Acessibilidade / Reportar erro

Eduardo Jardim. Hannah Arendt: pensadora da crise e de um novo início

RESENHA

Eduardo Jardim. Hannah Arendt: pensadora da crise e de um novo início

Mateus Braga Fernandes

Doutorando no Programa de Pós-graduação em Ciência Política da Universidade de Brasília (Brasília, DF, Brasil) e mestre em Ciência Política pela mesma instituição. E-mail: mateus@unb.br

Eduardo Jardim. Hannah Arendt: pensadora da crise e de um novo início

Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

Não tenho a obrigação de resolver as dificuldades que crio. Talvez minhas ideias sejam

sempre um tanto díspares, ou até pareçam se contradizer entre si, basta que sejam ideias

onde os leitores encontrem material que os incite a pensar por eles mesmos.

Gotthold Lessing

O rabino Nilton Bonder conta a história do rabi Ioshua, que certa vez se encontrava diante de uma encruzilhada e, ao perguntar a uma criança que estava por ali qual era o caminho para cidade, recebeu como resposta: "Este é o caminho curto e longo e aquele, o longo e curto". Ao decidir tomar o primeiro caminho, o mais curto, o rabi se viu impedido de continuar e voltou à encruzilhada, reclamando que aquele não poderia ser o mais curto. E então ouviu: "Esse é o caminho curto, porém eu lhe disse que era longo" (Bonder, 1998, p. 57-58).

Assim, vê-se que os longos caminhos podem ser, de fato, os únicos caminhos curtos para se chegar ao destino pretendido. E, para se conhecer a trajetória do pensamento de uma autora como Hannah Arendt, que não só escreveu muito, sobre muitos temas contemporâneos, mas também deixou um legado de variados conceitos, todos muito bem articulados, quase sistematicamente encadeados, não se podem tomar atalhos.

No entanto, como demonstra Eduardo Jardim em seu conciso e, por isso, precioso livro, pode-se descrever um longo percurso de modo curto, pois um texto é sempre bidimensional: aqueles recém-chegados poderão satisfazer-se ao ler uma boa síntese em pouco mais de cento e cinquenta páginas, e também aqueles interessados em mergulhos mais profundos podem encontrar alguma densidade para reflexões, advinda das várias conexões e de pontos para discussão, em praticamente cada parágrafo do texto. Embora não apresente de maneira explícita seus pontos de vista, favoráveis ou contrários, sobre conhecidas querelas que envolvem os argumentos da autora sobre a qual escreve, Eduardo Jardim utiliza-se da sábia fórmula de não poluir o texto com eruditas citações - mantendo-as quase que exclusivamente como arremates para os capítulos - sem tampouco fazer do texto uma visão muito particular ou hermética. Ainda assim, e surpreendentemente, o livro traz uma característica pouco explorada pelos comentadores de Hannah Arendt: não a usual e discutível correlação determinística entre vida e obra, entre biografia e pensamento, mas a conexão sutil entre texto e contexto, entre sua rede de conceitos, as condições do ambiente literário da autora (em que figuram suas leituras de Shakespeare, Proust, Kafka e Rilke, e também suas correspondências com Heidegger, Jaspers, Blücher e Mary McCarthy) e as circunstâncias em que (e a partir das quais) seus livros foram escritos1 1 Apesar de figurar uma "pequena biografia" de Hannah Arendt no início do livro de Eduardo Jardim, notamos que o modo como o autor corresponde à presumida exigência de considerar a biografia da pensadora alemã é menos pela descrição de sua vida, e mais por meio de indicações das "circunstâncias em que seus textos foram redigidos" (p. 12). Seria o caso de nos perguntarmos, então: o que queremos que permaneça, o que podemos fazer que sobreviva, da vida de Hannah Arendt, em sua obra - para evitar que a autora se deixe "apanhar nas armadilhas de suas próprias construções" (Arendt, 1993, p. 133)? .

Em outras palavras, se o livro não acrescenta nenhum novo argumento ao já ampliadíssimo conjunto de estudos e comentários sobre a obra de Hannah Arendt, o modo como nele se articulam os comentários dela, feitos em cartas e em diários, com os conceitos e ideias de seus textos publicados e de suas anotações é bastante proveitoso e enriquecedor, ainda mais em edição de tão poucas e acessíveis páginas.

Com isso, poderíamos dizer que o livro é exemplar de uma escrita kantianamente desinteressada, empreendida por alguém que teve tempo de deixar o pensamento, na "tranquilidade desapaixonada" (p. 121) 2 A(s) página(s) entre parênteses que aparece(m) no texto faz(em) referência, sempre, ao livro resenhado (Jardim, 2011). 2, concentrar toda sua atenção naquilo que julga fundamental do que Arendt escreveu e argumentou. Assim, Eduardo Jardim apresenta ao leitor um modesto e bem articulado retrato. No entanto, por tratar de uma pensadora cuja vida foi marcada por deslocamentos, muitos deles forçados, e cuja filosofia é caracterizada como "trains of thought"3 3 Diversos comentadores do pensamento arendtiano utilizam essa expressão. Tradicionalmente, a expressão é associada a Thomas Hobbes, em cujo terceiro capítulo da primeira parte de seu Leviatã se lê: "On the consequence or train of imagination". , fica evidente que qualquer tentativa de se fazer um retrato de Hannah Arendt deve, necessariamente, corresponder muito mais a uma cartografia - sem causalidade histórica ou exposição linear de acontecimentos - do que a um mapa ou a uma fotografia. E, como se pode ler logo na orelha do livro, é assim que o novo livro de Eduardo Jardim, agora exclusivamente sobre Hannah Arendt4 4 Além de livros sobre o modernismo brasileiro, o escritor e professor de filosofia Eduardo Jardim organizou em 2001 o livro Hannah Arendt: diálogos, reflexões, memórias, em conjunto com Newton Bignotto, e publicou em 2007 o livro A duas vozes: Hannah Arendt e Octavio Paz, uma elegante ficção que realiza um diálogo imaginário - e imaginável, já que ambos foram contemporâneos nas classes que ministraram na Universidade de Cornell (EUA), entre 1965 e 1966 - entre os dois personagens - "pensadores da crise e de um novo início" - e, assim, entre pensamento e poesia; e política. , se apresenta: um longo itinerário em três curtas etapas.

O subtítulo do livro, "pensadora da crise e de um novo início", alcunha atribuída também a Octavio Paz pelo próprio Eduardo Jardim (2007, p. 11), é a síntese da tese do livro e da visão do autor sobre Hannah Arendt, além de representar especialmente a trajetória bibliográfica que ele escolhe seguir: das crises estudadas em Origens do totalitarismo (1951), em A condição humana (1958) e em Sobre a revolução (1963), até alcançar as especulações filosóficas sobre as condições de possibilidades para se iniciar um mundo novo em A vida do espírito (1978), que é apresentada como uma retomada de questões deixadas em aberto desde 1958 e ressuscitadas por meio de Eichmann em Jerusalém (1963).

Desde o início do capítulo 1, Jardim enfoca Arendt como pensadora da crise e, em especial, da crise moderna relacionada à autoridade política como estabilizadora dos processos humanos. Por isso o capítulo é intitulado "O totalitarismo e a crise da autoridade". Jardim indica que a pretensão de Arendt, acompanhando Nietzsche em relação ao primeiro aspecto, era tentar não fazer como os cientistas que "reduzem o desconhecido a algo que já é conhecido" (p. 25). Assim, Jardim explica que a tese central de Origens do totalitarismo, contrária às hipóteses em voga na época, afirma que "os regimes totalitários nazista e estalinista não foram formas exacerbadas de autoritarismo", porque, pelo contrário, a oportunidade em que essa situação se deu "foi condicionada pela ruína das instituições políticas tradicionais que sustentavam a autoridade política" (p. 10). Para tanto, ela teve de estudar como e por que "elementos subterrâneos da história europeia, como o antissemitismo e o racismo, puderam vir à tona e se cristalizar na experiência totalitária" (p. 26). E o fez adotando um ponto de vista retrospectivo, em que a ruptura provocada pelo evento mais recente abre brechas para que se esclareça o passado, conectando acontecimentos anteriores observados de forma dispersa.

Sobre o primeiro uso político do antissemitismo como ideologia, Jardim indica que Hannah Arendt o situa nos anos 70 do século XIX, tendo surgido como uma reação ao processo, iniciado após a Revolução Francesa, de assegurar a integração dos judeus, individualmente, à vida em sociedade por meio da assimilação, que funcionou como mera naturalização de identidades. Esse processo, no entanto, não foi seguido pela formulação de leis - o que garantiria a institucionalização do estatuto da igualdade política. Correu-se o risco, como de fato aconteceu, de fazer daquilo que parecia ter um sentido humanitário apenas uma mudança de atitude; mudança essa que acompanha as intempéries das circunstâncias. Como escreveu Arendt, ao passo que a lei garante a punição para os que a violam cometendo crimes, a assimilação levou apenas à tolerância, temporária, do que ainda permanecia sendo visto como vício - até que se começou a querer eliminá-lo da sociedade. Embora os judeus tenham ajudado a financiar Estados nacionais europeus, que puderam ver suas riquezas se expandirem de modo extraordinário na segunda metade do século XIX, diante daquele risco inerente à assimilação o que se seguiu foi a desagregação política, gerada pela necessidade de se criarem mecanismos de dominação e controle. Isso colocou a violência no centro da (e contra a) política - movimento que Arendt sintetizou a partir da noção kantiana de "mal radical" e, posteriormente, por meio da expressão "banalidade do mal".

Assim, Jardim escreve que a tese principal da sessão sobre o imperialismo, em Origens do totalitarismo, pode ser resumida assim: "a um infindável acúmulo de propriedade teve que corresponder um infindável acúmulo de força" (p. 33) e também uma nova noção de progresso, que "passou a significar um movimento incessante e repetitivo, que não é orientado na direção de um fim a ser alcançado" (p. 60). Desse cenário é que surgiu a condição para que o nazismo e o stalinismo se firmassem: da exploração política da solidão, experimentada no fenômeno das massas, com a formação "de uma população completamente homogênea formada por homens solitários" (p. 35), cuja característica principal é a de estarem isolados entre si pela alienação e apartados de seu próprio mundo pelo difuso terror totalitário. Essa suposta ideologia seria, então, a expressão de um movimento histórico que foi superposto, no totalitarismo, a todo e qualquer "acerto entre os homens" (p. 39).

Um leitor menos crédulo, ao questionar a força de terror tão difuso e a real disseminação e utilização de ideologia tão abstrata, que estaria "escondida por trás de tudo que aparece" (p. 40), verá - mas somente no último capítulo, e em um único parágrafo - que Jardim recupera uma carta de Arendt a Mary McCarthy para garantir que, diante do vivido no julgamento de Eichmann, "ela reconheceu que tinha superestimado o peso das ideologias nas decisões tomadas pelos administradores dos regimes totalitários" (p. 112). Essa revisão alteraria uma das teses controversas do livro de 1951, pois faria da ideologia - do racismo e do antissemitismo - somente o passo historicamente inicial, e não mais o motor que impulsionara o sistema, dado que "uma espécie de automatismo do terror totalitário se tornara, nos últimos tempos da guerra, mais importante" (p. 112).

Animado com a indicação de que há espaço para revisões, um leitor mais crítico talvez pudesse questionar também a constante e quase irrestrita aproximação - para não dizer identificação - entre o movimento nazista alemão e a URSS bolchevique, feita por Arendt por meio da noção de "totalitarismo", e assumida por Jardim sem considerar, mais detidamente, a problematização que ocorreu desde o lançamento da obra em 19515 5 Nota-se que não há no livro nenhuma menção: 1) às críticas que vieram de autores marxistas, apontando diferenças tanto nas noções de raça e classe, empregadas respectivamente pelo nazismo e pelo stalinismo, quanto nos "objetivos" dos dois sistemas; 2) às críticas que foram feitas por historiadores, diminuindo a importância de um conceito único com o totalitarismo para compreender as especificidades históricas de cada movimento; 3) ao fato de que documentos que permitiriam uma historiografia mais fundamentada do poder soviético só se tornaram acessíveis depois de 1989. Tampouco apresentamos quaisquer indícios de respostas, e observamos que o leitor, confuso, encontrar-se-á desamparado para compreender tais questões ou mesmo para buscar alguma referência nesse sentido. .

De todo modo, procurando situar a noção de domínio político em termos históricos e filosoficamente mais amplos, Eduardo Jardim encerra o primeiro capítulo empreendendo longa argumentação para embasar a tese de que Arendt trata, fundamentalmente, da crise da autoridade no mundo moderno e a relaciona a dois aspectos: "a perda da importância dos critérios do homo faber" (p. 44), que davam estabilidade ao mundo e sentido e finalidade ao progresso; e o risco de destruição que ameaça constantemente o mundo, agora advindo do que se tornou a própria política - ou melhor, dos preconceitos disseminados contra ela.

Assim é que, no capítulo 2, intitulado sumariamente "Política", Jardim ocupa-se da teoria política arendtiana - que ele centra no conceito de ação - e que, como ele argumenta, foi desenvolvida a partir do "questionamento do preconceito atual contra tudo que é de natureza pública e plural" (p. 11). O mais abrangente capítulo do livro articula-se por meio de A condição humana para fazer conexões com as demais obras (e, principalmente, com anotações só publicadas postumamente), levando-nos ao "exame da tradição do pensamento político e [ao] relato da história das revoluções modernas" (p. 11), embora não se debruce particularmente sobre as críticas à modernidade e ao marxismo, que ocupam boa parte do livro "mais influente" de Arendt.

A chave de leitura advinda do estudo dos preconceitos contra a política é crucial para estabelecer a conexão entre a novidade só alcançada por meio da ação - que poderia renovar a dignidade da política e explicitar que seu sentido é a liberdade - e a faculdade de julgar, que deve ser exercitada a partir de "verdadeiros juízos", examinados e purgados pelo pensamento (cf. Jardim, 2011, p. 69). Eduardo Jardim elenca os três principais preconceitos envolvidos na compreensão da política, que reforçavam "o estado de espírito que predominava nos anos em que Hannah Arendt trabalhava em sua Introdução à política" (p. 70): 1) o Estado é o locus da política, e a liberdade está fora dela ou é contra ela; 2) a política carece de moralidade, e as lideranças políticas devem fundamentar sua autoridade em um código moral externo à política; 3) a política ou é um instrumento de destruição do qual temos de nos livrar, ou é um instrumento de bem-estar, e deve ser subordinada às necessidades sociais para assegurar a concessão de benefícios - isto é, em ambos os casos a política está associada à violência como meio de garantir a ordem pública ou de tomar o poder.

Tendo a política perdido sua dignidade, diagnóstico dado pela proliferação dos preconceitos contra ela, e cujo sintoma mais visível é a perda de sentido da política - isto é, da liberdade como seu sentido, a posição de Hannah Arendt sobre a noção de liberdade é situada fora e além da polaridade filosófica que a enfoca como "negativa" ou "positiva". Eduardo Jardim diz que Arendt extrai sua visão sobre a liberdade dos ensinamentos de Heidegger sobre Aristóteles, que ela leu em seus seminários em Marburgo, ainda nos primeiros anos como universitária, e indica que "ela não se identificava com a posição liberal que dissociava a liberdade da política" (p. 77-78). Além disso, como sua principal intenção com a teoria da ação é retomar a importância da iniciativa e da espontaneidade para a experiência política, Arendt percebe que, "ao postular a existência de um princípio diretor ou de uma finalidade da política, [a noção de liberdade positiva] apresenta-se como um obstáculo para a apreensão da dimensão da espontaneidade" (p. 79).

Mesmo sem problematizar a postulação da necessidade de transcendência de motivos e objetivos para que uma ação seja livre, Eduardo Jardim advoga que essa noção de ação é determinante contra a concepção instrumental da política. Embora as pistas sejam escassas nesse sentido, do que pudemos compreender com o exposto no livro de Jardim, a ação - talvez o conceito mais amplo, poderoso e abstrato da autora alemã - pode ser articulada por meio do que vamos denominar como os três modos fenomênicos da ação: 1) performatividade, que é o modo de revelação do agente no e através do ato; 2) aparição, que é o modo de revelação das palavras e atos no mundo; 3) narração, que é o modo de revelação dos acontecimentos, na imortalização do agente.

A postulação de que a teoria da ação arendtiana "não contém nenhuma referência à violência" (p. 84), o que a torna intercambiável com a visão da autora sobre o poder, também figura no texto de Eduardo Jardim sem mais comentários ou críticas. O argumento principal, que Jardim indica ter sido desenvolvido em Sobre a violência (1970), pode ser resumido assim: porque a fabricação é da mesma natureza que a destruição, e sempre contém um elemento de violência, isolar a ação do domínio instrumental implica considerar o poder advindo desse "agir coletivo" como essencialmente não violento. Os objetivos da autora, mais nobres do que a fragilidade do argumento faz parecer, visavam justamente avaliar um ponto negligenciado por Eduardo Jardim: os limites da novidade da ação6 6 Maria Aparecida Abreu escreveu sua dissertação de mestrado sobre o tema e publicou-a no livro Hannah Arendt e os limites do novo (Abreu, 2004). . Hannah Arendt avaliou esse aspecto nas revoluções francesa e russa e em seus descaminhos - a eterna luta, historicamente violenta, entre a iniciativa da espontaneidade, do lado da força do agente, e a continuidade com estabilidade, do lado da força institucional. É claro que Jardim está cônscio dessas questões e do imbricado problema que elas carregam, mas seu esforço em apresentá-las se atém aos conceitos de Promessa e Perdão, às personalidades exemplares enfocadas em Sobre a revolução e à menção aos conselhos populares - que ele diz serem "formas de organização que mantinham uma estreita e ainda muito viva ligação com a ação" (p. 96), embora não sejam instrumento nem resultado da ação.

Mesmo assim, talvez antevendo o problema que surge sempre que se assume a tese arendtiana de que ação não se associa ao interesse e de que, por isso, a política não se relaciona com a vontade, Eduardo Jardim enfoca essa discussão a partir do argumento arendtiano contra a concepção moralista da política, exposta acima no segundo preconceito. Ao leitor desatento, ou descuidado pelo autor, esse ponto pode parecer não ter relação com o problema inicial. No entanto, é preciso ressaltar que, se a discussão sobre "o Querer" está ali, é justamente para enfatizar que, quando a liberdade (política) é vista como diferente do livre-arbítrio - e não diz meramente "eu quero" para duas opções já dadas -, a política reaproxima-se do poder-de, que implica fazer, e não mais somente daquele poder-sobre o outro, que implica dominar7 7 Essa distinção, apesar de coincidir em essência com o que enfatiza Arendt, se encontra na verdade em Holloway (2003). . Em outras palavras, diante desse "abismo da liberdade", como Arendt escreveu em A vida do espírito, a busca é pela expressão da capacidade de humana de, sendo um initium, poder criar um novo mundo por meio do milagre da ação.

Por já ter feito a apresentação do tema da vontade, o autor pode se ater, no último capítulo, "A vida do espírito", a explicitar a conexão entre ação e pensamento - já que "o pensamento não é parte da ação" (p. 106), mas consiste "no outro lado da ação" (p. 107). O tema do pensar é abordado na obra inacabada A vida do espírito a partir de duas questões principais: "qual é a relação do fazer-o-mal com o pensamento?" e "o que é, então, pensar?". Invertendo a ordem das questões, Eduardo Jardim explica que, para Arendt, o pensar é a retirada do mundo, sendo diferente e oposto ao agir, ao passo que o juízo é, justamente, a volta ao mundo das aparências para lidar com os particulares.

Além disso, ele parte da controversa tese de que há um "vínculo de complementaridade das atividades espirituais de pensar e julgar" (p. 11) para fazer o leitor entender "que o juízo poderia ser a mediação que possibilita ao sujeito pensante retornar ao mundo concreto, a morada habitual dos homens" (p. 12). Embora o argumento seja bastante pertinente, a controvérsia recai sobre o modo como se dá essa complementaridade, uma vez que as atividades do pensar, do querer e do julgar são tomadas por Arendt como inter-relacionadas8 8 Para exposição mais detalhada do argumento, cf. Arendt (2008, p. 215). , mas também como independentes, para que nenhuma delas se confunda com alguma outra. Assim, parece que o que se chama de complementaridade poderia ser mais bem encarado como uma espécie de precedência temporal entre componentes de uma mesma constelação, articulados em um círculo virtuoso, em que pensamento e juízo se potencializam mutuamente, sem que um do outro dependa ou sem que com ele se deixe confundir; e, por suas atividades específicas, sem que um seja somente o que falta ao outro.

Então, para dar conta do mal como a ausência de pensamento, exemplarmente vista no caso da irreflexão de Eichmann, Hannah Arendt precisa conciliar a consciência que surge do diálogo "dois-em-um" - e que transfere a autoridade moral externa para uma lei moral interior - com a possibilidade de fazer da extrapolação desse "amigo", que surge quando "eu também sou para mim mesmo" (Arendt, 2008, p. 205), uma comunidade imaginada - em que o Um é um Outro. E, somando-se a isso o assentimento pelo reconhecimento9 9 Para mais detalhes sobre esse reconhecimento, cf. Arendt (2008, p. 469-470). , finalmente da dualidade chegar-se-ia a uma pluralidade, a uma comunidade política. O objetivo é impedir que a consciência se isole como consciência de si e se transforme em má consciência quando da interrupção do diálogo consigo - pois, como sugerem as palavras de Ricardo III, relembradas por Arendt (2008, p. 212) e por Jardim (2011, p. 126), "consciência é apenas uma palavra que os covardes usam". Somente desse modo pode-se experimentar

o sentido ético-político do sensus communis que, pelo poder da imaginação, reaparece como uma comunidade de tantos outros quanto possível for - e isso é a própria mentalidade alargada kantiana (cf. Jardim, 2011, p. 143). Com essas ideias em vista, mas afirmando ainda que "a existência de um mundo que possa ser reconhecido e partilhado pelos homens depende do exercício do confronto de diferentes perspectivas, por uma pluralidade de espectadores" (p. 153, grifo do autor), Eduardo Jardim pode expor sua tese final:

o componente depurador da atividade de pensar promove a liberação de outra atividade do espírito - o juízo - que permite fazer distinções entre o certo e o errado, o belo e o feio, as quais são indispensáveis na avaliação de tudo que se passa no mundo. (...) Essa capacidade de julgar os eventos singulares, sem submetê-los a regras gerais, tem importância central para a vida humana (p. 140-141).

Em resumo, e para concluir a resenha, é preciso que se diga que o mérito do livro de Eduardo Jardim está na capacidade de apresentar sintética e nitidamente, e quase sem interferências, o caminho de um pensamento que começou a desdobrar-se em 1933, quando se colocou em situação de deslocamento forçado, que alcançou o ápice do tháuma, do estarrecimento, em 1943, quando tomou conhecimento de Auschwitz, e que se manteve ativo e atrelado às experiências mundanas até o último suspiro da vida. Como sabemos, tendo Hannah Arendt terminado, no sábado anterior, a seção sobre "o Querer", foi na noite de quinta-feira, 4 de dezembro de 1975, quando recebia amigos em casa, logo após ter escrito à máquina as duas epígrafes de "o Julgar", que ela deixou de estar-entre-os-homens - embora a herança de seu pensamento continue sendo aproveitada por novas gerações. A questão que nos acompanha, no entanto, é saber como lidar com o testamento que nos chega, dessa vez por meio do livro de Eduardo Jardim, uma vez que escutemos - ainda que com alguma desorientação - aquilo que Arendt tão claramente dizia e praticava: "Tout comprendre n'est pas tout pardonner"10 10 Apud Jardim (2011. p. 21). "Tudo compreender não é tudo perdoar" (tradução do autor). .

Referências

ABREU, Maria Aparecida (2004). Hannah Arendt e os limites do novo. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2004.

ARENDT, Hannah (1993). "Só permanece a língua materna", em A dignidade da política: ensaios e conferências. Tradução de Helena Martins. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.

______ (2008). A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar. Tradução de Cesar Augusto R. de Almeida, Antônio Abranches e Helena Franco Martins. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

BONDER, Nilton (1998). A alma imoral: traição e tradição através dos tempos. Rio de Janeiro: Rocco.

HOLLOWAY, John (2003). Mudar o mundo sem tomar o poder: o significado da revolução hoje. Tradução de Emir Sader. São Paulo: Viramundo.

JARDIM, Eduardo (2007). A duas vozes: Hannah Arendt e Octavio Paz. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

______ (2011). Hannah Arendt: pensadora da crise e de um novo início. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

Recebido em 31 de maio de 2013.

Aprovado em 20 de agosto de 2013.

  • ABREU, Maria Aparecida (2004). Hannah Arendt e os limites do novo Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2004.
  • ______ (2008). A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar Tradução de Cesar Augusto R. de Almeida, Antônio Abranches e Helena Franco Martins. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
  • BONDER, Nilton (1998). A alma imoral: traição e tradição através dos tempos Rio de Janeiro: Rocco.
  • HOLLOWAY, John (2003). Mudar o mundo sem tomar o poder: o significado da revolução hoje Tradução de Emir Sader. São Paulo: Viramundo.
  • JARDIM, Eduardo (2007). A duas vozes: Hannah Arendt e Octavio Paz Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
  • ______ (2011). Hannah Arendt: pensadora da crise e de um novo início Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
  • 1
    Apesar de figurar uma "pequena biografia" de Hannah Arendt no início do livro de Eduardo Jardim, notamos que o modo como o autor corresponde à presumida exigência de considerar a biografia da pensadora alemã é menos pela descrição de sua vida, e mais por meio de indicações das "circunstâncias em que seus textos foram redigidos" (p. 12). Seria o caso de nos perguntarmos, então: o que queremos que permaneça, o que podemos fazer que sobreviva, da vida de Hannah Arendt, em sua obra - para evitar que a autora se deixe "apanhar nas armadilhas de suas próprias construções" (Arendt, 1993, p. 133)?
  • 2
    A(s) página(s) entre parênteses que aparece(m) no texto faz(em) referência, sempre, ao livro resenhado (Jardim, 2011).
  • 3
    Diversos comentadores do pensamento arendtiano utilizam essa expressão. Tradicionalmente, a expressão é associada a Thomas Hobbes, em cujo terceiro capítulo da primeira parte de seu Leviatã se lê: "On the consequence or train of imagination".
  • 4
    Além de livros sobre o modernismo brasileiro, o escritor e professor de filosofia Eduardo Jardim organizou em 2001 o livro Hannah Arendt: diálogos, reflexões, memórias, em conjunto com Newton Bignotto, e publicou em 2007 o livro A duas vozes: Hannah Arendt e Octavio Paz, uma elegante ficção que realiza um diálogo imaginário - e imaginável, já que ambos foram contemporâneos nas classes que ministraram na Universidade de Cornell (EUA), entre 1965 e 1966 - entre os dois personagens - "pensadores da crise e de um novo início" - e, assim, entre pensamento e poesia; e política.
  • 5
    Nota-se que não há no livro nenhuma menção: 1) às críticas que vieram de autores marxistas, apontando diferenças tanto nas noções de raça e classe, empregadas respectivamente pelo nazismo e pelo stalinismo, quanto nos "objetivos" dos dois sistemas; 2) às críticas que foram feitas por historiadores, diminuindo a importância de um conceito único com o totalitarismo para compreender as especificidades históricas de cada movimento; 3) ao fato de que documentos que permitiriam uma historiografia mais fundamentada do poder soviético só se tornaram acessíveis depois de 1989. Tampouco apresentamos quaisquer indícios de respostas, e observamos que o leitor, confuso, encontrar-se-á desamparado para compreender tais questões ou mesmo para buscar alguma referência nesse sentido.
  • 6
    Maria Aparecida Abreu escreveu sua dissertação de mestrado sobre o tema e publicou-a no livro Hannah Arendt e os limites do novo (Abreu, 2004).
  • 7
    Essa distinção, apesar de coincidir em essência com o que enfatiza Arendt, se encontra na verdade em Holloway (2003).
  • 8
    Para exposição mais detalhada do argumento, cf. Arendt (2008, p. 215).
  • 9
    Para mais detalhes sobre esse reconhecimento, cf. Arendt (2008, p. 469-470).
  • 10
    Apud Jardim (2011. p. 21). "Tudo compreender não é tudo perdoar" (tradução do autor).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Nov 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 2013
    Universidade de Brasília. Instituto de Ciência Política Instituto de Ciência Política, Universidade de Brasília, Campus Universitário Darcy Ribeiro - Gleba A Asa Norte, 70904-970 Brasília - DF Brasil, Tel.: (55 61) 3107-0777 , Cel.: (55 61) 3107 0780 - Brasília - DF - Brazil
    E-mail: rbcp@unb.br