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Alain Rouquié - A la sombra de las dictaduras: la democracia en América Latina

RESENHA

Alain Rouquié - A la sombra de las dictaduras: la democracia en América Latina

Carlos Artur Gallo

É doutorando do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Porto Alegre, RS, Brasil)

Podemos afirmar que o fim das ditaduras de segurança nacional na América Latina representou uma ruptura de fato com o autoritarismo? Há, na atualidade, heranças culturais e institucionais do autoritarismo convivendo com regimes democráticos no continente latino-americano? Em que medida as transições à democracia iniciadas com a terceira onda de democratizações (Huntington, 1994) permitiram que fossem consolidadas democracias imunes a novos regimes de exceção?

Em seu livro A la sombra de las dictaduras ("À sombra das ditaduras"), Alain Rouquié (cientista político francês e autor do clássico O Estado militar na América Latina) realiza uma interessante e consistente análise, a qual nos permite compreender que resquícios dos governos autoritários seguem presentes na atualidade, desafiando as democracias restauradas no final do segundo milênio. Nas palavras do autor:

[...] as "democracias restauradas" não são regimes totalmente representativos como os outros. São as herdeiras das ditaduras, quando não suas prisioneiras. E os jogos de coerções que os autoritarismos imprimem na cultura política não as afetam menos que os arranjos institucionais que estes instalaram (p. 15, tradução nossa).

Dividido em cinco partes, o estudo começa com um panorama histórico da democracia na América Latina. Ao fazê-lo, tendo como ponto de partida o contexto dos processos de independência e a formação dos Estados Nacionais na região, Rouquié realiza duas observações importantes. Em primeiro lugar, ao estabelecer uma relação entre os caminhos da democracia com os movimentos pró-independência, o autor chama a atenção para o fato de que o regime democrático não é uma novidade no continente. Mais do que isso, destaca que a democracia começa a ser colocada em prática na América Latina antes de mesmo do que em muitos países da Europa continental.

Ao analisar a forma como os regimes políticos pós-independência trataram das dimensões da "representação" e da "participação" política, Rouquié, encaminhando-se para conclusão da primeira parte do estudo, salienta que:

A democracia, esse regime em que o povo exerce a soberania, é portanto indissociável da formação dos Estados independentes da América Latina. Mas os grupos dominantes têm como objetivo principal aquilo que se denominou a "construção da ordem". Com esse fim se esforçaram para preservar a legitimidade fundacional, ao mesmo tempo que, em nome da razão política, evitam o descontrole da multidão (p. 47, tradução nossa).

Impossibilitando a ampliação da participação popular, por um lado, e ampliando o abismo entre o que era "legal" e o que era "real", por outro, os construtores da democracia lançaram as bases para que, "em nome da ordem", a crença na tendência à anarquia do povo justificasse o endurecimento das políticas estatais. Assim, os anseios de uma sociedade marcada pela herança colonial, e ainda apoiada na acumulação de riqueza com base na mão de obra escrava, foram canalizados de modo que, na dúvida, o autoritarismo fosse visto como solução viável caso os cidadãos quisessem ocupar seu lugar na esfera pública.

Não surpreende o leitor, portanto, que, ao dar sequência à narrativa histórica no capítulo intitulado "La ciudadanía en un continente autoritário" ("A cidadania em um continente autoritário"), o autor demonstre a forma como a "soberania popular" almejada no início do século XIX vai sendo, pouco a pouco, inviabilizada pela manutenção da ordem e pelo desenvolvimento econômico. Como consequência direta dessas práticas, Rouquié constata que se constituem pelo continente "democracias sin ciudadanos" (p. 106).

Nessas democracias sem cidadãos, contudo, toda vez que a vontade da maioria não coincide com a vontade das minorias que detêm o poder, recorre-se ao autoritarismo como solução legítima diante de qualquer tentativa de "subversão da ordem". Desse modo, conforme analisa o autor ao longo da terceira parte do livro, as ditaduras tornam-se frequentes na história do continente, constituindo-se, em alguns casos, quase como algo "natural" ou "inerente" ao pleno desenvolvimento dos processos políticos.

Por isso, ao notar que ditaduras foram comuns na história latino-americana, e que, sobretudo ao longo do século XX, o autoritarismo foi constantemente utilizado no continente, a análise de Rouquié recai justamente nas possibilidades de ocorrer uma continuidade das ditaduras por outros meios. Ao fazê-lo, o autor amplia o foco de sua análise para além dos regimes burocrático-autoritários (O'Donnell, 1986) instalados no contexto da Guerra Fria, com o estabelecimento de coalizões civis-militares, e fornece ao leitor um panorama rico, repleto de dados e referências a respeito das ditaduras que ocorreram não só no Cone Sul mas também nos países andinos, na América Central e no México.

Mas, se analisar um lapso temporal de quase duzentos anos de história política torna o estudo de Rouquié rico, é fato, no entanto, que a escolha do recorte do seu objeto também carrega consigo algumas limitações. Nesse sentido, embora a opção por uma análise de conjuntura política extensa seja evidentemente relevante, o autor assume o risco de minimizar o impacto que a aplicação da Doutrina de Segurança Nacional (DSN) teve na região, uma vez que parece considerar todas as manifestações autoritárias como expressão de um "vício de origem" da formação dos Estados Nacionais latino-americanos.

Se há evidências históricas de que traços autoritários estão presentes nesses países "desde sempre", é importante não esquecer, contudo, que a aplicação da DSN trouxe consigo mudanças importantes na estruturação dos regimes instalados a partir da década de 1960, especialmente no Cone Sul. Com base na ideia de que havia um inimigo interno a ser combatido, e que, mais do que isso, inimigos internos em potencial eram todos os cidadãos, em nome da Segurança Nacional foram cometidas milhares de violações aos direitos humanos pelos agentes do Estado, ocorrendo tudo dentro de uma estrutura repressiva burocratizada e seguindo uma lógica de atuação altamente racionalizada (Padrós, 2008).

Apesar da limitação destacada, a abordagem de Rouquié tem seu mérito garantido porque, de forma clara, e com riqueza de informações, oferece ao leitor uma interessante interpretação sobre as origens do autoritarismo nas antigas colônias espanholas e portuguesas, combinando, para tanto, variáveis explicativas institucionais e culturais. Ademais, outro mérito encontrado nessa parte da exposição é a realização de um diálogo do autor com a literatura produzida por estudiosos que, entre 1960 e 1990, tentaram explicar: 1) o surgimento dos regimes autoritários (Cardoso, 1972; Dreifuss, 1981; O'Donnell, 1986; Reis, 1984; Santos, 1986); 2) a dinâmica dos processos de transição à democracia (O'Donnell e Schmitter, 1988; O'Donnell, Schmitter e Whitehead, 1988); 3) as possibilidades de consolidação do regime democrático nos países atingidos por golpes de Estado no contexto da Guerra Fria (ver, por exemplo: Moisés, 1995; Reis e O'Donnell, 1988; Rouquié, Lamounier e Schvarzer, 1985; Sallum Junior, 1988; Stepan, 1988; Zaverucha, 1994).

Dito isso, outra contribuição relevante da terceira parte do livro é o fato de o autor, ao observar as práticas e os mecanismos institucionais que permitem uma continuidade das ditaduras mesmo em ambiente democrático, fazer uma reflexão sobre as possibilidades de que as "novas democracias" latino-americanas se libertem dos legados autoritários existentes, deixando de ser, nas palavras de Rouquié, "prisioneros del pasado" (p. 182). Mas:

Como desapareceriam as práticas autoritárias quando os principais atores dos regimes ditatoriais seguem presentes, e dispõem de poderes institucionais para pesar sobre as decisões que comprometem tanto o pasado como o futuro? (p. 157, tradução nossa).

Uma possibilidade de se enfrentarem os legados do autoritarismo, conforme refere o autor, encontra-se nas demandas organizadas em torno da tríade "Memória, Verdade e Justiça". Uma vez que em nome dos regimes autoritários e na luta contra os subversivos foram perpetradas incontáveis violações aos direitos humanos, é nas mobilizações em torno da reparação (simbólica e pecuniária) das vítimas que encontramos, na atualidade, lugar para reflexão sobre "como" e "quando" lidar com as memórias de um período que deixou marcas indeléveis na história do continente.

Nesse sentido, entre avanços e retrocessos, cidadãos da América Latina têm convivido, após as transições à democracia, com mecanismos que, de alguma forma, buscam não só a obtenção de um acerto de contas com o passado mas também o estabelecimento de uma nova cultura capaz de fortalecer a democracia. Esse é o caso, por exemplo, do trabalho das Comissões da Verdade instaladas em países como a Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai, Bolívia, Peru, Equador, El Salvador, Guatemala, Haiti, Panamá e, mais recentemente, no Brasil.

Se os resultados dos trabalhos dessas Comissões e a implementação de uma série de políticas públicas destinadas às vítimas da repressão não garantem o fim das violações aos direitos humanos e a sua não repetição, a existência de tais medidas, em última análise, sinaliza um avanço que, na prática, contribui (em alguns casos mais profundamente) à reflexão sobre o que se espera de um regime democrático.

Após analisar as possibilidades de fortalecimento desse regime através da recomposição do passado e do enfrentamento dos legados do autoritarismo que se encontram convivendo com as novas democracias, Rouquié, na quarta parte do livro, analisa os perigos da "tentación mayoritaria" (p. 191). Nesse capítulo, o autor observa as "novidades" surgidas no cenário político recente, tratando de verificar o que as aproxima (ou afasta) de práticas políticas anteriores, tais como o coronelismo e o populismo.

Traçando um paralelo entre o surgimento de "novos populismos", por um lado, e de um "socialismo do século XXI", por outro, o autor chama a atenção para o fato de que as condições sociais e culturais que tornaram possível um populismo "à la Getúlio Vargas" (industrialização, urbanização, expansão do capitalismo internacional etc.), por exemplo, não estão presentes na atualidade. Por isso, no que se refere à tentativa de recorrer à obtenção da maioria da população mediante a elaboração de discursos revolucionários ou com a promessa de políticas "socializantes", caso de Hugo Chávez (presidente da Venezuela morto em 2013), o autor destaca que, embora não se possa afastar a possibilidade da instrumentalização de vias autoritárias pelos ocupantes do poder no continente, o contexto das novas democracias inviabiliza o acesso facilitado aos seus mecanismos.

Assim, constatando que eleições regulares, alternância no poder, e que instituições políticas relativamente estáveis estão presentes no cenário político latino-americano pós-Guerra Fria, ainda que com alguns sobressaltos, a América Latina vive o período democrático mais extenso da sua história, Rouquié conduz o leitor à última parte do seu estudo.

Intitulado "De las democracias entre esperanza y sospecha" ("Das democracias entre a esperança e a suspeita"), o quinto capítulo do livro começa com a apresentação de uma leitura bastante otimista do autor para com o atual cenário político do continente. No sentido referido, o autor chama o período atual de "primavera democrática" (p. 278), uma vez que, após anos de instabilidade política combinada com a existência de regimes autoritários, há regimes democráticos em toda América Latina.

Apesar da primavera, não há só flores no horizonte. Por isso, embora a participação política dos cidadãos tenha sido ampliada nas últimas décadas, tendo ocorrido, entre o final dos anos de 1990 e o início dos anos 2000, amplas mobilizações populares contra os resultados das políticas econômicas e sociais neoliberais implementadas pelos governantes, o exercício da cidadania segue, na prática, e na maior parte do tempo, restrito à participação nas eleições.

A democracia, conforme afirma Rouquié ao concluir sua análise, "não está inscrita na natureza. É uma construção cultural complexa, sujeita à sorte, que avança com tentativa e erro" (p. 354, tradução nossa). Entre avanços promissores e recuos inquietadores, a história dos regimes democráticos latino-americanos nos dá prova inequívoca de que não há, como diz o ditado popular, mal que dure para sempre. Se o final dos regimes autoritários é algo promissor, no entanto, não podemos deixar de notar que, entendida como uma construção política e social, a democracia não se sustenta sozinha, sendo necessário, para mantê-la, o aperfeiçoamento constante dos atores sociais e das instituições que os representam.

Embora acreditemos que a intenção de Rouquié não era esta, em alguns momentos a análise por ele empreendida parece ser perpassada por uma visão um tanto quanto determinista dos processos históricos, políticos e sociais, segundo a qual a democracia na América Latina estaria invariavelmente limitada, em virtude dos traços autoritários presentes desde o século XIX. Apesar dessa ponderação, é fato que, em "A la sombra de las dictaduras", o leitor encontrará não só uma análise de conjuntura perspicaz da política latino-americana mas também dados históricos úteis e necessários à elaboração de novas reflexões sobre os caminhos e as possibilidades de desenvolvimento do regime democrático no continente.

Referências

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Recebido em 17 de setembro de 2013.

Aprovado em 4 de outubro de 2013.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Mar 2014
  • Data do Fascículo
    Abr 2014
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