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Amartya Sen: a ideia de Justiça

RESENHA

Amartya Sen - A ideia de Justiça

Alexandre Araújo CostaI; Alexandre Douglas Zaidan de CarvalhoII

IProfessor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (Brasília, DF, Brasil). E-mail: alexandre.araujo.costa@gmail.com

IIMestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (Recife, PE, Brasil)

No livro A ideia de justiça, Amartya Sen reflete sobre os desafios decorrentes do fato de existirem "razões de justiça plurais e concorrentes, todas com pretensão de imparcialidade, ainda que diferentes -- e rivais - umas das outras" (p. 43). Uma das peculiaridades da obra, publicada originalmente em 2009, deriva do seu lugar de fala, pois como o Nobel de Economia de 1998 admite, "a economia é supostamente minha profissão, não importando o que eu faça do meu caso de amor com a filosofia" (p. 303). E, como indicam as próprias reflexões de Sen sobre o conhecimento, a nossa posição tem uma capacidade tanto de iluminar como de gerar ilusões.

De fato, o livro dialoga com a filosofia, mas concentra-se basicamente nos pensadores cuja obra exerce impacto no pensamento econômico, como Adam Smith, Karl Marx, Stuart Mill. Mesmo que o seu principal interlocutor seja John Ralws, a quem a obra é dedicada, Amartya Sen realiza na Parte I (As exigências da justiça) uma crítica da teoria neocontratualista deste filósofo político, a partir de um enfoque comparativo inspirado nos autores citados. Além disso, grande parcela da argumentação, inclusive toda a Parte II (Formas de argumentação racional), volta-se a criticar o modo como a teoria econômica se apropria de conceitos filosóficos.

Já na Parte III (Os materiais da justiça), Sen realiza uma adaptação ao Desenvolvimento como liberdade campo da teoria moral do argumento econômico desenvolvido em seu livro, no qual defendeu que "o desenvolvimento pode ser visto como um processo de expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam" (Sen, 2000, p. 17). Na medida em que Sen defende que a justiça de um ato deve ser medida em termos de sua capacidade de promover as liberdades, o resultado é uma identificação entre Justiça e Desenvolvimento.

Por fim, na Parte IV, é estabelecida uma relação entre o "uso público da razão", que Sen considera apto a justificar a validade objetiva de juízos morais, e a noção de "democracia", entendida como um governo baseado na discussão pública. Porém, como Amartya Sen sustenta a tese iluminista de que a justiça deve ter um caráter universal, ele se contrapõe à redução da nossa responsabilidade moral aos membros de nossas comunidades políticas, em um argumento que culmina na defesa de que os direitos humanos são elementos capazes de determinar valores de justiça dotados de validade universal.

O eixo teórico do livro é a oposição traçada por Amartya Sen entre teorias morais transcendentais e comparativas, que são as duas vertentes éticas que ele identifica no iluminismo moderno. Nas sociedades que se tornam complexas, a coexistência de uma multiplicidade de interesses sociais gera um discurso moral polifônico, integrado por categorias e valores contrapostos que se apresentam como legítimos. Diante das tensões geradas por essa pluralidade, os pensadores de inspiração iluminista buscam definir critérios objetivos de justiça a partir da "dependência da argumentação racional e o apelo às exigências do debate público" (p. 19), por meio de teorias que Sen divide em duas correntes.

A primeira, que ele denomina "institucionalismo transcendental", tem dominado o discurso ético contemporâneo e envolve a busca de uma sociedade perfeitamente justa (p. 36). Tais abordagens são "focadas em arranjos" (arrangement-focused), no sentido de que buscam definir os arranjos sociais formadores de uma comunidade perfeita e medem a justiça da sociedade atual em termos de sua aproximação com o arquétipo sociedade desenhado por suas teorias. Seus principais representantes são os contratualistas, que vão de Hobbes a Rawls, passando por Rousseau e Kant, pensadores para quem é impossível fazer julgamentos morais objetivos sem definir "um único conjunto de 'princípios de justiça'" (p. 235).

A segunda vertente do iluminismo desenvolve o que Sen chama de "comparação focada em realizações" (realization-focused comparison), que reconhece a impossibilidade de construir instituições políticas perfeitas e se concentra no estabelecimento de critérios capazes de orientar as escolhas humanas no sentido de que elas sejam mais justas que as alternativas viáveis. Esta é a vertente a que Amartya Sen se filia, inspirando-se em autores como Smith, Condorcet, Marx e Mill, pensadores que reconhecem a inexistência de uma fundamentação racional capaz de definir um critério perfeito de justiça, levando-nos a elaborar parâmetros que permitam escolher entre os múltiplos valores e discursos éticos existentes em uma comunidade. Para todos eles, parece valer a posição de Marx de que a filosofia não deve limitar-se a interpretar a realidade, mas precisa transformá-la. Nessa medida, os debates acerca do fundamento último da validade interessam pouco a Sen, que se mostra mais preocupado em delinear uma teoria capaz a orientar decisões políticas capazes de ampliar a justiça social, especialmente no que toca à minimização das injustiças intoleráveis.

A oposição entre perspectivas transcendentais e comparativas é a espinha dorsal teórica do livro, que a todo momento se contrapõe às noções transcendentalistas, mas sem nunca desviar-se de sua vinculação iluminista ao que Sen chama de "caminho da razão" (path of reason), sob inspiração das ideias de Akbar, imperador muçulmano que governou a Índia na década de 1590, ou seja, aproximadamente na mesma época em que Hobbes desenvolveu sua obra política (p. 81).

Naquela época, tanto a sociedade indiana quanto as sociedades europeias eram marcadas por tensões decorrentes da multiplicidade religiosa. Na Europa, a pluralidade instituída pela reforma era percebida como uma cisão que devia ser reparada, havendo uma constante luta entre protestantes e católicos no sentido de restabelecer a unidade religiosa perdida. Nesse embate por hegemonia, a divergência era equiparada ao erro e, em vários casos, à heresia. Na Índia, a pluralidade religiosa era ainda maior (envolvendo especialmente hiduísmo, budismo, jainismo e islamismo) e o imperador Akbar instaurou um regime que procurava equilibrar essa pluralidade por meio de um governo que sustentava a liberdade religiosa e o tratamento equânime das diversas crenças. Nesse sentido, Akbar disse a um amigo seu que "a busca da razão e a rejeição do tradicionalismo são tão brilhantemente evidentes que estão acima da necessidade de argumentar." (p. 69).

Esse apelo a uma racionalidade que seja capaz de transcender as múltiplas percepções religiosas e guiar o pensamento por uma senda mais segura fez com que Akbar tivesse uma postura compatível com os pensadores iluministas, por considerar que apenas uma vontade determinada pela razão poderia enfrentar o desafio de elaborar uma ética capaz de suplantar a moralidade tradicional. Nesse sentido, Sen se aproxima dos enfoques neoiluministas de Rawls e de Habermas, que acentuam o papel de uma discussão pública orientada por critérios racionais, embora ele discorde da posição transcendentalista desses autores. Essa proximidade faz com que o livro se concentre em mostrar os pontos de contato e de distanciamento entre a perspectiva comparativa defendida por Sen, em oposição aos racionalismos transcendentais de viés neokantista, que ele critica. Além disso, ele precisa diferenciar-se de outras teorias que utilizam um conceito forte de razão, como a teoria da escolha racional, que reduz a racionalidade à promoção do interesse individual, noção esta que Sen considera uma "crença extremamente alienante" (p. 63).

Embora Sen não utilize a oposição tópica/sistemática, essa oposição entre teorias comparativas e transcendentais parece compatível com a distinção entre perspectivas que buscam elaborar um sistema de avaliação unificado e completo e enfoques que se contentam com oferecer uma rede de topoi capazes de guiar os juízos concretos. Assim, torna-se possível o estabelecimento de critérios que envolvem a prevalência comparativa de certos elementos sobre outros, sem que a combinação de todos os critérios forme uma hierarquia rígida, predeterminada e impessoal. Nesse sentido, "a principal tarefa é acertarmos nos juízos comparativos que podem ser formulados através da argumentação pessoal e pública, em vez de nos sentirmos compelidos a opinar sobre todas as comparações que poderiam ser consideradas." (p. 278).

Enquanto os transcendentalistas têm uma "vontade de sistema", que os levam a desenhar teorias que deveriam resolver adequadamente todos os problemas morais, Amartya Sen adota uma postura menos ambiciosa, ligada apenas ao estabelecimento de uma tópica: um conjunto de orientações que organize decisões plausíveis dentro de um campo determinado, mas que não têm pretensões de completude. Sen parece concordar com a afirmação de Nietzsche de que a vontade de sistema é uma falta de retidão (Nietzsche, 2006, p. 13), pois ela exige das teorias éticas um ideal que não pode ser cumprido. Melhor do que elaborar um sistema totalizante e imperfeito (como fatalmente realizam as teorias transcendentais) seria definir um modelo comparativo que orientasse o raciocínio prático de modo a maximizar a justiça possível. Além disso, a tópica garante a possibilidade de um modelo que pode se desenvolver de maneira mais orgânica, incorporando novas formas de avaliação moral, decorrentes das mudanças nos valores sociais prevalentes.

De certo modo, Amartya Sen retoma o utilitarismo, pois o seu ideal de teoria ética é o de uma perspectiva capaz de maximizar a justiça nas decisões concretas que ela determina. Porém, ele não cai na tentação de reduzir critérios de utilidade a um único elemento, operação que facilita o cálculo de utilidade sob o custo de perder a própria justiça buscada. Isso fica especialmente claro na Parte III, que, apesar do título "Formas de argumentação racional", é basicamente uma crítica das concepções reducionistas de razão que normalmente instruem o pensamento econômico.

Diante da pluralidade de valores, Sen defende que "a necessidade de transcender as limitações de nossas perspectivas posicionais é importante na filosofia moral e política, e na teoria do direito" (p. 187). Essa transcendência das individualidades é normalmente realizada por meio de um apelo à razão, que o próprio Sen realiza com inspiração em Akbar. Consciente que a posição de cada pessoa influencia os seus engajamentos valorativos, ele defende que essa posicionalidade pode ser "parcial ou totalmente superada de modo a nos levar a uma visão menos limitada" (p. 202), o que pode ser realizado mediante um processo de "ampliação comparativa" (comparative broadening) dos nossos pontos de vista, tornando-os cada vez mais permeados a uma "imparcialidade aberta" (open impartiality).

Essa imparcialidade aberta resulta em uma ampliação das pessoas perante quem nós temos responsabilidade ética, colocando Amartya Sen em contraposição às teorias econômicas que supõem a ação humana dirigida exclusivamente à realização de interesses individuais. Isso faz com que vários capítulos da Parte III sejam voltados a criticar a noção individualista de racionalidade defendida pela teoria da escolha racional, defendendo que "a insistência da chamada teoria da escolha racional na definição de racionalidade simplesmente como promoção inteligente do autointeresse dá pouco valor ao uso humano da razão" (p. 228) e que "ser atencioso com os desejos e objetivos dos outros não precisa ser visto como uma violação da racionalidade" (p. 227). Sen também critica essa perspectiva por considerar que a atitude cooperativa das pessoas está fundada em um benefício mútuo reciprocamente constituído, pois as pessoas se comportam em função de sua responsabilidade moral, logo, "o poder efetivo e as obrigações que surgem dele de maneira unilateral também podem ser uma base importante para o raciocínio imparcial, que vai muito além da motivação pelos benefícios mútuos" (p. 241).

Assim, por mais que Amartya Sen desenvolva a sua argumentação a partir de uma perspectiva econômica, ele se contrapõe à interpretação dominante neste campo, que compreende a ação coletiva como uma decorrência da busca individual pela maximização dos interesses. Ele insiste na existência de uma multiplicidade de elementos que precisam ser levados em conta na justificação de uma tomada de decisão concreta: liberdade, capacidade, recursos, resultados, felicidade e igualdade são critérios a ser considerados, e que não podem ser incorporados em um sistema que defina para cada um deles um valor predeterminado. Essa multiplicidade de parâmetros impede o desenvolvimento de um cálculo unificado e de um sistema de hierarquização, mas para Sen isso não significa que eles não possam ser articulados de forma racional.

Uma das peculiaridades do discurso de Amartya Sen é a apropriação que ele faz de uma distinção clássica da jurisprudência indiana, entre niti e nyaya, que são palavras diferentes usadas pelo sânscrito antigo ligadas à ideia de justiça. Niti é a justiça que deriva do cumprimento estrito dos costumes e dos deveres contidos na lei, sendo que uma das manifestações mais claras dessa ideia pode ser encontrada na célebre frase "fiat justitia, et pereat mundus" (faça-se a justiça, ainda que pereça o mundo) (p. 51). A justiça, nesse sentido, é o cumprimento do dever, dentro de uma perspectiva deontológica forte, que desliga a justiça de uma avaliação das consequências do ato.

nyaya aponta para uma avaliação consequencialista, em que os resultados de um ato estão ligados à sua própria justiça. O mais importante é que as relações derivadas do ato sejam justas e contribuam para que se evite o contrário da justiça, que é o matsanyaya, ou seja, a situação de anomia em que os mais fortes podem oprimir os mais fracos. Uma das ideias relevantes ligadas a essa perspectiva é a de que, embora haja uma grande variedade de noções sobre o que é justo, há certo consenso em cada momento histórico sobre o fato de certas situações constituírem uma injustiça intolerável, como a tortura ou a escravidão.

Porém, nyaya não pode ser reduzida a uma análise interessada apenas nos "resultados de culminação" (culmination outcome), pois "a sensibilidade às consequências não exige insensibilidade em relação à agência e às relações pessoais na avaliação do que está acontecendo no mundo." (p. 255). Com essas considerações, Sen se afasta do consequencialismo utilitarista, em função do duplo reducionismo que existe nessa perspectiva: redução da análise aos resultados diretos (sem considerações intencionais e normativas) e redução da avaliação à utilidade (sem levar em conta outros elementos, especialmente a liberdade). Não obstante, Amartya Sen compartilha com os utilitaristas o objetivo de estabelecer uma orientação para as decisões que seja capaz de avaliar o grau relativo de justiça de cada ação, para poder justificar uma escolha ética racional entre elas.

Amartya Sen se dedica a elaborar uma teoria que seja capaz de orientar uma reflexão racional que estimule um engajamento efetivo das pessoas não apenas no cumprimento das leis (niti), mas na transformação da sociedade para que ela se torne mais próxima da nyaya, ao menos com uma exclusão das injustiças sentidas em um determinado momento como inaceitáveis. Por isso mesmo é que o seu maior esforço é o de justificar a importância relativa de uma série de elementos que podem não formar um sistema de valores hierarquizados, mas que forma um conjunto de fatores legítimos a serem levados em conta em uma avaliação moral. Essa reflexão, desenvolvida na Parte III, tem como principal objetivo garantir espaços de avaliação ética que transcendam o consequencialismo utilitarista (típico da economia e da ciência política), considerando a ampliação da liberdade (freedom) como um elemento relevante do julgamento moral. Afirma ele que "ao avaliarmos nossas vidas, temos razões para estarmos interessados não apenas no tipo de vida que conseguimos levar, mas também na liberdade que realmente temos para escolher entre diferentes estilos e modos de vida." (p. 261).

Na medida em que a teoria da justiça é sempre engajada na realização de uma determinada ideia de Bem, é necessário ter critérios para avaliar se a vida de uma pessoa pode ser considerada boa. Na economia, essa medida normalmente leva em conta "renda, riqueza e recursos" (income, wealth and resourses), sendo elas teorias baseadas na utilidade e nos recursos (p. 265). Em contraposição, Amartya Sen propõe uma perspectiva "baseada na liberdade" (freedom-based), na qual a vida boa é medida em termos da efetiva liberdade das pessoas, entendida tanto em termos da existência concreta de oportunidades de escolha individual (possibilidade efetiva de se fazer o que se deseja) quanto da existência de processos de decisão pública que respeitem essa liberdade (p. 266). Segundo Sen, a avaliação da liberdade deve ser feita em termos de capacidades (capabilities), dado que o bem pessoal deve ser medido em termos da "capacidade de uma pessoa para fazer coisas que ela tem razão para valorizar" (p. 265).

De acordo com Sen, esse enfoque possibilita uma avaliação que leva em conta a pluralidade de objetivos que as pessoas têm, em vez de identificar de modo idealizado um determinado padrão como desejável em si. Além disso, ele nos estimula a pensar na capacidade de gerar "combinações funcionais valorativas" (combinations of valued functionings), que podemos julgar de modo comparativo. Com isso, tal posição permite ir além de avaliações fundadas nas "realizações" (achievements) ou nos recursos disponíveis, que são mais facilmente mensuráveis, mas que não levam em conta o fato de eles serem moralmente valiosos na medida em que decorrem do exercício da liberdade.

Amartya Sen defende, ao longo do livro, um papel relevante para a racionalidade nas decisões morais e que esta racionalidade se desenvolve por meio de uma argumentação pública, que pode oferecer justificativas aceitáveis pelos envolvidos, dentro de um processo de ampliação das pessoas envolvidas no campo da responsabilidade moral. Esse posicionamento faz com que ele estabeleça uma conexão clara entre a ideia de justiça e as teorias contemporâneas que apresentam a democracia como um "governo por meio do debate" (government by discussion) (p. 358).

Embora os teóricos da democracia e os pensadores contratualistas normalmente limitem-se a pensar essa discussão dentro de uma determinada organização política, o argumento de Amartya Sen volta-se à elaboração de uma argumentação pública mais ampla, que seja inclusiva em âmbito mundial. Na sociedade contemporânea, a interdependência entre os países e os múltiplos contatos "em relação a atividades literárias, artísticas e científicas, além disso, não nos permitem esperar que qualquer consideração adequada dos diversos interesses e preocupações se restrinja de maneira plausível aos cidadãos de determinado país, ignorando todos os demais." (p. 438).

Tendo em vista esta perspectiva universalizante, que aliás é a tônica do iluminismo ao qual Amartya Sen se filia, não deve causar espanto que ele pretenda conferir concretude às pautas éticas objetivamente válidas mediante uma remissão aos direitos humanos, entendidos como "pretensões éticas constitutivamente associadas à importância da liberdade humana" (p. 401). Ele defende os direitos humanos como representação de uma pauta ética universal, cristalizada na demanda de que todas as pessoas em posição de fazer algo para defender esses direitos têm uma boa razão para fazê-lo, ainda que essa exigência não constitua uma obrigação jurídica efetiva, e passível de se sobrepor a argumentos de outras ordens. Assim, mesmo que não haja uma sanção agregada ao seu descumprimento, para Sen "não se deve confundir obrigação vagamente especificada com ausência de qualquer obrigação" (p. 409).

Mas como podem ser definidos esses direitos humanos? Segundo Sen, tal como é o caso com outras proposições éticas, a sua validade está baseada no pressuposto implícito de que eles sobreviveriam a um "exame aberto e bem informado", o que supõe "invocar um processo de interação entre o exame crítico e a imparcialidade aberta (inclusive estar aberto a informações provenientes de várias posições, próximas e distantes)" (p. 420). Embora reconheça que esse sistema não exista de modo efetivo em escala global, Sen considera a crença generalizada de que certas pretensões passariam por esse teste (como o tratamento igualitário entre etnias e sexos) razão suficiente para justificar a sua validade moral.

Essa é uma definição assumidamente imprecisa, que não define os conteúdos dos direitos humanos (cujo estabelecimento é remetido ao debate público) nem os critérios efetivos desse escrutínio (cujas regras não podem ser sistematizadas e cujo resultado é sempre provisório). Não obstante todas as dificuldades em definir um conjunto de direitos humanos moralmente protegidos de forma universal, Amartya Sen considera que seria um equívoco assumir que "já que não é possível resolver todas as disputas através do exame crítico, então não teríamos bases sólidas suficientes para utilizar a ideia de justiça nos casos em que o exame racional leva a um juízo conclusivo" (p. 436).

Mas que pretensões seriam essas, nos dias de hoje e nessa escala global? Embora essa resposta não seja dada de forma clara, Amartya Sen afirma que muitas sociedades protegem "direitos humanos a liberdades particulares, inclusive a não discriminação entre pessoas de raças diferentes ou entre homens e mulheres, ou ao direito a liberdade formal básica de ter razoável liberdade substantiva de expressão" (p. 421). Ele também sustenta que, no rol de direitos humanos, devem estar incluídos direitos sociais e econômicos (p. 384). E, contra o fato de que muitas sociedades não protegem sequer os direitos de primeira geração, ele responde que nelas inexiste o debate público que seria essencial tanto para o seu reconhecimento quanto para a sua rejeição (p. 422).

Na obra A ideia de justiça, Amartya Sen realiza em especial uma análise crítica das concepções de moralidade mais influentes no pensamento econômico contemporâneo. De um lado, ele avalia os limites da perspectiva de John Rawls, que ainda é a principal referência de teoria da justiça dentro da tradição anglo-saxã, e que tem repercussões econômicas na medida em que ela se presta especialmente a justificar a necessidade moral de desenvolver políticas redistributivas. Além disso, ele faz uma apreciação bastante crítica das teorias ligadas à "escolha racional", contra as quais Sen articula uma teoria da "escolha social", que seria capaz de superar os reducionismos típicos daquela corrente. Por fim, ele oferece uma teoria moral que defende que os debates acerca da justiça social (especialmente no campo da economia) devem ultrapassar os limites das teorias hegemônicas e incorporar uma avaliação moral vinculada à promoção das liberdades estabelecidas pelos direitos humanos, aos quais reconhece validade universal.

Tal concentração no pensamento econômico, como era de se esperar, é a força e a fraqueza da obra de Sen. É a força na medida em que seu novo livro tem a potencialidade de contribuir para uma renovação nos debates acerca da justiça, superando debates centrados no utilitarismo e na justiça redistributiva rawlsiana, por meio da incorporação de um discurso centrado em liberdades e direitos, que exigem cálculos mais sofisticados, porém são mais capazes de refletir as demandas contemporâneas de justiça. Todavia, essa potencialidade é mitigada uma vez que os argumentos apresentados por Sen não são propriamente novos, visto que configuram um desenvolvimento das teses apresentadas no capítulo 3 de Desenvolvimento como liberdade (Sen, 2000, p. 72 e ss.), que tem influenciado profundamente os debates sobre justiça social ao longo da última década.

Por outro lado, ao refletir basicamente sobre as categorias filosóficas ligadas ao discurso econômico dominante, Amartya Sen oferece um texto em que os filósofos tendem a sentir falta de um diálogo mais plural com as perspectivas filosóficas que são centrais para a filosofia ética, mas que não encontram eco no pensamento econômico. Se a ausência de uma análise mais detida das raízes clássicas da discussão até pode ser justificada pela adoção de um enfoque mais contemporâneo, essa postura não justifica a falta de um diálogo efetivo com a pós-modernidade e seus precursores. Nesse âmbito, há apenas citações ligeiras de Nietzsche, e não há qualquer análise do discurso dos pensadores existencialistas, hermenêuticos, fenomenológicos e outros que compõem o panorama continental no século XX. Tampouco há um diálogo com a tradição analítica e pragmática, que é tão relevante no cenário anglo-saxão, o que gera um enfraquecimento no discurso de Amartya Sen, tendo em vista que ele praticamente se limita a confrontar a sua visão com as perspectivas de Rawls e da teoria do agir racional.

Além desse enfoque economicista, os filósofos podem estranhar o fato de as preocupações de Amartya Sen serem mais dogmáticas do que heurísticas, pois ele busca estabelecer parâmetros que possibilitam medir o grau de justiça de situações concretas. Nessa medida, o discurso do livro se aproxima menos dos livros de ética do que das obras jurídicas, que buscam definir critérios adequados para realizar uma aplicação justa do direito no contexto plural da contemporaneidade. Todavia, no que toca aos critérios para definir os direitos humanos que serviriam como pautas morais universais, Amartya Sen também não estabelece parâmetros suficientemente determinados para serem incorporáveis pela prática jurídica.

Quanto aos economistas, imagino que eles talvez não compreendam bem o caso de amor de Amartya Sen com a filosofia, que analisa minuciosamente as potencialidades teóricas de cada um dos conceitos que ele defende ou critica, conferindo ao discurso econômico uma dimensão que pode ser sentida como um exagero filosófico, ainda mais tendo em vista o idealismo com que Sen adota o discurso dos direitos humanos. E talvez considerem cansativo o grau de detalhe com que ele avalia as estratégias discursivas de Rawls e da teoria da escolha racional.

O resultado final é de um livro que reflete sobre os critérios mais adequados para avaliar a justiça das situações concretas, com o objetivo de guiar pessoas que pretendem tomar decisões em termos de justiça e liberdade e não apenas de eficiência técnica. A defesa que Sen realiza de uma teoria da escolha social parece especialmente sedutora para pessoas que exercem atividades ligadas às ciências sociais aplicadas (como direito, economia e gestão de políticas públicas) e que buscam incorporar à sua prática decisória uma reflexão filosófica mais consistente. Trata-se, portanto, de uma obra de filosofia aplicada às ciências sociais, e não de um livro de filosofia pura. Enquanto os filósofos podem se limitar a acentuar a incalculabilidade da justiça e a incomensurabilidade dos valores, Sen se propõe a estabelecer uma teoria capaz de orientar uma escolha valorativa racionalmente informada, baseada na ideia de que "a escolha e a ponderação podem ser difíceis, mas não há nenhuma impossibilidade geral de fazer escolhas arrazoadas baseadas em combinações de objetos diversos" (p. 275).

Recebido em 10 de novembro de 2011

Aprovado em 6 de dezembro de 2011.

  • NIETZSCHE, Friedrich. 2006. Crepúsculo dos ídolos São Paulo: Companhia das Letras.
  • SEN, Amartya. 2000. Desenvolvimento como liberdade São Paulo: Companhia das Letras.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2012
  • Data do Fascículo
    Ago 2012
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