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Da obrigação de alimentar os escravos no Brasil colonial 1 1 O estudo que dá aporte a este artigo foi desenvolvido no âmbito do Projeto Temático Escritos sobre os Novos Mundos: uma história da construção de valores morais em língua portuguesa (Proc. FAPESP 13/14786-6).

On the Obligation of Feeding the Slaves in Colonial Brazil

De la obligación de alimentar a los esclavos en el Brasil colonial

Resumo

Para se servirem dos braços escravizados dentro do que se compreendia, então, como justo, aos senhores concorria uma série de deveres. Entre os recorrentemente elencados como essenciais e irrefutáveis, três saltam aos olhos: vesti-los adequadamente, castigá-los com justiça, e alimentar-lhes os corpos. Aqui, pois, tomando o último desses aspectos, a alimentação, procuraremos apresentar os argumentos que fundamentavam a obrigatoriedade legal e moral de o senhor fornecer, de forma adequada, mantimento em suficiente quantidade e de suficiente qualidade para a escravaria. A partir, sobretudo, das impressões registradas por padres, administradores, moralistas e viajantes que estiveram ou se fixaram no Brasil setecentista, o objetivo deste breve estudo é, mais do que tratar dos ingredientes que compunham a ração dos cativos, discutir as justificações que respaldavam a assertiva de que alimentar o corpo do escravo era dever inescusável do senhor.

Palavras-chave:
Escravidão; Brasil colonial; Alimentação; Moral; Economia

Abstract

To serve themselves of the enslaved workforce considering what was then understood as fair and correct, the slave masters had to follow a series of prescriptions. Among those recurrently listed as essential and irrefutable duties, three can be highlighted: to dress the slaves properly, to punish them with justice and to feed their bodies. Therefore, in the present article, taking the last of these aspects, the food, we will try to present the arguments that supported the legal and moral obligation on the part of the slave masters of adequately providing enough food in terms of quality and quantity for the slaves. From the impressions recorded by priests, administrators, moralists and travellers who passed by or settled in Brazil (mainly during the 18th century), the purpose of this brief study is, rather than to present the ingredients that comprised the ration of the captives, to discuss the justifications that supported the assertive that feeding the body of the slave was the inexcusable duty of the master.

Keywords:
Slavery; Colonial Brazil; Food; Morals; Economy

Resumen

Para servirse de la fuerza laboral esclavizada, considerando lo que entonces se entendía como justo y correcto, los amos de los esclavos tenían que seguir una serie de prescripciones. Entre las que figuran de forma recurrente como tareas esenciales e irrefutables, se pueden destacar tres: vestir a los esclavos adecuadamente, castigarlos con justicia y alimentar a sus cuerpos. En este artículo, por lo tanto, tomando el último de estos aspectos, la alimentación, serán presentados los argumentos que apoyaron la obligación moral y legal de proporcionar, adecuadamente, comida en suficiente cantidad y calidad para el esclavo. A partir de las impresiones registradas por sacerdotes, administradores, moralistas y viajeros que se pasaron por o se asentaron en Brasil (principalmente durante el siglo XVIII), el propósito de este breve estudio es, en lugar de presentar los ingredientes que conformaron la ración de los cautivos, discutir las justificaciones que apoyaron la asertiva de que alimentar el cuerpo del esclavo era un deber inexcusable del amo.

Palabras clave:
Esclavitud; Brasil colonial; Comida; Moral; Economía

No Brasil, costumam dizer que para o escravo são necessários três PPP, a saber, pau, pão e pano” (Antonil, 1982ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo; Itatiaia/Edusp, 1982.: 91): a conhecida assertiva do jesuíta André João Antonil, registrada em sua Cultura e opulência do Brasil, originalmente publicada em 1711, sintetiza aquilo que se entendia ser necessário destinar ao escravo em seu tratamento cotidiano. Sintetiza, portanto, quais eram as obrigações a que seu senhor estava submetido, por ser ele, em última instância, o grande responsável por prover o castigo - adequado, exemplar, comedido e apenas quando imperioso -, o alimento - em sua justa quantidade e qualidade - e as vestimentas - que lhes cobrissem as vergonhas com decência e sem ostentação. E Antonil não estaria só ao tecer tais recomendações: outros religiosos a ele coetâneos emitiriam semelhantes juízos acerca desses três grandes aspectos do trato, como Jorge Benci (1977BENCI, Jorge. Economia cristã dos senhores no governo dos escravos (livro brasileiro de 1700). Estudo preliminar de Pedro de Alcântara Figueira e Claudinei M.M. Mendes. São Paulo: Grijalbo, 1977.), em sua Economia cristã dos senhores no governo dos escravos, de 1700, e Manoel Ribeiro Rocha (2017ROCHA, Manuel Ribeiro. Etíope resgatado, empenhado, sustentado, corrigido, instruído e libertado.. São Paulo: Editora da UNESP, 2017. (Edição crítica de 1758)), em seu Etíope resgatado, empenhado, sustentado, corrigido, instruído e libertado, originalmente publicado em 1758.

Aqui, tomaremos a última palavra da tríade anunciada por Antonil, o pão, que, de acordo com Benci (1977BENCI, Jorge. Economia cristã dos senhores no governo dos escravos (livro brasileiro de 1700). Estudo preliminar de Pedro de Alcântara Figueira e Claudinei M.M. Mendes. São Paulo: Grijalbo, 1977.:51), constava entre os deveres primeiros dos senhores, “para que [o servo] não desfaleça”. O religioso argumentava que tal postura “não se funda[va] somente em alguma lei positiva, senão também na mesma lei natural, que, obrigando a cada um a procurar o sustento da própria vida; como o servo, por dever a seu senhor todas as obras de seu serviço, o não possa granjear para si, obriga a que lhe dê o mesmo senhor” (Benci, 1977BENCI, Jorge. Economia cristã dos senhores no governo dos escravos (livro brasileiro de 1700). Estudo preliminar de Pedro de Alcântara Figueira e Claudinei M.M. Mendes. São Paulo: Grijalbo, 1977.: 53-54). Nesse sentido, o padre empreende um duplo movimento, associando ao senhor o dever de providenciar a ração compatível com a atividade do cativo e condenando aos que faltavam no provimento adequado de víveres aos sobrepujados.

Também Rocha (2017ROCHA, Manuel Ribeiro. Etíope resgatado, empenhado, sustentado, corrigido, instruído e libertado.. São Paulo: Editora da UNESP, 2017. (Edição crítica de 1758): 123), naquele que seria um “discurso Teológico-Jurídico, em que se propõe o modo de comerciar, haver e possuir validamente, quanto a um e outro foro, os Pretos cativos Africanos, e as principais obrigações que correm a quem deles se servir”, não hesitava em afirmar que ignorar os aspectos mínimos relacionados ao trato poderia ocasionar, entre tantos danos, a perda legal da propriedade do escravo. Respaldado em fundamentos jurídicos, o padre sublinhava que, entre as “graves e condignas penas” impostas pelo direito civil “aos possuidores de escravos” que descuidassem das suas obrigações, não acudindo aos seus “com os alimentos e medicamentos necessários na enfermidade”, estava a de que perdessem sobre eles o domínio, deixando-os “forros” (idem). Admoestar essa conduta impulsionou o registro de críticas e, sobretudo, o regramento sobre o que seria justo, cristão e necessário para alimentar os corpos dos escravizados.

Pela pena desses religiosos, e também de legisladores, de moralistas e de estrangeiros que passaram ou se estabeleceram nos trópicos, uma série de impressões e prescrições sobre o que configuraria o adequado trato alimentar dos escravos, bem como de juízos sobre a não observância desse preceito, foram registradas. Trata-se, por certo, de relatos que indicam quais os ingredientes que compunham, deveriam compor, ou que constantemente faltavam nas cuias dos escravizados, mas que, sobretudo, apontam para a gravidade legal da falta de governo ou do pecado cometido por um sustento mal observado e as virtudes cristãs exercitadas pelos que proviam o adequado trato aos escravos. Escrutinaremos, pois, duas daquelas que seriam as principais justificativas para a provisão de um sustento dito adequado aos corpos escravizados - uma de eminente cunho moral e outra de caráter econômico, sobremaneira relacionada ao preço de mercado dos cativos -, entrevistas sempre que observamos as recomendações sobre o acesso àquele alimento.

Prover o pão em terra e em mar

E saída, cumpre salientar que a obrigação de alimentar o escravo acompanhava seu senhor em qualquer dos estágios da posse. Isso quer dizer que embarcados ou em terra firme, nas fazendas ou cidades, de forma temporária ou definitiva, deveriam receber o pão de seus senhores ou, em outras palavras, que aquele que tivesse algum escravo sob seu domínio era legal e moralmente responsável por lhes dar de comer. Por isso, não eram raras correspondências como a enviada em 1751 pelo desembargador José Pereira ao rei d. José, pedindo-lhe uma declaração de que não tinha a obrigação de alimentar os escravos que estavam apenas provisoriamente em sua casa (Requerimento, 1751REQUERIMENTO EQUERIMENTO do desembargador José Pereira ao rei [D. José] [...]. Bahia: s. n., ant. a 3 de julho de 1751. AHU_ACL_CU_005, Cx. 107, D. 8368.). Essa solicitação é bastante significativa, pois dá indícios sobre a ciência por parte dos possuidores de escravos da necessidade de lhes fornecer comida, e de que o não cumprimento de tal preceito poderia ter consequências indesejadas.

Mesmo quando estavam entre ferros - em prisões ou servindo em galés -, a ração com que podiam contar era fornecida mediante o pagamento e provisão de seus senhores, o que ressalta, uma vez mais, a estreita ligação e obrigatoriedade do trato do cativo, ainda que atrás das grades. No Livro I, título XXXIII, das Ordenações filipinas, lê-se uma indicação clara sobre o assunto: “aos escravos que estiverem presos a que seus senhores não quiserem dar de comer, o carcereiro lho dará e poderá gastar com cada um até $20 réis por dia” (Ordenações, 1870ORDENAÇÕES ORDENAÇÕES Filipinas. Disponível em: Disponível em: http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/ordenacoes.htm . Acessado em 11 de setembro de 2018.
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: 78). E a dívida não se extinguia caso o escravo viesse a óbito durante a prisão, pois “os dias ao dito respeito pela fazenda de seu senhor” (idem) precisavam ser quitados.

As ocasiões em que um terceiro estaria encarregado das despesas com os cativos nas cadeias eram muito bem definidas, e a liberação da responsabilidade pelo sustento era previamente requerida, autorizada e registrada (Certidão, 1759CERTIDÃO CERTIDÃO do escrivão da Câmara da vila de São Bartolomeu de Maragogipe Francisco Xavier da Costa Vilela atestando o registo dos alvarás que determinam a abolição da capitania de Minas Gerais e que os carcereiros encarreguem-se das despesas com os escravos presos. Bahia: [s. n.], 12 de julho de1759. AHU_ACL_CU_005, Cx. 141, D. 10894.). A letra da lei determinava ainda que, “sendo livre por sentença”, o escravo “não será solto até que o senhor pague os ditos gastos” (Ordenações, 1833ORDENAÇÕES ORDENAÕES e leis do Reino de Portugal, recopiladas per mandado delrei D. Filippe o primeiro. Coimbra: Real Imprensa da Universidade, 1833. T.1.: 150)1 1 O estudo que dá aporte a este artigo foi desenvolvido no âmbito do Projeto Temático Escritos sobre os Novos Mundos: uma história da construção de valores morais em língua portuguesa (Proc. FAPESP 13/14786-6). . É verdade, todavia, que mesmo quando as despesas de sustento eram honradas pelo proprietário do cativo delituoso, um trato alimentar correto não estava assegurado, visto que não seriam exceções os relatos de que escravos precisavam esmolar, através das frestas das grades que davam para as ruas (Barreto, 1978BARRETO, Paulo Thedim. Casas de Câmara e Cadeia. In: REIS, José de Souza; BARRETO, Paulo Thedim. Arquitetura Oficial I. São Paulo: FAU-USP/ MEC-Iphan, 1978.: 107), para ter algum dinheiro para comer (Edmundo, 1932EDMUNDO, Luiz. O Rio de Janeiro no Tempo dos Vice-reis, 1763-1808. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1932.: 520).

No mais, essa obrigação principiava antes mesmo da travessia atlântica, quando os escravizados aguardavam pelo próximo “tumbeiro”, de modo que, à espera e também a caminho para a América, havia alguém incumbido do provimento de víveres para eles. Especificamente sobre os embarcados, a adequada aquisição e futura distribuição de comida estava a cargo, respectivamente, dos armadores e dos marujos do navio e, de acordo com uma vasta literatura sobre o tráfico, não era incomum que gêneros essenciais faltassem a bordo (Rediker, 2011REDIKER, Marcus. O navio negreiro: uma história humana. Trad. Luciano Vieira Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.: 15). Entre esses gêneros, vale destacar a constante advertência sobre haver água, farinha e laranjas em suficiente quantidade, para que nutrissem os corpos e sanassem doenças. Mesmo antes da identificação do ácido ascórbico - a vitamina C - e do estabelecimento sua relação com o escorbuto ou mal de Luanda, uma das doenças que mais severamente incidiam sobre os escravizados e homens do mar (Ofício, 1781OFÍCIO OFÍCIO do governador e capitão-general de Angola, José Gonçalo da Câmara, ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar], Martinho de Melo e Castro, referindo a entrada no porto de Luanda do navio Santo António Neptuno, comandado pelo tenente Dionísio Ferreira Portugal, mencionando o carregamento de laranjas e de mais frutas para prevenir o escorbuto que grassava na embarcação. São Paulo da Assunção [de Luanda], 12 de junho de 1781. AHU-Angola, cx. 64, d. 24.; Mendes, 1793MENDES, Luís Antonio de Oliveira. Discurso acadêmico ao programa. In: MEMÓRIAS ECONÔMICAS da Academia Real das Ciências de Lisboa [...]. Lisboa: Tipografia da Academia Real das Ciências de Lisboa, 1812. T. IV.; 1812MENDES, Luís Antonio de Oliveira. Memória a respeito dos escravos e tráfico da escravatura entre a Costa d’África e o Brazil: apresentada à Real Academia das Ciências de Lisboa, 1793. Prefácio de José Capela. Porto: Publicações Escorpião, 1977.), a fruta já era indicada como imprescindível aos negreiros. Mas nem sempre havia laranjas em quantidade ou qualidade satisfatórias.

Das causas para que não houvesse comida suficiente nos cerca de 35 dias de viagem até a Baía de Todos os Santos, ou os 50 dias até o Rio de Janeiro, valem ser ressaltadas as dificuldades climáticas que poderiam acometer as frotas no caminho - alongando as viagens -, o indesejado encontro com corsários e piratas, além de, com certa frequência, a colocação de uma vantagem econômica imediata pelos negociantes em detrimento das vidas dos cativos. Nessas situações, a alimentação dos escravos ou acabava preterida em relação aos demais tripulantes - o capitão, os marinheiros, o padre, o médico etc. -, ou nem chegava a ser adquirida na quantidade necessária, com o desvio de valores destinados para a compra de comida para benefício próprio (Caldeira, 2013CALDEIRA, Arlindo Manuel. Escravos e traficantes no Império Português. O comércio negreiro português no Atlântico durante os séculos XV a XIX. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2013.: 133).

Mesmo assim, há análises que ressaltam o modelo português de mercancia, sobretudo com a costa ocidental da África - incluindo-se aí o trato dos escravos embarcados -, como um exemplo a ser reproduzido (Curto, 2008CURTO, Diogo Ramada. Do Reino à África: formas dos projetos coloniais para Angola em inícios do século XVII. In: FURTADO, Júnia Ferreira (org.). Sons, formas, cores e movimentos na modernidade Atlântica: Europa, Américas e África. São Paulo/ Belo Horizonte: Annablume/ FAPEMIG, 2008.: 216), e relatos que vão no mesmo sentido. Vale a pena voltar os olhos para o Seiscentos, para as notas tomadas por dois conhecedores dos meandros do comércio, para se ter ideia dos argumentos que embasavam tais juízos positivos. Entre 1643 e 1644, o neerlandês Pieter Moortamer, então diretor da Companhia das Índias Ocidentais em Luanda, descrevia a seus compatrícios os procedimentos que lhe pareciam comercialmente mais acertados, incluindo-se aí o manejo com os africanos embarcados (Boxer, 1973BOXER, Charles R. Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola, 1602-1686. São Paulo: Companhia Editora Nacional/Edusp, 1973.: 232; Guedes, 2013GUEDES, Roberto. O cabeça de motim José Vieira Dias, o tráfico e a terrível falta d’água (Luanda, finais do século XVIII). In: GUEDES, Roberto. (org.). África: brasileiros e portugueses (séculos XVI-XIX). Rio de Janeiro: Mauad, 2013. p. 113-146.: 113-146): “duas vezes por dia [os portugueses] cozinham para os seus escravos alimentos quentes, quer feijão africano quer milho, tudo bem tenro e bem cozido, a que misturam uma grande colherada de azeite de palma e um pouco de sal”. E havia mais: “por vezes, juntam-lhe, em cada gamela, um grande peixe seco. Durante o dia, dão sempre um pouco de mandioca e água em abundância” (Relatório, 1975RELATÓRIO RELATÓRIO de Pieter Moortamer à Câmara da Zelândia, 29 de junho de 1643. In: JADIN, Louis. L’Ancien Congo et l’Angola 1639-1655: d’après les archives romanes, portugaises, néerlandaises et espagnoles. Bruxelles: Institut historique belge de Rome, 1975. T. I.: 359)

Algo semelhante seria dito por Francesco Carletti, mercador florentino e viajante conhecido por percorrer grande parte do mundo entre finais do século XVI e início do XVII (Torrão; Teixeira, 2005TORRÃO, Maria Manuel Ferraz; TEIXEIRA, André. Negócios de escravos de um florentino em Cabo Verde: descrições e reflexões sobre a sociedade e o tráfico em finais do século XVI. In: CONGRESSO INTERNACIONAL ESPAÇO ATLÂNTICO DE ANTIGO REGIME: PODERES E SOCIEDADES. 2005, Lisboa. Actas... Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 2005. Disponível em: Disponível em: http://cvc.instituto-camoes.pt/eaar/coloquio/comunicacoes/mmtorrao_ateixeira.pdf . Acessado em 10 de outubro de 2018.
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), em suas anotações sobre a alimentação dispensada aos cativos dos negreiros: duas refeições diárias, dando-lhes “uma vez por dia, uma espécie de milho do país, cozido em água e temperado com óleo e sal”, e, pela manhã, “davam, a cada um, um punhado de certos grãos parecidos com grãos de anis, duros como estes, mas de gosto diferente” (Voyage..., 1999VOYAGE VOYAGE autour du Monde de Francesco Carletti (1594-1606). Introdução e notas de Paolo Carile, tradução de Frédérique Verrier. Paris: Éditions Chandeigne, 1999.: 67). Em um determinado local, diante da abundância de pescados, facultaram aos escravos alguns bonitos, douradas e albacoras, “malcozidos ou quase crus” (idem).

O provimento de rações de forma tão metódica, tal qual indicado nesses dois relatórios, parece mais exceção do que regra. São encontradas com mais frequência descrições de negros enfileirados em porões baixos, com pouca ou nenhuma ventilação, raramente expostos ou em atividade no convés (Rodrigues, 2005RODRIGUES, Jaime. Navios negreiros: imagens e descrições. In: RODRIGUES, Jaime . De costa a costa: escravos e tripulantes do tráfico negreiro(Angola-Rio de Janeiro, 1780-1860). São Paulo: Companhia das Letras.: 131-158), muitas vezes com a distribuição de apenas uma porção completa de ração, às vezes meia - ou até menos - para o dia. Luís Martins de Sousa, governador e capitão-general de Angola, dá notícia ao monarca, ainda no Seiscentos, sobre “a ruim forma em que correm os despachos dos escravos que se embarcam para fora”, visto que eram eles “o lucro que a fazenda real tem para as despesas dos presídios” (Carta..., 1657CARTA CARTA do governador e capitão-general de Angola, Luís Martins de Sousa [Chichorro], ao rei [D. Afonso VI] [...]. São Paulo da Assunção [de Luanda]: [s. n.], 22 de janeiro de 1657. AHU_CU_001, cx. 6, d. 686.). Em 1643, ano do relato de Moortamer, também em Luanda, alguns carregadores reclamavam, a pedido dos moradores daquelas paragens, do expressivo e constante aumento do número de negreiros a sair daqueles portos. Os habitantes da região, diz o documento (Sobre se navegar, 1643SOBRE SOBRE se navegar em frotas deste reino para o Brasil e daquelas partes para este reino. 19 de dezembro de 1643. AHU_Consultas mistas, Cod.16, fl.127v.), confirmavam a inexistência de uma fiscalização rigorosa dos navios - pelo que sugeriam a nomeação de homens da confiança local para tal tarefa -, notadamente sobre a quantidade de água e comida, além de constatarem o significativo aumento do número de escravos que embarcavam, mas não aportavam com vida na outra borda do Atlântico.

Talvez como resposta a essas e outras comunicações ao Conselho Ultramarino, o rei Afonso VI despachou, em 1664, uma provisão direcionada ao governador e ao provedor da Fazenda no Reino de Angola, para que tivessem “particular cuidado e vigilância no despacho dos ditos navios, para que nenhum possa sair do porto da Cidade de São Paulo sem levar para cem peças vinte e cinco pipas de água, bem acondicionadas, e arqueadas” (Provisão..., 1664PROVISÃO PROVISÃO do Conselho Ultramarino. Lisboa, 6 de novembro de 1664. AHU_CU_001, cód. 92, fl. 375v.). Era preciso estar precavido e com suficientes víveres para o período estimado da viagem e algum excedente para possíveis imprevistos ou atrasos. Relatórios sucessivos sobre as condições das viagens em negreiros dão, contudo, pistas de que a recomendação não era de todo seguida.

Um exemplo pode ser encontrado nas linhas legadas por um francês de quem pouco se sabe, conhecido apenas como Le Gentil la Barbinais, pelos idos de 1717, em sua segunda - e mais longa - passagem pelo Brasil, mais precisamente pela Baía de Todos os Santos, quando registrou que “frequentemente [...] os navios são muito carregados e a morte consome grande parte dos escravos, seja pela falta de víveres, seja pela imundice, seja por outros acidentes” (apud França, 2012FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. A construção do Brasil na literatura de viagem dos séculos XVI, XVII e XVIII: antologia de textos (1591-1808). Rio de Janeiro/São Paulo: José Olympio/Unesp, 2012.: 14-19). Esse tipo de circunstância, não é equivocado supor, ocorreu com alguma frequência, até que medidas de fiscalização mais rigorosas fossem levadas a cabo nas zonas portuárias das duas bordas do Atlântico. No entanto, algumas décadas se passariam até que uma preocupação régia mais sistemática com as condições mínimas de navegação para os negreiros viesse a público.

Por meio de um alvará com valor de carta de lei, considerando esse novo modelo de comércio linear entre costas, o monarca, já d. Pedro II, dispôs, em 25 artigos sobre diversas matérias concernentes aos navios - inclusive as de caráter econômico, referentes a como cobrar os impostos -, pela ciência que tinha da prática persistente de, “na condução dos negros cativos do Reino de Angola para o Estado do Brasil, obrarem os carregadores e mestres das naus da violência de os trazerem tão apertados e vindos uns com os outros” (Alencastro, 2000ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul séculos XVI e XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.: 118). O rei condenou semelhantes atos, pois botá-los daquele modo fazia-lhes faltar “o desafogo necessário para a vida, cuja conservação é comum e natural para todos, ou sejam livres ou escravos, mas do aperto com que vêm sucede maltratarem-se de maneira que, morrendo muitos, chegam infalivelmente lastimosos os que ficam vivos” (Registo..., 1948REGISTO REGISTO da lei que Sua Majestade manda se guarde neste Estado sobre a condução dos negros cativos de Angola. 7 de janeiro de 1684. Documentos Históricos, v. 89, 1948.: 383-385). Em um capítulo à parte, destacava ser imperativo “os ditos navios e embarcações levarem os mantimentos necessários para darem de comer aos ditos negros três vezes ao dia, e a fazer e levar água que abunde para lhes darem de beber em cada um dia uma canada, infalivelmente” (ibidem: 380). Relacionam-se, pois, nesse ponto, as normas de arqueação e a dita necessidade de transportar e prover certos alimentos e água.

Muito embora o soberano recebesse notícias de que o regulamento era estritamente observado e praticado “em todas as embarcações que dali saíam” (Consulta..., 1695CONSULTA CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei D. Pedro II [...]. Lisboa: [s. n.], 18 de novembro de1695. AHU_CU_001, cx. 16, d. 1810.), em maior número eram os avisos sobre seu descumprimento total ou parcial. Dez anos após a promulgação da lei, o governador de Angola ainda relata ao Conselho Ultramarino a necessidade de maior controle sobre a água destinada aos negreiros, dado que muitas das “aguadas que vão nas embarcações [...] têm sempre mistura da salgada”, e salientava que a fonte para o abastecimento de água, “como antes se fazia”, deveria ser o rio Bengo, com “grande cuidado [...] para os navios e mais embarcações que daquele reino levarem carga de negros” (Consulta..., 1694CONSULTA CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei D. Pedro II [...]. Lisboa: [s. n.], 27 de novembro de 1694. AHU_CU_001, cx. 16, d. 1789.). Dois anos depois, o mesmo governador, Luís Martins de Sousa, remete ao monarca em tom queixoso a informação de que a nau2 1 Silvia H. Lara (1988: 87) afirma que tal determinação, que não constava nas Ordenações manuelinas, pauta-se em “um alvará de 27 de fevereiro de 1520, que ordenava que os escravos presos no Limoeiro que não fossem alimentados por seus senhores recebessem alimentos através do carcereiro, que podia gastar com cada um até $12 réis por dia”. Nossa Senhora del Popolo, antes vistoriada por ele com “mil e setenta e nove cabeças as quais se embarcaram e despacharam com a aguada e todos os conformes”, tinha recebido ilegalmente mais “peças”: “arqueando-se por minha ordem a não que em mil cabeças de escravos, como faço em todos os mais que partem para o Brasil, por evitar a mortandade que há nas armações por irem sobrecarregados: constou que levando a dita nau setenta cabeças além das mil, se foram embarcar muitas mais escondidamente” (Carta..., 1657CARTA CARTA do rei de Portugal ao vice-rei do Estado do Brasil. 22 de agosto de 1719, Arquivo Público da Bahia, SC, Ordens Régias, v. 13, d. 134.).

A regra de 1684, baliza para os comentários do supracitado governador e conhecida como “Lei das Arqueações”, vigoraria inalterada - embora reiterada pelo monarca em 1719 - até 1808,3 3 Frédéric Mauro (1997: 64) afirma que a nau, o mais antigo dos navios a vela, já poderia transportar entre 500 a 1.000 toneladas. menos pela eficácia do que pelo hábito. Aqui, mais do que relacionar as arqueações dos navios à mortalidade dos escravos (Cavalcanti, 2005CAVALCANTI, Nireu Oliveira. O comércio de escravos novos no Rio setecentista. In: FLORENTINO, Manolo (org.). Tráfico, cativeiro e liberdade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.), interessa-nos pontuar a existência de prescrições sobre o trato, também nesse ambiente, e a tênue fronteira entre o alcance e os limites das diretrizes morais e régias sobre essa matéria. O que se lê na citada carta de 1719 vai a esse encontro: o “lembrete” ao vice-rei da existência de uma legislação própria sobre o trato dos escravos era assunto “de grave escrúpulo, porque envolve não só o interesse temporal, que é a vida dos miseráveis escravos, mas o espiritual, que é a salvação de suas almas, a que se deve muito atender” (Carta..., 1719CARTA CARTA Régiade 31 de janeiro de 1701. Ordens Régias. ANRJ. Códice 942, v. 12, fl. 80.). É, pois, uma recordação das relações morais inerentes às determinações governamentais sobre essa matéria.

Nesse sentido, outros esforços metropolitanos podem ser identificados para recordar aos possuidores de escravos o dever de alimentar e de não deixar faltar os gêneros básicos para o sustento nos trajetos até os portos da América, como bem se apercebe, por exemplo, em uma carta de 24 de julho de 1725, em que o governador da capitania de Pernambuco, d. Manoel Rolim de Moura, escrevendo ao rei, d. João V, retrata os percalços e problemas relacionados à aplicação da lei que determinava que os que enviassem embarcações para a Costa da Mina deveriam ter escravos diretamente envolvidos na produção de mandioca (Carta..., 1725CARTA CARTA do [governador da capitania de Pernambuco], D. Manoel Rolim de Moura, ao rei [D. João V] [...]. Pernambuco: [s. n.], 24 de julho de 1725. Arquivo Histórico Ultramarino_ACL_CU_015, cx. 31, d. 2.864.). Quer dizer, nas primeiras décadas do Setecentos, já se estabelecia uma espécie de condição para que os navios que se pretendiam de transporte de escravizados pudessem partir do Brasil: saírem com ração de mandioca providenciada pelos traficantes, que deveriam ter outros escravos empregados nas roças que proveriam tais mantimentos. Havia, seguramente, alguma resistência à aplicação da regra, e não seria exagero estabelecer um paralelo entre as diversas diretrizes metropolitanas sobre o que deveria ser carregado nos navios além dos escravizados e as notícias abundantes sobre um “comércio paralelo” - o contrabando (Alencastro, 2000ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul séculos XVI e XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.).

Malgrado, porém, todas essas indicações de que o pão dos escravos deveria ser providenciado por aqueles que detinham sua posse, definitiva ou provisória, não faltam notícias sobre a pouca atenção dispensada à ração dos negros no Brasil. Do mesmo modo que, na atribuição do preço final do escravo, um dos argumentos mais comezinhos para a pouca sistematicidade no provimento das rações era o alto custo dos alimentos,4 4 Quando é reeditada e passa a receber sugestões para ter novas alterações, por “questões econômicas e humanitárias”. (Viotti, 2016: 1.169-1.189). ou, como referiu Rolim de Moura (Carta..., 1725CASCUDO, Luis da Câmara. História da alimentação no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968. volume. 2. Coleção Brasiliana, v. 323-A.), para a pouca disposição em direcionar braços produtivos para alimentar os cativos, em terra ou em mar. O desmazelo com o fornecimento do pão será criticado com veemência pela maioria das vozes coetâneas que se preocuparam em registrar o assunto.

Uma palavra dos padres

Benci (1977BENCI, Jorge. Economia cristã dos senhores no governo dos escravos (livro brasileiro de 1700). Estudo preliminar de Pedro de Alcântara Figueira e Claudinei M.M. Mendes. São Paulo: Grijalbo, 1977.: 54), munido também da autoridade da lei, informava, na Economia cristã dos senhores no governo dos escravos, que mesmo os “legisladores do Direito comum” reconheciam “ser tão forçosa esta obrigação [de alimentar], que acharam que devia ser preferida à mesma obrigação que tem o pai de sustentar ao filho”. Essa leitura contemplava também o escravo ou servo filho de pai livre, pois que “ao senhor, e não ao pai, pertencia alimentá-lo” (idem). Era sobre quem poderia tirar proveito do “filho”, nas palavras daquele inaciano, que recaíam as vantagens e desvantagens da posse ou do vínculo. No entanto, ele observava a tirania e a “crueldade de alguns senhores”, que “até o sustento que tão liberalmente dão aos animais brutos, negam aos cativos” (ibidem: 55). Se mesmo o gado, as galinhas e os demais animais recebiam ração adequada, por que os que vivam em cativeiro permaneciam constantemente à míngua?

Vale sublinhar que Benci não alegava que toda a escravaria passava os dias a jejuar, mas questionava a qualidade e a quantidade do alimento oferecido em grande parte das fazendas que conhecia. A insuficiência dos víveres disponibilizados nas senzalas dos engenhos caracterizava uma equação desbalanceada entre o esforço demandado pelo trabalho, que não cessava, e a reposição das forças pela comida ao meio e ao fim do dia:

Senhores há que não faltam aos escravos com a ração quotidiana; mas esta é tão limitada e escassa, que mais serve para que não morram à fome do que para que sustentem a vida. Se ao servo se lhe medisse o trabalho pela mesma medida com que se lhe mede o sustento, calara-me eu nesse ponto. Porém que haja o escravo de trabalhar como mouro e comer como formiga: não sei que direito o permite. (Ibidem: 61-62)

Na mesma esteira, seu correligionário Antonil já advertia sobre o provimento do pão como parte inexorável das obrigações do senhor, obrigações morais e jurídicas, “porque a quem o serve deve o senhor de justiça dar suficiente alimento” (Antonil, 1982ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo; Itatiaia/Edusp, 1982.: 90). Aos olhos do jesuíta, a mesma mão que designava o trabalho e a correção pelas faltas deveria dispor o alimento, com alguma variedade e em porções que fossem minimamente proporcionais à lida nas lavouras de cana, realidade com a qual mais tinha contato. Rogava ele a Deus, não obstante, que “tão abundante fosse o comer e o vestir como muitas vezes é o castigo” (idem), dada sua lamuriosa constatação de que havia um constante desequilíbrio entre os três principais deveres do senhor com relação aos seus escravos.

O padre Ribeiro Rocha concordará com os ditos de Antonil e Benci, entremeando, do mesmo modo, elementos religiosos e legais para validar as prescrições por ele dispostas. Na matéria do sustento, assevera, de saída, ser “constante e geral regra de direito que quem se serve ou usa das obras de alguém está obrigado a alimentá-lo”, portanto, “enquanto os cativos de que se trata existirem no poder e sujeição de seus possuidores, claro é que eles os devem manter e sustentar” (Rocha, 2017ROCHA, Manuel Ribeiro. Etíope resgatado, empenhado, sustentado, corrigido, instruído e libertado.. São Paulo: Editora da UNESP, 2017. (Edição crítica de 1758): 121). Isso para a lei dos homens. Nas leis divinas, relembra o religioso, “a obrigação de sustentar e vestir os escravos se compreende no quarto preceito ou Mandamento da Lei de Deus, que os católicos professamos, o qual manda honrar Pai e Mãe” (idem). Tomando a mesma direção, Benci (1977BENCI, Jorge. Economia cristã dos senhores no governo dos escravos (livro brasileiro de 1700). Estudo preliminar de Pedro de Alcântara Figueira e Claudinei M.M. Mendes. São Paulo: Grijalbo, 1977.: 124) explica que “por filhos não somente se entendem os gerados, senão também os possuídos, e isso por qualquer título cível que o sejam, como é por familiares, por domésticos, por servos ou por escravos; e a obrigação, assim como é recíproca dos Pais para os filhos, também o é dos senhores para os escravos”.

Não assistir adequadamente o escravo não era apenas um descuido na administração da fazenda ou casa, mas um pecado grave, uma desobediência às leis primeiras do Cristianismo. Os pagãos, “faltando à obrigação de sustentarem e vestirem seus filhos, escravos, servos e domésticos, somente obram contra o direito natural, que é a sua única lei”, esclarece o religioso, “mas os Cristãos, faltando a ela, não somente obram contra o direito natural e contra as leis humanas, senão que também obram contra o Preceito e Lei Divina que professam, e por isso nas obras piores são do que eles” (Rocha, 2017ROCHA, Manuel Ribeiro. Etíope resgatado, empenhado, sustentado, corrigido, instruído e libertado.. São Paulo: Editora da UNESP, 2017. (Edição crítica de 1758): 125).

Preocupado, no entanto, com as obrigações mútuas entre servos e senhores, quer dizer, com uma justiça também para os possuidores de escravos, Rocha ressalta que uma “hierarquia de talentos” deveria ser seguida na atribuição daquele sustento, ou, em poucas palavras, da veste e do pão. Com alguma minúcia, prescreve que “aos escravos rurais, como, por exemplo, os das roças, fazendas e engenhos, basta que se dê sustento e vestuário suficiente, posto que seja mais grosseiro”, já aos “escravos domésticos do serviço e companhia dos senhores e possuidores, o sustento e o vestuário já deve ser mais competente e mais digno e, por conseguinte, menos grosseiro” (ibidem: 122). Resta incontestável, portanto, que o senhor cristão, ainda que pudesse destinar víveres de qualidades diferentes aos cativos, deveria fazê-lo de forma regular e satisfatória.

Um dos princípios defendidos por esses religiosos, como cita o próprio Rocha, era devedor de um fundamento aristotélico (ibidem: 60): “o escravo não somente é destinado ao uso do senhor, mas é parte deste”. Portanto, o prato vazio nas senzalas traria embaraço para as mesas das casas grandes, casebres e sobrados. Não havia justificativa, em nenhuma das esferas contempladas por esses religiosos, para que as mesas dos senhores contassem com alimentos, por vezes em abundância, outras, com mais modéstia, enquanto escassa ração circulava entre aqueles que dependiam do provimento de comida.

Igualmente, na perspectiva desses homens de fé, a obtenção do sustento não poderia ser facultada ao escravo, numa prática que parece ter sido recorrente nos trópicos:5 5 Em 1709, por exemplo, os preços dos gêneros de primeira necessidade alcançaram cifras muito elevadas, tanto na região da Comarca do Rio das Mortes, onde desembocava o Caminho Novo para o Rio de Janeiro, quanto na região mais ao norte do rio das Velhas. No Caminho Novo, Mathias Barbosa teria vendido uma plantação de bananas por 50 mil cruzados. (Mello, 1979: 257). destinar um dia da semana para o trabalho e manutenção de hortas e roças próprias (Hall, 2017HALL, Gwendolyn Midlo. Escravidão e etnias africanas nas Américas: restaurando os elos. Petrópolis: Vozes, 2017.: 85; Schwartz, 1995SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.: 83). Na verdade, a censura dos religiosos não era propriamente à possibilidade de o escravo cultivar a terra para si, mas em relação a três fatores que se relacionavam com essa “benesse” do senhor: valer-se em geral do domingo, o dia que todo o cristão deveria guardar para se dedicar exclusivamente às matérias da alma, para laborar para si; a atribuição de uma responsabilidade do senhor para seus subjugados - a de sustentá-los até que os víveres plantados dessem frutos - e, por fim, a supressão de um dia de descanso para os servos.

Jorge Benci (1977BENCI, Jorge. Economia cristã dos senhores no governo dos escravos (livro brasileiro de 1700). Estudo preliminar de Pedro de Alcântara Figueira e Claudinei M.M. Mendes. São Paulo: Grijalbo, 1977.), um dos que destacavam ser o fornecimento do pão para o corpo dos cativos indubitavelmente competência do senhor, atrelará a liberação dos domingos para as matérias espirituais ao provimento de víveres em uma única obrigação. Convicto da necessidade e dos benefícios de o escravo ser instruído no trabalho, com disciplina e assiduidade, lembrava que “Deus, sem fazer diferença de senhores [e] servos, a todos manda que se desocupem nestes dias das obras servis e mecânicas”, julgando ser “muito maior mal [...] ex genere suo mandar trabalhar o servo no tempo que a natureza e o Autor da mesma natureza lhe dá para o descanso” (ibidem: 59). As prescrições divinas, ele argumenta, expostas no livro do Êxodo, não deixavam dúvidas de que, “assim como nos dias santos não devem os senhores trabalhar, nem mandar trabalhar a seus filhos e filhas; assim também não devem mandar trabalhar os escravos e as escravas” (ibidem: 185).

Antonil (1982ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo; Itatiaia/Edusp, 1982.: 91), embora tecesse críticas menos duras a essa matéria, não via com bons olhos os senhores “não lhes dar farinha, nem dia para a plantarem, e querer que sirvam de sol a sol no partido, de dia, e de noite com pouco descanso no engenho”. Em síntese, como defende Benci (1977BENCI, Jorge. Economia cristã dos senhores no governo dos escravos (livro brasileiro de 1700). Estudo preliminar de Pedro de Alcântara Figueira e Claudinei M.M. Mendes. São Paulo: Grijalbo, 1977.: 184), a fórmula a ser seguida para a disposição dos afazeres do escravo era simples: “que o trabalho não seja tão contínuo e sem interpolação, que exceda os limites do justo. E sem dúvida os excederia o senhor que mandasse trabalhar os servos nos tempos que não são de trabalho, quais são os domingos e dias santos” .

O padre Ribeiro Rocha, de forma ainda mais direta, faz um apanhado sobre as implicações dessa prática, censurando-a com argumentos que iam desde até a efetividade de repassar aos cativos algo que não lhes cabia. Ele é enfático:

E quanto a outros possuidores de escravos, que por essas fazendas, engenhos e lavras minerais lhe deixam livre o dia do Sábado, para nele adquirirem o sustento e o vestido, cuido que ainda isto os não desobriga, e que nem o devem, nem o podem praticar; porque como, moralmente falando, é impossível que em um só dia adquiram os pobres pretos com que passar todos os sete da semana, o negócio se reduz aos termos de lhes darem nela o tal dia, para furtivamente o haverem; e ainda que a necessidade do escravo poderá ser algumas vezes tal que o escuse de pecado; não sei, contudo, que deixem ficar ligados nele estes seus possuidores; porque a obrigação não é de lhes darem tempo, senão de lhes darem especificamente o sustento; e não somente o sustento, senão também o vestido e tudo o mais necessário para viverem; e isso não de qualquer sorte, senão com proporção e abastança. [...] E o darem aos escravos o sábado para tudo adquirirem é tapar-lhes com isso a boca para que se não queixem, por lha não poderem diretamente tapar, para que não comam; quando para que não fossem comer o pão alheio e furtado, deviam e devem tapar-lha com o próprio diariamente repartido; isto é, devem dar-lhe suficiente ração de farinha, com seu conduto, e não ração de tempo; porque o tempo não é alimento e coisa comestível. (Rocha, 2017ROCHA, Manuel Ribeiro. Etíope resgatado, empenhado, sustentado, corrigido, instruído e libertado.. São Paulo: Editora da UNESP, 2017. (Edição crítica de 1758): 128; grifos meus.)

No entanto, censurada ou não, essa prática parece ter sido largamente utilizada. A insistência no tópico entre os religiosos e a disposição de uma regra clara sobre as atividades dominicais e em dias santificados leva a crer que, já na primeira metade do Setecentos, o uso do trabalho do escravo aos domingos para si ou em prol do próprio senhor não seria uma exceção. Para ficarmos em apenas um exemplo, já na década final daquele século, o professor de grego e cronista Luís dos Santos Vilhena (1744-1814) observava, em suas cartas sobre o cotidiano da Bahia, que havia muitos senhores “que não lhes dando sustento algum, lhes facultam somente trabalharem no domingo, ou dia santo, em um pedacinho de terra a que chamam roça [para] daquele trabalho tirarem sustento para toda a semana, acudindo somente com alguma gota de mel, o mais grosseiro, se é em tempo de moagem” (Vilhena, 1921VILHENA, Luís dos Santos. Recopilação de notícias soteropolitanas e brasílicas. Salvador: Imprensa Oficial do Estado, 1921. V. I.: 187-188).

Labutar aos domingos era contra as leis da Igreja,6 6 Há registros na legislação sobre a necessidade - e, por que não, obrigatoriedade - de destinar ao menos um dia da semana para que os homens e mulheres escravizados pudessem se dedicar a esse fim. A discussão sobre essa regra remonta ainda a 1606, e é retomada em diversos momentos da primeira metade do século XVIII (entre outros, ver El Rey..., 1606; El Rey..., 1701; Carta..., 1701.) Para obter mais informações sobre a reiteração dessas ordens, ver Lara (1988: 209). não contar com o braço escravo em dias santos e em outra jornada era sinonímia de prejuízo,7 7 Aspecto diretamente mencionado e condenado nos textos de Antonil, Benci e Rocha, e, sobretudo, nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (Vide, 1853, livro II, título XIII, §379, p. 151-152). usar o dia livre para outros cultos e práticas era contra a fazenda do senhor e as citadas diretrizes divinas, e não prover o sustento do escravo era igualmente pecado e delito. Era um problema moral, é verdade, mas, pensando na faceta mais pragmática do emprego da mão de obra escrava, uma questão logo é colocada: a escassa ou inexistente oferta de comida não minaria a possibilidade de trabalho minimamente efetivo? E, no caminho para o Brasil, a falta de um trato adequado, ocasionando mortes ou perdas, não seria prejudicial ao empreendimento escravista (Miller, 1988MILLER, Joseph Calder. Way of Death: Merchant Capitalism and the Angolan Slave Trade, 1730-1830. Madison, WI: The University of Wisconsin Press, 1988.: 387)? É plausível pensar que a melhor e mais rica distribuição de víveres aos escravos resultaria em trabalhadores com maior rendimento: bem alimentar o escravo seria uma espécie de investimento do senhor. É plausível igualmente supor que nenhum traficante desejava perdas econômicas nos navios conduzidos ao Brasil.8 8 Isso porque, embora a legislação indicasse a liberação de um dia para o escravo trabalhar para seu sustento como um dever, há uma série de reclamações para a administração metropolitana sobre os prejuízos causados para o erário e para a observação dos preceitos cristãos quando os escravizados recebiam esse “benefício”. Ver, por exemplo, a Carta do ouvidor geral da Paraíba, Antonio Felipe Soares de Andrade e Brederode, à rainha D. Maria I [...], remetida da Paraíba em 17 de julho de 1792. Ao contrário, muitos dos senhores, já onerados pelo investimento primeiro da aquisição do escravo, não tinham grande interesse em dispender boa parte de seus lucros em matérias tomadas, muitas vezes, como supérfluas, e procuraram alternativas para a dita obrigação de alimentar.

Valiosos e volumosos homens vindos da África

A provisão do sustento físico dos escravos, tratada como um dever do senhor cristão, também guardava justificação de natureza econômica. Embora argumente-se que a reprodução dos escravos fosse mais intensamente devedora do fluxo de novos cativos advindos do tráfico a baixos custos (Florentino, 2014FLORENTINO, Manolo. Em costas negras. Uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). São Paulo: Editora Unesp, 2014.: 11), ou seja, que as baixas taxas de reprodução interna dos escravos denunciavam a pouca importância atribuída à sua manutenção, não se pode ignorar o julgamento sobre a precificação dessa mão de obra tecido pelos contemporâneos. Ao indicarem as (altas) cifras que pagavam por um moleque, uma ama ou um bugre, literalmente a peso de ouro, sugerem que o montante investido na travessia e na aquisição não era de se ignorar, e que, para o bem de suas fazendas - e de suas almas -, era importante prover condições mínimas para o sustento daqueles corpos.

Para se ter uma ideia do valor de mercado de um escravo em idade produtiva, acompanhemos mais de perto cifras médias (Begard, 2004BERGAD, Laird W. Escravidão e história econômica: demografia em Minas Gerais. 1720-1888. São Paulo: Edusc, 2004.) pagas para adquirir um negro em distintos espaços durante a primeira metade do século XVIII.9 9 Jacob Gorender (1980: 129-134) postula que a perda de mercadoria não era desejável, mas que muitas vezes a sobrelotação - mais escravos do que víveres ou espaço - era lucrativa. Na hipótese de um navio que era adequado para transportar 100 escravos acabar carregado com mais 100, o dobro da carga máxima, caso se pense numa perda de 10%, ainda que moralmente condenável, a margem de lucro ainda seria significativamente maior do que seguindo as prescrições à risca. Herbert Klein et al., (2001: 93-118), por sua vez, argumentam que a mortalidade a bordo dos negreiros estava relacionada, além do trato e da superlotação, a fatores como as condições naturais, políticas e econômicas na origem da viagem, bem como aos períodos de espera nos portos. A viagem, portanto, poderia potencializar problemas de saúde ou agravar doenças germinadas em momentos antecedentes à travessia. Na fazenda açucareira de Sergipe do Conde, no início do citado século, não passava de 130$000 réis o preço de um negro saudável; na Salvador, de 1719, 200$000 réis - montante que foi se acrescendo quase até dobrar entre 1690 e 1725 -, nas Minas Gerais, já em 1735, o preço médio chegava na espantosa casa de 400$000 réis (Russell-Wood, 2005RUSSELL-WOOD. Anthony J. R. Escravos e libertos no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.: 163), seguido de flutuações até um aumento em 1780; por fim, no Rio de Janeiro, registrava-se, em 1800, o valor de 116$554 para um escravo de 20 a 30 anos, saltando para 157$083 em 1820, e atingindo espantosos 519$583 em 1850 (Fragoso; Florentino, 2001FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto. Mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.: 146-148).

Mais do que pensar em números brutos ou nas curvas e oscilações dos valores, é interessante observar os discursos sobre os preços registrados pelos que compravam, vendiam ou observavam o vaivém do comércio de almas. Esse alargamento dos dígitos, portanto, não é apercebido apenas num olhar retrospectivo e distante, mas também nas impressões dos coetâneos que se valiam da mão de obra escravizada. Antonil (1982ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo; Itatiaia/Edusp, 1982.: 139), tratando, nos anos iniciais do Setecentos, dos preços antigos e modernos do açúcar, não pôde deixar de notar que o produto encarecera “particularmente [pelo] valor dos escravos, que não os querem largar por menos de cem mil réis, valendo antes quarenta e cinco mil réis os melhores”, em decorrência das “descobertas das minas de ouro, que serviram para enriquecer a poucos e para destruir a muitos”.

O jesuíta, a propósito, defensor da terra como maior riqueza do Brasil, tecerá duras críticas à valorização das minas em detrimento da produção açucareira (Schwartz, 1995SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.: 122-144). A fim de mostrar os abusos nos valores praticados para a venda de mantimentos, vestuário e de escravos nas regiões auríferas, “esterilíssimas de tudo o que se há mister para a vida humana”, ele lista as oitavas de ouro dispendidas para comprar diversos itens. Para lá eram enviados, segundo ele, “o melhor que chega nos navios do Reino e de outras partes” (Antonil, 1982ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo; Itatiaia/Edusp, 1982.: 169). Enquanto uma galinha custava três ou quatro oitavas, um boi, cem oitavas, um barrilote de azeite, duas oitavas, ou uma veste de seda, dezesseis oitavas (ibidem: 170-171); observemos sua listagem sobre os valores dos escravos:

Por um negro bem feito, valente e ladino,10 10 Nunca é demais lembrar que esses valores estavam sujeitos à dinâmica de oferta e demanda, e que a saúde econômica da região interferia não só no custo do escravo como nos fluxos migratórios e demográficos. trezentas oitavas.

Por um molecão, duzentas e cinquenta oitavas.

Por um moleque, cento e vinte oitavas.

Por um crioulo bom oficial, quinhentas oitavas.

Por um mulato de partes, ou oficial, quinhentas oitavas.

Por um bom trombeteiro, quinhentas oitavas.

Por uma mulata de partes,11 11 Como sintetiza Edison Carneiro (1964: 168), eram reconhecidos por essa alcunha os cativos, em geral, já nascidos no Brasil, ou que estavam habituados “ao português, ao trabalho nas fazendas ou nas minas, ao serviço doméstico, à disciplina da escravidão e às artimanhas dos seus pares, com quem convivia[m], para evitar punições e desmandos e garantir-se proteção ou segurança”. Maria Beatriz Nizza da Silva (1975: 146) dá notícia de uma gradação extensa entre os boçais e os ladinos - “pouco ladino, meio ladino, já ladino, muito ladino” - a partir de sua pesquisa nos anúncios publicados na Gazeta do Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XIX. seiscentas e mais oitavas.

Por uma negra ladina cozinheira, trezentas e cinquenta oitavas. (Idem)

Ofício, sexo, idade, habilidade ou “domesticação” eram, pois, algumas das características que influíam diretamente na precificação do cativo. E vale sublinhar que quem determinava como “tão altos” os custos para se adquirir um escravo era o próprio religioso. Não foi o único. Em seu intento de recontar a história dessas terras, Sebastião da Rocha Pita, em sua História da América portuguesa, falando também sobre essa primeira metade do século XVIII, diz-nos que o Brasil padecia “de outro maior mal que ameaça a última ruína [...] os excessivos preços [dos] escravos gentios de Guiné, que se conduzem da Costa de África” (Pita, 1730PITA, Sebastião da. História da América Portuguesa [...]. Lisboa Occidental: Na Officina de Joseph Antonio da Sylva, 1730.: 521). Em sua opinião, consoante com a do irmão supracitado, o aumento dos preços dos braços negros estava, “principalmente no tempo presente”, atrelado ao “descobrimento, e lavra das Minas, que levam muitos escravos, [e] tem crescido o valor deles a excessivo preço, e a este respeito os outros gêneros necessários para a cultura do açúcar” (ibidem: 20). É certo que os preços variavam,12 12 A expressão remete a um negro ou mulato que tivesse ascendência africana, “de partes” de mãe e de pai. Poderia ser apenas de uma delas, e, nesse caso, indicava-se “de parte de mãe”, “de parte de pai”. Como ainda não estavam “habituados” ao jugo da escravidão, valiam menos. No caso das mulatas “de partes”, valiam muito mais por gerarem crianças mais fortes, conforme se acreditava naquele tempo (Akinwumi; Saunders, 2014: 130). não somente de região para região, mas com as imposições da oferta e procura,13 13 Além desses testemunhos, outros tipos de documentos auxiliam na aferição de valores e de seu enquadramento como “caros” ou “baratos”. Desse tipo de análise, expressivos estudos da história serial e econômica já se ocuparam, e chegaram a conclusões interessantes sobre as flutuações de preços. Sobre as Minas, a título de exemplo, destaca-se o trabalho de Carlos Leonardo Kelmer Mathias (2012: 254-273), que, a partir de escrituras cartoriais dos Arquivos da Casa Setecentista de Mariana, constrói, a certa altura de sua obra, um sólido argumento sobre a precificação dos cativos nas Minas. Ele indica, inclusive, a inconsistência decorrente da análise de inventários post mortem para esse fim, decorrente de um “falseamento” dos valores nos inventários, perceptível não somente nas minas. Para saber mais, ver, especialmente: Begard, 2004; Borrego, 2010; Fragoso; Florentino, 2001; e Marcondes; Motta, 2001: 495-514. em constante movimento ao longo do recorte aqui vislumbrado. Tais aspectos podem ser vistos nas frestas das críticas de Antonil e Rocha Pita.

A sensação de que os preços eram discricionários e elevados14 14 Segundo Nireu Oliveira Cavalcanti (2005: 64-65), por exemplo, a oscilação no número de escravos advindos ao porto do Rio de Janeiro saltou de 2 mil, em 1700, para 6 mil em 1730. Essas cifras vão se multiplicar virtuosamente ao longo do século XVIII. não cessam com seus escritos: impressões como as de José João Teixeira Coelho (1930COELHO, José João Teixeira. Instrução para o Governo da Capitania de Minas Gerais. Revista do Arquivo Público Mineiro, v. 3, 1930. 399p.), indicadas na Instrução para o governo da Capitania de Minas Gerais, já em 1779, reiteram não haver uma norma rígida para a determinação dos montantes justos ou devidos. “Estando eu naquela cidade do Rio de Janeiro”, diz ele, “chegaram ao porto dela dois navios carregados de negros, e logo uma sociedade de negociantes comprou as carregações inteiras. Esses negociantes, como ficam sendo senhores de todos os negros, são árbitros dos preços deles” (ibidem: 490).

Ao passo que revela os prejuízos causados por esse aumento de preço na produção rural e o consequente desabastecimento de gêneros básicos cultivados por mãos negras, o religioso e o historiador e poeta baiano supracitados sugerem que o africano escravizado deveria ser preservado da venda ou migração para outras capitanias, prática aparentemente comum, bem como dos descaminhos que o levariam a uma morte precoce. Em paralelo a essas notas, a narrativa do intendente Teixeira Coelho reafirma a recorrência de altos custos para aquisição de um cativo, custos esses que não seriam, por certo, empenhados ou dispendidos em vão. Dito de outro modo, não é errado afirmar que era de interesse do proprietário de escravos manter vivos e produtivos aqueles que por alto montante adquiriu. Zelar pela manutenção do escravo era, também, zelar por seu patrimônio.

E seria essa uma preocupação partilhada, dado que ser dono de escravos era extremamente comum no Brasil de então.15 15 Sobre as indicações de que a demanda para as Minas supervalorizou o preço dos cativos e de que o tráfico de Guiné, além do empreendido com Angola, também impulsionou o crescimento dos valores, ver Boxer, 2000. Ainda em 1699, durante uma estada de cerca de um mês na Bahia, William Dampier assegurava que “excetuando-se as pessoas do mais baixo nível, aqui dificilmente se encontra alguém que não tenha escravos na sua casa” (apud Boxer, 2000BOXER, Charles R. A idade de ouro do Brasil: dores de crescimento de uma sociedade colonial. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.: 28). A posse de escravos era tão comum que um baiano no final do século XVIII sublinhava: “é prova de mendacidade extrema o não ter um escravo: ter-se-ão todos os incômodos domésticos, mas um escravo a toda lei” (Almeida, 1913ALMEIDA, Eduardo de Castro e (org.). Inventário dos documentos relativos ao Brasil existentes no Archivo de Marinha e Ultramar de Lisboa. Rio de Janeiro: Off. Graph. Da Bibliotheca Nacional, 1913. Documento 10.907.). Em finais do Setecentos, quando a presença de escravizados no Rio de Janeiro era ainda mais difusa do que nos tempos de Dampier, os números são bastante ilustrativos da trivialidade da posse de um escravo: entre 1790 e 1835, os inventários demonstram que nunca menos de 85% dos falecidos tinham ao menos um escravo, chegando a impressionantes 90,31% entre 1790 e 1792, por exemplo (Florentino, 2014FLORENTINO, Manolo. Em costas negras. Uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). São Paulo: Editora Unesp, 2014.: 26-27). É certo que essa cifra não engloba todos os que morriam - há de se considerar que nem todos legavam um testamento -, mas ilustra o caráter marcadamente escravista que se podia presenciar nos trópicos.

Tal quadro não indica, é bom dizer, que a maior parte da população detinha um grande plantel de cativos, ou que a condição de grande parte dos habitadores do Brasil era de abastança. Indica, antes, a prioridade dada à compra de um escravo, numa casa ordinária, para obter certo destaque - ou, ao menos, a não associação a “mendacidade” ou “baixo nível”. Não seria incomum o registro de governadores e vice-reis, ao longo do período colonial, sobre o hábito de os recém-chegados no Brasil, antes de saudar a terra firme ou dar graças a Deus e à Virgem pela boa chegada, adquirir um escravo. Ainda na segunda metade do Seiscentos, Pero de Magalhães Gândavo (1964GÂNDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil; História da Província Santa Cruz. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980.: 44), em seu Tratado da terra do Brasil, especificamente no segundo capítulo, “Dos costumes da terra”, dá notícia desse corrente hábito:

As pessoas que no Brasil querem viver, tanto que se fazem moradores da terra, por pobres que sejam, se cada um alcançar dois pares ou meia dúzia de escravos (que pode um por outro custar pouco mais ou menos até dez cruzados) logo tem remédio pera sua sustentação; porque uns lhe pescam e caçam, outros lhe fazem mantimento.

Esse tipo de distinção será reafirmado no próprio uso dos escravos no meio urbano, notadamente pelo corrente recurso a um tipo de cadeirinha ou de rede, com os quais se transportava “a gente rica”, para lá e para cá, apoiados em ombros de negros. Amédée Frézier (apud França, 2012FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. A construção do Brasil na literatura de viagem dos séculos XVI, XVII e XVIII: antologia de textos (1591-1808). Rio de Janeiro/São Paulo: José Olympio/Unesp, 2012.: 22), na Salvador de 1714, é um dos que narram, em detalhe, tal cena:

A gente rica, não obstante tal inconveniente [o terreno inclinado], nunca anda a pé. Empenhados sempre em encontrar meios para se distinguirem dos homens tanto do resto da América como da Europa, os habitantes daqui tem vergonha de utilizar as pernas que a natureza lhes deu para caminharem. Em geral, deixam-se molemente carregar numa espécie de cama feita de tecido de algodão, suspensa, de ambos os lados, por um grande bastão, que dois negros levam sobre a cabeça ou sobre os ombros. Para evitar que a chuva ou o ardor do sol cause incômodo a quem está sendo conduzido, as ditas camas são cobertas por um tejadilho ou por um tecido, o qual, quando se deseja, pode ser removido. Aí, tranquilamente deitados, com a cabeça escorada em um travesseiro de tecido fino, eles são transportados com muito mais comodidade.

Pela lei, pelos privilégios, pelas obrigações mútuas e, sobretudo, pelos costumes, os colonos - dos mais minguados aos mais abastados - empenhavam-se em demarcar as fronteiras entre as atividades pertinentes a este ou aquele grupo. Essa diferenciação poderia ser vista, também, à mesa (Algranti, 2011ALGRANTI, Leila Mezan. À mesa com os paulistas: saberes e práticas culinárias (séculos XVI-XIX). In: ANAIS DO XXVISimpósio Nacional da ANPUH. São Paulo: ANPUH-SP, 2011.: 9).

Alimentar como dever e como distinção

Percorrendo os mais diferentes relatórios e notícias sobre as igualmente diferentes regiões da então colônia de Portugal, não é raro concluir que grande parte dos produtos presentes nas dispensas das casas-grandes também estavam no chão das senzalas ou, dito de outro modo, a base da alimentação diária do senhor e do escravo tinham muitas parecenças. Alimentar-se como um escravo, no entanto, não era ansiado ou benquisto por aqueles que, por razões diversas, dispunham mormente da mesma “matéria-prima” do que aquelas servidas como ração. Um produto que bem exemplifica o uso ambivalente e as estratégias encontradas para demarcar as fronteiras, pelos pratos, entre senhores (ou livres) e escravizados é o milho, muito comum na América então portuguesa.

O manejo, preparo e apresentação do ingrediente eram fundamentais para alcançar tal intento. Já nos hábitos e nos utensílios postos à mesa para poder consumir esse e outros produtos vê-se, entre os senhores, métodos mais afeitos à moda europeia (Souza, 1997SOUZA, Laura de Mello e. Formas provisórias de existência: a vida cotidiana nos caminhos, nas fronteiras e nas fortificações. In: SOUZA, Laura de Mello e (org.). História da vida privada: cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. V. I.: 46). Aqui, andavam, pois, lado a lado, uma vontade de diferenciação, fruto da estratificação social, promotora de diferentes hábitos entre os vários grupos, e a partilha de algumas culturas culinárias (Silva, 1978SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Cultura e sociedade no Rio de Janeiro: 1808-1821. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978.: 4). Daí a ocorrência, em síntese, de duas formas de servir a iguaria: em canjica fina, aos brancos, e grossa, aos negros (Notícia..., 1961NOTÍCIA NOTÍCIA da 6ª prática e relação verdadeira da derrota e viagem que fez da cidade de São Paulo para as Minas do Cuiabá o Exmo. Sr. Rodrigo César de Meneses. In: TAUNAY, Affonso de E. História das Bandeiras paulistas. São Paulo: Melhoramentos, 1961. T. III.: 117). A farinha mais fina era utilizada na preparação de papas e broas, inclusive como ingrediente substituto em receitas vindas do Reino, como os bolos e manjares (Cascudo, 1968CASCUDO, Luis da Câmara. História da alimentação no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968. volume. 2. Coleção Brasiliana, v. 323-A.: 108), e distava das senzalas. Misturada à água, a farinha mais grosseira - ou, como depois seria chamada, pubá ou fubá, farinha em quimbundo (Lima, 1999LIMA, Claudia. Tachos e panelas. Historiografia da alimentação brasileira. Recife: Editora da Autora, 1999.: 79) -, cozida “em um tacho até secar” (Notícia..., 1961NOTÍCIA NOTÍCIA da 6ª prática e relação verdadeira da derrota e viagem que fez da cidade de São Paulo para as Minas do Cuiabá o Exmo. Sr. Rodrigo César de Meneses. In: TAUNAY, Affonso de E. História das Bandeiras paulistas. São Paulo: Melhoramentos, 1961. T. III.: 785), resultava em uma espécie de massa espessa, o angu, afamado como comida própria para escravo e recusado até pelos mais pobres em razão dessa associação (Frieiro, 1966FRIEIRO, Eduardo. Feijão, angu e couve: ensaio sobre a comida dos mineiros. Belo Horizonte: Centro de Estudos Mineiros, 1966.: 158).

Há algumas informações sobre a ocorrência desse preparo do milho ainda em terras africanas e de sua transplantação para o outro continente pelos navios portugueses, como se vê nas notas legadas, quase que no limiar do Setecentos, por Luis Antônio de Oliveira Mendes em suas Memórias a respeito dos escravos ..., de 1793.16 16 Na Bahia oitocentista, por exemplo, afirma Kátia Mattoso (1979: 32) que 50,8% dos testamentos deixados contavam com peças escravas. Mendes, ao contar do que os africanos se sustentavam antes da captura e escravização, dá destaque ao grão amarelo, “primeiramente pisado, e depois, cozido, de que fazem várias comidas” (Mendes, 1812MENDES, Luís Antonio de Oliveira. Discurso acadêmico ao programa. In: MEMÓRIAS ECONÔMICAS da Academia Real das Ciências de Lisboa [...]. Lisboa: Tipografia da Academia Real das Ciências de Lisboa, 1812. T. IV.: 35). Em discurso acadêmico, ele explicava o costume de reduzir “esse mesmo milho a uma espécie de farinha grossa, e cozinhando-a simplesmente na consistência de pão malcozido, a isto chamam [...] cuscuz”, (idem) além de outros pratos possíveis com o versátil grão, na língua materna, anfunges, angus e aluás. Uma série de outros ingredientes, temperos e preparos poderiam ser aventados, pois dão pistas sobre as formas de sobrevivência da população cativa mesmo quando os senhores faltavam com sua obrigação primeva (Carney; Rosomoff, 2009CARNEY, Judith A.; ROSOMOFF, Richard Nicholas. In the Shadow of Slavery: Africa’s Botanical Legacy in the Atlantic World. Berkeley: University of California Press, 2009.).

Sublinhar, no entanto, o que seria próprio do senhor e do escravo no que tocava à alimentação, pelo exemplo das variâncias de preparo do milho, não é simplesmente reforçar uma dicotomia entre senhores e escravos, mas pontuar, como fizeram diversos coetâneos, uma vontade de firmar os limites existentes entre livres e escravizados, imbricada na colônia (Russell-Wood, 2005SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem à província de Goiás. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1975.: 22). Uma vontade, como destacado, difusa naquela sociedade dependente de braços negros. Fato é, nesse sentido, que a mão de obra escrava era consumida pela lavoura e pelos serviços mais diversos com impressionante rapidez e voracidade, especialmente quando são colocadas à mesa informações sobre o intenso e substantivo fluxo de negreiros nos portos das duas bordas do Atlântico.17 17 A Memória de Oliveira Mendes foi lida na Real Academia das Ciências de Lisboa em 1793, mas publicada somente em 1812.

Obrigações (des)cumpridas

Muitos desses proprietários de escravos serão reconhecidos, ao contrário do que indicavam as leis dos homens e de Deus, pela falta de assistência e pelo não provimento de víveres considerados elementares para o sustento daqueles sob sua custódia. As indicações de Paulo em uma de suas cartas aos Colossenses - “Escravos, obedecei em tudo aos vossos senhores daqui da terra” (Col 3, 22), “Senhores, tratai com justiça e equidade os vossos escravos” (Col 4, 1) -, também pregada nessas terras como exemplo da dupla obrigação entre possuidor e possuído, tiveram de ser insistentemente lembradas. Reitera Jorge Benci: “assim como o servo está obrigado ao senhor, assim o senhor está obrigado ao servo” (Benci, 1977: 50). E é esta, inclusive, uma das motivações para que empunhasse a pena, pois intentava dar a público uma “regra, norma e modelo, por onde se devem governar os senhores Cristãos para satisfazerem às obrigações de verdadeiros senhores” (ibidem: 49). Avaliava o jesuíta que “muitos senhores que, por razão do senhorio, [acham que] têm tão livre e absoluto domínio sobre os servos, como se fossem jumentos; de sorte que assim como ao jumento nenhuma obrigação deve a seu dono, assim também nenhuma obrigação deve o senhor ao servo” (idem), o que ele, porém, conclui ser “engano manifesto” (idem). Nessa via de mão dupla, o senhor zelava, também, pelo cumprimento de seu papel de cristão, obrando pela salvação de sua própria alma.

A observação dos víveres dispensados aos escravos nos dá pistas, por certo, sobre o que se entendia diretamente por um trato justo, mas explicita algumas nuances da relação entre senhores e seus subjugados: ao passo que indica algumas expectativas sobre a postura dos senhores, informa sobre suas faltas, excessos, permissividades e desgovernos. Além disso, fornece alguns indícios sobre as brechas de negociação e maleabilidade presentes no sistema escravista. A partir das múltiplas indicações sobre como o escravo deveria ser mantido, é possível entender um pouco mais sobre os destinatários desses manuais, seus autores e as figuras sobre as quais versavam.

Ainda que seja possível questionar o alcance de obras como as de Rocha ou Benci - a de Antonil, por exemplo, que foi recolhida a mando régio pouquíssimo tempos após sua publicação -, de histórias como as de Rocha Pita, de missivas portadoras de ordens e regulamentos régios, ou de informações cotidianas, como as fornecidas pelos relatórios de viagem, fato é que diversas personagens e agentes procuraram descrever, melhorar, regular e moralizar o tratamento de escravos no período colonial. Cuidar da ração dos cativos de modo que os preceitos morais e econômicos estivessem em harmonia não era, como brevemente apresentado nestas linhas, tarefa das mais simples. Cumpre dizer, especificamente sobre os textos com caráter mais normativo, que estes não foram tomados em contraponto às possíveis práticas derivadas de sua observação. Os juízos de observadores, como os diversos viajantes e moralistas que estiveram por essas plagas, não foram, do mesmo modo, tomados como um retrato mais verdadeiro do que as prédicas e leis relacionadas ao sustento dos cativos, antes como uma peça de composição do quadro multifacetado de perspectivas que a época produziu sobre o tratamento dispensado ao escravo. A proposta, em outra via, foi a de apontar regras criadas, alguns desvios a tais códigos, ou quais indicações, ao fim e ao cabo, eram correntes quando o assunto era prover o sustento da escravaria. O que se pôde apurar, complementarmente, cotejando esses diversos textos, foram indícios de alguns desvios a essas regras, em geral condenados e alvos de emendas pelos coetâneos.

Ao descreverem os alimentos usufruídos ou direcionados aos escravos, os homens da colônia deixaram pistas sobre quais eram as melhores e mais acertadas ações dirigidas aos os cativos ou, em síntese, que práticas permitiam qualificar como justo um senhor de escravos. A despeito, contudo, de se ter visado o que contribuía para que os senhores pudessem ser qualificados como “bons” nos limites daquela época, ou para se julgar que ele tinham ou não seguido os conselhos e regras a eles direcionados, apresentamos, de forma bastante geral, os meios pelos quais eles eram estimulados a agir com justiça em relação àqueles de quem tinham posse. Aqui, portanto, a questão de ser o cativeiro “bom” ou “mau” - brando, cruel, paternal, violento, mais ou menos atroz do que em outras paragens - não se coloca.18 18 Para informações sobre a frequência dos negreiros e do fluxo de africanos traficados, ver a atualizada base de dados The Trans-Atlantic Slave Trade Database. Disponível em: <http://www.slavevoyages.org/>. Tampouco, ao se indicar as prescrições para um trato adequado, pretendeu-se reafirmar a ideia de um “senhor benevolente”. A escravidão, uma forma de exploração que veio a ser condenada posteriormente, era, ao contrário, comumente defendida e endossada nos livros, cartas e leis esquadrinhados neste artigo. Havia alguns pactos e regulamentos que lhe garantiram vida longa, entre os quais o sustento salta aos olhos como primordial. As críticas dos coevos, identificadas aqui, portanto, direcionam-se mormente ao maltrato, e não ao cativeiro.

Lançar luz sobre as justificativas para dar de comer ao escravo, dentro de parâmetros definidos pela Coroa e pela Igreja, dava as cores tanto do que aqueles homens, mulheres e crianças deveriam receber para se manter sadios, dispostos ao trabalho e moralmente enquadrados nos preceitos cristãos, quanto das obrigações e virtudes senhoriais indispensáveis para o cumprimento das leis divinas e dos homens, e em benefício de seu próprio erário. Valendo-nos uma vez mais do padre italiano (Antonil, 1982ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo; Itatiaia/Edusp, 1982.: 91-92), somos informados de que “o que pertence ao sustento, vestido e moderação do trabalho, claro está, que se lhes não deve negar”, simplesmente “porque a quem serve deve o senhor de justiça dar suficiente alimento, mezinhas na doença e modo com que decentemente se cubra e vista”. Prover tais elementos não seria facultativo, mas inerente àqueles que pretendiam agir com justiça, fortuna e dentro dos preceitos cristãos.

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    » http://www.slavevoyages.org/
  • 1
    O estudo que dá aporte a este artigo foi desenvolvido no âmbito do Projeto Temático Escritos sobre os Novos Mundos: uma história da construção de valores morais em língua portuguesa (Proc. FAPESP 13/14786-6).
  • 1
    Silvia H. Lara (1988: 87) afirma que tal determinação, que não constava nas Ordenações manuelinas, pauta-se em “um alvará de 27 de fevereiro de 1520, que ordenava que os escravos presos no Limoeiro que não fossem alimentados por seus senhores recebessem alimentos através do carcereiro, que podia gastar com cada um até $12 réis por dia”.
  • 3
    Frédéric Mauro (1997MAURO, Frédéric. Portugal, o Brasil e o Atlântico, 1570-1670. Lisboa: Estampa, 1997.: 64) afirma que a nau, o mais antigo dos navios a vela, já poderia transportar entre 500 a 1.000 toneladas.
  • 4
    Quando é reeditada e passa a receber sugestões para ter novas alterações, por “questões econômicas e humanitárias”. (Viotti, 2016VIOTTI, Ana Carolina de Carvalho. As proposições de Antonio de Saldanha da Gama para a melhoria do tráfico de escravos, “por questões humanitárias e econômicas”, Rio de Janeiro, 1810. História, Ciência, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 23, n. 4, p. 1.169-1.189, out./dez.2016.: 1.169-1.189).
  • 5
    Em 1709, por exemplo, os preços dos gêneros de primeira necessidade alcançaram cifras muito elevadas, tanto na região da Comarca do Rio das Mortes, onde desembocava o Caminho Novo para o Rio de Janeiro, quanto na região mais ao norte do rio das Velhas. No Caminho Novo, Mathias Barbosa teria vendido uma plantação de bananas por 50 mil cruzados. (Mello, 1979MELLO, José Soares de. Emboabas. São Paulo: Governo do Estado, 1979.: 257).
  • 6
    Há registros na legislação sobre a necessidade - e, por que não, obrigatoriedade - de destinar ao menos um dia da semana para que os homens e mulheres escravizados pudessem se dedicar a esse fim. A discussão sobre essa regra remonta ainda a 1606, e é retomada em diversos momentos da primeira metade do século XVIII (entre outros, ver El Rey..., 1606EL EL REY ao Conselho da Índia. Lisboa, 30 de abril de 1606. BA. 51 - VIII - 48, fl. 88.; El Rey..., 1701EL EL REY a D. João de Lancastre. Lisboa, 31 de janeiro de 1701. APB. Ord. Regia 6, n. 103.; Carta..., 1701.) Para obter mais informações sobre a reiteração dessas ordens, ver Lara (1988: 209).
  • 7
    Aspecto diretamente mencionado e condenado nos textos de Antonil, Benci e Rocha, e, sobretudo, nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (Vide, 1853VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo: Tipografia 2 de Dezembro de Antonio Louzada Antunes, 1853., livro II, título XIII, §379, p. 151-152).
  • 8
    Isso porque, embora a legislação indicasse a liberação de um dia para o escravo trabalhar para seu sustento como um dever, há uma série de reclamações para a administração metropolitana sobre os prejuízos causados para o erário e para a observação dos preceitos cristãos quando os escravizados recebiam esse “benefício”. Ver, por exemplo, a Carta do ouvidor geral da Paraíba, Antonio Felipe Soares de Andrade e Brederode, à rainha D. Maria I [...], remetida da Paraíba em 17 de julho de 1792CARTA CARTA do ouvidor geral da Paraíba, Antonio Felipe Soares de Andrade e Brederode à rainha [D. Maria I] [...]. Paraíba: [s. n.], 17 de julho de 1792. AHU_ACL_CU_014, Cx. 31, D. 2267..
  • 9
    Jacob Gorender (1980:GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1980. 129-134) postula que a perda de mercadoria não era desejável, mas que muitas vezes a sobrelotação - mais escravos do que víveres ou espaço - era lucrativa. Na hipótese de um navio que era adequado para transportar 100 escravos acabar carregado com mais 100, o dobro da carga máxima, caso se pense numa perda de 10%, ainda que moralmente condenável, a margem de lucro ainda seria significativamente maior do que seguindo as prescrições à risca. Herbert Klein et al., (2001KLEIN, Herbert S. et al. Transoceanic Mortality: The Slave Trade in Comparative Perspective. The William and Mary Quarterly, v. 58, n. 1, p. 93-118, 2001.: 93-118), por sua vez, argumentam que a mortalidade a bordo dos negreiros estava relacionada, além do trato e da superlotação, a fatores como as condições naturais, políticas e econômicas na origem da viagem, bem como aos períodos de espera nos portos. A viagem, portanto, poderia potencializar problemas de saúde ou agravar doenças germinadas em momentos antecedentes à travessia.
  • 10
    Nunca é demais lembrar que esses valores estavam sujeitos à dinâmica de oferta e demanda, e que a saúde econômica da região interferia não só no custo do escravo como nos fluxos migratórios e demográficos.
  • 11
    Como sintetiza Edison Carneiro (1964CARNEIRO, Edison. Ladinos e crioulos. Estudos sobre o negro no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964.: 168), eram reconhecidos por essa alcunha os cativos, em geral, já nascidos no Brasil, ou que estavam habituados “ao português, ao trabalho nas fazendas ou nas minas, ao serviço doméstico, à disciplina da escravidão e às artimanhas dos seus pares, com quem convivia[m], para evitar punições e desmandos e garantir-se proteção ou segurança”. Maria Beatriz Nizza da Silva (1975SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Vida privada e quotidiano no Brasil: na época de D. Maria I e D. João VI. Lisboa: Estampa, 1993.: 146) dá notícia de uma gradação extensa entre os boçais e os ladinos - “pouco ladino, meio ladino, já ladino, muito ladino” - a partir de sua pesquisa nos anúncios publicados na Gazeta do Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XIX.
  • 12
    A expressão remete a um negro ou mulato que tivesse ascendência africana, “de partes” de mãe e de pai. Poderia ser apenas de uma delas, e, nesse caso, indicava-se “de parte de mãe”, “de parte de pai”. Como ainda não estavam “habituados” ao jugo da escravidão, valiam menos. No caso das mulatas “de partes”, valiam muito mais por gerarem crianças mais fortes, conforme se acreditava naquele tempo (Akinwumi; Saunders, 2014AKINWUMI, Ogundiran; SAUNDERS, Paula (ed.). Materialities of Ritual in the Black Atlantic. Bloomington: Indiana University Press, 2014.: 130).
  • 13
    Além desses testemunhos, outros tipos de documentos auxiliam na aferição de valores e de seu enquadramento como “caros” ou “baratos”. Desse tipo de análise, expressivos estudos da história serial e econômica já se ocuparam, e chegaram a conclusões interessantes sobre as flutuações de preços. Sobre as Minas, a título de exemplo, destaca-se o trabalho de Carlos Leonardo Kelmer Mathias (2012MATHIAS, Carlos L. K. As múltiplas faces da escravidão: o espaço econômico do outro e sua elite pluriocupacional na formação da sociedade mineira setecentista, c. 1711-1756. Rio de Janeiro: Mauad X/Faperj, 2012.: 254-273), que, a partir de escrituras cartoriais dos Arquivos da Casa Setecentista de Mariana, constrói, a certa altura de sua obra, um sólido argumento sobre a precificação dos cativos nas Minas. Ele indica, inclusive, a inconsistência decorrente da análise de inventários post mortem para esse fim, decorrente de um “falseamento” dos valores nos inventários, perceptível não somente nas minas. Para saber mais, ver, especialmente: Begard, 2004MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do corpo, missionários da mente. Senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1680. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.; Borrego, 2010BORREGO, Maria Aparecida de Menezes. A teia mercantil: negócios e poderes em São Paulo colonial (1711-1765). São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2010.; Fragoso; Florentino, 2001; e Marcondes; Motta, 2001MARCONDES, Renato Leite; MOTTA, José Flávio. Duas fontes documentais para o estudo dos preços dos escravos no vale do Paraíba paulista. Revista Brasileira de História, v. 21, n. 42, p. 495-514, 2001. : 495-514.
  • 14
    Segundo Nireu Oliveira Cavalcanti (2005: 64-65), por exemplo, a oscilação no número de escravos advindos ao porto do Rio de Janeiro saltou de 2 mil, em 1700, para 6 mil em 1730CARTA CARTA da Câmara de Vila Rica ao rei, 15 de maio de 1730, em apoio ao livre comércio de ouro em pó em Minas Gerais. Registro de cartas da câmara a Sua Majestade. Arquivo Público Mineiro, Câmara Municipal de Ouro Preto, rolo 17, fls. 25-6. [Microfilme]. Essas cifras vão se multiplicar virtuosamente ao longo do século XVIII.
  • 15
    Sobre as indicações de que a demanda para as Minas supervalorizou o preço dos cativos e de que o tráfico de Guiné, além do empreendido com Angola, também impulsionou o crescimento dos valores, ver Boxer, 2000.
  • 16
    Na Bahia oitocentista, por exemplo, afirma Kátia Mattoso (1979MATTOSO, Kátia M. de Q. Testamentos de escravos libertos na Bahia do século XIX. Salvador: Centro de Estudos Baianos, 1979.: 32) que 50,8% dos testamentos deixados contavam com peças escravas.
  • 17
    A Memória de Oliveira Mendes foi lida na Real Academia das Ciências de Lisboa em 1793, mas publicada somente em 1812.
  • 18
    Para informações sobre a frequência dos negreiros e do fluxo de africanos traficados, ver a atualizada base de dados The Trans-Atlantic Slave Trade Database. Disponível em: <http://www.slavevoyages.org/THE TRANS-ATLANTIC Slave Trade Database THE TRANS-ATLANTIC Slave Trade Database. Disponível em: Disponível em: http://www.slavevoyages.org/ . Acessado em 08 de outubro de 2018.
    http://www.slavevoyages.org/...
    >.
  • 19
    Discussão apresentada em detalhe por Sílvia Lara (1988LARA, Silvia Hunold. Campos da violência: escravos e senhores da capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988., especialmente no capítulo “Conversas com a bibliografia” p. 97-113)

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Citações de dados

THE TRANS-ATLANTIC Slave Trade Database THE TRANS-ATLANTIC Slave Trade Database. Disponível em: Disponível em: http://www.slavevoyages.org/ Acessado em 08 de outubro de 2018.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Abr 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2019

Histórico

  • Recebido
    12 Nov 2018
  • Aceito
    19 Fev 2019
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