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Apresentação

DOSSIÊ "DOMINAÇÃO E CONTRA PODER"

Apresentação

Luis Felipe MiguelI e Flávia BiroliII

IProfessor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (Brasília, DF, Brasil). E-mail: luisfelipemiguel@gmail.com IIProfessora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (Brasília, DF, Brasil). E-mail: fbiroli@terra.com.br

O dossiê desta edição da RBCP enfoca o que se pode considerar a temática central da ciência política: o poder. É comum, na nossa disciplina, que o exercício da autoridade seja naturalizado, que as formas de dominação sejam subsumidas e invisibilizadas nas "instituições" ou que o pluralismo e a igualdade formal sejam comprados por seu valor de face. Mas, mesmo nestas versões assépticas, não é possível eludir o fato de que a ação política só se compreende à luz de conflitos nos quais o poder é tanto um objetivo quanto um recurso essencial – e que tais conflitos só ganham sentido sobre o pano de fundo dos padrões de dominação vigentes na sociedade.

Se a história da política é a história das metamorfoses desta dominação, não se pode ignorar que ela nunca é isenta de fricção. Dominados e oprimidos se definem por seu pertencimento ao polo negativo do poder – o polo dos que estão submetidos a ele –, mas isso não significa passividade ou aceitação não conflituosa. Assim, o fenômeno da resistência é a contraface necessária da dominação. Menos visível, talvez mais sutil, mas também presente e necessária num relato compreensivo do mundo social.

As formas de exercício de poder e as formas de resistência podem estar presentes em diferentes dimensões da política. Neste dossiê, há abordagens teóricas que enfrentam a problemática da dominação de diferentes óticas e a partir de análises desenvolvidas por autores filiados ao marxismo ou identificados com a crítica às suas premissas. E há análises que localizam as tensões entre dominação e contra-poder em espaços e interações com graus diversos de aproximação em relação à política institucional, e em dinâmicas em que as interações e formas de exercício do poder são também bastante diversas.

O vocabulário da dominação, nas ciências sociais, permanece tributário da contribuição pioneira de Max Weber. O artigo de Carlos Eduardo Sell, aqui publicado, aborda o entendimento do sociólogo alemão sobre a democracia – em relação à qual sempre manteve uma posição reconhecidamente ambígua – e, em particular, a construção da categoria descritiva e normativa da "democracia plebiscitária", que envolveu uma reengenharia do conceito, já por si polêmico, de dominação carismática. O texto ilumina não apenas um momento da trajetória de um dos fundadores da sociologia, às voltas com os desafios políticos do seu tempo, mas nossa própria compreensão contemporânea da democracia e de sua relação com a dominação social.

A alternativa mais complexa à sociologia weberiana da dominação, no campo do pensamento marxista, encontra-se na obra de Antonio Gramsci. O conceito de hegemonia, que se mantém como um instrumento útil para refletir sobre os Estados contemporâneos, pode ser lido como uma maneira de entender os padrões de dominação que, em relação a Weber, mostra-se mais dinâmica (uma vez que incorpora o desafio permanente das iniciativas "contra-hegemônicas") e mais crítica (ao vincular expressamente a construção da legitimidade aos interesses dos grupos sociais em conflito). No artigo incluído neste dossiê, Alvaro Bianchi e Luciana Aliaga discutem a apropriação que Gramsci faz do Centauro maquiaveliano – o príncipe que deve ser capaz de agir tanto como homem quanto como fera, de usar persuasão e força alternadamente – e a comparam com a leitura de outro autor italiano, da mesma época, mas situado no polo oposto do espectro político, Vilfredo Pareto. Embora sublinhando a novidade da interpretação que Gramsci faz de Maquiavel, em que a perspectiva adotada é a dos governados, os autores observam que ele tem, em comum com os elitistas, o compromisso com um entendimento fortemente realista da política, centrado no conflito social.

Os insights presentes na obra fragmentária de Gramsci deram origem a uma diversificada linhagem, dentro ou às margens do marxismo. Sérgio Braga fornece, em seu artigo, uma análise original de um destes autores, o francês de origem grega Nicos Poulantzas. Hoje, a obra de Poulantzas encontra-se um tanto démodée na ciência política – o que é uma pena, já que suas sofisticadas análises sobre os mecanismos de dominação do Estado capitalista, nas diferentes elaborações que apresentou ao longo de sua trajetória, continuam mantendo muito de sua atualidade. Braga mostra como a teoria poulantziana se beneficiou de um diálogo crítico com a sociologia política estadunidense (com autores com Easton, Parsons e Almond), incorporando-a parcialmente, e de forma retrabalhada, no seu edifício conceitual marxista.

Um dos principais desafios à ideia de hegemonia nasce da obra do cientista político e antropólogo estadunidense James Scott. Sem ser estranho à tradição marxista, antes pelo contrário – uma de suas principais influências é Edward Thompson –, ele questiona a noção de que o "consentimento ativo" dos dominados, como diria Gramsci, é a regra nas diferentes formações sociais. Por trás de uma fachada de aquiescência, vivem formas múltiplas de resistência cotidiana, pelas quais se manifestam o sentimento de injustiça e a recusa à ordem social dada. Com sua atenção às práticas miúdas e aos enfrentamentos silenciosos do cotidiano, Scott abriu toda uma nova dimensão, em geral negligenciada pela ciência política, ao estudo da dominação e da resistência. No dossiê, apresentamos a tradução de um capítulo de Weapons of the weak, que continua sendo o livro mais influente de um autor que é central para a teoria política contemporânea, mas que permanece pouco disponível para o público de língua portuguesa.

A elaboração de Scott não seria possível sem a contribuição anterior de outro autor incontornável em qualquer exame da temática deste dossiê: Michel Foucault, que nos tornou mais sensíveis à dimensão produtiva das relações de poder e à sua presença ubíqua em todos os recantos da vida social. O dossiê traz dois artigos centrados no diálogo com as categorias do filósofo francês, ambos problematizando o conceito de governamentalidade, fundamental na obra madura de Foucault. Nildo Avelino destaca a necessidade de articular a análise focada nas tecnologias de governo com as transformações dos regimes de verdade – isto é, com a anarqueologia, aspecto do pensamento foucaultiano que, no entanto, obteve menos impacto na teoria política. Já Stephen Collier observa transformações no entendimento da biopolítica, indicando como, após a apresentação inicial do conceito (em Em defesa da sociedade, cursos proferidos no Collège de France em 1975 e 1976), ele evolui para uma análise "topológica" que privilegia os padrões de correlação em que múltiplos elementos (técnicas, tecnologias, estruturas institucionais) são configurados em relações de poder específicas.

Outro nome que não pode ficar ausente de qualquer reconstituição dos debates contemporâneos sobre dominação é o de Pierre Bourdieu. Publicamos, no dossiê, a tradução de sua conferência sobre o campo político, proferida em Lyon, em 1999. Trata-se, assim, de uma obra do período final de Bourdieu, quando os mecanismos de dominação são pintados com as tintas carregadas de seu engajamento político militante. De maneira bastante didática, o sociólogo francês mostra como os padrões estruturais de assimetria e exclusão se reproduzem, a despeito da ordem formalmente democrática. A ênfase na violência simbólica, com a consequente introjeção, pelos dominados, das formas de visão e divisão do mundo próprias dos dominantes, fornece um interessante contraste com a percepção de James Scott.

O dossiê apresenta ainda textos com abordagem não tão explicitamente teórica. Andreas Hofbauer se debruça sobre a história do candomblé, que ele vê como um campo de disputas – que dizem respeito, inclusive, à delimitação de suas próprias fronteiras, na aceitação ou não de formas menos ou mais sincréticas de expressão religiosa. O artigo faz uma fina análise da atuação de diferentes agentes e de como as articulações identitárias se conectam à construção e desconstrução de relações de dominação. Maria José de Rezende, por sua vez, toma como objeto de análise as colunas que o jurista Raymundo Faoro escreveu para a imprensa em 1984, no momento em que se desenhava a sucessão do último presidente do ciclo militar, o general João Figueiredo. Ela mostra como um intelectual de primeiro plano mobiliza a moldura interpretativa que usara para descrever a estrutura de poder do País – décadas antes, no clássico Os donos do poder – para entender e intervir em uma conjuntura política dada.

Os artigos que o dossiê reúne são uma amostra de diferentes caminhos para o enfrentamento da temática no poder, na ciência política e em disciplinas vizinhas. Caminhos por vezes complementares, por vezes divergentes, mas que acrescentam, cada um a seu modo, uma mirada crítica sobre os fenômenos – mais atuais do que nunca – da dominação e da resistência.

Brasília, fevereiro de 2011.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Set 2012
  • Data do Fascículo
    Jul 2011
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