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O PROCEDIMENTO DE MANUTENÇÃO DE LIBERDADE NO BRASIL OITOCENTISTA

The procedure of maintenance of freedom in nineteenth century Brazil

Resumo

No Brasil oitocentista, o significado social do "viver sobre si", ao chegar aos tribunais, era traduzido em termos jurídicos. Assim, conflitos sociais adquiriam uma linguagem jurídica delimitada pela teoria possessória. Porém, apesar do "viver sobre si" ter sido invocado desde pelo menos o século XVIII, a análise de 270 processos evidencia que as ações de manutenção de liberdade surgiram, como procedimento judicial específico, a partir de 1840. Tais procedimentos tiveram seus contornos desenhados na prática judicial, e sua construção vinculou-se a um contexto mais geral de "modernização" institucional e jurídica.

Palavras-chave:
escravidão; processo judicial; posse; manutenção de liberdade

Abstract

In nineteenth century Brazil, the social meaning of to "live on one's own", once it reached the courts of justice, was translated into legal terms. The social conflicts thus acquired a legal language based on juridical theories of possession. Despite the fact that "living on one's own" had been invoked in courts since at least the 18th century, the analysis of 270 lawsuits shows that the "maintenance of freedom" lawsuits emerged as a specific judicial procedure in the 1840s. These procedures were shaped by judicial practice and their construction was linked to a broader context of institutional and legal "modernization".

Keywords:
slavery; judicial procedure; possession; maintenance of freedom

Résumé

Au Brésil du XIXe siècle, le sens social de "vivre comme quelqu'un libre" était traduit dans les tribunaux en termes juridiques. Ainsi, les conflits sociaux acquéraient un langage juridique délimité par la théorie de la possession. Cependant, quoique l'argument du "vivre comme quelqu'un libre" ait été invoqué au moins depuis le XVIIIe siècle, l'analyse de 270 cas montre que les actions de "maintenance de liberté" ont émergé comme une procédure judiciaire spécifique à partir de 1840. Ces procédures ont eu leurs contours dessinés par la pratique judiciaire, e leur construction est liée à un contexte plus général de "modernisation" institutionnelle et juridique.

Mots-clés:
esclavage; procédure judiciaire; possession; maintenance de liberté

A tradução jurídica de um significado social

Já há algumas décadas, as ações de definição de estatuto jurídico1 1 Em razão da diversidade dos procedimentos usados para discutir o estatuto jurídico de libertandos, optamos, neste trabalho, por nos referir aos processos analisados como "ações de definição de estatuto jurídico" e não como "ações de liberdade". Essa nomenclatura também evita a confusão entre a acepção geral do termo "ações de liberdade" e as ações de liberdade propriamente ditas. têm se constituído como fontes centrais em pesquisas sobre a escravidão brasileira. Ocorre que processos judiciais seguem procedimentos formais que, se bem compreendidos, podem esclarecer como embates sociais eram traduzidos para o âmbito estatal. A forma dos procedimentos judiciais tem um impacto relevante na maneira como as partes estruturam seus argumentos e, portanto, a compreensão dessas formalidades pode jogar luz sobre as implicações sociais de debates que, à primeira vista, podem parecer meras tecnicalidades jurídicas.

Para o contexto brasileiro oitocentista, Chalhoub (1990: 234-235)CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. ressaltou o caráter que a escravidão adquiriu na Corte: com o objetivo de extrair o máximo de rendimentos da mão de obra escrava no meio urbano, muitos senhores permitiam que seus escravos vivessem em quartos de cortiços ou em casas alugadas. No entanto, essa prática implicava que os escravos, muitas vezes, agissem como se fossem pessoas livres. "A escrava e seu curador aparentemente pensavam que podiam vencer a causa se provassem que Júlia vivia 'sobre si', como se dizia na época - isto é, se a negra vivia num quartinho de cortiço e se sustentava com o próprio trabalho, ela estava isenta de 'sujeição dominical', presumindo-se, então, que se tratava de pessoa livre." (Chalhoub, 1990CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.: 235).

Após analisar diversos casos em que, como Júlia, os libertandos alegavam que "viviam sobre si" e, por vezes, invocavam a posse da liberdade, Chalhoub (1990: 238)CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. conclui que, "em torno da ideia do 'viver sobre si' havia um conteúdo ideológico aparentemente comum a senhores, escravos e magistrados". Nesse sentido, o "viver sobre si" tinha um significado social específico. Porém, além de um significado social, o "viver sobre si" tinha um significado jurídico, traduzido na noção de posse da liberdade.

A posse da liberdade era um argumento mobilizado com relativa frequência em processos de definição de estatuto jurídico. Em 1863, por exemplo, foi ajuizada, perante o juízo de Lorena, uma ação de manutenção de liberdade em favor de Mariana e Antonia. O curador das libertandas alegava que elas eram, respectivamente, filha e neta de Caetano e Maria Caetana, que haviam sido escravos de José Lucio Ferreira, mas que a família "vivia sobre si" há muitos anos. Apesar disso, pouco antes da propositura da ação, Mariana e Antonia haviam sido sequestradas da casa de Caetano e Maria Caetana pelo vigário da freguesia do Embaré, sob a alegação de que seriam escravas do monsenhor Dom Pedro Celestino de Alcântara Pacheco, herdeiro da falecida ex-senhora de Caetano e Maria Caetana.2 2 AEL. Apelação cível sobre liberdade de escravos, 1863, processo n. 103, p. 3-4v.

O processo teve então início, e os argumentos das partes giraram em torno de um elemento comum: a discussão a respeito da posse da liberdade de Mariana e Antonia. O depoimento das testemunhas foi direcionado nesse sentido. Todos os que depuseram a favor das libertandas ressaltaram que, primeiro, a família vivia como livre, sendo que Mariana e Antonia haviam sido batizadas como tais; e, segundo, eles moravam, havia muitos anos, nas terras de Francisco José da Rosa. Uma testemunha afirmou que "o justificante [Caetano] antes da morte de sua senhora já estava no gozo de sua liberdade, que vivia sim em companhia dela, mas trabalhando para si, tanto que tinham animais seus".3 3 Idem, p. 23-23v. Ademais, ao longo dos depoimentos, era sempre ressaltado que esses fatos eram públicos, de todos conhecidos, e que ocorriam "sem oposição de pessoa alguma".

Após duas decisões em favor da manutenção da liberdade de Mariana e Antonia, o réu apelou para o Tribunal da Relação do Rio de Janeiro (TRRJ).4 4 Idem, p. 28-28v, 33-34, 75. Lá, o curador das libertandas reiterou: "Primeiramente a base do direito de Mariana e sua filha não é a carta de liberdade de seus pais; o direito das embargadas firma-se 1º em que na época do nascimento de Mariana seus pais gozavam de liberdade, viviam como livres e de fato essa liberdade lhes foi confirmada por carta expressa de doação posteriormente."5 5 Idem, p. 114v.

Ao final do procedimento, Mariana e Antonia conseguiram convencer os juízes de que o fato de seus pais e, posteriormente, elas próprias, viverem como libertas era constitutivo de seu direito à liberdade.

A invocação da posse da liberdade em processos judiciais não foi uma exclusividade da ação de manutenção ajuizada em favor de Mariana e Antonia. Lidos em conjunto, os trabalhos de Campos (2015)CAMPOS, Adriana. Prescrição da escravidão e a "liberdade oprimida" no Brasil do oitocentos. História (São Paulo), vol. 34, n. 2, p. 206-220, 2015., Chalhoub (1990)CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 1990., Dias Paes (2014)DIAS PAES, Mariana. Sujeitos da história, sujeitos de direitos: personalidade jurídica no Brasil escravista (1860-1888). Dissertação (Mestrado em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2014., Grinberg (1994GRINBERG, Keila. Liberata, a lei da ambiguidade. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.; 2002_____. O fiador dos brasileiros. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.; 2013)_____. Re-enslavement, Rights and Justice in Nineteenth Century Brazil. Translating the Americas, vol. 1, p. 141-159, 2013., Mattos (1998)MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998., Pinheiro (2013)PINHEIRO, Fernanda. Em defesa da liberdade: libertos e livres de cor nos tribunais do Antigo Regime português (Mariana e Lisboa, 1720-1819). Tese (Doutorado em História) - Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2013., Silva Jr. (2015)SILVA JR, Waldomiro. Entre a escrita e a prática: direito e escravidão no Brasil e em Cuba, c. 1760-1871. Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2015. e Soares (2009)SOARES, Márcio. O Fantasma da reescravização: alforria e revogação da liberdade nos Campos dos Goitacases, 1750-1830. In: XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 2009, Fortaleza. Anais do XXV Simpósio Nacional de História. Fortaleza: Associação Nacional de História, 2009. mostram que, desde pelo menos o século XVIII, pessoas que sofriam ameaças de escravização recorriam ao judiciário para evitar o cativeiro. Nesses processos, eram recorrentes as argumentações baseadas na posse da liberdade.

Por exemplo, na ação ajuizada por Maria das Mercês contra José Rufino dos Santos Menezes, em 1861, a posse serviu como prova de um direito de liberdade adquirido a outro título: testamento. O curador de Maria das Mercês argumentou que ela tinha sido libertada por sua finada senhora. No entanto, ela havia sido inventariada, e os herdeiros a venderam para o réu. Essa venda teria sido ilegal, pois Maria já estava na posse de sua liberdade desde a morte de sua senhora e era reconhecida como liberta pelos herdeiros da finada. Ou seja, o fundamento jurídico da liberdade era a alforria testamentária. No entanto, a posse da liberdade era um efeito desse fundamento jurídico que, em certo sentido, servia para reforçar, judicialmente, o estatuto jurídico alegado por Maria das Mercês.6 6 AEL. Apelação cível sobre liberdade de escravos, 1861, processo n. 91, p. 20-21. "Reduzida a Autora por este modo ao cativeiro foi vendida ao Réu, que indevidamente a trata como escrava, quando aliás tinha ela a prova de sua liberdade na posse, e no fato, cujo fundamento é o direito, que lhe deu a disposição da última vontade daquela falecida, direito, que adquiriu logo depois da sua morte."7 7 Idem, p. 57.

Situação análoga é dada pela Provisão de 12 de abril de 1822, que decidiu pela liberdade de Jenoveva e seu filho. O argumento de Jenoveva se fundava em carta de liberdade passada por seus antigos senhores, mas foi fundamental para o convencimento da Mesa do Desembargo do Paço o fato de que ela tinha vivido como livre por mais de 12 anos (Araújo, 1844ARAÚJO, José Nabuco. Legislação brasileira. Rio de Janeiro: Tipografia Imperial e Constitucional de J. Villeneuve e Companhia, 1844. Tomo 3.: 270).

A posse poderia também ser alegada como a própria origem do direito de liberdade. Foi o que ocorreu no caso de Mariana e Antonia. E, também, em diversas outras ações judiciais ao longo do século XIX. Nesse sentido, era possível que uma pessoa que vivia como livre e era considerada como tal fosse juridicamente reconhecida como livre. Tal reconhecimento judicial era possível em razão da aplicação do instituto jurídico da posse a esses casos (Dias Paes, 2014DIAS PAES, Mariana. Sujeitos da história, sujeitos de direitos: personalidade jurídica no Brasil escravista (1860-1888). Dissertação (Mestrado em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2014.: 140-169).

Da mesma forma, o exercício continuado de atos possessórios sobre determinada pessoa poderia gerar o reconhecimento judicial de um direito de propriedade. Teoricamente, o direito brasileiro não permitia que uma pessoa livre se tornasse escrava pelo exercício de atos possessórios sobre ela (Malheiro, 1866MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão. A escravidão no Brasil. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1866. Tomo 1.: 90).8 8 Ver, também, o art. 179 do Código Criminal de 1830, que tipificava a conduta de reduzir à escravidão pessoa livre que se achasse em posse de sua liberdade. A historiografia, porém, tem demonstrado que, na prática, era possível escravizar alguém por meio de atos possessórios e, posteriormente, ter o direito de propriedade sobre essa pessoa sancionado pelo Estado (Allain, 2012ALLAIN, Jean (ed.). The Legal Understanding of Slavery. Oxford: Oxford University Press, 2012.; Chalhoub, 2012_____. A força da escravidão. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.; Dias Paes, 2014DIAS PAES, Mariana. Sujeitos da história, sujeitos de direitos: personalidade jurídica no Brasil escravista (1860-1888). Dissertação (Mestrado em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2014.; Grinberg, 2013_____. Re-enslavement, Rights and Justice in Nineteenth Century Brazil. Translating the Americas, vol. 1, p. 141-159, 2013.; Mamigonian, 2011_____. O Estado Nacional e a instabilidade da propriedade escrava. Almanack, n. 2, p. 20-37, 2011.; Pinheiro, 2013PINHEIRO, Fernanda. Em defesa da liberdade: libertos e livres de cor nos tribunais do Antigo Regime português (Mariana e Lisboa, 1720-1819). Tese (Doutorado em História) - Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2013.; Scott, 2011SCOTT, Rebecca. Paper Thin: Freedom and Re-enslavement in the Diaspora of the Haitian Revolution. Law and History Review, vol. 29, n. 4, p. 1061-1087, 2011.).

Conforme os livros jurídicos que circulavam no Brasil oitocentista,9 9 Ver Dias Paes (2014: 26) e Grinberg (2002: 244). a teoria possessória tinha os seguintes contornos básicos: "coisa" era tudo aquilo que pertencia ao patrimônio de determinada pessoa. As coisas podiam ser corpóreas ou incorpóreas. Assim, no século XIX, o direito à liberdade era considerado coisa incorpórea e, portanto, estava sujeito ao domínio - ou, mais modernamente, ao direito de propriedade. Posse e domínio não se confundiam: era possível existir posse sem domínio e domínio sem posse. A posse era a apreensão de uma coisa com a intenção de a ter como sua. Uma das maneiras de se adquirir o domínio era a prescrição, ou seja, a posse sobre a coisa durante determinado tempo prescrito em lei. Para a aquisição de uma coisa pela posse, era imprescindível que o ânimo de a possuir fosse manifestado externamente, por meio do exercício de atos possessórios. Os requisitos para que ocorresse a aquisição do domínio por prescrição eram que a posse fosse de boa-fé, contínua, sem contestação (mansa e pacífica), ininterrupta, pública, notória e inequívoca.10 10 Ver Borges (1856: 136, 310-322); Carneiro (1851: 2-3, 37-40); Carvalho (1850: 146-147); Freire (1815: 39, 52-56, 69-75); Loureiro (1851: 117-141; 1857: 164-194; 1862: 198-317); Pinto (1850: 112-128); Ribas (1865: 167-168); Rocha (1848: 49, 220-221, 341-347); Teixeira (1845: 2-3, 38-42, 109-144); Telles (1835: 91-117, 211-219).

Como o direito de liberdade também era uma coisa, para que seu domínio fosse adquirido por prescrição, era necessária sua posse, nos mesmos termos em que se exigia a posse para as coisas corpóreas (Dias Paes, 2014DIAS PAES, Mariana. Sujeitos da história, sujeitos de direitos: personalidade jurídica no Brasil escravista (1860-1888). Dissertação (Mestrado em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2014.: 140-169).

Os contornos dados pela teoria possessória a casos em que a posse da liberdade era alegada ficam bastante claros na ação de escravidão ajuizada por Julião Batista Pereira de Almeida contra Virgílio Cabral. Em sua defesa, Virgílio argumentou que: "além de posse pública e não interrompida, tem mais o Réu em seu favor as outras condições de direito para se valer do benefício da prescrição; tendo boa fé e justa causa para se julgar livre, como se julgava e julga, por quanto de um lado apoiava-se no testemunho de pessoas que assistiram ao ato de seu batismo, e do outro lado, no boato e voz geral de que era ele Réu livre" (Caroatá, 1867CAROATÁ, José Próspero Jeová da Silva. Apanhamento de decisões sobre questões de liberdade. Bahia: Tipografia de Camillo de Lellis Masson, 1867.: 103-104).

Em 1859, o juiz, Bernardo Carneiro, proferiu sentença favorável a Virgílio, estruturando sua argumentação também nos parâmetros da teoria possessória:

Provada, portanto, como se acha dos depoimentos de fl. 124 a fl. 135, a posse incontestada do Réu sobre a sua liberdade por mais de 10 anos, dispensável se torna no presente caso para a prescrição do direito do Autor a prova da boa-fé, e justo título da parte do Réu porque na questão excepcional de liberdade boa-fé e justo título sempre se presume; visto que a consciência de um direito essencial ao homem não pode jamais pressupor má-fé no ato de assumir ou gozar, ainda mesmo contra a vontade daquele que julga dever-se opor à sua legítima efetividade; tanto mais que o Réu, tendo sempre vivido como livre durante o tempo da prescrição sem oposição de pessoa alguma, estava por sem dúvida na firme crença de que não era escravo; e quanto ao justo título este se confunde na presente questão com o próprio direito de liberdade que é natural e congênito a todo o homem; tornando-se por isso dispensável qualquer prova de sua existência (Caroatá, 1867CAROATÁ, José Próspero Jeová da Silva. Apanhamento de decisões sobre questões de liberdade. Bahia: Tipografia de Camillo de Lellis Masson, 1867.: 106).

Inconformado, o autor apelou, contestando a presunção de boa-fé e justo título - requisitos que, de acordo com a teoria possessória, eram essenciais para a aquisição do domínio da liberdade por posse: "Ensinam os jurisconsultos e preceituam as leis que não há prescrição sem posse animo domini, tomada de boa-fé e por um justo título. O justo título, ou justa causa, coisa muito diferente do que se escreveu nestes autos, é o fato que motiva aos olhos da lei a tomada da posse, motivo legal de adquirir." (Caroatá, 1867CAROATÁ, José Próspero Jeová da Silva. Apanhamento de decisões sobre questões de liberdade. Bahia: Tipografia de Camillo de Lellis Masson, 1867.: 113-114).

Assim, a teoria possessória desempenhava um papel fundamental em ações de definição de estatuto jurídico. Ao chegar ao judiciário, os conflitos sociais precisavam ser traduzidos para a linguagem burocrática-estatal, ou seja, precisavam ser expressos no código do direito. Nos casos do "viver sobre si", essa tradução dos conflitos sociais se dava por meio da teoria possessória. Nessa tradução, a associação entre o significado social do "viver como livre" e a teoria possessória gerava consequências processuais: as ações de manutenção de liberdade.

As ações de manutenção de liberdade como procedimento específico

A posse era um instituto jurídico que poderia ser defendido por meio de procedimentos judiciais específicos, os chamados interditos possessórios. As ações de manutenção eram, assim, um tipo de ação possessória. As ações de manutenção poderiam ser ajuizadas para a proteção de diversos tipos de posse como, por exemplo, a posse sobre terras. A civilística portuguesa, que era de ampla circulação no meio jurídico brasileiro do século XIX, elencava as ações de manutenção entre os remédios possessórios, mas não havia nenhuma menção a uma ação de manutenção específica para a proteção da posse da liberdade.

Ação de manutenção ou interdicto uti possidetis

§ 190 Compete ao possuidor de qualquer coisa, ainda que móvel, ou incorporal, contra aquele, que o perturba na posse: pede que seja condenado a desistir da turbação, e lhe seja cominada pena, no caso de lhe fazer nova moléstia, e nas perdas e danos, que se liquidarem (Telles, 1869_____. Doutrina das ações. Coimbra: Casa de J. Augusto Orcel, 1869.: 90).

Apesar de ter expressamente elencado, como tipos processuais, as ações de liberdade e as ações de escravidão, Telles (1869: 13-14)_____. Doutrina das ações. Coimbra: Casa de J. Augusto Orcel, 1869. não mencionou, ao tratar das ações de manutenção, o tipo específico das ações de manutenção de liberdade. Tratou apenas das ações de manutenção em geral. Já para Sousa (1867: 62)SOUSA, Manuel de Almeida e. Tratado enciclopédico compendiário, prático e sistemático dos interditos e remédios possessórios gerais e especiais. Lisboa: Imprensa Nacional, 1867., "o uso moderno admitiu o geral interdito da manutenção pela posse das coisas corporais, e pela quase-posse das incorporais servidões rústicas e urbanas, etc.".

Esses autores portugueses, portanto, não mencionaram especificamente as ações de manutenção de liberdade. Mesmo depois da abolição da escravatura no território da metrópole portuguesa, os autores portugueses seguiam abordando a escravidão em seus livros, inclusive, fazendo alusão à questão da posse da liberdade. Porém, não há qualquer menção expressa às ações de manutenção de liberdade enquanto procedimentos judiciais específicos.

Já no Brasil, Malheiro (1866: 176)MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão. A escravidão no Brasil. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1866. Tomo 1., Freitas (1876: 316FREITAS, Augusto Teixeira de. Consolidação das leis civis. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1876.; 1880: 23-24)_____. Doutrina das ações. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1880. e Ribas (1915: 139)_____. Consolidação das leis do processo civil. Rio de Janeiro: Jacinto Ribeiro dos Santos, 1915. Tomo 2. chegaram a tratar das ações de manutenção de liberdade. Eles abordaram aspectos procedimentais, que serão detalhados adiante.

O tipo processual das ações de manutenção de liberdade, porém, era bastante corriqueiro no Brasil. De acordo com levantamento realizado por Grinberg (2013)_____. Re-enslavement, Rights and Justice in Nineteenth Century Brazil. Translating the Americas, vol. 1, p. 141-159, 2013., o universo de ações de definição de estatuto jurídico que tramitaram perante o TRRJ entre 1808 e 1888, arquivadas no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (ANRJ), é de 402 ações.

Desse total, selecionou-se para este trabalho uma amostra de 270 processos. A primeira parte dessa amostra é composta pelos processos do ANRJ que foram microfilmados e podem ser consultados no Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), em Campinas. O AEL dispõe de um conjunto de 213 ações cíveis de definição de estatuto jurídico, ajuizadas entre 1812 e 1873, além de uma ação ajuizada em 1878. No total, são 214 ações. Desse total, foram consultadas 210 ações para constituir a primeira parte da amostra analisada neste trabalho.11 11 As ações catalogadas sob os números 131, 132, 133 e 134 não puderam ser consultadas na oportunidade em que a pesquisa foi realizada.

Para que a amostra abrangesse também ações ajuizadas após 1873, recorreu-se diretamente ao acervo do ANRJ. Na composição dessa segunda parte da amostra, foram selecionadas aleatoriamente 60 ações de definição de estatuto jurídico ajuizadas em anos ímpares, entre 1873 e 1887.

Na análise do total de 270 ações, percebe-se que os tipos processuais são bastante variados. Mais de 90 tipos de denominações foram dados a esses procedimentos pelos respectivos escrivães no momento da autuação. Em seguida, esses tipos foram aqui agrupados em categorias, levando em consideração a similitude entre eles, como se vê na Tabela 1.

Tabela 1
Categorias processuais em ações de definição de estatuto jurídico (Tribunal da Relação do Rio de Janeiro, 1812-1888)* * As categorias foram elaboradas a partir do nome dado ao procedimento, pelo escrivão, no momento da autuação do processo. É o nome que se encontra na capa que o processo recebeu na primeira instância.

O aparecimento da palavra "manutenção" no nome do tipo processual é um indicativo importante da especificidade do procedimento judicial. As ações de manutenção de liberdade não se confundiam com as ações de liberdade e tampouco com as ações de manutenção de posse em geral, apesar de terem com elas procedimentos em comum. As ações de manutenção de liberdade eram um tipo de procedimento específico, que possuía rito próprio. Como em todo rito processual, as formas que delimitavam a tramitação dessas ações influenciavam a estratégia que seria adotada pelas partes na defesa de seus interesses. É por isso que comprovar a posse era tão importante em ações de manutenção de liberdade. Por serem um tipo de ação possessória, se a parte não comprovasse o requisito essencial da posse, suas chances de sucesso eram drasticamente diminuídas. Os ritos judiciais não são meras formalidades, mas conformam a luta material empreendida entre as partes.

Em razão da ausência de legislação específica, muitos dos procedimentos judiciais, no Brasil do século XIX, eram forjados por convenções, percepções compartilhadas e expectativas. O fato de o escrivão, no momento da autuação, atribuir a um procedimento o nome de "manutenção" é indicativo de que havia, ao menos, uma percepção compartilhada acerca de um rito processual específico: as ações de manutenção de liberdade. O nome é um dos componentes desse rito e, como tal, ele distingue os procedimentos e gera expectativas nos sujeitos envolvidos. Ao nomear um processo, o escrivão reconhece um hábito, confere-lhe autoridade e o diferencia de outros ritos, indicando aos sujeitos que esse procedimento será processado judicialmente por via distinta da ordinária.12 12 Sobre o papel dos escrivães e notários na "escritura da escravidão", ver Martínez e Zeuske (2008).

Partindo desses pressupostos, a análise da amostra aponta que as ações de manutenção de liberdade se tornaram regulares a partir da década de 1840 e consolidaram sua presença na prática judiciária brasileira por volta da década de 1860. Há, assim, dois momentos centrais na história das ações de manutenção de liberdade, entendidas como um procedimento judicial específico: a regularização, iniciada nos anos 1840, e um ápice seguido por paulatino declínio até o fim da escravidão. É o que se pode observar no Gráfico 1.

Gráfico 1
Ações de definição de estatuto jurídico (Tribunal da Relação do Rio de Janeiro, 1812-1888)

Grinberg (2013: 155)_____. Re-enslavement, Rights and Justice in Nineteenth Century Brazil. Translating the Americas, vol. 1, p. 141-159, 2013. não adotou, em sua classificação das ações, o mesmo critério aqui apresentado. Para ela, "ações de manutenção de liberdade" seriam aquelas ajuizadas por libertos, com o objetivo de defender sua condição de livres, que consideravam ameaçadas por uma tentativa de escravização. Porém, mesmo adotando critério diverso, também no universo de 402 ações analisado pela autora, as ações de manutenção de liberdade se consolidam entre os anos 1840 e 1850.

Assim, às conclusões de Grinberg, para quem o aumento do número de ações de manutenção de liberdade a partir de 1850 indica a existência de práticas efetivas de reescravização, pode-se acrescentar que, a partir do mesmo período, as ações de manutenção de liberdade se consolidaram enquanto um rito processual específico no direito brasileiro. Essa especificidade fazia com que os sujeitos envolvidos no procedimento judicial se valessem de argumentos também específicos. Cada tipo processual pede estratégias argumentativas e probatórias diferentes. Daí a importância central de se comprovar a posse nesse tipo de ações. Enquanto a posse poderia ser um elemento secundário para sustentar um argumento, em uma ação de liberdade, por exemplo, ela precisava constituir o argumento principal das ações de manutenção de liberdade. E isso pela própria especificidade desse procedimento.

Nesse sentido, as ações de manutenção de liberdade são fruto de um contexto histórico específico, não existiram desde sempre no direito brasileiro e tampouco foram "importadas" do direito estrangeiro. Se a posse da liberdade era um argumento invocado desde pelo menos o século XVIII, o mesmo não se pode dizer a respeito das ações de manutenção de liberdade. Na relação de processos analisados por Pinheiro (2013: 285-300)PINHEIRO, Fernanda. Em defesa da liberdade: libertos e livres de cor nos tribunais do Antigo Regime português (Mariana e Lisboa, 1720-1819). Tese (Doutorado em História) - Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2013., por exemplo, nenhum procedimento com o nome específico de "manutenção" foi ajuizado entre 1720 e 1819 em Mariana ou Lisboa.13 13 Além disso, o jurista português Gregorio Caminha (1680: 229-230) elencou os seguintes procedimentos judiciais para tratar da escravidão ou da liberdade: "libelo na ação em que algum pretende que outro seja seu escravo", "libelo na ação em que o escravo pretende ser livre" e "libelo em que um pretende que outro seja seu liberto".

Diversas razões podem explicar a consolidação das ações de manutenção de liberdade como procedimento específico na década de 1840 e, também, o aumento verificado nos anos 1860. Grinberg (2013:156-159)_____. Re-enslavement, Rights and Justice in Nineteenth Century Brazil. Translating the Americas, vol. 1, p. 141-159, 2013. atrela o aumento do número dessas ações à perda de legitimidade de certas práticas do regime escravista. Nos anos 1860, a escravidão e a ideologia do domínio senhorial foram perdendo legitimidade, e o movimento abolicionista foi ganhando cada vez mais os tribunais (Azevedo, 2006AZEVEDO, Elciene. Para além dos tribunais. In: LARA, Silvia; MENDONÇA, Joseli (orgs.). Direitos e justiças no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2006. p. 199-237.; Chalhoub, 2003_____. Machado de Assis, historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.; Mamigonian, 2006MAMIGONIAN, Beatriz. O direito de ser africano livre. In: LARA, Silvia; MENDONÇA, Joseli (orgs.). Direitos e justiças no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2006. p.129-160.).

No entanto, esse quadro, por si só, não parece suficiente para explicar a consolidação de um procedimento judicial específico. Os sujeitos favoráveis à liberdade poderiam ter persistido no uso de outros tipos de procedimentos, como as ações de liberdade, por exemplo. É preciso conjugar a perda de legitimidade do regime escravista com um quadro maior de reformas do direito que possibilitou a criação de armas jurídicas a serem apropriadas por aqueles que estavam lutando pela liberdade.

O século XIX foi marcado por reformas jurídicas que procuraram "modernizar" - para usar uma expressão da época - o direito brasileiro, substituindo o quadro normativo do Antigo Regime por um de caráter liberal. Um dos eixos centrais dessas reformas era dotar o ordenamento de maior "segurança", especialmente no que dizia respeito a procedimentos. Norteados por ideias de cientificidade e sistematização, os juristas brasileiros se empenharam em construir um ordenamento jurídico liberal e "moderno". Modernização institucional, profissionalização e burocratização eram temas, desde muito cedo, incorporados à agenda jurídica brasileira. Esse processo de "modernização institucional" encontrou campo fértil no direito processual, que necessitava com "urgência" ser "racionalizado" e "sistematizado".14 14 Para uma análise das reformas "modernizadoras" no âmbito do direito comercial, ver Lopes (2007). A criação do Instituto dos Advogados Brasileiros e a edição de periódicos jurídicos a partir de 1843 também podem ser compreendidas dentro de um contexto mais amplo de busca pela "modernização" do direito (Formiga, 2010; Pena, 2001). Os debates "modernizadores" que estavam ocorrendo no âmbito do direito encontraram correlatos na lógica de construção e consolidação do Estado nacional brasileiro. Ao longo do século XIX, o movimento de racionalização e homogeneização promovido pelo aparato burocrático foi especialmente intenso (Botelho, 2005). Para uma visão mais geral sobre processos de "modernização" e construção do Estado, ver Noiriel (2001) e Scott (1998).

É nesse contexto mais amplo de "modernização" e racionalização do Estado e do direito que a especificação de procedimentos judiciais pode ser entendida. Os juristas brasileiros oitocentistas defendiam que, assim como ocorria em outros âmbitos do Estado e do direito, os procedimentos judiciais deveriam ser classificados e racionalizados, especializando-se e ganhando, cada um deles, contornos formais próprios, para que, assim, se tornassem previsíveis e capazes de gerar "segurança jurídica".

Construção judiciária do procedimento

Como mencionado, não havia, no direito brasileiro, uma lei que instituísse um procedimento específico de "ação de manutenção de liberdade". Havia, por outro lado, autoridades descentralizadas que instituíam, no âmbito limitado de suas atuações rotineiras, procedimentos específicos. A depender do nível de aceitação que obtinham, esses procedimentos adquiriam regularidade e passavam a condicionar as expectativas dos sujeitos, convertendo-se assim em convenções. No caso do procedimento específico que caracterizava as ações de manutenção de liberdade, portanto, não houve instituição por meio de lei, mas mediante um hábito cuja prática regular condicionava expectativas de tal modo que aqueles procedimentos pudessem ser exigidos pelos sujeitos envolvidos nos processos.

Assim, os fundamentos jurídicos dessas ações e as regras que iriam nortear seu processamento eram, muitas vezes, definidos na prática judiciária. Mas é importante ressaltar que essa formação judicial não ocorria apenas como o resultado contingente do arbítrio das partes. As regras que foram se estabelecendo para as ações de manutenção de liberdade respeitaram também os parâmetros delimitados pela teoria possessória.

Um dos pontos de maior debate no que dizia respeito ao procedimento que estava sendo criado para as ações de manutenção de liberdade era a questão da legitimidade processual. Como as ações de manutenção eram uma espécie de ação possessória, havia quem argumentasse que o autor do pedido deveria estar de posse de sua liberdade no momento da propositura da ação. Caso não estivesse, não era o caso de se mobilizar um remédio possessório, mas de pleitear a liberdade pelas vias ordinárias, ou seja, pelo ajuizamento de, por exemplo, uma ação de liberdade.

No caso de Angelica e seus descendentes, o procurador do réu argumentou que, uma vez que os autores sempre tinham vivido como escravos, nunca estiveram em posse de suas liberdades e, portanto, não poderiam ter ajuizado uma ação de manutenção de liberdade:

Acresce ainda; que os Embargados nem podiam ter o direito à ação proposta sob o apoio de uma manutenção, porque só pode manutenir-se em liberdade aquele que já gozou dela, ou que, sendo livre, fosse esbulhado da posse e exercício dessa liberdade. Os escravos que pretendem ou pensam ter direito de discuti-la, a ação é inteiramente diversa; não podem manutenir-se.15 15 AEL. Apelação cível sobre liberdade de escravos, 1865, processo n. 123, AEL, p. 131.

E ainda:

Com razão se disse que não tendo Angelica, nem seus filhos, e neto jamais entrado em posse de liberdade, incurial e injurídico foi o procedimento tanto preparatório de manutenção de posse de liberdade, como o modo de propositura da ação.

[...] a quererem disputar liberdade, só o podiam fora pedindo depósito, e por meio de ação ordinária, pois que só assim poderiam provar a condição de livres que invocam, e cuja prova neste caso lhes incumbia.16 16 Idem, p. 181-181v.

No ano de 1868, o juiz José Costa prolatou sentença na ação de manutenção de liberdade ajuizada por Bento. Ao longo desse processo, os mais variados temas foram discutidos, inclusive a falsificação de documentos. No entanto, em sua sentença, o juiz não adentrou o mérito da questão e decidiu com base na preliminar de legitimidade ativa:

Julgo improcedente a manutenção requerida pelo autor; porquanto, não podendo ter lugar a medida da manutenção da liberdade - senão quando efetivamente está na posse dela o reclamante de semelhante providência; e resultando deste processo a certeza de que o Autor jamais esteve como "sui juris" é fora de dúvida que não lhe assiste o meio que pretende conseguir.17 17 AEL. Apelação cível sobre liberdade de escravos, 1867, processo n. 137, p. 150-150v.

O advogado de Bento tentou contra-argumentar que, em causas de liberdade, dever-se-ia prezar pela celeridade dos procedimentos, e portanto o juiz deveria julgar o processo levando em consideração que várias provas já tinham sido ali produzidas e extensamente debatidas. Porém não obteve sucesso, e o TRRJ manteve a decisão contrária a Bento.18 18 Idem, p. 173-173v, 180v, 193v-194.

Já em 1872, o TRRJ julgou a ação de manutenção proposta por Eva. Os desembargadores confirmaram a sentença de primeira instância: "não tendo gozado de liberdade, não podia regularmente ser manutenida a Autora na posse de sua liberdade".19 19 O Direito, vol. 2, 1873, p. 193-195. Esse caso foi publicado na revista O Direito e vinha precedido da seguinte ementa: "Manutenido pode ser o que tem gozo de liberdade, e não o escravo, ao qual só cabe requerer depósito para propor a competente ação".20 20 O Direito, vol. 2, 1873, p. 193. É necessário interpretar essa ementa considerando seu contexto histórico.

No século XIX, a doutrina jurídica tinha um caráter formativo do direito vigente, não apenas informativo (Barbosa, 2009BARBOSA, Samuel. Complexidade e meios textuais de difusão e seleção do direito civil brasileiro pré-codificação. In: FONSECA, Ricardo; SEELAENDER, Airton (orgs.). História do direito em perspectiva. Curitiba: Juruá, 2009. p.361-373.; Dias Paes, 2014; Hespanha, 1978HESPANHA, António. A história do direito na história social. Lisboa: Livros Horizonte, 1978.). As revistas jurídicas, especificamente, surgiram em decorrência dos intensos debates a respeito de concepções concorrentes de direito e de qual deveria ser a conformação das normas. Elas possuíam, portanto, a finalidade estratégica de reunir argumentos em prol da defesa de diversas correntes de pensamento. Porém, para os editores responsáveis por essas revistas, era necessário promover uma sistematização científica do direito, apresentando o conjunto de normas e princípios de maneira pretensamente neutra e desvinculada da vida política. Dessa maneira, as revistas jurídicas do século XIX consistiam em importantes espaços de luta a respeito da conformação do direito brasileiro (Formiga, 2010FORMIGA, Armando. Periodismo jurídico no Brasil do século XIX. Curitiba: Juruá , 2010.; Ramos, 2010RAMOS, Henrique Barahona. O periodismo jurídico brasileiro do século XIX. Passagens, vol.2, n.3, p.54-97, 2010.: 60-92).

É nesse contexto, portanto, que se deve interpretar a ementa apresentada pela revista O Direito. Os fundamentos que autorizavam a propositura de ações de manutenção de liberdade estavam em disputa no âmbito judiciário. Ao publicar uma decisão segundo a qual era necessário já estar na posse da liberdade para ajuizar uma ação desse tipo, a revista, mais do que informar o direito vigente, estava tentando moldá-lo. Essa atitude ficou ainda mais clara pela redação da ementa: ela não fazia referência a um caso específico, mas expressava um enunciado de caráter geral, que deveria ser aplicado a todos os casos.

Já no âmbito da civilística, ao tratar das ações de manutenção de liberdade, Malheiro elencou alguns aspectos específicos dessas ações, ressaltando que esse procedimento deveria ser ajuizado quando alguém já estava de posse da sua liberdade e temia ter essa posse esbulhada. Ele também afirmou que, se nas ações de manutenção de liberdade o libertando já estava na posse de sua liberdade - o que era o pressuposto para o ajuizamento desse tipo de ação -, o ônus da prova era de quem estava litigando a favor da escravidão (1866: 177).

Freitas (1880: 17-24)_____. Doutrina das ações. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1880., por sua vez, ao "acomodar"21 21 No Brasil oitocentista, era relativamente comum que, ao se editarem livros estrangeiros, autores brasileiros fossem chamados a "acomodar" (adaptar) essas edições ao "foro brasileiro". A Doutrina das ações, de Telles, também foi "acomodada ao foro do Brasil" por Pinto (1865). Esse autor, no entanto, não incluiu as ações de manutenção de liberdade como tipo processual específico. a Doutrina das ações de Telles ao foro do Brasil, também ressaltou a necessidade da posse da liberdade para o ajuizamento de ações de manutenção de liberdade. Em seu livro, Telles não tratou das ações de manutenção de liberdade, apenas das ações de liberdade e de escravidão. Freitas, porém, acrescentou a esses dois os seguintes tipos processuais: manutenções de liberdade, ações de liberdade por indenização e ações de liberdade pelo Fundo de Emancipação. Em relação às ações de manutenção de liberdade, Freitas (1880: 19-20) ressaltou que elas eram um tipo de interdito possessório, "visto que a posse, por extensão do Direito Canônico, não se aplica somente às coisas como objetos corporais, mas igualmente aos direitos como objetos incorporais; consistindo, nestes casos, no exercício dos mesmos direitos". Como tal, poderiam ser ajuizadas por quem estivesse em posse da liberdade no momento da propositura da ação.

Ribas (1915: 102, 139)_____. Consolidação das leis do processo civil. Rio de Janeiro: Jacinto Ribeiro dos Santos, 1915. Tomo 2. excluiu os direitos pessoais da proteção das ações de manutenção. Além disso, nos artigos em que tratou das "causas de liberdade", ele não mencionou a manutenção como ação específica, mas como uma das fases necessárias das ações de liberdade. Ou seja, para ele, as ações de manutenção de liberdade não deveriam constituir-se como tipo processual específico, mas sim como uma fase das ações de liberdade ordinárias.

Como já mencionado, da posse resultavam direitos para o possuidor, sendo um deles o de defender sua posse em juízo, por meio de ações e interditos possessórios. As ações de manutenção eram um desses meios de se defender a posse em juízo. Assim, mais do que conseguir uma declaração definitiva do estatuto de livre ou liberto, as ações de manutenção, a princípio, serviam para garantir a posse do exercício da liberdade. Por isso, ao conceder mandados de manutenção, diversos juízes consideravam que suas decisões não tinham caráter definitivo e ressaltavam a possibilidade de os supostos senhores recorrerem, posteriormente, a ações de escravidão.

Isso ocorreu, por exemplo, no caso de Mariana e Antonia. Ao prolatar seu acórdão, o TRRJ confirmou o mandado de manutenção da posse das liberdades, mas ressaltou: "a questão de domínio não se deve discutir neste feito, e sim numa ação real de escravidão, que o Embargante pode intentá-la contra as pretas Mariana, e Antonia".22 22 AEL. Apelação cível sobre liberdade de escravos, 1863, processo n. 103, p. 102v. Ou seja, apesar do reconhecimento da posse, a questão de domínio ainda estava em aberto e poderia ser discutida em um procedimento ordinário. Para os desembargadores, a ação de manutenção de liberdade tinha um condão de proteção da posse, mas não em caráter definitivo. Nessas situações, o "direito" só seria fixado após o transcurso de um procedimento ordinário, como, por exemplo, o eram as ações de liberdade e as de escravidão.

O entendimento de que não tinham caráter definitivo determinados atos judiciais e administrativos que reconheciam a posse da liberdade também esteve presente na Decisão n. 54, de 9 de fevereiro de 1870. Em ofício de janeiro do mesmo ano, o chefe de polícia da Corte informou ao então ministro da Justiça, Joaquim Nebias, que Manoel Pereira de Souza tinha servido na Armada Imperial por três anos, recebendo baixa por problemas físicos. Manoel foi então preso como suspeito de deserção, e Maria Umbelina de Siqueira Ponte o reclamou como seu escravo. O ministro da Justiça decidiu que, como Manoel estava no gozo da sua liberdade havia três anos e tinha servido, como homem livre, na Armada, deveria ser solto imediatamente. Se Maria Umbelina entendesse por bem, ela deveria ajuizar a ação competente para reaver seu suposto escravo.23 23 TJRJ. Legislação, escravidão, século XIX, p. 149.

Alguns meses depois, o ministro da Justiça que sucedeu a Joaquim Nebias, Manuel Vieira Tosta, viu-se diante de um caso bem parecido com o de Manoel. João era escravo do major Sabino Lopes do Babo. Em 1865, foi recrutado para servir na Armada com o nome de João Antonio Ferreira, obtendo baixa em 1866. Ao morrer, seu antigo senhor deixou dívidas com a firma Leal & Santos, e algum tempo depois da baixa de João o Banco do Brasil iniciou a liquidação da dita firma. João foi então considerado escravo e recolhido pelo chefe de polícia da Corte.24 24 Sobre a prisão de pessoas sob suspeita de serem escravas, ver Chalhoub (2012). O caso chegou ao Ministério e ficou decidido que "o fato de ter tido praça o indivíduo em questão constitui uma presunção de liberdade". Ele deveria, portanto, ser posto em liberdade, cabendo ao Banco do Brasil ajuizar a ação que julgasse competente.25 25 TJRJ. Legislação, escravidão, século XIX, p. 150.

Também na ação ajuizada por Pedro, o juiz de direito de Pelotas ressaltou que, após a ação de manutenção, poderia ser ajuizada uma ação ordinária, que discutiria o mérito da questão definitivamente:

Intenta-se, e se subentende intentado o remédio da manutenção sumário, ou ordinário, quando o agravante, alegando a sua posse, e a turbação nela pelo adversário, pretende que, justificada ela, seja por sentença definitiva manutenido na mesma enquanto não for convencido por ação ordinária sobre a causa da propriedade; e que se cominem penas ao adversário para que mais o não perturbe na posse, enquanto não for assim convencido na causa da propriedade.

[...]

E que outro nome se poderá dar ao requerido pelo agravante? E que outro remédio devia este usar, que não fosse o da manutenção, mais ou menos sumário, para ao depois discutir-se o seu contestado direito de liberdade na ação competente?26 26 O Direito, vol. 10, 1876, p. 105-106. (grifos meus).

O caráter não definitivo das ações de manutenção de liberdade foi ainda assumido por Antonio Joaquim de Macedo Soares, juiz tido como favorável à causa da abolição. Em decisão na ação de manutenção de liberdade ajuizada por Paulina, após ser detida na cadeia de Mar de Hespanha por suspeita de ser escrava, Soares afirmou:

Considerando que é impertinente a alegação de domínio, 1º porque nesta ação só se trata da posse; 2º porque não há domínio sobre escravos. Mas quando se adote doutrina contrária a esta segunda regra, aos Réus fica salvo provar o seu domínio pelos meios competentes, isto é, por ação ordinária, onde a Autora poderá discutir o tempo da sua posse, e mostrar desde quando começou, em ordem a utilizá-la para a prescrição quinquenal; e seria iniquidade condená-la neste sumário, onde se lhe não facultou, nem precisava, atenta a natureza do processo, o exame e discussão do domínio dos Réus (Soares, 1938SOARES, Julião de Macedo (org.). Obras completas do conselheiro Macedo Soares. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1938. Tomo 1.: 145-146).

Esses casos demonstram que os contornos mais precisos dos procedimentos de ações de manutenção de liberdade - apesar de serem tangenciados pela literatura jurídica da época - estavam sendo disputados no cotidiano judiciário. Em processos judiciais ajuizados por escravos, libertos e livres, as partes envolvidas, os advogados, os juízes e os escrivães iam disputando procedimentos e estabelecendo consensos que geravam expectativas. Nesse processo de construção cotidiana de um procedimento formal, os envolvidos gozavam de relativa margem de argumentação. No entanto, a defesa de seus argumentos estava limitada pelos parâmetros dados pela teoria possessória.

Considerações finais

Quando os sujeitos envolvidos em processos judiciais invocavam o argumento da posse da liberdade, eles não o estavam fazendo de modo aleatório, descontextualizado, deslocando sentidos, desatualizando o conteúdo de normas ou se contradizendo. Pelo contrário. A mobilização do argumento da posse da liberdade estava dentro dos limites gerais da teoria possessória hegemônica à época e possuía uma prática arraigada no direito brasileiro, no português e em outras jurisdições.27 27 Para a Louisiana, ver Scott (2011) e o art. 3.510 do Código Civil da Louisiana de 1825 (Morgan, 1861). Para a Colômbia, ver Meneses e Morales (2013: 279-282). Ver, ainda, o processo cubano mencionado em Silva Jr (2015: 257). No caso do direito romano, o título 22, do livro sétimo do Codex, determinava que passaria a gozar do estado de livre a pessoa que tivesse vivido na posse de sua liberdade por 20 anos ininterruptos e de boa fé (Tissot, 1807: 204-205). Nas Siete Partidas (Espanha, 1807), a aquisição da liberdade por prescrição estava prevista na partida III, título 29, lei 23 e na partida IV, título 22, lei 7. Isso não significa, no entanto, que a arguição da posse da liberdade se deu da mesma maneira desde tempos imemoriais.

No caso do Brasil do século XIX, o significado social do "viver sobre si", largamente estudado pela historiografia, ao chegar aos tribunais, precisava ser traduzido em termos jurídicos, que é a linguagem das lutas sociais no interior do Estado moderno e de sua burocracia. Assim, conflitos sociais enraizados na experiência histórica escravista brasileira adquiriam uma linguagem jurídica que era, primordialmente, delimitada pela teoria possessória.

Além do mais, as ações de manutenção de liberdade não existiram desde sempre. Foi no contexto brasileiro da segunda metade do século XIX que elas surgiram como procedimento judicial específico e tiveram seus contornos desenhados, principalmente, pela prática judicial. As ações de manutenção de liberdade não foram um procedimento "importado" do direito português ou do direito romano. Foram, sim, uma criação histórica e socialmente vinculada ao contexto brasileiro da segunda metade do século XIX. Esse processo de construção do procedimento das ações de manutenção de liberdade se vinculou a um contexto mais geral de "modernização" institucional e jurídica.

O direito proporciona aos sujeitos históricos diversos instrumentos que podem ser por eles mobilizados em suas disputas materiais cotidianas. No contexto de construção das ações de manutenção, os sujeitos históricos disputavam quais seriam os contornos desse novo tipo processual. A forma importava. E por isso eles se envolviam de maneira tão intensa em debates que podem parecer, a princípio, meras discussões formais, vazias de importância real.

A forma procedimental molda os argumentos e estratégias que serão mobilizados pelas partes em um processo. Assim, a utilização de processos judiciais como fontes para se escrever a história da escravidão brasileira deve levar a sério as formalidades que norteiam o seguimento desses processos. Muitas vezes, por trás de discussões formais se escondem verdadeiros embates sociais que refletem e ajudam a reconstituir a realidade da escravidão brasileira.

Notas

  • 1
    Em razão da diversidade dos procedimentos usados para discutir o estatuto jurídico de libertandos, optamos, neste trabalho, por nos referir aos processos analisados como "ações de definição de estatuto jurídico" e não como "ações de liberdade". Essa nomenclatura também evita a confusão entre a acepção geral do termo "ações de liberdade" e as ações de liberdade propriamente ditas.
  • 2
    AEL. Apelação cível sobre liberdade de escravos, 1863, processo n. 103, p. 3-4v.
  • 3
    Idem, p. 23-23v.
  • 4
    Idem, p. 28-28v, 33-34, 75.
  • 5
    Idem, p. 114v.
  • 6
    AEL. Apelação cível sobre liberdade de escravos, 1861, processo n. 91, p. 20-21.
  • 7
    Idem, p. 57.
  • 8
    Ver, também, o art. 179 do Código Criminal de 1830, que tipificava a conduta de reduzir à escravidão pessoa livre que se achasse em posse de sua liberdade.
  • 9
    Ver Dias Paes (2014: 26)DIAS PAES, Mariana. Sujeitos da história, sujeitos de direitos: personalidade jurídica no Brasil escravista (1860-1888). Dissertação (Mestrado em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2014. e Grinberg (2002: 244)_____. O fiador dos brasileiros. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002..
  • 10
    Ver Borges (1856: 136, 310-322)BORGES, José Ferreira. Dicionário jurídico-comercial. Porto: Tipografia de Sebastião José Pereira, 1856.; Carneiro (1851: 2-3, 37-40)CARNEIRO, Manuel Borges. Direito civil de Portugal. Lisboa: Tipografia de Antonio José da Rocha, 1851. Tomo 4.; Carvalho (1850: 146-147)CARVALHO, Alberto de Moraes. Praxe forense. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert, 1850. Tomo 1.; Freire (1815: 39, 52-56, 69-75)FREIRE, Paschoal de Mello. Instituições de direito civil português. Coimbra: Typis Academicis, 1815. Tomo 3. Disponível em: < http://www.fd.unl.pt/Anexos/Investigacao/1077.pdf>. Acesso em: 8 de abril de 2016.
    http://www.fd.unl.pt/Anexos/Investigacao...
    ; Loureiro (1851: 117-141LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Instituições de direito civil brasileiro. Pernambuco: Tipografia da Viúva Roma & Filhos, 1851. Tomo 1.; 1857_____. Instituições de direito civil brasileiro. Recife: Tipografia Universal, 1857. Tomo 1.: 164-194; 1862: 198-317); Pinto (1850: 112-128)PINTO, José Maria Frederico de Souza. Primeiras linhas sobre o processo civil brasileiro. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert , 1850. Tomo 2.; Ribas (1865: 167-168)RIBAS, Antonio Joaquim. Curso de direito civil brasileiro. Rio de Janeiro: Tipografia Universal de Laemmert, 1865. Tomo 2.; Rocha (1848: 49, 220-221, 341-347)ROCHA, Manuel Coelho da. Instituições de direito civil português. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1848. Tomo 1.; Teixeira (1845: 2-3, 38-42, 109-144)TEIXEIRA, Antonio de Liz. Curso de direito civil português. Coimbra: Imprensa da Universidade , 1845. Tomo 2.; Telles (1835: 91-117, 211-219)TELLES, José Homem Corrêa. Digesto português. Coimbra: Imprensa da Universidade , 1835. Tomo 1..
  • 11
    As ações catalogadas sob os números 131, 132, 133 e 134 não puderam ser consultadas na oportunidade em que a pesquisa foi realizada.
  • 12
    Sobre o papel dos escrivães e notários na "escritura da escravidão", ver Martínez e Zeuske (2008)MARTÍNEZ, Orlando García; ZEUSKE, Michael. Estado, notarios y esclavos en Cuba. Nuevo mundo, mundos nuevos, n. 8, 2008..
  • 13
    Além disso, o jurista português Gregorio Caminha (1680: 229-230)CAMINHA, Gregorio. Tratado da forma dos libelos e das alegações judiciais. Lisboa: Francisco de Sousa & Antonio Leyte Pereyra, 1680. elencou os seguintes procedimentos judiciais para tratar da escravidão ou da liberdade: "libelo na ação em que algum pretende que outro seja seu escravo", "libelo na ação em que o escravo pretende ser livre" e "libelo em que um pretende que outro seja seu liberto".
  • 14
    Para uma análise das reformas "modernizadoras" no âmbito do direito comercial, ver Lopes (2007)LOPES, José Reinaldo. A formação do direito comercial brasileiro. Cadernos Direito GV, vol. 4, n.6, 2007.. A criação do Instituto dos Advogados Brasileiros e a edição de periódicos jurídicos a partir de 1843 também podem ser compreendidas dentro de um contexto mais amplo de busca pela "modernização" do direito (Formiga, 2010FORMIGA, Armando. Periodismo jurídico no Brasil do século XIX. Curitiba: Juruá , 2010.; Pena, 2001PENA, Eduardo. Pajens da casa imperial. Campinas: Editora da Unicamp , 2001.). Os debates "modernizadores" que estavam ocorrendo no âmbito do direito encontraram correlatos na lógica de construção e consolidação do Estado nacional brasileiro. Ao longo do século XIX, o movimento de racionalização e homogeneização promovido pelo aparato burocrático foi especialmente intenso (Botelho, 2005BOTELHO, Tarcísio. Censos e construção nacional no Brasil imperial. Tempo Social, vol. 17, n. 1, p. 321-341, 2005.). Para uma visão mais geral sobre processos de "modernização" e construção do Estado, ver Noiriel (2001)NOIRIEL, Gérard. The Identification of the Citizen. In: CAPLAN, Jane; John TORPEY (orgs.). Documenting Individual Identity. Princeton: Princeton UP, 2001. p. 28-48. e Scott (1998)SCOTT, James. Seeing like a State. New Haven: Yale University Press, 1998..
  • 15
    AEL. Apelação cível sobre liberdade de escravos, 1865, processo n. 123, AEL, p. 131.
  • 16
    Idem, p. 181-181v.
  • 17
    AEL. Apelação cível sobre liberdade de escravos, 1867, processo n. 137, p. 150-150v.
  • 18
    Idem, p. 173-173v, 180v, 193v-194.
  • 19
    O Direito, vol. 2, 1873O Direito: revista mensal de legislação, doutrina e jurisprudência, 1873, vol. 2. Rio de Janeiro: Tipografia teatral e comercial, 1873., p. 193-195.
  • 20
    O Direito, vol. 2, 1873O Direito: revista mensal de legislação, doutrina e jurisprudência, 1876, vol. 10. Rio de Janeiro: Tipografia teatral e comercial , 1876., p. 193.
  • 21
    No Brasil oitocentista, era relativamente comum que, ao se editarem livros estrangeiros, autores brasileiros fossem chamados a "acomodar" (adaptar) essas edições ao "foro brasileiro". A Doutrina das ações, de Telles, também foi "acomodada ao foro do Brasil" por Pinto (1865)_____. Doutrina das ações. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert, 1865.. Esse autor, no entanto, não incluiu as ações de manutenção de liberdade como tipo processual específico.
  • 22
    AEL. Apelação cível sobre liberdade de escravos, 1863, processo n. 103, p. 102v.
  • 23
    TJRJ. Legislação, escravidão, século XIX, p. 149.
  • 24
    Sobre a prisão de pessoas sob suspeita de serem escravas, ver Chalhoub (2012)_____. A força da escravidão. São Paulo: Companhia das Letras, 2012..
  • 25
    TJRJ. Legislação, escravidão, século XIX, p. 150.
  • 26
    O Direito, vol. 10, 1876, p. 105-106.
  • 27
    Para a Louisiana, ver Scott (2011)SCOTT, Rebecca. Paper Thin: Freedom and Re-enslavement in the Diaspora of the Haitian Revolution. Law and History Review, vol. 29, n. 4, p. 1061-1087, 2011. e o art. 3.510 do Código Civil da Louisiana de 1825 (Morgan, 1861MORGAN, Thomas. Civil Code of the State of Louisiana. New Orleans: Bloomfield & Steel, 1861.). Para a Colômbia, ver Meneses e Morales (2013: 279-282)MENESES, Orián Jimenéz; MORALES, Edgardo Pérez. Voces de esclavitud y libertad. Popayán: Editorial Universidad del Cauca, 2013.. Ver, ainda, o processo cubano mencionado em Silva Jr (2015: 257)SILVA JR, Waldomiro. Entre a escrita e a prática: direito e escravidão no Brasil e em Cuba, c. 1760-1871. Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2015.. No caso do direito romano, o título 22, do livro sétimo do Codex, determinava que passaria a gozar do estado de livre a pessoa que tivesse vivido na posse de sua liberdade por 20 anos ininterruptos e de boa fé (Tissot, 1807TISSOT, Alexandre. Les douze livres du Code de l'Empereur Justinien. Metz: Behmer, 1807. Tomo 3.: 204-205). Nas Siete Partidas (Espanha, 1807ESPANHA. Las siete partidas. Madrid: Imprenta Real, 1807.), a aquisição da liberdade por prescrição estava prevista na partida III, título 29, lei 23 e na partida IV, título 22, lei 7.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2016

Histórico

  • Recebido
    30 Abr 2016
  • Aceito
    15 Jun 2016
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