 10, n. 119.05, Vitruvius, jun. 2010 <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/10.119/3473>.
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: 2, grifos nossos).

Segundo o autor, o edifício representaria a singularidade da arquitetura moderna e paulista, devido à sua organização volumétrica e à ordenação racional dos elementos construtivos, sequer encontradas na casa modernista de G. Warchvchik, conferindo à arquitetura de Bianchi o caráter de vanguarda (Martins, 2010MARTINS, A.F. Creche Marina Crespi. Pedido de tombamento de edifício em demolição. Minha Cidade, São Paulo, ano 10, n. 119.05, Vitruvius, jun. 2010 <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/10.119/3473>.
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).

Bianchi observaria as recomendações de Le Corbusier em Por uma Arquitetura, que ressaltava as qualidades dos desenhos dos transatlânticos: "janelas amplas, volume distinto, gradis limpos e esguios, ordenação dos elementos construtivos, etc." (Idem, 2010MARTINS, A.F. Creche Marina Crespi. Pedido de tombamento de edifício em demolição. Minha Cidade, São Paulo, ano 10, n. 119.05, Vitruvius, jun. 2010 <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/10.119/3473>.
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: 3). A arquiteta Telma de Barros Correia reconheceria no edifício "um exemplo expressivo de arquitetura de art déco de inspiração náutica (...) o prédio incorpora referências a passadiços e escotilhas, além de mastros e formas curvas que também remetem a navios" (apud Martins, 2010MARTINS, A.F. Creche Marina Crespi. Pedido de tombamento de edifício em demolição. Minha Cidade, São Paulo, ano 10, n. 119.05, Vitruvius, jun. 2010 <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/10.119/3473>.
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: 3).

Figura 3
A Creche na década de 30.

A importância da arquitetura italiana, representada por Bianchi, é reconhecida ao introduzir "novas linguagens e vertentes de pensamento como Gregori Warchavchik (1896-1972), Daniele Calabi (1906-1964) e Giancarlo Palanti (1906-1977)" (Idem).

Já os valores funcionais do edifício são ressaltados por abrigar a Associação Montessori do Brasil entre 1967 e 1999, e pelo pioneirismo do seu método. O Conpresp complementa esses atributos ressaltando que o edifício já portava uma história de quase meio século de seu reconhecimento como um bem cultural, tanto pela academia, nos trabalhos de A. Salmoni e E. Debenedetti (1981) e M. Rufinoni (2004, 2005), quanto pelos órgãos de preservação.

Essa história remete a um contexto mais amplo de desenvolvimento da categoria de patrimônio ambiental urbano, quando, nos anos 1960, ela se impôs, substituindo parcialmente a categoria de cidade histórica ou centro histórico, e ao mesmo tempo a categoria de monumento foi substituída pela de bem cultural, levando a um avanço na medida em que bens isolados ou justapostos passaram a ser tratados de maneira contextual, em sua integração ao universo urbano (Meneses, 2002MENESES, U. T. B. A paisagem como fato cultural. In: YAZIGI, Eduardo (org). Turismo e paisagem. São Paulo: Contexto, 2002.).

Esse processo começou a ganhar expressão no Brasil, em particular na cidade de São Paulo, a partir dos anos 1970, por meio da articulação entre o planejamento urbano e a preservação cultural, quando a Coordenadoria Geral do Planejamento (Cogep) da Prefeitura de São Paulo iniciou o cadastramento de edificações e locais da cidade a serem protegidos, sob a responsabilidade dos arquitetos Carlos Lemos e Benedito Lima Toledo, e com uma concepção de bem cultural, que incorporava uma visão antropológica (Rodrigues, 2000RODRIGUES, M. Imagens do passado: a instituição do patrimônio em São Paulo: 1969-1987. São Paulo: Editora UNESP / Imprensa Oficial do Estado/ Condephaat Fapesp, 2000.). O objetivo era o de orientar a nova legislação de zoneamento urbano, num contexto em que a cidade era recortada pelas obras do metrô. Assim, as áreas ou "manchas" onde se inseriam os bens culturais eram classificadas como Z8-200, nas quais eram definidas medidas específicas na legislação de uso e ocupação do solo (Idem). No caso da região da creche, o inventário referia-se à Zona Metro Leste. Um segundo momento referia-se ao Plano Diretor Estratégico, promulgado em 2002, quando se criaram as Zonas Especiais de Preservação Cultural (ZEPECs), e ao Plano Regional Estratégico, de 2004, que enquadrou a creche entre os edifícios a serem tombados.

O conflito acerca do patrimônio cultural representado pela creche não se referiu apenas ao tombamento em si, mas também à sua relação com o território, que vai além da noção de entorno do bem preservado, ou "área envoltória", e cujos antagonismos são, segundo Meneses (2006)_____. A cidade como bem cultural. Áreas envoltórias e outros dilemas, equívocos e alcance na preservação do patrimônio ambiental urbano. In: MORI, Vitor Hugo et al. Patrimônio: atualizando o debate. São Paulo: 9º. SR/Iphan, 2006., quase sempre produto do descolamento, na experiência brasileira, entre a preservação e a ordenação urbana, entre patrimônio e planejamento urbano.

Essa relação tornou-se bastante complexa à medida que se articulou aos processos de gentrificação urbana (Harvey, 2000HARVEY, D. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Edições Loyola, 2000.; Zukin, 2000ZUKIN, S. Paisagens urbanas pós-modernas: mapeando cultura e poder. Paisagens do século XXI: notas sobre a mudança social e o espaço urbano. In: ARANTES, A. O espaço da diferença. Campinas: Papirus, 2000.; Smith, 1996SMITH, N. The new urban frontier: gentrification and the revanchist city. Routledge, 1996., 2006; Bidou-Zachariasen, 2006BIDOU-ZACHARIASEN, C. De volta à cidade. Dos processos de gentrificação às políticas de "revitalização" dos centros urbanos. São Paulo: Annablume, 2006.), especialmente no país (Leite, 2004LEITE, R. P. Contra-usos da cidade. Lugares e espaço público na experiência urbana contemporânea. Campinas: Unicamp/ Aracaju: UFS, 2004.; Frugoli, 2005FRUGOLI, H. Sobre o alcance do conceito de gentrification para pensar sobre intervenções urbanísticas em áreas centrais de cidades: o caso de São Paulo. In: Primer Congreso Latinoamericano de Antropologia, Simposio Ciudad y ciudades, Rosario, julho de 2005.), processos em que a cultura é a medida da valorização econômica do espaço urbano, atraindo as classes médias e altas em seus novos estilos de vida ligados à habitação, consumo e lazer, e expulsando as classes populares residentes não apenas no entorno, mas também nos próprios bens a serem tombados.

A ocupação e a posição da creche no território do bairro

A ocupação da creche foi longa, durou três anos e seis meses. Em novembro de 2013, em nosso segundo contato, não conseguimos conversar com as lideranças nem entrevistar os indivíduos e as famílias. A recepção oscilava entre acolhida e hostilidade. A lei do silêncio imperava, justificada por alguns moradores pela demonização que sofriam no noticiário local e na grande imprensa. Solicitamos a mediação da ONG Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, responsável desde 2010 pela defesa das famílias no processo judicial de reintegração de posse. Pudemos saber então o motivo do silêncio: a liderança pertencia ao tráfico de drogas. Não se tratava da presença de alguns traficantes na ocupação - situação não incomum -, mas de o tráfico assumir-se como a liderança - essa sim, uma situação atípica.4 4 Uma regra básica da pesquisa de campo é a segurança dos entrevistados. Como a liderança não nos permitiu o contato com os ocupantes, nossa desistência demonstrou ser acertada, pois estes estavam sob o controle do tráfico. A UMMM - União do Movimento de Moradia da Mooca - não se responsabilizou pela ocupação,5 5 Entrevista de Edileusa Francisca da Silva, liderança da UMMM e da ULC (Unificação das Lutas de Cortiços), concedida à autora em 2 de julho de 2014. configurando-a como "espontânea", o que talvez explique a dominância do tráfico.

A ocupação sugere-nos um grau alto de rotatividade. Na primeira lista de procurações dos advogados, de outubro de 2010 (São Paulo, Estado, 2010SÃO PAULO (Estado). 28ª Vara Cível Foro Central. Processo nº: 583.00.2010. 174207-0. Fundação Ninho Jardim Condessa Marina R. Crespi. Ação de Reintegração de Posse, 2010.), havia 63 adultos, e na de julho de 2012, cerca de 113 indivíduos (entre adultos e crianças), mas destes apenas 18 figuravam também na primeira lista.

A situação de moradia antes da ocupação era heterogênea, envolvendo tanto a moradia de aluguel como outras ocupações, seja na Mooca - na "Mooca Baixa", parte do bairro após a linha do trem, contígua ao Centro, com uma população de renda mais baixa - seja em outros bairros centrais, como Pari, Bom Retiro, Bela Vista e Cambuci.

Na rua da Mooca 474, próximo à Avenida dos Estados, na chamada "Mooca Baixa", cerca de 40 famílias ocuparam um imóvel durante quase uma década, entre 2004 e 2012.6 6 Dados do Centro Gaspar Garcia. Já em outra ocupação, na Avenida Presidente Wilson, também no bairro, alguns indivíduos possuíam carta de crédito ou negociavam com a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), permanecendo na creche à espera das unidades habitacionais.7 7 Entrevista de Luiz Kohara, secretário-executivo, e Maria das Dores, assistente social do Centro Gaspar, concedida à autora em 24 de junho de 2014. O próprio contato da ocupação da creche com o Centro Gaspar Garcia havia sido feito por um grupo egresso daquela ocupação. Ironia involuntária com relação às recomendações de Le Corbusier, uma das ocupações denominava-se Titanic.8 8 Entrevistas de Edileusa Francisca da Silva e Maria das Dores, concedidas à autora.

Essa presença em muito se explica pela posição da creche no bairro. Sua entrada localiza-se na rua João Antônio de Oliveira, 59. Sua lateral direita situa-se na rua dos Trilhos, principal via de entrada para o bairro, e seus fundos, bem como a lateral esquerda, são contíguos ao estádio Conde Rodolfo Crespi, do Clube Atlético Juventus. No quarteirão encontram-se ruas importantes como a Javari (entrada principal do estádio), e a Visconde de Laguna, transversal à rua da Mooca, num perímetro de forte atividade comercial.

A rua João Antônio de Oliveira é também o endereço dos fundos do enorme condomínio residencial e comercial Luzes da Mooca - construído no lugar da Cia. União de Refinadores de Açúcar e Café, cuja chaminé foi tombada (2010) -, e na sua continuação, cujo nome muda para rua Almirante Brasil, na esquina com a rua dos Trilhos, localiza-se também uma torre comercial, a Escritórios Mooca. Ambos os condomínios, recentemente erigidos pela Cyrela Brazil Realty, configuram a rua da creche como um espaço de forte valorização imobiliária, reforçada pela proximidade da avenida Radial Leste e da estação de metrô Bresser. No entanto, a uma quadra de distância da estação, uma Tenda, serviço público municipal de atendimento à população de rua, engrossava seu número nos baixos do viaduto Bresser.

Ao mesmo tempo, a creche era quase equidistante de duas grandes universidades do bairro, a Anhembi-Morumbi e a São Judas, o que representava para o tráfico a proximidade de potenciais consumidores.

Por fim, a creche posiciona-se na zona limítrofe entre a "Mooca Baixa" e a Mooca e/ou "Alto da Mooca", divididas pela linha férrea, recebendo assim, a população sem-teto de outras ocupações da parte baixa, ao mesmo tempo em que está na fronteira de jurisdição entre os dois Consegs (Conselhos Comunitários de Segurança) - o da Mooca, Brás, Belenzinho, Pari, área à qual a creche está vinculada, e o da Mooca, que congrega o Parque da Mooca, área mais nobre - , cujas reuniões são realizadas no prédio da Imprensa Oficial do Estado, situado na rua da Mooca, esquina com mesma rua João Antônio de Oliveira. A ocupação foi um dos principais temas das reuniões destes conselhos, nas quais, em geral, a sua criminalização dava o tom.

O tráfico de drogas estabelecia o controle sobre os indivíduos e as famílias, impondo regras rígidas - coibindo conflitos entre eles, por exemplo, para não atrair a polícia -, e gerou a saída de famílias consideradas "mais estruturadas", temerosas do seu alcance.9 9 Idem. Este controle era exercido simultaneamente à atuação do Centro Gaspar Garcia. A mediação do Centro com a população envolveu dificuldades, pois, ao recusar a oferta de interlocução com o tráfico, a ONG teve que estabelecer um contato paralelo com os sem-teto egressos da Avenida, vigiados pelo tráfico. No entanto, ao final da ocupação, o Movimento Sem Teto do Centro (MSTC), sob a liderança de Hamilton de Souza, integrou-se à ocupação. Sua entrada trouxe novas famílias para a creche, já expulsas de uma ocupação anterior.10 10 Entrevista de Luiz Kohara e Maria das Dores concedida à autora.

Com a reintegração de posse, as famílias ocuparam um outro galpão, ao lado da ferrovia, vizinho à igreja evangélica Renascer Hall, num incessante ciclo de nomadismo entre ocupações-reintegrações de posse.

O pedido de reintegração de posse

O pedido de reintegração de posse feito pela Fundação à Justiça significou a abertura não apenas de uma segunda frente de embate, além daquela com os órgãos de preservação, mas de um longo processo jurídico, com liminares e recursos, confrontando o Centro Gaspar Garcia, que demandava o adiamento da reintegração e o devido atendimento habitacional às famílias.

A Fundação justificou seu pedido de reintegração com os mesmos argumentos em defesa da venda do edifício apresentados ao Conpresp, mas agora acrescidos da existência do processo de tombamento, por força do qual as responsabilidades previstas pelo Conselho com relação à deterioração do prédio sobre ela recairiam (São Paulo, Estado, 2010SÃO PAULO (Estado). 28ª Vara Cível Foro Central. Processo nº: 583.00.2010. 174207-0. Fundação Ninho Jardim Condessa Marina R. Crespi. Ação de Reintegração de Posse, 2010.).

Na sentença, o juiz despersonalizou e criminalizou a população de baixa renda, como "réus desconhecidos" que estariam "no exercício arbitrário de suas próprias razões (tipificado como crime, ressalte-se)" (Idem, grifos nossos). Um segundo aspecto salientado foi o da responsabilidade pelo imóvel em processo de tombamento, "de sorte que quaisquer danos causados poderão ser reclamados da autora, e não dos requeridos, situação que se mostra descabida" (Idem, grifos nossos). Por fim, ao referir-se à moradia como um direito fundamental, afirmava o juiz:

Há que se observar sim uma eficácia horizontal dos direitos fundamentais, mas a referida teoria não leva à interpretação extremada no sentido de que os particulares devam suprir as faltas do Estado-administrador, em verdadeiro caráter substitutivo, o que não é crível (Idem, grifos nossos).

O Centro Gaspar Garcia respondeu ao processo de reintegração de posse por meio da demonstração de problemas técnicos da sentença e da defesa dos direitos de cidadania, sendo a moradia um direito social e um direito humano assegurados na Constituição Federal (1988), no Estatuto da Cidade (2001), no Estatuto da Criança e Adolescente (1990) e no Estatuto do Idoso (2003) (São Paulo, Estado, 2010SÃO PAULO (Estado). 28ª Vara Cível Foro Central. Processo nº: 583.00.2010. 174207-0. Fundação Ninho Jardim Condessa Marina R. Crespi. Ação de Reintegração de Posse, 2010.).

Da perspectiva do processo, o Centro solicitou esclarecimentos ao juiz, sem entrar no mérito do recurso, referentes a falhas técnicas do processo, entre as quais o deferimento da medida liminar sem a escuta dos réus, ou seja, sem uma audiência de conciliação, bem como requisitou a intervenção do Ministério Público em razão do grande número de crianças e idosos, demandando uma "solução negociada" e justificando-a a partir de vários argumentos (Idem).

Por um lado, estabeleceu a diferença entre o direito social à moradia, bem como à "legitima pressão social" para concretizá-lo, garantidos pela Constituição, e a apropriação privada, ou "esbulho possessório", calcada num interesse particular (Idem). Para configurá-la, o Centro remeteu a uma decisão do Superior Tribunal de Justiça no contexto de reforma agrária que estabelecia uma distinção entre o esbulhador, que visa "enriquecer sem justa causa" e "aquele que busca efetivar seus direitos", como o "de possuir um local para morar com dignidade" (Idem).

Esse argumento desdobrava-se na distinção entre a função social e legal da propriedade e o direito à propriedade privada, e na afirmação de que o descumprimento da primeira seria caraterizado como único ato ilícito em jogo, agravado pela negligência do poder público. E aqui, o órgão de preservação municipal era diretamente responsabilizado (Idem). Em primeiro lugar, porque ignoraria a "Constituição Federal, o Estatuto da Cidade e o Plano Diretor Municipal", com o "aval" do Poder Judiciário, "que reluta em abandonar a concepção absolutista da propriedade" (Idem). A defesa do direito à moradia era assim reforçada, pois este era reconhecido como "direito humano fundamental", ratificado por declarações e tratados internacionais. Em segundo lugar, o Centro não apenas criticava a pressão exercida pelo Conpresp sobre a Fundação quanto à proteção do imóvel, no caso do tombamento, mas também questionava a hierarquização dos direitos ligados à preservação cultural e à habitação:

Com o conflito de normas em evidência, no caso em tela, há que sopesar se o direito à preservação cultural deve se sobrepor ao direito à moradia e à dignidade da pessoa humana. Evidentemente, o direito à preservação cultural é fundamental em nossa sociedade, no entanto, é cediço que o núcleo consubstanciador do mínimo existencial é intangível e não é passível de barganha. O direito à moradia é entendido como direito social e, antes disso, fundamental, dentre as normas de eficácia plena e aplicabilidade imediata, não é possível que o instituto do tombamento seja utilizado para acirrar conflitos sociais por provocação da própria prefeitura (Idem, grifos nossos).

O Estatuto da Cidade (2001) era evocado como norteador das ações do Estado na articulação das várias esferas da preservação histórica, a infraestrutura, a habitação e inclusão social, e aqui era reforçada a crítica à hierarquização de valores:

Também no presente caso, a Agravada, em conjunto com a Prefeitura, visa colocar o direito à propriedade e à conservação do patrimônio cultural como valores que superem a vida humana e o bem-estar das pessoas que lhe outorgaram a prerrogativa de as proteger, em flagrante inversão da ordem constitucional (Idem, grifos nossos).

Por fim, os Estatutos da Criança e do Adolescente (1990) e o Estatuto do Idoso (2003) eram citados, destacando a priorização dos direitos de quatro idosos, gestantes e cerca de cem crianças e adolescentes (em outubro de 2010) na ocupação. E aqui, (talvez) um dos argumentos centrais da defesa era desenvolvido:

As crianças matriculadas em escolas possuem o direito de terminar o ano letivo sem prejuízo, no caso do cumprimento da liminar de reintegração de posse isso seria impossível de ocorrer, gerando uma grave elsão [elisão] na vida dessas crianças e adolescentes (Idem, grifos nossos).

Das crianças e adolescentes da ocupação listados em outubro de 2010, cerca de 45% estariam em idade de cursar o ensino fundamental, e 48% (quase a metade delas) o ensino infantil, justamente a faixa etária atendida pela creche. Elas corresponderiam a um quarto da sua capacidade.11 11 Elaboramos esses dados a partir da lista produzida pelo Centro Gaspar Garcia.

Infantil (0 a 6 anos) 47 48% Berçário (0 a 1 ano) 7 15% Mini-Maternal (1 a 2 anos) 12 26% Maternal (2 a 4 anos) 15 32% Jardim (4 a 6 anos) 13 28% Fundamental (6 a 15 anos) 44 45% Médio (15 a 18 anos) 7 7%

Finalmente, numa reunião de conciliação, a Fundação, talvez sensibilizada pelo número de crianças e adolescentes no meio do semestre escolar, prorrogou a desocupação para o final do período letivo. Em 22 de janeiro de 2014 a população foi retirada da creche sem resistência.

Figura 4
A ocupação.

Segundo a advogada Juliana Hereda, responsável pela defesa dos sem-teto, a duração da ocupação poderia ser considerada um sucesso,12 12 Entrevista concedida pela advogada Juliana Hereda, do Centro Gaspar Garcia, à autora em 15 de setembro de 2014. não devido ao reconhecimento dos direitos à moradia, da infância e adolescência, mas à lentidão do Judiciário e às falhas do processo, a partir das quais o Centro ganhou tempo.

Considerações finais

Neste processo de apropriação da creche Marina R. Crespi, camadas de práticas e discursos dos vários atores sedimentam-se em temporalidades próprias e valores distintos, conferindo identidades específicas ao edifício. Dolff-Bonekämper (2008) chama a atenção para os conflitos sociais e históricos no contexto de origem dos patrimônios, que não desaparecem simplesmente quando seu legado físico é objeto de preservação.

M. Weber (1993)WEBER, M. Ciência e política, duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1993., contemporâneo de A. Riegl, evoca a imagem do "combate entre os deuses" para referir-se à intensificação do conflito entre os valores, característico da modernidade. Não se trata de reduzir estes conflitos a um relativismo radical, mas de compreender as inversões, hierarquizações, equalizações entre sentidos, valores e direitos, bem como as ambivalências e contradições internas do patrimônio cultural inserido na cidade, advindas de seu caráter de mercadoria (Gonçalves, 2007_____. Os limites do patrimônio. In: LIMA, M., BELTRÃO, J. F., ECKERT, C. (orgs.). Antropologia e patrimônio cultural. Diálogos e desafios contemporâneos. Blumenau: Nova Letra, 2007.), levando aos paradoxos (aparentes) de uma ocupação ser instrumentalizada pelo mercado imobiliário como defesa contra o tombamento, e de este ser utilizado para a garantia de reintegração de posse.

Um dos "riscos" presentes na creche, por sua posição no bairro, parecia ensejar um processo de segregação socioespacial, ao envolver a expulsão (ou tentativa) da população de baixa renda, seja pela realocação das crianças em outras instituições, seja pela desassistência por programas habitacionais. Essa população resistiu, apropriando-se da cidade num circuito (Magnani, 2006MAGNANI, J. G. C. Os diferentes planos da cidade como bem cultural. In: MORI, Vitor Hugo et al. Patrimônio: atualizando o debate. São Paulo: 9º. SR/Iphan, 2006.) definido para além das relações de co-presença entre atores e espaço, configurando uma presença precarizada de trabalho e de moradia no próprio bairro e no "centro expandido".

O valor funcional original da creche, o simples uso educacional, embora reconhecido pelos órgãos de preservação, talvez dê lugar a mais uma exigência por um centro cultural ("gastronômico", "turístico") ou museal, mostrando não apenas a cultura como um negócio que se articula a demandas identitárias, mas a exclusão, do universo da cultura, das dimensões do trabalho, do cotidiano (Meneses, 2006_____. A cidade como bem cultural. Áreas envoltórias e outros dilemas, equívocos e alcance na preservação do patrimônio ambiental urbano. In: MORI, Vitor Hugo et al. Patrimônio: atualizando o debate. São Paulo: 9º. SR/Iphan, 2006.) e, ironicamente, da educação.

Notas

  • 1
    Observamos a demolição de um edifício de três andares na rua da Mooca, que se iniciava de cima para baixo, com a retirada do teto e esquadrias, num padrão semelhante ao da creche.
  • 2
    Hipótese aventada por um técnico do DPH a partir de observação de fotografia.
  • 3
    A vulnerabilidade à entrada de estranhos foi por nós testemunhada. No dia 29 de junho de 2010, por coincidência, na mesma data de abertura do processo de tombamento, entramos no edifício, pois seu portão encontrava-se aberto. Percebemos apenas a presença de dois rapazes que perambulavam pelo imóvel, lixo espalhado, bem como o teto, as janelas e as esquadrias do terceiro andar retiradas.
  • 4
    Uma regra básica da pesquisa de campo é a segurança dos entrevistados. Como a liderança não nos permitiu o contato com os ocupantes, nossa desistência demonstrou ser acertada, pois estes estavam sob o controle do tráfico.
  • 5
    Entrevista de Edileusa Francisca da Silva, liderança da UMMM e da ULC (Unificação das Lutas de Cortiços), concedida à autora em 2 de julho de 2014.
  • 6
    Dados do Centro Gaspar Garcia.
  • 7
    Entrevista de Luiz Kohara, secretário-executivo, e Maria das Dores, assistente social do Centro Gaspar, concedida à autora em 24 de junho de 2014.
  • 8
    Entrevistas de Edileusa Francisca da Silva e Maria das Dores, concedidas à autora.
  • 9
    Idem.
  • 10
    Entrevista de Luiz Kohara e Maria das Dores concedida à autora.
  • 11
    Elaboramos esses dados a partir da lista produzida pelo Centro Gaspar Garcia.
  • 12
    Entrevista concedida pela advogada Juliana Hereda, do Centro Gaspar Garcia, à autora em 15 de setembro de 2014.
  • Este trabalho foi financiado pelo Processo nº 2013/18084-6, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
  • E R R A T A

    No artigo “Preservar, demolir, construir ou ocupar a creche Ninho Jardim Condessa Marina R. Crespi: de todos os riscos, o risco”, DOI: 10.1590/S0103-21862016000100007, publicado no periódico Estud. hist. (Rio J.) v. 29, n. 57, p. 107-128, Apr. 2016 .
    Página 125
    Onde se lia:
    Segundo a advogada Juliana Hereda, responsável pela defesa dos sem-teto, a duração da ocupação poderia ser considerada um sucesso,12 não devido ao reconhecimento dos direitos à moradia, da infância e adolescência, mas à lentidão do Judiciário e às falhas do processo, a partir das quais o Centro ganhou tempo.
    Leia-se:
    Segundo a advogada Juliana Avanci, responsável pela defesa dos sem-teto, a duração da ocupação poderia ser considerada um sucesso,12 não devido ao reconhecimento dos direitos à moradia, da infância e adolescência, mas à lentidão do Judiciário e às falhas do processo, a partir das quais o Centro ganhou tempo.
    Página 126
    Onde se lia:
    12
    Entrevista concedida pela advogada Juliana Hereda, do Centro Gaspar Garcia, à autora em 15 de setembro de 2014.
    Leia-se:
    12 Entrevista concedida pela advogada Juliana Avanci, do Centro Gaspar Garcia, à autora em 15 de setembro de 2014.

Referências bibliográficas

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    Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      Jan-Apr 2016

    Histórico

    • Recebido
      31 Jan 2016
    • Aceito
      01 Abr 2016
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