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Racismo na Índia? Cor, raça e casta em contexto

Racism in India? Colour, race and caste in context

Resumos

Cor e raça estão entre as categorias-chave mais comuns usadas nos estudos sobre o fenômeno do racismo no mundo ocidental. Quando se fala em discriminação na Índia, o termo casta é aquele ao qual é geralmente atribuído maior poder explicativo. A análise de dois casos específicos - os dalits e os siddis (descendentes de escravos africanos radicados no estado de Karnataka) - revela diversas inter-relações e entrelaçamentos na construção, delimitação e transformação das categorias raça e casta - e isto não apenas no subcontinente indiano. As diferentes formas de discriminação e as estratégias para seu combate desenvolvidas pelos dalits e pelos siddis elucidam a insuficiência e inadequação de usos a-históricos desses dois conceitos para entendermos os múltiplos planos e as diferentes facetas dos processos de inclusão e exclusão vivenciados pelos dois grupos em questão.

raça; casta; racismo e antirracismo; diferença e desigualdade; dalits; siddis


Colour and race are among the most frequently used keywords in studies of the phenomenon of racism in the Western world. When the topic is discrimination in India, the term caste is often attributed the highest explanatory power. The analysis of two specific cases - the dalits and the sid(d)is (descendants of African slaves living in the State of Karnataka) - reveals several interrelations and interweavings in the construction, delimitation and transformation of the concepts of race and caste, which also extend beyond the Indian subcontinent. The different forms of discrimination, as well as the strategies developed by the dalits and the sid(d)is to fight them, elucidate the insufficiency and inadequacy of ahistorical usages of these concepts as a means of understanding the multiple levels and the different aspects of the processes of inclusion and exclusion experienced by both groups.

race; caste; racism and anti-racism; difference and inequality; dalits; siddis


Este artigo propõe-se a debater formas de discriminação e estratégias de combate a elas** ** Revisão técnica feita por Léa Tosold. . A exemplo de duas populações - sid(d)is e "dalits"1 1 O termo dalit (literalmente: oprimido, quebrado), preferido pela militância, designa aqueles que vivem na base do sistema de castas indiano. São também chamados de intocáveis, scheduled caste (designação oficial, como se verá em notas ao longo do artigo) e harijan (literalmente: filhos de Deus); este último termo preferido e disseminado por Gandhi. - que vivem situações extremas de discriminação, buscarei mostrar como contextos históricos e políticos influenciam não somente a formação de grupos, mas também (auto)avaliações a respeito da situação discriminatória; são circunstâncias em que os conceitos-chave citados tanto como critério de discriminação quanto como fator de identificação nos mais diversos discursos podem sofrer mudanças.

Ponto de partida para minha reflexão sobre cor, raça e casta na Índia são dois importantes acontecimentos ocorridos no âmbito de foros internacionais: a Conferência Mundial contra o Racismo, promovida em Durban em agosto de 2001, e a I Conferência sobre Diáspora Africana em terras asiáticas, que teve lugar em Goa, cinco anos mais tarde. Durante a Conferência Mundial contra o Racismo, houve um choque entre ativistas, representando os intocáveis, e a posição do governo indiano. Para muitos analistas, a atuação dos 180 delegados dalits significou o apogeu de uma longa luta histórica que tem procurado identificar "castismo" com racismo. A principal linha de argumentação dos militantes foi tentar mostrar que a discriminação decorrente da instituição de castas é comparável ao fenômeno da discriminação racial. A posição governista, que teve forte apoio de eminentes cientistas sociais indianos (como André Béteille), concentrou-se, por sua vez,em rebater a igualação entre casta e raça e insistiu, com êxito, na exclusão do sistema de castas dos documentos finais da conferência.

Já a I Conferência sobre Diáspora Africana em terras asiáticas foi uma reunião de teor acadêmico, embora tenha contado, ao mesmo tempo, com o apoio da Unesco. Na sua palestra de abertura, Gwyn Campbell, originário de Madagascar e historiador renomado da Universidade de McGill (Montreal), pôs em xeque o próprio nome do evento - "diáspora africana" -, uma vez que, segundo ele, tenderia a impor o padrão do "modelo atlântico" a uma realidade substancialmente diferente. Entre outros argumentos afirmou que, diferentemente da situação nas Américas, o tráfico de escravos na região do oceano Índico foi "colour-blind" (cego a diferenças de cor/raça) e que a maioria esmagadora dos descendentes de africanos na Índia contemporânea não teria uma consciência diaspórica. Haveria ocorrido um processo de integração e assimilação que explicaria por que os descendentes não se veem como africanos (Campbell, 2008CAMPBELL, Gwyn (2008). "Slave trades and the Indian Ocean world", em HAWLEY, John C. (ed.). India in Africa, Africa in India. Indian Ocean cosmopolitanisms. Bloomington: Indiana University Press., p. 41)2 2 Esta linha de argumentação pode ser embasada em vozes sid(d)is como a de um motorista de ônibus entrevistado pelo videomaker (Shroff 2004, p. 171): "Somos indianos e africanos - você vê, os indianos chamam-nos de africanos e nós dizemos que somos indianos. Hoje em dia, nossa maneira de viver, nossos costumes são indianos, certo? Não são lá da África, certo? Toda nossa maneira de viver, nossos costumes e parentes, tudo está na Índia. Não temos nada a ver com a África". No videodocumentário Voices of the Sidis (de 2005), produzido por Shroff (em Gujarat e Mumbai) e apresentado na conferência de Goa, diversos depoimentos expressam certa estranheza diante das perguntas dos intelectuais: assim, uma mulher sidi residente em Mumbai afirma não ter tempo para pensar sobre a África, uma vez que trabalha doze horas por dia; já outros deixaram claro que não gostam de ser identificados como africanos porque "como negros" teriam menores chances de conseguir um emprego (Van Kessel, 2011, p. 2). No evento, o documentarista levantou a seguinte pergunta retórica: "estaríamos nós, intelectuais, construindo uma identidade sidi, impondo-lhes uma identidade africana, enquanto eles mesmos talvez tenham diferentes questões?" (apud Van Kessel, 2006, p. 463). . A organização social de muitos deles aproximar-se-ia mais da instituição local das castas. Estudiosos afro-americanos, incomodados com a terminologia usada por cientistas que acentuavam um padrão indiano próprio, discordaram: insistiram numa outra perspectiva de olhar para a situação dos chamados sid(d)is, que caracterizam como um grupo racial. Ao chamar a atenção para a situação socioeconômica precária, além dos estereótipos negativos que a maior parte dos sid(d)is enfrenta, afirmaram a existência de uma mesma experiência discriminatória compartilhada por todos os negros diaspóricos ("a common black experience").

Se os dois eventos - Durban e Goa - abordaram, aparentemente, questões diferentes, considerando que o primeiro teve, a priori, uma conotação política, enquanto o segundo apresentava-se como primordialmente acadêmico, podemos perceber diversas convergências entre eles. Ambos tiveram no centro de seus debates as questões da diferença e da desigualdade; ambos tematizaram questões como casta, cor e raça. Chama, porém, a atenção o fato de, no caso dos dalits (intocáveis), haver uma longa tradição discursiva que busca relacionar casta com cor/raça, enquanto que, no caso dos sid(d)is, sobre os quais não há dúvida de sua proveniência africana, essa tradição parece inexistir. Ambos os eventos incentivaram debates. As reações a Durban foram especialmente calorosas, já que se tratou de uma questão extremamente sensível que envolve toda a sociedade indiana e atinge, de forma especial, cerca de 160 milhões de intocáveis. O debate "casta-cor-raça" tem uma longa e complexa história, dentro da qual quero destacar somente alguns momentos importantes.

Casta e cor

Há certo consenso entre os pesquisadores de que os textos bramânicos fundacionais, o Rig Veda (escrito provavelmente entre 1.700 e 1.100 a.C.), fixaram uma diferenciação social fundamental: os quatro varnas (literalmente, cores) teriam surgido a partir de uma espécie de "ser originário" (purusha) sacrificado pelos deuses para poder criar o Universo. Da sua cabeça teriam surgido os brâmanes ou sacerdotes; dos braços, os xátrias (reis e guerreiros); das coxas, os vaixás (comerciantes e proprietários de terra); e dos seus pés, os sudras, ou seja, os serviçais, artesãos e trabalhadores. Os três primeiras varnas3 3 Os varnas constituem até hoje um esquema ordenador de referência fundamental; além disso, há as milhares de jatis - subcastas -, que orientam, na vida cotidiana, as interações sociais. O termo português casta fundiria varna e jati. eram considerados como sendo arya (puras) e habilitadas a participar dos rituais védicos; já os sudras, vistos como não arya, eram excluídos dos ritos4 4 No que diz respeito à noção da intocabilidade (asprishya), a maioria dos pesquisadores acredita que esta prática de exclusão e segregação social teria sido desenvolvida somente a partir do século V. Zeliott (2010) menciona relatos de viajantes chineses que, nesse período, constataram que açougueiros, pescadores e lixeiros eram obrigados a viver fora das cidades, o que, para este pesquisador, confirma a hipótese de que ocupação, e não descendência, estaria na base do fenômeno da intocabilidade. . Para (Omvedt 2003OMVEDT, Gail (2003). "Caste and Hinduism". Countercurrents.org., 29 nov. Disponível em: <http://www.countercurrents.org/dalit-mvedt291193.htm>. Acesso em: 5 mar. 2015.
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, p. 2), estas noções antigas dos varnas não correspondiam à descrição da sociedade tal como então funcionava, mas constituíam muito mais uma projeção de sociedade ideal tal como desejada pelos brâmanes, a qual, de acordo com esta intelectual-ativista, competiu, durante séculos, com outros projetos societais (p.ex. budistas).

Embora seja possível encontrar referências à valorização de cores claras no Rig Veda (diversas passagens expressam um simbolismo que valoriza a branquitude e deprecia a cor negra, criando, portanto, uma oposição de cores que pode eventualmente codificar a luta do Bem contra o Mal), não existe uma prova cabal de que a escolha da palavra ou denominação varna tivesse como objetivo principal identificar e justificar o pertencimento a determinadas castas por meio de classificações de grupos humanos em termos de cor de pele. Num texto dedicado à análise dos debates em torno da Conferência de Durban, o sociólogo Gupta avalia que a referência à cor clara (branca) nos textos védicos pode ser simplesmente um indício de que os arianos entendiam a si mesmos como "portadores de luz" (carriers of light), ansiosos por expulsar "a escuridão e a ignorância" que, na sua perspectiva, imperava na época pré-ariana. Além disso, aponta ainda para outra acepção de varna enquanto "ordem" para, em seguida, argumentar que as cores das bandeiras que representavam os quatro varnas espelhariam diferentes fases do percurso do sol: o vermelho associado aos xátrias indicaria o nascer do sol; o branco dos brâmanes, o sol ao meio-dia; o amarelo dos vaixás, o sol ao leste; e, finalmente, o azul dos sudras, o pôr do sol (Gupta, 2013________ (2013). "Caste, race, politics", em UMAKANT, Sukhadeo Thorat (ed.). Caste, race and discrimination. Discourses in international context. New Delhi: Indian Institute of Dalit Studies., p. 71, 72)5 5 Nesse contexto, Gupta critica aqueles que recorrem aos textos védicos para atribuir às castas origens raciais e acrescenta o seguinte questionamento: "Por que muitos de nós defendem uma teoria de duas raças e não de quatro?" (Gupta, 2013, p. 72). .

Leituras inspiradas em teses pan-africanistas como a de Joseph Harris, no entanto, veem, até hoje, um nexo entre esse simbolismo e as cores de pele de duas populações entre as quais haveria hierarquização. Numa das primeiras obras que analisam "a presença africana" na Ásia, esse pesquisador estadunidense faz também referências ao Rig Veda. Chama a atenção para aqueles hinos que prezam a "benevolente deusa Indra", apresentada, por ele, como "a especial campeã dos arianos", e enaltecem o empenho da divindade no combate e na expulsão dos chamados dasyus - "os de pele negra (black skin), as raças escuras (darkhued races), aquelas criaturas escuras (darksome creatures), os dasyus sem narizes [de narizes achatados] (noseless [flat-nosed])" -, os quais (Harris 1971HARRIS, Joseph E. (1971). The African presence in Asia. Consequences of the East African slave trade. Evanston: Northwestern University Press., p. 116) associa à população dravidiana. Estudos mais recentes questionam, porém, tal interpretação que projeta uma oposição entre "arianos brancos" e "dravidianos escuros" (negros)6 6 Gupta não apenas ressalta o fato de haver somente uma passagem no Rig Veda em que os dravidianos são descritos, supostamente, como "sem nariz e com lábios de touro" (noseless and bull-lipped); ele também questiona as próprias traduções das palavras originárias em sânscrito. Assim, "anas" poderia referir-se não a uma "pessoa sem nariz", mas a uma pessoa que não consegue articular-se bem (constituiria uma referência às línguas "estranhas" faladas pelos povos subjugados); já a expressão "bull-lipped" (talvez usada como metáfora) dificilmente teria sido uma caracterização pejorativa, dado que na Índia o touro sempre foi visto como um ser forte e determinado (Gupta, 2013, p. 71). e argumentam que o termo dasyu (dasa) designava, inicialmente, todos os infiéis, ou seja, todos aqueles que não seguiam a religião dos arianos7 7 "Dasa" significa algo como "infiel" e "selvagem" em sânscrito. A provável derivação "dasyu" vem sendo traduzida (interpretada) também como "escravo". .

Análises como a de Harris estão em sintonia com a chamada teoria da invasão ariana elaborada durante a ocupação colonial britânica por cientistas ocidentais que aplicavam à sociedade indiana concepções raciais da época. De acordo com o filólogo e indólogo (Max Müller 1888MÜLLER, Friedrich Max (1888). Biographies of words and the home of the Aryas. London: Longmans, Green.), entre 1.000 e 1.500 a.C. os arianos, descritos como uma população branca, teriam penetrado o noroeste da Índia e, posteriormente, subjugado e empurrado a população dravidiana em direção ao sul do subcontinente. Associações entre os arianos e a casta dos brâmanes, por um lado, e a civilização dravidiana e as populações mais escuras (predominantes no sul do país), por outro, fazem parte do imaginário de muitos indianos até hoje.

Um dos pouquíssimos cientistas indianos que se deteve em analisar concepções hinduístas em relação à valorização de cores/fenótipos é o antropólogo André Béteille. Num dos seus estudos, constatou que existe, na sociedade indiana, uma preferência generalizada por tonalidades de cor de pele mais claras8 8 Na mencionada Conferência sobre Diáspora Africana em Goa, Margaret Alva, política importante filiada ao Partido do Congresso e empenhada na causa dos sid(d)is de longa data, sublinhou na sua fala inaugural que a Índia é uma sociedade muito ciosa da cor ("colour-conscious"). Para ilustrar sua afirmação, remeteu-se às atitudes das avós indianas. Quando uma das suas filhas está prestes a dar à luz, a primeira pergunta delas seria se o novo membro da família será menino ou menina; e a seguinte, logo a seguir: terá pele clara? (apud Van Kessel, 2011, p. 2). . Para sustentar sua argumentação, chama a atenção para o fato de que em muitas línguas indianas as palavras fair (claro) e beautiful (bonito) são sinônimos e apresenta vários provérbios que sugerem uma fusão simbólica entre cor clara e posição social alta: "Nunca confie num brâmane de cor de pele escura (dark)"; "Não atravesse um rio com um brâmane de cor de pele escura" (Béteille, 1967BÉTEILLE, André (1967). "Race and descent as social categories in India". Daedalus, v. 96, n. 2, p. 444-63., p. 451, 452).

Como outro sinal de uma preferência por pele clara poder-se-ia citar o enorme sucesso que cremes branqueadores vêm fazendo na última década. "Branqueador (whitening), iluminador (lightening), alvejante (brightening), clareador (clearing), antipigmentação (anti-pigmentation)" são as qualidades atribuídas a esses cremes propagados por estrelas da indústria cinematográfica indiana, Bollywood, cuja performance nos comerciais insinua uma correlação entre o uso do produto e o sucesso em relações amorosas e no trabalho. No ano de 2010, a BBC publicou um artigo informando que o mercado desses produtos tinha crescido 18% ao ano e superado, em muito, o consumo de Coca-Cola e o de chá (BBC, 2010BBC - British Broadcasting Corporation (2010). "India's unbearable lightness of Being (Shantanu Guha Ray)", 23 mar. Disponível em: <http://news.bbc.co.uk/2/hi/8546183.stm>. Acesso em: 1 fev. 2012.
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).

Tudo indica que a sociedade indiana é, há muito tempo, sensível a diferenças de cores (inclusive de pele) e tende a valorizar tonalidades mais claras como um ideal estético. Parece que tal "tradição" recebeu novos impulsos a partir do contato com o mundo ocidental desde a ocupação colonial e está, atualmente, recebendo novos estímulos e assumindo diferentes formas com a força imagética produzida e disseminada via televisão e as recentes mídias eletrônicas.

A maioria dos pesquisadores entende hoje que o colonialismo britânico contribuiu para a transformação das castas e para o redimensionamento de seu papel social, embora haja, evidentemente, divergências no que diz respeito à avaliação sobre o peso e o teor dessa intervenção. Nesse debate, uma das grandes oposições e tensões é aquela entre concepções substancialistas, segundo as quais existe algo como um substrato cultural indiano (hindu), e análises de teor desconstrutivista, que têm ganhado força neste novo milênio. Além dos trabalhos dos fundadores da sociologia indiana (Ghurye, 1932GHURYE, Govind Sadashiv (1932). Caste and race in India. London: Keegan Paul, Trench, Trubner & Co..; Srinivas, 1952SRINIVAS, M. N., (1952). Religion and society among the Coorgs of South India. Oxford: University Press, New Delhi., Srinivas, 1956________ (1956). "A note on sanskritization and westernization". The Far Eastern Quarterly, v. 15, n. 4, p. 481-96.), foi o estudo clássico Homo hierarchicus, de (Dumont 1966DUMONT, Louis (1966). Homo hierarchicus: le système des castes et ses implications. Paris: Gallimard.), que contribuiu fundamentalmente para constituir o sistema de castas como "símbolo central da Índia". E mais do que isso: ao apresentar o princípio hierárquico como intrínseco ao sistema indiano de castas, o viés estruturalista desse autor, que buscava detectar constantes fundamentais da civilização indiana, estabeleceu também uma oposição essencial entre a Índia - sociedade baseada na hierarquia - e o Ocidente - sociedade baseada no individualismo.

Novas leituras, como a de Dipankar Gupta, têm criticado o fato de Dumont ter reproduzido uma visão específica do sistema de castas - a dos brâmanes; teria, dessa forma, contribuído para disseminar uma visão uniforme e estática da ordenação das castas que, de acordo com Gupta, é frequentemente contestada pelas jatis9 9 Jati em sânscrito significa "nascimento" e refere-se à diferenciação entre centenas de grupos endogâmicos tradicionalmente associados a profissões particulares. (subcastas) inferiores. O autor demonstra, portanto, que não existe uma, mas sim diversas noções de "ordenação hierárquica" (multiple hierarchies), que convivem numa relação de competição e cuja implementação dependeria, em primeiro lugar, do jogo de poder político (cf. Gupta, 2000GUPTA, Dipankar (2000). Interrogating caste: understanding hierarchy & difference in Indian society. New Delhi: Penguin Books., p. 68, 80)10 10 O antropólogo (Fuller 2003, p. 485) analisa este ponto da seguinte maneira: "a ideologia bramânica não é compartilhada por todos os grupos e categorias sociais. Não existe uma ideologia de casta uniforme e, de maneira geral, não há nenhuma ideologia uniforme de hierarquia e de desigualdade social, porque as diferentes unidades sociais possuem ideologias e valores distintos". . "No passado, quando a economia era controlada por oligarquias rurais e pequenos potentados, a hierarquia reinante era aquela ordenada pela casta superior da região. As outras castas tinham de consentir ou enfrentar consequências brutais", escreve Gupta. Ao mesmo tempo, o modelo hierárquico imposto pelas castas superiores nunca teria imperado sem questionamentos. "Dessa forma", constata Gupta, "sempre que [as castas inferiores / "intocáveis"] conseguem melhorar sua situação econômica, livram-se de seu status anterior de casta e avançam" (Gupta, 2013________ (2013). "Caste, race, politics", em UMAKANT, Sukhadeo Thorat (ed.). Caste, race and discrimination. Discourses in international context. New Delhi: Indian Institute of Dalit Studies., p. 77, 82)11 11 A possibilidade de mobilidade interna no sistema de castas leva Gupta a afirmar ainda que "casta enquanto categoria não é tão imutável quanto raça" (Gupta, 2013, p. 81). .

Haveria, segundo Gupta, somente dois consensos em torno da concepção de castas: acredita-se que as castas tenham como base diferentes "substâncias naturais" que não devem ser misturadas, e consente-se, também, a respeito da necessidade de se estabelecer uma hierarquia entre castas. A ênfase recairia sobre a afirmação da diferença, da relação hierárquica entre os grupos e sobre o princípio da endogamia. Gupta mostra que é comum as narrativas das castas inferiores negarem que sua substância natural seja de "material inferior" ou "menos pura"; ocorre, não raramente, que elas façam referência a um passado glorioso e atribuam sua situação atual inferiorizada a atos de traição ou infortúnios históricos (Gupta, 2000GUPTA, Dipankar (2000). Interrogating caste: understanding hierarchy & difference in Indian society. New Delhi: Penguin Books., p. 4; Gupta, 2013________ (2013). "Caste, race, politics", em UMAKANT, Sukhadeo Thorat (ed.). Caste, race and discrimination. Discourses in international context. New Delhi: Indian Institute of Dalit Studies., p. 77).

Gupta preocupa-se ainda em destacar as diferenças sociológicas que ele concebe entre casta e raça. Diferentemente das castas, o regime social de raças estaria baseado numa única hierarquia reconhecida por todos (todas as raças), que se refletiria na existência de um continuum de cores. Esse fato provocaria, inclusive, o desejo, entre pessoas das "raças subordinadas", de fundir-se com "raças dominantes" (fenômeno denominado passing), algo totalmente impensável no mundo das castas12 12 Para sublinhar a diferença entre sistemas de castas e de raças, Gupta gosta de afirmar que era possível e comum ver "um cozinheiro negro numa sociedade racista, mas não um harijan numa cozinha brâmane" (Gupta, 2000, p. 42). Gupta entende ainda que as "substâncias naturais" que constituiriam as castas são "imaginadas", ao contrário das diferenças raciais, que seriam mais óbvias ou, de fato, "biológicas". A ausência de marcadores biológicos evidentes, no caso das castas, explicaria, inclusive, a necessidade de ritualizar diversas práticas do cotidiano: "No caso da raça, uma diferença física específica é escolhida para comprovar, justificar e perpetuar desigualdades econômicas e sociais entre as pessoas. Mas, no caso das sociedades de castas, em que nenhuma diferença natural pode ser discernida a olho nu, imagina-se a existência de tais diferenças e toma-se muito cuidado para que as substâncias que constituem cada casta não se mesclem com outras. Daí provêm as rebuscadas regras referentes à comensalidade entre castas ou aos casamentos intercastas" (Gupta, 2000, p. 19). . Se, por um lado, filhos de relacionamentos intercastas são expulsos do sistema, existiria, por outro lado, um lugar social, entre os dois polos raciais, para descendentes de uniões entre negros e brancos. Gupta chega, portanto, à conclusão de que casta e raça são fenômenos distintos e, por isso, as estratégias de combate a discriminações decorrentes desses dois sistemas ("politics of caste and race") precisam também adequar-se a essas diferenças13 13 Chama a atenção o fato de que as análises de Gupta e Béteille são extremamente cuidadosas quando insistem em historicizar e contextualizar a ideia de casta, mas tendem, ao mesmo tempo, a tratar a categoria raça como uma essência imutável e a-histórica (cf. tb. Gupta, 2006, p. 10). .

Casta e raça

Há, porém, afinidades inegáveis entre as histórias dos conceitos casta e raça, cuja amplitude ainda está por ser revelada num estudo que consiga focar diferentes momentos do colonialismo europeu, comparando práticas e discursos de dominação em diferentes contextos. A seguir, apontarei alguns caminhos que precisam ser aprofundados.

Releituras recentes sobre o fenômeno do racismo destacam a sociedade colonial portuguesa de Goa como um contexto histórico peculiar que não apenas ilustra nexos entre "ocorrências de diferenças 'pré-modernas'" e "formas de racismo supostamente 'modernas'" (Loomba, 2009LOOMBA, Ania (2009). "Race and the possibilities of comparative critique". New Literary History, n. 40, p. 501-22., p. 503), mas também revelaria momentos-chave na gestação das categorias casta e raça. Alguns especialistas em pesquisas sobre o surgimento da ideia de raça no mundo ibérico veem na defesa da pureza de sangue o germe para o que viria a se tornar discurso racial.

Para (Max Hering Torres 2012HERING TORRES, Max S. (2012). "Purity of blood. Problems of interpretation", em, HERING TORRES, Max S. MARTÍNEZ, María Elena& NIRENBERG, David (eds.). Race and blood in the Iberian world. Münster: Lit-Verlag (Racism Analysis, Yearbook, n. 2)., p. 18-20), um dos organizadores da coletânea Race and blood in the Iberian world, a noção de pureza de sangue foi desenvolvida como uma medida que buscava fundamentar a exclusão e a expulsão dos conversos (judeus, muçulmanos). Teria sido por meio da força do discurso sobre a pureza de sangue que, em meados do século XVI, o conceito de raça (que já tinha sido utilizado para destacar grupos de descendência) tornar-se-ia sinônimo de linhagem maculada. Dessa forma, argumenta Hering Torres, a ideia de cristão verdadeiro foi ampliada pela compreensão de que a ortodoxia religiosa se expressaria também nos corpos humanos14 14 Posteriormente, no Novo Mundo, este "antijudaísmo racial" teria "se transformado em estratégia de racialização, na medida em que codificava relações sociais numa forma hierárquica por meio de símbolos corporais e culturais" (Hering Torres, 2012, p. 11). Nem todos os cientistas concordam com essa leitura. (Chaves 2012, p. 50-51), um dos autores da coletânea mencionada, destaca que o critério de pureza de sangue não parece ter tido grande importância no discurso dos letrados hispânicos que, no início da colonização, raciocinavam sobre a diferença entre colonizadores e escravos negros. Eles teriam se orientado pelo critério de "civilidade" para criar e justificar classificações hierárquicas. Nos meus estudos, tenho chamado a atenção para ideários de branco e de negro fundamentados em Escrituras Sagradas, mais especificamente, para reinterpretações de Gênesis - cap. IX que serviriam como justificativa para escravizar populações concebidas como negras (cf. Hofbauer, 2006). .

No artigo "Purity of blood and caste", (Ângela Barreto Xavier 2012XAVIER, Ângela Barreto (2012). "Purity of blood and caste. Identity narratives among early modern Goan elites", em TORRES, Max S. Hering, MARTÍNEZ, María Elena& NIRENBERG, David (eds.). Race and blood in the Iberian world. Münster: Lit-Verlag (Racism Analysis, Yearbook, n. 2).) analisa as disputas de poder na sociedade goesa entre portugueses e seus descendentes ("casados"), por um lado, e a elite local (brâmanes), por outro, e como, nesse processo, duas noções de pureza "dialogavam", competiam e se fortaleciam mutuamente. A autora descreve situações em que brâmanes convertidos ao cristianismo adotaram o ideal português de pureza de sangue, implantado como forma de dominação e de controle colonial, como "instrumento de empoderamento".

Se o discurso dos portugueses (sobretudo daqueles que já nasceram em Goa) recorria ao argumento de "sangue maculado", bem como de "tez escura", para desqualificar os conversos da elite local e excluí-los de cargos altos na hierarquia, os brâmanes, por sua vez, invocavam o mesmo critério para acusar os chamados "casados" de pertencer a um grupo "de sangue misturado e de descendência negra" e, portanto, a uma "qualidade inferior" de seres (Xavier, 2012XAVIER, Ângela Barreto (2012). "Purity of blood and caste. Identity narratives among early modern Goan elites", em TORRES, Max S. Hering, MARTÍNEZ, María Elena& NIRENBERG, David (eds.). Race and blood in the Iberian world. Münster: Lit-Verlag (Racism Analysis, Yearbook, n. 2)., p. 134, 136) - uma estratégia discursiva que tinha também respaldo em valores hindus que visavam à afirmação e à delimitação de grupos de descendência, aos quais os portugueses deram o nome de castas15 15 (Xavier 2012, p. 143) resume a relação entre casta e pureza de sangue, construída e remodelada pelo poder colonial português, da seguinte maneira: "Se o conceito de pureza de sangue teve uma história particular na configuração da sociedade goesa, o mesmo pode ser dito, por razões diferentes, sobre o conceito de casta. A palavra portuguesa 'casta' era principalmente usada, no contexto indiano, para identificar grupos sociais nos quais a endogamia era vinculada à transmissão de profissões. Em pouco tempo, a lógica das castas produziu denominações para vários e diversos grupos sociais, denominações que se tornariam conceitos tanto descritivos quanto prescritivos, munindo a gramática imperial (primeiramente, a portuguesa e, posteriormente, a britânica) de diferenciação com um novo objeto de discurso. Nesse sentido puramente discursivo, foram os portugueses que inventaram a casta indiana. Além disso, a difusão da palavra 'casta' como um instrumento de identificação das formas indianas de agrupamento deu-se paralelamente à crescente presença da pureza de sangue no reino de Portugal". .

Chama a atenção o fato de que, em alguns documentos portugueses produzidos nesse contexto, raça e casta aparecem como palavras intercambiáveis16 16 Cf. as palavras do Conselho de Goa, 1567: "Em algumas partes desta província (de Goa), os Gentoos [sic] dividem-se em diferentes raças ou castas de maior ou menor dignidade, mantendo cristãos como sendo de grau inferior e cultivando isso de forma tão supersticiosa que ninguém de casta superior pode comer ou beber com aqueles pertencentes a uma casta inferior" (apud Loomba, 2009, p. 513). . Ambos eram usados como termos genéricos para comentar e descrever diferenças humanas numa sociedade fortemente hierarquizada, em que o pertencimento a linhagens, grupos religiosos e profissionais conferia prestígio e impunha fronteiras sociais. Ambas as categorias apontavam para a manutenção da "pureza grupal", que se manifestava, de acordo com o pensamento hegemônico da época, tanto em termos religiosos quanto físico-corporais. Também no Brasil, aliás, era bastante comum, até meados do século XIX, que letrados (viajantes, cientistas) usassem raça e casta como sinônimos quando falavam das diferenças entre negros, índios e brancos17 17 No seu "Ensaio sobre os melhoramentos de Portugal e do Brazil" (de 1821), em que apresenta medidas políticas - incentivo à imigração de colonos europeus e a casamentos entre mestiços e brancos - que deveriam "reduzir a casta preta" num prazo de três gerações, o médico e filósofo Francisco Soares Franco fala indistintamente de "raças brancas/pretas" e de "castas brancas/pretas". De forma semelhante, o inglês (Koster 1942, p. 510), que permaneceu no Brasil entre os anos 1809 e 1815, também falava de "castas mestiçadas" ao se referir a mulatos e mestiços. Até o final do século XIX, pode-se encontrar em jornais o uso de casta como sinônimo de raça - cf. p.ex. artigo publicado pelo Diário da Bahia (12 dez. 1896) condenando os "batucajés" promovidos no Engenho Velho que, segundo o autor do texto, atraem "uma multidão de toda a casta" (Rodrigues, 1977, p. 240). . Diferentemente do Novo Mundo, onde a palavra casta desapareceu do linguajar cotidiano e, em boa parte, também do vocabulário sociológico (hoje são poucos os que recorrem a esse conceito para caracterizar o velho regime escravista), na Índia atual casta tornou-se o conceito mais disseminado para falar de grupos humanos. A pergunta "qual é a sua casta?" pode não se referir especificamente ao pertencimento a uma jati (ou varna), mas frequentemente quer indagar sobre o pertencimento religioso da pessoa.

Tal sobreposição no uso das categorias condiz também com o fato de que tanto as comunidades muçulmanas quanto as cristãs incorporaram certas características das castas hindus: para delimitar-se do "mundo externo", seguem princípios de endogamia e, por vezes, a proibição da comensalidade; internamente, diferenciam entre - supostos - não conversos e recém-convertidos, negando aos últimos o mesmo status que é conferido aos primeiros - cf., p.ex., a diferenciação hierárquica entre os grupos ashraaf ("descendentes nobres") e ajlaaf (conversos das castas inferiores) na comunidade muçulmana.

Para uma nova geração de pesquisadores pós-coloniais, que dão ênfase a uma perspectiva discursivista, a importância social que as castas adquiriram na Índia deve-se, em primeiro lugar, à intervenção colonial britânica. Assim, (Nicholas Dirks 2001DIRKS, Nicholas B. (2001). Castes of mind: colonialism and the making of modern India. Princeton: Princeton University Press.), inspirado nos estudos de Edward Said, argumenta que foram métodos de classificação administrativa, como censos, que transformaram, não antes do final do século XIX, a casta em categoria essencial de diferenciação social. (Dirks 2001DIRKS, Nicholas B. (2001). Castes of mind: colonialism and the making of modern India. Princeton: Princeton University Press., p. 15) é enfático em afirmar que na Índia pré-colonial havia várias e diferentes unidades de identificação. Para esse antropólogo norte-americano, a transformação das castas em categoria social dominante foi fundamental para a manutenção da ordem social, auxiliando a sustentar a forma indireta de governo e, com isso, assegurando a legitimação e o exercício do poder colonial18 18 Escreve (Dirks 2001, p. 13): "Na Índia pré-colonial, havia múltiplas unidades de identidade social, cujas respectivas relações e trajetórias faziam parte de um mundo político complexo e conjuntural em constante mutação. As referências à identidade social não eram apenas heterogêneas: eram também determinadas pelo contexto. Comunidades de templos, grupos territoriais, segmentos de linhagens, unidades familiares, cortejos reais, subcastas de guerreiros, 'pequenos' reinos, grupos ocupacionais de referência, associações agrícolas ou comerciais, redes de devoção e comunidades sectárias, inclusive sociedades cabalísticas sacerdotais, eram apenas algumas das unidades significativas de identificação, todas elas em diversos momentos muito mais importantes que qualquer metonímia uniforme de agrupamentos de 'casta' endogâmicos". De acordo com autores como Bayly, as tradições bramânicas teriam ganhado destaque no regime colonial britânico (Bayly apud Xavier, 2012, p. 129). .

Nesse contexto, o etnógrafo e administrador Herbert Risley é sempre lembrado. Partindo de ideias consolidadas no final do século XIX a respeito das diferenças humanas e aplicando largamente métodos antropométricos a fim de classificar fenótipos, suas atividades administrativas e acadêmicas foram importantíssimas para fundamentar a amalgamação entre casta e raça - este último conceito pensado agora como uma "essência biológica", cuja existência e força não seria mais afetada por fatores morais, religiosos ou por questões ambientais como clima e geografia19 19 No livro The people of India, Risley (1908) recorreu aos dados do censo de 1901 que ele tinha organizado na função de Census Commissioner. Ele diferenciava, basicamente, três grupos raciais: os arianos (invasores de cor de pele clara), os dravidianos (população autóctone) e um grupo mongoloide. . (Risley 1891RISLEY, Herbert Hope (1891). "The study of ethnology in India". The Journal of the Anthropological Institute of Great Britain and Ireland, n. 20, p. 235-63., p. 253) não tinha dúvida de que o pertencimento a um grupo racial determinava o posicionamento dentro do sistema de castas: "a posição social de uma casta varia inversamente ao seu índice nasal".

No mesmo período, uma primeira geração de líderes dos intocáveis começou a fundamentar suas reflexões sobre a degradação das castas inferiores em concepções de raça (biologizada) semelhantes àquelas defendidas por Risley. Já em 1873, o importante pensador e ativista Jyotirao Phule (1827-1890) fundara o movimento Satya Shodhak Samaj ("sociedade dos que buscam a verdade"), com o objetivo de proteger as castas inferiores da exploração dos brâmanes. Para ele, a população originária da Índia - os donos legítimos dessa terra - era composta por adivasis20 20 Com a Independência, os adivasis passaram a ser tratados pela administração estatal como "sociedades tribais" (scheduled tribes). , sudras e intocáveis; já os brâmanes, que para ele descendiam dos "arianos invasores", teriam inventado as castas para subjugar e dividir a população autóctone (cf. Aranha, 2011ARANHA, Rebecca (2011). "The Aryan debate in the Indian context". Disponível em: <http://inpec.in/2011/10/13/the-aryan-debate-in-theindian-context>. Acesso em: 7 ago. 2014.
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, p. 4)21 21 Gopal Baba Walangkar (1840-1900), fundador da primeira revista dos intocáveis (Vital Vidhvansak [Abolicionista da Intocabilidade], 1888), reproduziu a ideia de que os intocáveis eram os habitantes originários da Índia; para ele, os brâmanes chitipavan seriam "judeus berberes" e os ancestrais dos maratas teriam sido "turcos" (apud Zelliot, 2004, p. 43). . Phule foi também um dos primeiros a usar o termo escravidão para referir-se à situação das castas inferiores, comparando o seu sofrimento ao dos escravos norte-americanos.

O historiador norte-americano Nico Slate mostra que, a partir do final do século XIX, comparações e analogias entre o sistema de castas na Índia e a escravidão nos Estados Unidos tornar-se-iam recorrentes em discursos tanto de intelectuais e políticos indianos quanto de pensadores americanos. O objetivo era o de criar um contraexemplo para poder situar a crítica do autor. Assim, o termo casta teria entrado nos debates americanos no período anterior à Guerra Civil, quando os abolicionistas começavam a descrever a escravidão como uma ameaça aos valores do país. Ao aproximar a noção de casta à de raça, abolicionistas como Fredrick Douglass buscavam criticar tanto a escravidão praticada no sul quanto o racismo vigente no norte do país (cf. Immerwahr, 2007IMMERWAHR, Daniel (2007). "Caste or colony? Indianizing race in the United States", Modern Intellectual History, v. 4, n. 2, p. 275-301., p. 277).

Já na Índia, figuras nacionalistas como o literato Rabindranath Thakur (em 1910) e os políticos Subhash Chandra Bose e Lala Lajpat Rai (ambos em 1928) usaram o exemplo do racismo norte-americano para defender o modelo de sociabilidade indiana. Para Thakur, o sistema de castas constituía uma alternativa mais benigna em relação ao segregacionismo dos Estados Unidos, já que possibilitaria uma convivência, sem grandes fricções, entre diferentes grupos raciais22 22 Para Thakur, o sistema de castas possibilitava às "raças com notáveis diferenças culturais e com características sociais e religiosas antagônicas viverem pacificamente lado a lado" (apud Slate, 2011, p. 65). . Bose concordava com essa avaliação de Thakur, embora admitisse falhas no projeto indiano de harmonização23 23 "A harmonização entre diferentes grupos étnicos era buscada por meio do Varnashrama Dharma [divisão social de acordo com os varnas, fundamentada no Rig Veda]. Mas hoje as condições mudaram e nós precisamos de uma síntese mais elaborada e mais científica" (apud Slate, 2011, p. 66). . E Lajpat Rai chegou a pronunciar-se a favor da abolição das castas e condenar a condição da "intocabilidade", mas, mesmo assim, não deixaria de afirmar que "o negro nos Estados Unidos é pior que um pária" (apud Slate, 2011SLATE, Nico (2011). "Translating race and caste". Journal of Historical Sociology, v. 24, n. 1, p. 62-78., p. 69).

A grande referência para toda a militância dalit contemporânea é Bhimrao Ramji Ambedkar (1891-1956) que, mesmo sendo o décimo quarto filho de uma família intocável, conseguiu formar-se em direito pela Universidade de Columbia, em Nova York (1913-1916). Estudando nas proximidades do bairro em que as movimentações da chamada Harlem Renaissance chegavam ao seu auge, pôde observar pessoalmente os efeitos da política de segregação e as formas de discriminação sofridas pelos negros, fato que mais tarde deve ter levado Ambedkar, numa carta dirigida a DuBois em 1946, a comparar a situação dos negros nos Estados Unidos com a dos untouchables na Índia24 24 Escreveu Ambedkar: "Eu era um estudioso do problema racial e li todos os seus escritos. Há tanta semelhança entre a condição dos intocáveis na Índia e a condição dos negros na América que o estudo da situação deste último grupo torna-se não somente natural, mas também necessário. Foi muito interessante pra mim ler que os negros da América tinham encaminhado uma petição à ONU. Os intocáveis na Índia estão pensando em seguir o mesmo exemplo" (apud Zelliot, 2010, p. 4). Dois anos antes, Ambedkar havia feito uma comparação em que julgava a situação dos intocáveis pior do que a dos escravos americanos (Ambedkar, 1944, p. 7). .

Ambedkar se tornaria um árduo opositor de Gandhi porque, entre outros motivos, os dois discordavam sobre a melhor estratégia de combate ao "castismo". Enquanto ele reivindicava medidas legais para empoderar os intocáveis (política de reserva), Gandhi temia que a imposição de leis específicas pudesse criar reações violentas; por isso, apostava na "conscientização" das castas altas, apelando para que seus membros assumissem tarefas e trabalhos considerados "impuros" (p.ex., limpar banheiros) e tratassem os intocáveis como iguais25 25 Como primeiro-ministro de Justiça na Índia independente, Ambedkar teve um papel importante na primeira Constituinte (como presidente do Comitê de Elaboração da Constituição), na qual se empenhava em fixar direitos individuais, opondo-se a propostas de transformar unidades coletivas (p.ex., aldeias) em base para a legislação (cf. Berg, 2007, p. 24). .

Mesmo que apontasse semelhanças entre o castismo indiano e o racismo norte-americano e sublinhasse, nas suas comparações com judeus e negros, que os intocáveis seriam ainda mais maltratados, Ambedkar discordava da igualação entre raça e casta e rejeitava, também, a teoria da invasão ariana: "Afirmar que distinções de casta são realmente distinções de raça [...] é uma perversão grosseira dos fatos"26 26 E continua: "Que afinidade existe entre um brâmane de Punjab e um brâmane de Madras? Que afinidade existe entre um intocável de Bengala e um intocável de Madras? Os brâmanes de Punjab pertencem ao mesmo tronco racial [racially the same stock] que os chamar de Punjab, e os brâmanes de Madras são da mesma raça que os párias de Madras. O sistema de castas não delimita divisões raciais", conclui Ambedkar (apud Omvedt, 2010, p. 1). (apud Omvedt, 2010________ (2010). "Nation and civilisation". Disponível em: <>. Acesso em: 7 ago. 2014., p. 1). Por conceber a intocabilidade como diretamente ligada ao hinduísmo, Ambedkar decidiu, dois meses antes de sua morte, converter-se ao budismo; para isso, organizou um grande evento de conversão em massa, do qual participaram cerca de 500 mil seguidores "untouchables".

Semelhanças e diferenças entre as noções de casta e de raça tornaram-se também um tema importante na sociologia clássica. Foi sobretudo nos Estados Unidos onde, na primeira metade do século XX, surgiu um vivo debate acerca da relação entre casta, classe e raça. Para a chamada caste school, iniciada pelo sociólogo Llyod Warner, o segregacionismo imposto pelas leis de Jim Crow estabeleceu uma sociedade que podia ser mais bem entendida em termos de castas. Tanto (Warner 1936________ (2011). "The African diaspora in India". Disponível em: <http://www.awaazmagazine.com/index.php/archives/item/158-the-africandiaspora-in-india>. Acesso em: 5 fev. 2012.
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) quanto (Dollard 1937DOLLARD, John (1937). Caste and class in a Southern Town. New Haven: Yale University Press.) e (Myrdal 1944MYRDAL, Gunnar (1944). An American dilemma: the negro problem and modern democracy. New York: Harper & Bros.) recorriam ao conceito de casta para caracterizar as relações entre brancos e negros nos Estados Unidos, uma vez que concebiam casta como um grupo fixo e fechado que impedia seus membros de ultrapassar as fronteiras. Posições contrárias foram defendidas enfaticamente por três importantes sociólogos negros: Cox, Frazier e Johnson. De acordo com (Oliver Cox 1948COX, Oliver (1948). Race, caste and class. New York: Monthly Review Press.), as castas seriam um fenômeno característico do sistema social hindu; uma forma de sociabilidade não patológica. Já o sistema social que divide e hierarquiza os seres humanos em raças seria, para ele, uma consequência direta do capitalismo. Igualar raça com casta equivaleria, portanto, aos olhos de Cox, a minorar a natureza violenta e repressiva do racismo nos Estados Unidos27 27 Também no Brasil, aliás, os especialistas debateram com fervor, durante longas décadas (no mínimo, até os anos 1960), se a sociedade escravista brasileira podia ou não ser considerada um sistema de castas. Enquanto pesquisadores como Pierson e T. Azevedo negavam tal aproximação, cientistas ligados à sociologia das relações raciais - Florestan Fernandes, Octavio Ianni, Fernando Henrique Cardoso - definiam o "velho regime" como uma sociedade de castas. .

A projeção internacional do movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos encorajou uma nova geração de líderes dalits, na era pós-independência, a apostar, mais uma vez, no discurso da analogia entre casta e raça e no estreitamento do diálogo com representantes do movimento negro americano. Em 1959, durante uma visita à Índia, M. Luther King atestou grandes semelhanças entre o segregacionismo norte-americano e a intocabilidade, além de afirmar que o governo indiano teria avançado mais do que as autoridades americanas no combate às discriminações (Prashad, 2000PRASHAD, Vijay (2000). "Afro-Dalits of the Earth, unite!". African Studies Review, v. 43, n. 1, p. 189-201., p. 197). Em 1972, representantes intelectualizados dos intocáveis formaram o movimento Dalit Panthers em Bombaim (hoje Mumbai), expressando, dessa forma, solidariedade e sintonia política com a luta dos Black Panthers nos Estados Unidos28 28 Cf. o seguinte trecho do manifesto dos Dalit Panthers (de 1973): "Até mesmo na América, um pequeno grupo de brancos reacionários está explorando os negros. O movimento Black Panther cresceu a fim de enfrentar a força da reação e acabar com esta exploração... Nós pretendemos manter uma relação estreita com esta luta" (apud Immerwahr, 2007, p. 300). .

Posteriormente, em 1981, o jornalista indiano Vontibettu Thimmappa Rajshekar lançou a revista Dalit Voice, um dos maiores veículos de comunicação dos dalits até hoje, cuja linha editorial incorpora posições afrocentristas norte-americanas29 29 Há um diálogo e uma colaboração intensa com intelectuais afrocentristas norte-americanos, como Rashidi, historiador, ativista e autor de diversos artigos e livros - p.ex., African presence in Early Asia (publicado em 1985). Vários intelectuais afrocentristas procuram, inclusive, mostrar que algumas importantes divindades hinduístas revelam uma proveniência africana. Há quem cite a etimologia de krishna (preto, escuro, em sânscrito) e o tipo de cabelo de shiva (identificado como dreadlocks) como provas de uma descendência do continente africano. . O editor da revista, que se define como negro, reproduz, ao mesmo tempo que transforma, velhas teses raciais formuladas primeiramente no século XIX. Além de atribuir à África (raça negra) a força civilizatória primordial, sustenta que a Índia e a África eram, originalmente, um único continente, de maneira que, portanto, os fundadores das mais antigas civilizações na Índia (p.ex., Harappa, no vale do Indo, entre 2200 e 1700 a.C.) seriam negros; Rajshekar sustenta também que a invasão de tribos brancas (arianos) destruiu as civilizações negras (das quais descendem os dalits) e que os conquistadores impuseram um sistema social descrito por ele como "apartheid"30 30 Em 1979, Rajshekar publicou o livro intitulado Apartheid in India, posteriormente reeditado (1987) com o nome Dalit: the black untouchables of India, que continua sendo uma importante referência para simpatizantes de teses afrocentristas. Rajshekar vê a luta dos dalits como parte da luta de todos os negros diaspóricos, buscando apoio e solidariedade sobretudo nos Estados Unidos. Num artigo publicado na revista Dalit Voice em 1987 ele expressa essa identificação da seguinte maneira: "Os afroamericanos têm de saber que sua luta de libertação não será completa enquanto seus irmãos e suas irmãs de sangue [blood-brothers and sisters], na Ásia distante, continuarem sofrendo" (apud Rashidi, 2008). .

A busca por sensibilizar a opinião pública mundial e fundamentar solidariedades e alianças internacionais refletir-se-ia também no discurso dos ativistas dalits no mencionado congresso contra o racismo em Durban. A estratégia da militância, que reivindicava a inclusão das castas nos documentos finais da conferência, visava convencer os delegados de que as discriminações decorrentes do sistema de castas são equivalentes à discriminação racial. A maior parte dos ativistas admitia que raça não é sinônimo de casta; ao mesmo tempo, sublinhava as experiências discriminatórias compartilhadas, de maneira que castismo e racismo representariam, sim, formas comparáveis de violação de direitos humanos (Reddy, 2005REDDY, Deepa S (2005). "The ethnicity of caste". Anthropological Quarterly, v. 78, n. 3, p. 543-84., p. 561).

A vinculação da questão à defesa dos direitos humanos não deixa de ser significativa: funcionava como um mecanismo para constranger o governo e caracterizá-lo como um obstáculo ao combate à discriminação. Para Reddy, antropóloga de origem indiana, o termo untouchability ganhava, no discurso dessa militância, contornos de metonímia da injustiça no mundo, como uma forma de apartheid e um crime contra a humanidade (Reddy, 2005REDDY, Deepa S (2005). "The ethnicity of caste". Anthropological Quarterly, v. 78, n. 3, p. 543-84., p. 567).

A rejeição da argumentação fez com que ativistas acusassem a decisão da ONU de etnocêntrica. Assim, (Louis 2001LOUIS, Prakash (2001). Casteism is horrendous than racism: Durban and Dalit discourse. New Delhi: Indian Social Institute., p. 1), intelectual indiano associado ao movimento dalit, reclamou que, ao não incluir o castismo nas resoluções finais, o organismo internacional demonstrou que sua concepção de racismo continua totalmente moldada pelo paradigma ocidental.

Do outro lado, apoiadores do governo concentravam-se em comprovar que raça e casta são fenômenos substancialmente diferentes, como ilustra um documento encaminhado pelo Ministério das Relações Exteriores: "A Índia deixou claro que scheduled castes e scheduled tribes não entram na esfera do Artigo 1 do CERD [Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial (The Committee on the Elimination of Racial Discrimination)], uma vez que o termo 'descendência' [descent] na Convenção está especificamente relacionado a descendência racial [racial descent], enquanto 'casta' não é baseada em raça" (apud Berg, 2007BERG, Dag Erik (2007). "Sovereignties, the World Conference against Racism 2001 and the Formation of a Dalit Human Rights Campaign". Questions de Recherche/Research in Question, n. 20. Disponível em: <http://www.ceri-sciences-po.org/publica/qdr.htm>. Acesso em: 18 jan. 2011.
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, p. 10). Afirmava-se ainda que a Constituição indiana proibia qualquer discriminação com base em castas e que os diferentes governos introduziram, há muito, programas específicos que visam à sua eliminação (p.ex., cotas). Abdullah, representante do governo, receberia respaldo de setores hindu-nacionalistas e de acadêmicos renomados. Num paper publicado pelo South Asia Analysis Group, (Upadhyay 2001UPADHYAY, R. (2001). "Politics of race and caste: we do not need the UN to solve our internal problem", em South Asia Analysis Group. Paper n° 308, 5 set. Disponível em: <http://www.southasiaanalysis.org/%5Cpapers4%5Cpaper308.html>. Acesso em: 9 mar. 2015.
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), p.ex., levanta a acusação de que "a campanha agressiva" do movimento dalit faz parte de uma agenda maior que visa "isolar as scheduled castes [dalits] e as scheduled tribes"31 31 As expressões "scheduled castes" e "scheduled tribes" foram introduzidas pelo governo colonial britânico, que, na época, decidiu fazer um levantamento de castas e tribos, justificando-o com objetivos administrativos. Na era pós-independência, em 1950, a lista foi refeita e ampliada: 1.108 scheduled castes e 744 scheduled tribes foram registradas e reconhecidas. Essas classificações servem até hoje de base para políticas de compensação. da sociedade hindu. O autor chama a atenção para a forte presença de cristãos nas ONGs dalits credenciadas em Durban (em parte, segundo ele, financiadas pela Teologia da Libertação - corrente da Igreja católica), cujo objetivo último seria alienar os dalits do "mainstream" cultural do país; Upadhyay vê na atuação de ONGs internacionais, portanto, uma ameaça ao patrimônio cultural indiano32 32 O renomado antropólogo indiano Béteille, autor de diversos artigos sobre casta e raça (p.ex., 1990; 1996), mostrou-se chocado com o fato de que as Nações Unidas estariam prestes a reavivar o conceito "raça". Segundo ele, não há dúvida de que a intocabilidade é uma prática social condenável, escreve num inflamado artigo publicado no jornal The Hindu, mas esse fato não significa que devamos concebê-la como uma forma de discriminação racial. Diz: "Não podemos lançar o conceito de raça pela porta de entrada a fim de usá-lo ("misused") para defender a superioridade social, nem trazê-lo novamente pela porta dos fundos a fim de usá-lo ("misuse") em prol dos oprimidos", terminando o artigo com uma afirmação categórica: tratar casta como raça é "politicamente maldoso" e, o que é pior, "nonsense científico" (Béteille, 2001). .

Os debates de Durban não somente revelam o quão difícil é fazer comparações entre formas de discriminação que ocorrem em diferentes contextos, mas também ilustram o importante papel que categorias que nomeiam diferenças e desigualdades ganham nas disputas em torno do reconhecimento e da negação de atos discriminatórios e injustiças sociais. Na leitura pós-colonial de (Loomba 2009LOOMBA, Ania (2009). "Race and the possibilities of comparative critique". New Literary History, n. 40, p. 501-22., p. 515, 517), Durban é mais um exemplo que demonstra a maleabilidade das categorias casta e raça, as quais, para essa crítica literária indiana, operam como dois sistemas discursivos que se entrelaçam e interpenetram mutuamente.

Escravidão africana na Índia

Sid(d)i33 33 Existem diferentes formas de escrita - sidi, siddi, siddhi, sheedi -, que se explicam também por diferenças regionais e pela diversidade linguística interna ao grupo. Sidi é a grafia preferida para descrever os descendentes dos africanos em Gujarat; já em Karnataka atualmente costuma-se utilizar a grafia siddi. A maioria dos autores acredita que o termo sid(d)i surgiu como uma derivação da palavra árabe sayyid, que era e ainda é usada como termo de respeito e reverência no norte da África (p. ex., Basu, 1995, p. 58). Mais recentemente, Lodhi apontou para outra derivação etimológica possível: do termo árabe saydi, que significa "prisioneiro de guerra ou cativo" (apud Prasad, 2005, p. 103). é o nome atual mais comum dado a grupos que se distinguem e são distinguidos por marcadores de diferença que os relacionam, de um modo ou outro, ao continente africano; até o século XIX, o termo habshi 34 34 Habshi provém da palavra habsh, usada pelos árabes para designar escravos provenientes da Abissínia (Al-Habsh). Na Índia, seria o termo mais usual, a partir do final do século XV (antes da disseminação do conceito sid(d)i); em pouco tempo, com a ampliação das atividades de escravização no continente africano, a palavra habshi viria a designar todos os africanos e seus descendentes (Basu, 2003, p. 225, 26; Basu, 2005, p. 3; Oka e Kusimba, 2008, p. 210). De modo geral, os habitantes da Abissínia têm uma tez mais clara e, não raramente, o cabelo mais liso que o dos africanos que viriam a ser trazidos pelos portugueses da região de Moçambique. era mais disseminado. Os sid(d)is constituem hoje uma pequena minoria e a maioria dos indianos nem sabe de sua existência35 35 Não há números exatos sobre as populações sid(d)is. Há estimativas que falam de 60 mil a 75 mil sidis no estado de Gujarat (maior comunidade na Índia) e de 20 mil a 30 mil siddis em Karnataka; de qualquer forma, a população sid(d)i não deve chegar a 0,05% da população indiana. O número de 250 mil apresentado por (Lodhi 1992, p. 83) destoa da maioria das estimativas. Esse cálculo aproximado pode talvez ser explicado pelo fato de que existem muitos descendentes de sid(d)is que preferem não se identificar como tais. . Há muita divergência entre aqueles que se dizem sid(d)is; vivem espalhados em diferentes regiões (estados de Gujarat, Maharashtra, Karnataka, Andhra Pradesh; além do Paquistão, onde se encontra a maior comunidade) e falam diferentes línguas: gujarati, marati, canada, concanim, urdu, sindi, makrani e um dialeto de balúchi. Alguns moram em pequenas comunidades afastadas em florestas; outros, em espaços urbanos. Além disso, há também divergências religiosas marcantes entre eles (islamismo sunita, sufismo, catolicismo e hinduísmo são influências presentes).

Essa grande diversidade explica-se em boa parte por histórias diferentes. É sabido que o contato entre a Índia e a África é de longuíssima data: o tráfico de escravos remonta, no mínimo, ao século III, quando árabes começaram a levar africanos a portos indianos (Campbell, 2008CAMPBELL, Gwyn (2008). "Slave trades and the Indian Ocean world", em HAWLEY, John C. (ed.). India in Africa, Africa in India. Indian Ocean cosmopolitanisms. Bloomington: Indiana University Press., p. 22). A região privilegiada pelos árabes-muçulmanos - que dominariam o tráfico no oceano Índico até a chegada dos portugueses - para a aquisição de escravos foi, durante muito tempo, a Abissínia.

No entanto, o tráfico de escravos que envolveu a região do oceano Índico diferenciava-se, de diversas formas, daquele ocorrido no oceano Atlântico: embora o primeiro tenha começado muito antes do segundo e tido uma duração bem maior (em algumas regiões até o século XX), o montante de escravos transportados era menor do que o chegado às Américas. Esse fato devia-se, sobretudo, a diferentes usos dos escravos: seguindo o padrão muçulmano de escravidão, viviam na Índia escravos mercenários, marinheiros especializados e muitos domésticos, sendo raro o trabalho escravo na lavoura (plantações). Ao lado dos escravos africanos trabalhavam também escravos de diversas outras proveniências e, portanto, pessoas com diferentes tonalidades de cor de pele e com diferentes fenótipos.

Além disso, havia também, desde épocas muito remotas, africanos livres que viajavam à Índia, aparentemente como mercadores livres, e alguns deles parecem ter decidido fixar-se por lá. Diversos relatos históricos (p.ex., Ibn Batuta, século XIV)36 36 Cf. o comentário do grande viajante Ibn Batuta depois de ter atravessado o oceano Índico num navio com "cinquenta arqueiros e cinquenta guerreiros abissínios que são os senhores do mar [...]": "Quando há somente um deles a bordo, os piratas hindus e os infiéis evitam atacá-lo" (apud Oka e Kusimba, 2008, p. 208). revelam que, no medievo, os africanos eram vistos como habilidosos navegadores e conhecidos pela competência em cuidar da segurança das embarcações. Uma função exercida por africanos que foram levados à Índia destaca-se, pela sua importância tanto histórica quanto atual, no que diz respeito ao jogo do poder colonial e à formação identitária dos sid(d)is contemporâneos: trata-se da chamada elite de escravos, um elemento característico da escravidão muçulmana. Pesquisas recentes têm mostrado que as elites de escravos, como parte da infraestrutura administrativa do mundo muçulmano em expansão, foram fundamentais no processo de State-building muçulmano na Índia (Oka e Kusimba, 2008OKA, Rahul C. & KUSIMBA, Chapurukha M. (2008). "Siddi as mercenary or as African success story on the West Coast of India", em HAWLEY, John C. (ed.). India in Africa, Africa in India. Indian Ocean cosmopolitanisms. Bloomington: Indiana University Press., p. 205; Basu, 2003________ (2003). "Slave, soldier, trader, faqir: fragments of African histories in Western India (Gujarat)", em JAYASURIYA, Shinan de Silva & PANKHURST, Richard (eds.). The Indian diaspora in the Indian Ocean. Trenton: Africa World Press., p. 229)37 37 Oka e Kusimba chamam a atenção para o fato de que os habshis na Índia foram somente um dos grupos de escravos de elite que o mundo muçulmano produziu (mamluks, ghulams ou kuls são nomes de outros grupos similares que atuavam no Egito, no século XIII, e em Sokoto, no século XIX). . Em diversas situações, a elite de escravos foi incumbida de comandar exércitos e marinhas e controlar territórios; por vezes, membros desse grupo chegavam a conquistar uma posição de poder de destaque, usurpando, em alguns casos, o poder constituído.

Foi a instabilidade política da região do Decão, provocada pelo conflito entre dois grupos dominantes - decanis (muçulmanos locais) e afaqis (imigrantes do Oriente Médio) - que criou um mercado para o que (Eaton 2006b________ (2006b). "The rise and fall of military slavery in the deccan, 1450-1650", em CHATTERJEE, Indrani & EATON, Richard M. Slavery and South Asian history. Bloomington: Indiana University Press., p. 120) descreve como "mão-de-obra culturalmente distinta" ("culturally alien military labour"), fazendo com que, a partir do século XVI, os sultanados de Ahmadnagar e Bijapur concentrassem grande número de escravos africanos. Nessa história conflituosa, a figura de Malik Ambar (1548/49-1626), um ex-escravo que, como peshwa (primeiro-ministro), viria a assumir o controle sobre o reino Ahmadnagar até o fim de sua vida, ganhou notoriedade38 38 Malik Ambar ficou famoso por sua capacidade de organizar exércitos e executar estratégias de guerrilha. Suas tropas integravam, além de 40 mil decanis, 10 mil habshis, que o viajante inglês William Finch descreveu como soldados "de sua casta" (apud Eaton, 2006a, p. 126). Ao casar sua filha com um filho da casa real do Nizam Shah, Malik Ambar buscava estabelecer laços genealógicos com os poderes locais constituídos e, dessa forma, fortalecer sua posição de poder. Ao mesmo tempo, estimulava africanos a integrar-se ao seu exército e incentivava o ensino em escolas de Alcorão (Harris, 1971, p. 95). Numa leitura que se afina com teses pan-africanistas, (Obeng 2008, p. 239) destaca a solidariedade entre os habshis e cita a vida de Ambar para mostrar que "os indianos africanos reestruturaram alianças entre si. Sempre que algum deles assumia o poder, recrutava outros africanos para ocupar posições-chave administrativas e militares. Quando Malik Ambar assumiu o poder, nomeou guardas africanos, incorporou africanos à sua administração e estabeleceu laços diplomáticos com os africanos de Janjira. . Os relatos produzidos por viajantes e pelos arqui-inimigos mongóis que buscavam integrar o Decão ao seu reino não deixam dúvida de que, embora Malik Ambar tivesse incentivado modos tidos como "cultos" na época (atraía poetas e letrados árabes e persas para sua corte), o seu fenótipo era percebido como mácula, e utilizado, pelos inimigos, como "argumento" para "denegrir" sua imagem (Harris, 1971HARRIS, Joseph E. (1971). The African presence in Asia. Consequences of the East African slave trade. Evanston: Northwestern University Press., p. 96). Assim, o imperador mongol Jahangir, obcecado por derrotar Ambar, usou diversas denominações com teor depreciativo - "Ambar, o de rosto negro" (black-faced); "Ambar, o de destino escuro" (dark fate); "o[s] rebelde[s] da sorte negra" (black-fortune) - que, de acordo com Eaton, apontam para uma tensão mais profunda entre "os afaqis de cor de pele mais clara - personificados no próprio Jahangir39 39 Eaton atribuiu à elite mongol ("ruling class") uma postura de "arrogância racial", um forte sentimento de "pedigree" e uma noção de aristocracia hereditária que, segundo esse historiador americano, não eram comuns no Decão. O avanço dos mongóis - que não incorporavam escravos de elite aos seus exércitos - sobre o Decão teria iniciado um processo de decadência das populações habshis na região (Eaton, 2006a, p. 61). - e os decanis mais escuros, especialmente os habshis - personificados em Malik Ambar" (Eaton, 2006aEATON, Richard M. (2006a). "Malik ambar and elite slavery in the Deccan, 1400-1650", em ROBBINS, Kenneth X. & McLEOD, John. African elites in India. Habshi Amarat. London: Art Books International., p. 58)40 40 Jahangir mandou fazer um quadro em que ele aponta com arco e flecha para a cabeça cortada de Malik Ambar. É um quadro cheio de simbolismo que, na leitura de Eaton, associa o imperador com luz e justiça, enquanto a imagem de Ambar expressaria noite, escuridão e usurpação. A legenda em persa diz o seguinte: "A cabeça do usurpador da cor da noite tornou-se a casa da coruja" (Eaton, 2006a, p. 59). .

Um pouco mais ao sul de Bijapur e Ahmadnagar, os portugueses se estabeleceram a partir de 1510 e começaram a trazer escravos de diferentes lugares, sobretudo da África (a maior parte da região de Moçambique). Isso não impediu que os portugueses, em certo momento do jogo de poder político, fizessem uma aliança com outro importante foco de poder africano estabelecido na região - os siddis de Janjira -, objetivando combater os maratas (Shivaji) e os britânicos. A partir da ilha Janjira, os siddis exerciam controle político e militar sobre uma faixa importante do litoral, fato que, de acordo com (Oka e Kusimba 2008OKA, Rahul C. & KUSIMBA, Chapurukha M. (2008). "Siddi as mercenary or as African success story on the West Coast of India", em HAWLEY, John C. (ed.). India in Africa, Africa in India. Indian Ocean cosmopolitanisms. Bloomington: Indiana University Press., p. 224), retardou a fixação dos poderes coloniais europeus entre Gujarat e o norte do Concão.

A sociedade goesa construída pelos portugueses contava com a presença de escravos; porém, em número bem menor do que em terras brasileiras colonizadas por portugueses no mesmo período (os escravos importados da África parecem não ter ultrapassado nunca 10% da população total). Além disso, não apenas escravos africanos viviam e trabalhavam em Goa (como em toda a região do Decão): havia cativos traficados da própria Índia e de outras partes da Ásia. Também entre os traficantes de escravos existia certa diversificação: além dos portugueses, havia ainda alguns poucos hindus locais empenhados na compra e venda de escravos41 41 Em Hyderabad, onde o regente local (nizam) criou uma cavalaria de africanos (African Cavalry Guard), que atuavam como seus guarda-costas pessoais (além de cumprir a função de músicos e dançarinos em festas), um habshi conhecido por Yacoob obteve fama como grande traficante de escravos, numa época em que o governo britânico já reprimia a importação de escravos. Ele e alguns agentes árabes usavam, aparentemente, viagens de peregrinação à Meca para trazer escravos que, apresentados como "membros de família" ou disfarçados como esposas ou filhas, eram levados a Hyderabad, onde seriam vendidos aos senhores locais (Harris, 1971, p. 101). .

Já no início da ocupação, os governantes e as autoridades eclesiais impuseram métodos violentos para garantir o controle social e o domínio religioso42 42 A partir de 1540, os portugueses começaram a destruir mesquitas e templos; em 1560, a Inquisição foi instaurada. A proibição de cerimônias hindus levaria milhares de hindus a migrar para outra região (Pinto, 1992, p. 67, 88). O clérigo adotou a estratégia de, num primeiro momento, converter os brâmanes para, dessa forma, convencer o resto da população a abandonar os cultos hinduístas (Xavier, 2010, p. 45). Ao limitar ordenações de padres locais às castas superiores, escreve (Xavier 2010, p. 44), a Igreja católica "sucumbiu ao sistema de castas". Houve casos em que foram rezadas diferentes missas para brâmanes e xátrias; e houve quem reivindicasse que a hóstia fosse entregue pelo padre num pedaço de pau a fim de evitar contato físico e, dessa forma, prevenir uma possível "contaminação" (Srinivasan, 2012, p. 69). sobre a população local que seguia, na sua grande maioria, práticas hinduístas, quando não havia sido convertida ao Islão. As formas de dominação e de exploração dos escravos assemelhavam-se em muitos pontos àquelas desenvolvidas no Brasil.

No entanto, diferentemente do Brasil, existiu para os escravos a possibilidade de se refugiar em regiões controladas por governantes islamizados (Bijapur, Ahmadnagar); ao converter-se ao Islão, podiam até ganhar sua liberdade. Tal situação de conflito entre reinos controlados por "inimigos de fé" parece ter incentivado fugas de escravos nas duas direções, levando, já no século XVI, o vice-rei de Portugal e o nizam Sha (sultanado Ahmadnagar) a assinar acordos que buscavam regulamentar os procedimentos a serem aplicados caso um escravo escapasse para o território vizinho (Pinto, 1992PINTO, Jeanette (1992). Slavery in Portuguese India (1510-1842). Delhi: Himalaya Publishing House., p. 116).

Hoje existem no norte do estado de Karnataka comunidades de siddis que, antes de ter buscado refúgio nessa região, devem ter vivido em Goa ou num dos sultanados do Decão. Apenas uma minoria dos siddis contemporâneos é descendente das velhas elites de escravos. A maioria deve descender de escravos comuns (cf. Palakshappa, 1976PALAKSHAPPA, T.C. (1976). The siddhis of North Kanara. Delhi: Sterling Publishers., p. 11, 15; Lobo, 1984LOBO, Cyprian Henry (1984). Siddis in Karnataka. A report making out a case that they be included in the list of scheduled tribes. Bangalore: Centre for Non-Formal and Continuing Education Ashirvad., p. 15; Pinto, 1992PINTO, Jeanette (1992). Slavery in Portuguese India (1510-1842). Delhi: Himalaya Publishing House., p. 131).

Há diversas razões que podem explicar o gradual desaparecimento dos históricos e poderosos habshis: em primeiro lugar, havia uma falta crônica de mulheres africanas nos sultanados do Decão; além disso, a estratégia de casamento preferida pelas elites de escravos, que visava facilitar a integração dos descendentes, fazia com que muitos se casassem com mulheres locais (de preferência, da aristocracia). Mas o fator mais decisivo tenha talvez sido o colapso de Ahmadnagar e o subsequente avanço dos mongóis, que fizeram com que a demanda por escravos de elite, na região, chegasse abruptamente ao fim (Eaton, 2006aEATON, Richard M. (2006a). "Malik ambar and elite slavery in the Deccan, 1400-1650", em ROBBINS, Kenneth X. & McLEOD, John. African elites in India. Habshi Amarat. London: Art Books International., p. 61).

Os siddis de Karnataka: diferença e desigualdade

Os siddis de Karnataka vivem na região de Uttara Kannada, província situada no noroeste do estado43 43 Os dados que seguem são resultado de um estágio pós-doutoral que contou com o apoio da Capes, pelo qual agradeço. Além de incluir estudos em arquivos e bibliotecas de Panjim e Dharwad, o trabalho baseia-se fundamentalmente em uma intensa pesquisa de campo, desenvolvida entre fevereiro de 2013 e janeiro de 2014, na província de Uttara Kannada, mais especificamente em seis talukas (distritos administrativos) - Yellapur, Haliyal, Ankola, Joida [Supa], Mundgod e Sirsi -, nos quais vive a maior parte da população siddi do estado de Karnataka. Ao todo, cheguei a conhecer mais de trinta aldeias, além de várias habitações siddis espalhadas pelas matas fechadas. Tive a oportunidade de participar de festas e eventos próprios de cada um dos subgrupos siddis: p.ex., a cerimônia dedicada aos jantes (ancestrais familiares), junto aos siddis hindus; Bakri-Id, com os siddis muçulmanos; Páscoa e Natal, junto aos siddis cristãos. Também participei de festas e eventos que se propõem a reunir todos os siddis, independentemente de seu pertencimento religioso: p.ex., a festa de Siddi Nas; as comemorações de dez anos da conquista do status de scheduled tribe; bem como eventos esportivos promovidos por jovens siddis (como as competições de kabaddi - esporte praticado na Índia e em outros países do sudeste asiático). Em especial, acompanhei as atividades de uma ONG fundada por jovens siddis (Siddi Jana Vikas Society). Além da enorme quantidade de conversas informais que tive ao longo de mais de meio ano de convivência com esse grupo, também gravei, com autorização dos entrevistados, ao menos cinquenta diálogos de caráter mais formal, que seguiram um roteiro de entrevista semiestruturada. Se há alguns trabalhos antropológicos de muito boa qualidade sobre os sidis de Gujarat (p.ex., Basu), estudos aprofundados sobre os siddis de Karnataka, por sua vez, são muito escassos. . Trata-se de um grupo pequeno, de aproximadamente 20 mil a 25 mil pessoas44 44 A residência em áreas de difícil acesso e questões identitárias têm dificultado o levantamento de dados demográficos, de maneira que não existem números "confiáveis" sobre os siddis. As estimativas demonstram um forte crescimento populacional nas últimas décadas. Em 1976, num dos primeiros estudos sobre os siddis, Palakshappa indicou menos de 4 mil; Hiremath, na década de 1990, falava de 7.223 siddis; Obeng, em 2007, de 14 mil. , que é subdividido em três grupos religiosos: católicos (cerca de 45%), hindus (30%) e muçulmanos (25%)45 45 De acordo com estimativas de (Camara 2004, p. 102). . Enquanto os siddis cristãos e muçulmanos construíram suas habitações majoritariamente num planalto (climaticamente mais seco), os siddis hindus vivem nas encostas da serra, que se estende até o estado de Goa. Em diversos povoados, siddis cristãos convivem com siddis muçulmanos (ainda que espacialmente segregados) e, não raramente, pode-se encontrar também a presença de não siddis (geralmente maratas). Já os siddis hindus vivem em casas espalhadas no meio da mata fechada; suas habitações não formam aldeias.

A maioria dos siddis vive da agricultura. Alguns (na maior parte, siddis cristãos) são proprietários da terra que cultivam; muitos outros (hindus) não possuem terra (perderam-nas) e são obrigados a trabalhar para os grandes proprietários da região (Havig Brâmanes, na região de Yellapur; Lingayats, na região de Haliyal). Os siddis têm enfrentado condições de vida extremamente duras. A grande maioria dos mais velhos passou por experiências de trabalho forçado (bonded labour). Era comum uma família "dar" um(a) filho(a) a um proprietário para que trabalhasse durante um período (não raramente, durante vários anos) em troca de empréstimo em dinheiro ou para quitar alguma dívida.

Além das diferenças religiosas, existem também diferenças linguísticas substanciais entre os subgrupos. Os siddis cristãos e os siddis hindus falam, como língua materna, uma variante do concanim, idioma corrente em Goa. Já os siddis muçulmanos expressam-se em urdu. Hoje, a maioria dos siddis fala também canada (língua oficial do estado, que é ensinada nas escolas).

Tal situação linguística levou à formulação da hipótese de que os siddis cristãos e hindus teriam vivido como escravos em Goa e, de lá, fugido para Uttara Kannada (Palakshappa, 1976PALAKSHAPPA, T.C. (1976). The siddhis of North Kanara. Delhi: Sterling Publishers., p. 11). Diversos estudiosos (Palakshappa, 1976PALAKSHAPPA, T.C. (1976). The siddhis of North Kanara. Delhi: Sterling Publishers., p. 11; Hiremath, 1993HIREMATH, R. S. (1993). Life, living and language among Sidis of North Kanara District. Dissertação, Department of Social Anthropology. Dharwad: Karnatak University., p. 46; Nijagannavar, 2008NIJAGANNAVAR, Manjula (2008). Anthropological demography of Siddi of Uttara Kannada District, Karnataka. Dissertação, Department of Social Anthropology. Dharwad: Karnatak University., p. 36) defendem ainda a ideia de que os siddis muçulmanos são originários do reino islâmico de Bijapur do século XVI (situado ao norte da região habitada pelos siddis contemporâneos)46 46 Apenas os siddis muçulmanos possuem um mito de origem. Eles se dizem descendentes diretos de um dos primeiros seguidores de Maomé, Bilal ibn Rabah (ou Bilal al-Habshi), um ex-escravo negro que foi escolhido pelo profeta para ser o primeiro muezim. Essa narrativa dá respaldo para que os siddis muçulmanos rejeitem a ideia de que eles seriam conversos (um argumento usado por muçulmanos indianos para justificar o tratamento desigual dado aos siddis) e explica também por que muitos deles entendem que os siddis cristãos e hindus são conversos: de acordo com essa visão, eles teriam abandonado o Islão e mudado de religião após chegarem na Índia. Já os muçulmanos não siddis costumam não reconhecer essa narrativa e tratam os siddis muçulmanos como uma espécie de subcasta (a mais baixa) dentro de sua comunidade, denominada shek. .

As divisões linguísticas e religiosas sugerem que os grupos residem nessa região há muito tempo e tiveram (pelo menos no que diz respeito aos cristãos e aos muçulmanos) pouco contato entre si. A situação dos siddis lembra, evidentemente, a história dos quilombos (maroons, palenques) no continente americano. Como nas Américas, também na Índia uma das principais razões capaz de impulsionar a fuga para uma região tão remota pode ter sido o fato de que os siddis eram facilmente reconhecíveis como escravos ou descendentes de escravos justamente por causa de suas características físicas particulares. Tal interpretação é, evidentemente, um argumento a favor da tese segundo a qual o fenótipo teve e tem um papel de diferenciação social mesmo na Índia, ou seja, mesmo num sistema de diferenciação social profundamente marcado pela lógica das castas.

Os siddis têm sido tratados geralmente com desprezo pelos indianos não siddis que vivem na vizinhança. Têm sido vistos como um grupo único, como mais uma casta que costuma ser situada, na hierarquia das castas, entre os maratas e os chamados intocáveis. Os siddis consentem usualmente com tal posicionamento, sentindo-se superiores aos intocáveis. Nas minhas conversas e entrevistas com siddis da velha geração, registrei muitas histórias sobre tratamentos degradantes e discriminatórios nos mais diversos contextos sociais: nos ônibus eram obrigados a sentar-se na última fila; nas feiras eram frequentemente enganados pelos vendedores; nas escolas, em delegacias de polícia etc. passavam por experiências que descrevem como humilhantes. Era comum e ainda pode ocorrer que pessoas de castas superiores evitem o contato físico com os siddis.

Os jovens reclamam de discriminações semelhantes, mas falam também de outras experiências mais ambíguas vivenciadas fora da região em que vivem. Como a maioria dos indianos não siddis que não convive diretamente com os siddis desconhece sua existência, é muito comum que eles sejam confundidos com estrangeiros (africanos): neste caso, dependendo do contexto, os siddis podem ser tratados como seres exóticos, turistas e/ou como estranhos não desejados.

Em diversos momentos, os siddis identificam-se positivamente com africanos e afrodescendentes: p.ex., quando têm a oportunidade de acompanhar - via TV - eventos esportivos e/ou musicais internacionais. Assim, usam o termo siddi para se referir a esportistas, artistas e políticos africanos de renome, e, inclusive, para falar, de forma genérica, de todos os africanos e seus descendentes.

Os próprios siddis diferenciam entre pessoas com cabelo encaracolado (curly hair) e pessoas com cabelo liso e comprido (long hair). Na Índia, expor o cabelo liso e comprido, geralmente ornado com pétalas de flores, é um costume disseminado entre mulheres de todos os grupos e todas as castas. É parte fundamental de uma estética feminina altamente valorizada. Como os(as) siddis assimilaram a maioria dos hábitos de vestimenta e dos valores estéticos da sociedade na qual estão inserido(as), pode-se perceber que as mulheres siddis elaboraram estratégias (alisamento; uso de fios artificiais) para adaptar o seu cabelo crespo ao modelo hegemônico. Seguindo padrões hegemônicos de estética indiana, os siddis - especialmente as mulheres - utilizam também diferentes métodos para branquear a cor da pele. Se, em épocas mais remotas, a aplicação de pó de arroz era popular, podemos encontrar hoje nas mais distantes aldeias o uso de cremes branqueadores (whitening creams).

Tanto a maioria dos siddis quanto seus vizinhos entendem que fazem parte de uma comunidade religiosa maior. No entanto, a "integração" dos grupos às comunidades religiosas às quais pertencem ocorreu, nos três casos, de tal maneira que nelas vieram a assumir posições subalternas. Até cerca de quarenta anos atrás, época em que existia apenas uma igreja na região (Haliyal), os siddis eram obrigados, durante as missas dominicais, a ficar em pé na última fileira da igreja e a manter certo distanciamento dos outros fiéis. Naquela altura, os padres recorriam a métodos de evangelização e disciplinamento muito severos: aplicavam multas e ameaçavam expulsá-los das aldeias e excomungá-los. Dessa forma buscavam impedir casamentos inter-religiosos e combater aquilo que entendiam como crenças animistas e bruxaria.

Durante minha pesquisa de campo, ouvi muitas reclamações de siddis a respeito das intervenções e pressões de padres e de mulás (além de brâmanes, é claro) que não são originários da região, mas se arrogariam o direito de criticar a maneira de viver dos siddis e tentariam mudar os hábitos da população local. No caso dos siddis muçulmanos, percebi uma forte animosidade contra a atuação do grupo tabligh (muçulmanos ortodoxos que se aproximam das aldeias com o objetivo de combater crenças tidas como sincréticas). Esse grupo promoveria ataques às festas tradicionais de Bava Gor, um santo sufi que, em tempos mitológicos, teria vindo do norte da África à Índia com a missão de combater o demônio. Sobretudo as mulheres, que ocupam um papel bastante ativo no culto de Bava Gor - fato que as permite ter uma relação direta com o santo -, sentem-se desautorizadas e inferiorizadas pelas tentativas de implementação de uma versão ortodoxa (fundamentalista) do Islão.

Devido a tais conflitos, alguns siddis (católicos e muçulmanos) apostam hoje na formação de seus próprios líderes religiosos. Alguns jovens siddis muçulmanos já foram enviados pelos seus pais a Bijapur para estudar em renomadas escolas de Alcorão com o objetivo de se tornarem mulás. E já há dois padres católicos formados, sendo um deles atuante na região. No que diz respeito aos siddis hindus, a situação é diferente: não existe a possibilidade de algum deles vir a fazer parte do grupo dos sacerdotes máximos, papel reservado à casta dos brâmanes.

Tanto católicos não siddis quanto muçulmanos não siddis costumam rejeitar casamentos com seus irmãos de fé siddis, por considerá-los não iguais. Há diversos indícios de que as relações intergrupais e a afirmação de fronteiras grupais têm seguido, tradicionalmente, padrões e critérios característicos das castas hindus: endogamia, proibições de comensalidade etc. Esses mesmos preceitos de evitação valeriam, inclusive, para as relações entre os subgrupos siddis. Assim, para a velha geração, casar com alguém de fora de seu grupo religioso era algo inimaginável. Hoje em dia, casamentos inter-religiosos não são mais algo totalmente impossível. Mesmo assim, continuam sendo a exceção e, quando ocorrem, vale a seguinte regra: a mulher há de se converter à religião do marido47 47 Nesse contexto, vale lembrar também que entre os siddis, tal como ocorre com a maior parte da população indiana (sobretudo no interior do país), a grande maioria dos casamentos é arranjada pelos pais. Os chamados love marriages podem provocar rompimento com a família (casta) e até atos de agressão física (incluindo assassinatos). . Tudo indica que as lentas mudanças que aparentemente estão ocorrendo nas relações entre os subgrupos foram impulsionadas pelas lutas políticas em prol do reconhecimento dos siddis como uma scheduled tribe 48 48 As denominações scheduled castes e scheduled tribes ganharam importância social na Índia logo após a promulgação da Constituição, em 1950. Já antes disso, o India Act de 1935 tinha classificado - pela primeira vez - alguns grupos como "backward tribes" e, no censo de 1931, algumas comunidades tinham sido reconhecidas como "primitive tribes", outras como "backward classes" (Lobo, 1984, p. 89). (Palakshappa 1976, p. 14) relata que, em 1953, a chamada Backward Class Commission incluiu os siddis hindus na categoria de backward classes; já os siddis católicos e muçulmanos foram classificados no relatório (report) como forward classes. A conquista do status scheduled caste (ou tribe) garante uma série de benefícios, tais como: recebimento de cesta básica; financiamentos para a construção de casas; bolsas de estudo (ou isenção de taxas em colégios, universidades); cotas para cargos no serviço público (administrativo); direito à posse de terra (este último ponto é fundamental no caso dos siddis). .

Construindo identidades para além das religiões-castas: conectando-se a redes e a discursos afrodiaspóricos?

Foi no contexto da luta pela conquista do status de scheduled tribe, obtido finalmente em 2003, que surgiram as primeiras associações que buscavam unir os siddis para além de suas divisões religiosas internas. A primeira importante organização foi criada em 1984 (All Karnataka Sidi Development Association - AKSDA)49 49 Posteriormente foram fundados o Sidi Development Project, em 1990, e a Siddi Development Society, em 1995. A maioria das organizações sidis teve vida relativamente curta: geralmente recebem fundos de instituições nacionais e internacionais (contam com a colaboração de agentes da Igreja e/ou de assistentes sociais) e, não raramente, o fim dos financiamentos resulta no término das atividades do grupo. e teve o apoio do padre e antropólogo Cyprian Lobo, uma figura-chave na articulação do projeto que reivindicava a inclusão dos siddis na lista das scheduled tribes. Num estudo (survey) que ele encaminhou como "relatório" às autoridades indianas, Lobo buscava comprovar que os siddis são uma tribo como tantas outras que vivem na Índia: cumpririam todos os critérios que o governo utilizava naquele momento para reconhecer um grupo como uma tribo50 50 Aparentemente, o governo seguia as orientações apresentadas no Handbook of scheduled castes and scheduled tribes, publicado em 1968, para definir o que seria uma tribo. O manual cita quatro critérios básicos: origem tribal; maneira primitiva de viver; povoações situadas em áreas afastadas e de difícil acesso; e ainda "retrocesso generalizado em todos os aspectos" (general backwardness in all respects) (cf. Lobo, 1984, p. 90). . O antropólogo jesuíta destacou características como organização segmentária, mas não usou nem a proveniência particular da população, nem práticas culturais específicas como argumento. Ao contrário, no "report" afirma que os siddis não preservaram nada de sua cultura (Lobo, 1984LOBO, Cyprian Henry (1984). Siddis in Karnataka. A report making out a case that they be included in the list of scheduled tribes. Bangalore: Centre for Non-Formal and Continuing Education Ashirvad., p. 13).

Foi somente a partir da virada do novo milênio que surgiram novos discursos que, com o objetivo de fortalecer uma identidade siddi suprarreligiosa, passaram a salientar a origem comum africana e as práticas culturais compartilhadas. Esse processo recebeu, novamente, impulsos de fora. O pastor e missionário adventista ugandês Bosco Kaweesi incentivou que jovens siddis se formassem em colégios em Bangalore ou Puna, providenciando verbas da Igreja para moradia e ensino. Também Pashington Obeng, pesquisador de origem ganesa radicado nos Estados Unidos, tem se engajado em projetos de teor político-social transformador, estimulando contatos e diálogos entre jovens siddis e negros norte-americanos (p.ex., via doações de computadores a uma ONG siddi). Visitando a região com regularidade desde 1998, esse especialista em estudos religiosos é o autor que mais tem publicado sobre os siddis de Karnataka nas últimas décadas.

Nos seus escritos, Obeng critica aquelas visões que tendem a explicar a inferiorização dos siddis unicamente por sua inserção subalterna na lógica indiana das castas. Ao opor-se a essa interpretação, que ele localiza na maioria dos estudos elaborados por pesquisadores indianos (como em Palakshappa)51 51 "A assimilação dos siddis dá-se de duas maneiras: primeiro, em relação ao conjunto da cultura hindu da região e, segundo, em relação à estrutura social das diferentes religiões", afirma (Palakshappa 1976, p. 103). Já para Lobo, a condição de escravo doméstico teria feito com que os descendentes não pudessem "manter sua vida comunal". "Como resultado, eles eram obrigados a sacrificar sua própria cultura e língua, assimilando o idioma local como forma de comunicação e a cultura a fim de dar sentido e organização às suas vidas" (Lobo, 1984, p. 16). , Obeng realça o fator "raça" tanto como critério de discriminação quanto como fator de identificação. Com o objetivo de combater as "teses indianas" que enfatizam a assimilação cultural e/ou a divisão dos siddis em três grupos religiosos - cristão, muçulmano e hindu -52 52 Escreve Obeng: "(...) estas noções limitadas de fronteiras de espaço e de pertencimento tendem a não levar em consideração os vínculos afro-indianos no interior de sua própria comunidade transnacional. (...) [tais obras acadêmicas e rótulos] repercutem uma conceituação que os apresenta [os siddis] como grupos isolados que vivem em conglomerados e não se preocupam com sua inter-relação pan-espacial e metaespacial dentro da comunidade social global". "[Este trabalho] fornece assim um arcabouço conceitual para compreender e promover as relações internas entre os africanos na Índia e as comunidades pan-africanas do mundo inteiro" (Obeng, 2007, p. 205-206). , esse autor busca trazer à tona relações e conexões que, de acordo com ele, ligam os African Indians - termo que ele prefere a siddi, embora não seja utilizado pelos próprios nativos - à África e a outros mundos afrodiaspóricos. Procura comprovar que existe entre todos os siddis um núcleo cultural comum e faz comparações frequentes com fenômenos culturais da África bantu para revelar a africanidade "escondida" nas práticas culturais siddis. Obeng chega à conclusão de que "os indianos africanos criaram e preservaram, sim, aspectos de sua cultura e religião", o que tem contribuído para a afirmação de sua "identidade racial". E assume aberta e enfaticamente que pretende, com seus estudos, dar impulso a futuras investigações sobre posicionamentos contra-hegemônicos de africanos diaspóricos que demonstrem que alianças podem ser forjadas em planos regionais, nacionais e globais (Obeng, 2008OBENG, Pashington (2007). Shaping membership, defining nation. New York, Lexington Books., p. 249).

Se olharmos para a rica e multifacetada produção cultural dos siddis, podemos, evidentemente, encontrar alguns elementos que são reconhecidos, tanto por eles quanto por pessoas de fora, como "tradições tipicamente siddis", e que são frequentemente lembrados e realçados por aqueles que buscam construir e defender uma "perspectiva afrodiaspórica". Em primeiro lugar, podemos citar o damam (tambor), que é tocado em quase todos os encontros e eventos que reúnem populações siddis; alguns veem o "damam" como uma espécie de símbolo étnico do grupo. Sempre que siddis encontram-se para celebrar algo (casamento, ato político etc.), no final do evento as pessoas sentam-se em torno do damam, cantam e dançam noite adentro.

Existe ainda a festa anual de Siddi Nas que, além de possuir importantes características religiosas, vem sendo cada vez mais vista pelos próprios siddis como uma - talvez a mais importante - manifestação política, que expressa a união e a solidariedade entre todos os siddis. O festival de Siddi Nas é celebrado no interior de uma densa floresta, numa minúscula clareira ao lado de um riacho na região de Sathumbail (zona habitada por siddis hindus)53 53 As descrições e análises que seguem baseiam-se fundamentalmente nas minhas experiências de campo, ao longo das quais acompanhei todas as atividades em torno do festival que ocorreu, no ano em questão (2013), no dia 20 de abril. .

Num dos primeiros estudos etnográficos sobre os siddis, Palakshappa descreve, com poucas palavras, a celebração de Siddi Nas como um festival (ritual) executado por brâmanes (havig brâmanes), em que os siddis teriam assumido um papel secundário: ao assistir o sacerdote brâmane, ofereciam flores e cocos. Hoje o sacerdote que promove a festa, é, de fato, um siddi. E, para ele, Siddi Nas é um espírito que veio da África.

Baseando-se em narrativas de líderes siddis como a fala desse poojari (sacerdote), Obeng vê no festival uma espécie de revitalização da africanidade do grupo reprimida durante séculos, uma celebração e reencenação de tradições que caíram no esquecimento. As interpretações de Obeng refletem hoje a visão de um número crescente de siddis; ao mesmo tempo, a execução do pooja (parte cerimonial) revelou alguns detalhes peculiares, para os quais um ambientalista chamou a minha atenção. Segundo Esha, a cerimônia não somente seguia os padrões e o simbolismo dos rituais hindus tradicionais; o sacerdote e sua família teriam também reproduzido o habitus dos brâmanes: sentaram-se num lugar distante dos outros participantes, fizeram sua própria comida etc. - uma atitude que esse ativista, crítico ao sistema de castas, associou àquilo que o sociólogo indiano Srinivas tinha definido, na década de 1950, como processo de "sanscritização": "Ao adotar a culinária vegetariana e a abstinência alcoólica, e ao realizar a sanscritização dos seus rituais e de seu panteão, uma casta inferior era capaz, dentro de uma geração ou duas, de ascender a uma posição hierárquica mais alta. Resumindo, assumia-se, o máximo possível, os costumes, os ritos e as crenças dos brâmanes; e a adoção da maneira de viver bramânica por uma casta inferior parece ter sido frequente, embora fosse teoricamente proibida" (Srinivas, 1952SRINIVAS, M. N., (1952). Religion and society among the Coorgs of South India. Oxford: University Press, New Delhi., p. 30).

Chama, portanto, a atenção o fato de que a parte religiosa do festival (o auge do evento que, para muitos, simboliza a união siddi) parece estar imbuída em rituais que são percebidos pela maioria das pessoas da região como semelhantes (senão idênticos) a padrões ritualísticos hindus; bem como o fato de o "poojari" adotar, aparentemente, estratégias características do sistema de castas que, de acordo com Srinivas, visam conquistar uma posição mais elevada sem, ao mesmo tempo, pôr em xeque o sistema de castas como um ordenamento social válido. Houve também outra performance bem curiosa que pude observar posteriormente em diferentes ocasiões. Um grupo de jovens vestiu-se com folhas de manga e pintou seus corpos e rostos com tinta branca (uma estética que contrasta com os trajes habituais dos siddis e da maioria das populações indianas que buscam geralmente cobrir o corpo). Num pequeno palco montado no meio da floresta, os jovens dançaram, cantaram e imitaram gestos de "guerreiros africanos", encenando, assim, aquilo que imaginam ser uma "tribo africana"; ou seja: exibiram uma representação performática daquele conceito que teve um papel essencial na conquista de direitos especiais (scheduled tribe). A apresentação, que busca conjugar a noção de tribalidade com a de africanidade, fez bastante sucesso e parece agradar cada vez mais siddis. Não comprometida com nenhum simbolismo religioso específico, ela possui o potencial de estimular e consolidar um sentimento de solidariedade e de identidade grupal para além das divisões religiosas internas54 54 Esse tipo de representação ("encenação tribal") foi desenvolvido, aparentemente, primeiro por sidis de Gujarat. Lá há, inclusive, grupos que fazem turnês de divulgação de músicas e danças sidis na Índia e até fora do país, e que utilizam, em partes de suas performances, vestimentas parecidas. Às vezes, os dançarinos da chamada goma dance ainda acrescentam à sua indumentária penas de pavão (pássaro-símbolo da Índia). De acordo com um dançarino entrevistado por (Shroff 2004, p. 173), foi um artista profissional de Udaipur que sugeriu aos sidis usar tal adorno em suas performances, o que se tornaria um costume. .

A tendência de ver a África por trás das tradições siddis é, porém, ainda restrita aos discursos de alguns (jovens) líderes; a maioria dos siddis de Karnataka vê suas práticas cotidianas fortemente ligadas às práticas de grupos vizinhos com os quais continuam mantendo relações hierárquicas. Poucos sabem da existência de outros sid(d)is na Índia. Um jovem líder contou-me que os mais velhos teriam descoberto somente há algumas décadas - no momento em que assistiram, pela primeira vez, a reportagens sobre a África pela televisão - que não são os únicos "sid(d)is no planeta".

No entanto, não parece improvável que a África comece a tornar-se uma referência cada vez mais importante nas representações culturais e nos discursos políticos num futuro próximo. Está em formação uma primeira geração de siddis (jovens entre 20 e 35 anos) que demonstra interesse em estabelecer contato com sid(d)is de outras regiões da Índia (Gujarat, Hyderabad) e que intencionam dialogar com líderes políticos africanos e pesquisadores55 55 Diferentemente da velha geração, que tendia a "fechar-se" nas aldeias (muitos dizem ter tido medo de pessoas estranhas), esses jovens mostram-se dispostos a abrir-se ao mundo e têm muito interesse em obter informações sobre a África, bem como sobre africanos e afrodescendentes que vivem em outras partes do mundo. . Por meio da implementação de seus projetos socioeducativos, esses jovens começam a disseminar sua opinião a respeito da história e da cultura siddis, especialmente entre as crianças siddis. Ao mesmo tempo, vêm buscando caminhos para conectar-se a redes translocais e até transnacionais. Em janeiro de 2014, três jovens siddis56 56 Dois deles foram e continuam sendo meus principais interlocutores que, ao lado de diversos outros jovens siddis, foram fundamentais para que eu pudesse desenvolver a pesquisa entre os siddis. participaram do Oitavo Congresso Pan-Africanista em Johannesburgo (África do Sul). Foi a primeira participação de representantes siddis num evento desse tipo. Em junho de 2014, um membro do comitê organizador desse último Congresso fez, pela primeira vez, uma visita aos siddis de Karnataka. Ambas as iniciativas foram estimuladas e mediadas pelo pesquisador Obeng.

É possível, com a conexão a redes transnacionais e afrodiaspóricas, que sejam incorporados novos referenciais interpretativos que estejam em maior sintonia com as lutas negras diaspóricas globais, como aconteceu com o movimento dalit há muito tempo. A incorporação de novas estratégias de luta, de novas análises e, quem sabe, até de novas categorias-chave - "raça"?57 57 Nas minhas conversas com jovens siddis em língua inglesa, percebi que as palavras race e racism não são utilizadas; a maioria deles até desconhece esses conceitos, o que não significa, porém, que diferenças fenotípicas não tenham importância em suas vidas. - para falar de diferença e de desigualdade pode - a médio e longo prazo - afetar as práticas sociais. Tudo indica, porém, que discursos afrodiaspóricos, caso ganhem força entre os siddis, hão de conviver ainda bastante tempo com práticas e discursos que remetem a outras tradições que têm marcado profundamente a história e as práticas culturais dessa população.

Considerações finais

Os dois exemplos - a luta dalit e a luta siddi - revelam uma acirrada disputa em torno de signos e significados num contexto em que lideranças políticas buscam redefinir identidades (fronteiras) e valores socioculturais ao mesmo tempo em que combatem discriminações e empenham-se em conquistar direitos. Nesse processo, as escolhas de categorias-chave de identificação e de análise (negro, indiano, cristão, muçulmano, hindu, casta, raça, tribo etc.) e a importância explicativa atribuída a elas são fortemente marcadas pelas estratégias discursivas. Estas, por sua vez, são moldadas pelas experiências locais cotidianas dos agentes sociais e, dependendo do contexto, por discursos de interlocutores supralocais e de potenciais aliados às suas reivindicações.

Vimos que, enquanto as instituições (representantes) do Estado indiano foram a única instância à qual os siddis podiam recorrer para reclamar e encaminhar suas reivindicações, as avaliações das discriminações sofridas e, inclusive, as categorias identitárias utilizadas (autorrepresentação) seguiam, basicamente, os padrões culturais locais e nacionais. Já a história do movimento dos dalits (intocáveis) mostra que o estabelecimento de diálogos transnacionais e a articulação de projetos políticos num plano supranacional - em foros políticos internacionais e via redes afrodiaspóricas - podem repercutir fortemente sobre as representações e os discursos daqueles que intermedeiam entre os três planos: local, nacional e supranacional.

E, por último, pode-se ainda concluir da análise dos dois exemplos aqui tratados o seguinte: o conceito de racismo, cunhado no início do século XX como um conceito de luta contra um tipo específico de discriminação, embora reformulado e ampliado centenas de vezes58 58 É sabido que o conceito de racismo surgiu e ganhou força no contexto de luta contra políticas de discriminação que se disseminaram com a ascensão do nazismo na Alemanha (não antes dos anos 1920) e, como (Taguieff 1998, p. 227) chamou a atenção, serviu muito mais como conceito de luta do que como um instrumento analítico. Antes de ser dilatado para outros contextos, a propagação do conceito de racismo visava denunciar e atacar conteúdos biologizados e deterministas da ideia de raça, que eram usados como suporte ideológico por regimes autoritários europeus (cf. Hofbauer, 2006, p. 216 ss.). , continua tendo mais validade como um meio para denunciar injustiças e articular projetos de crítica social do que como um instrumento analítico que permite entender e explicar as múltiplas dimensões dos fenômenos discriminatórios.

Por enquanto não existe, na Índia, um discurso moral sobre o racismo comparável àquele sobre a intocabilidade, proibida pela Constituição em 1950 (cf. também Basu, 2005________ (2005). "Interview with Helene Basu: Africans in India". Anthropology, n. 22. Disponível em: <http://www.frontlineonnet.com/fl2218/stories/20050909002609100.htm>. Acesso em: 22 dez. 2011.
http://www.frontlineonnet.com/fl2218/sto...
, p. 3). À parte os discursos da elite dalit, as palavras raça e racismo não fazem parte do vocabulário cotidiano da maioria dos indianos; não conseguem estimular processos de identificação e mobilizar pessoas, o que não quer dizer - como pretendi mostrar neste ensaio - que não existam estereótipos negativos a respeito de determinados fenótipos e da cor de pele escura.

Nesse sentido, este artigo constitui também uma tentativa de argumentar que, em vez de guiarmos nossas análises por definições pré-formuladas de racismo e raça (ou de castismo e casta), é mais frutífero analisarmos de que maneira diferença(s) e desigualdade(s) são vivenciadas, construídas, disputadas, questionadas (ou até negadas) e transformadas pelos próprios agentes sociais, tanto por meio das práticas quanto por meio dos discursos.

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    » http://www.worlddialogue.org/content.php?id=490
  • **
    Revisão técnica feita por Léa Tosold.
  • 1
    O termo dalit (literalmente: oprimido, quebrado), preferido pela militância, designa aqueles que vivem na base do sistema de castas indiano. São também chamados de intocáveis, scheduled caste (designação oficial, como se verá em notas ao longo do artigo) e harijan (literalmente: filhos de Deus); este último termo preferido e disseminado por Gandhi.
  • 2
    Esta linha de argumentação pode ser embasada em vozes sid(d)is como a de um motorista de ônibus entrevistado pelo videomaker (Shroff 2004SHROFF, Beheroze (2004). "Sidis and Parsis. A fimmaker's notes", em CATLIN-JAIRAZBHOY, Amy& ALPERS, Edward (orgs.). Sidis and scholars. Essays on African Indians. Delhi: Rainbow Publishers., p. 171): "Somos indianos e africanos - você vê, os indianos chamam-nos de africanos e nós dizemos que somos indianos. Hoje em dia, nossa maneira de viver, nossos costumes são indianos, certo? Não são lá da África, certo? Toda nossa maneira de viver, nossos costumes e parentes, tudo está na Índia. Não temos nada a ver com a África". No videodocumentário Voices of the Sidis (de 2005), produzido por Shroff (em Gujarat e Mumbai) e apresentado na conferência de Goa, diversos depoimentos expressam certa estranheza diante das perguntas dos intelectuais: assim, uma mulher sidi residente em Mumbai afirma não ter tempo para pensar sobre a África, uma vez que trabalha doze horas por dia; já outros deixaram claro que não gostam de ser identificados como africanos porque "como negros" teriam menores chances de conseguir um emprego (Van Kessel, 2011________ (2011). "The African diaspora in India". Disponível em: <http://www.awaazmagazine.com/index.php/archives/item/158-the-africandiaspora-in-india>. Acesso em: 5 fev. 2012.
    http://www.awaazmagazine.com/index.php/a...
    , p. 2). No evento, o documentarista levantou a seguinte pergunta retórica: "estaríamos nós, intelectuais, construindo uma identidade sidi, impondo-lhes uma identidade africana, enquanto eles mesmos talvez tenham diferentes questões?" (apud Van Kessel, 2006VAN KESSEL, Ineke (2006). "Conference Report: Goa Conference on the African Diaspora in Asia". African Affairs, v. 105, n. 420, p. 461-64., p. 463).
  • 3
    Os varnas constituem até hoje um esquema ordenador de referência fundamental; além disso, há as milhares de jatis - subcastas -, que orientam, na vida cotidiana, as interações sociais. O termo português casta fundiria varna e jati.
  • 4
    No que diz respeito à noção da intocabilidade (asprishya), a maioria dos pesquisadores acredita que esta prática de exclusão e segregação social teria sido desenvolvida somente a partir do século V. Zeliott (2010)________ (2010). "India's Dalits: racism and contemporary change". Global Dialogue, v. 12, n. 2, p. 1-10. Disponível em: <http://www.worlddialogue.org/content.php?id=490>. Acesso em: 21 dez. 2011.
    http://www.worlddialogue.org/content.php...
    menciona relatos de viajantes chineses que, nesse período, constataram que açougueiros, pescadores e lixeiros eram obrigados a viver fora das cidades, o que, para este pesquisador, confirma a hipótese de que ocupação, e não descendência, estaria na base do fenômeno da intocabilidade.
  • 5
    Nesse contexto, Gupta critica aqueles que recorrem aos textos védicos para atribuir às castas origens raciais e acrescenta o seguinte questionamento: "Por que muitos de nós defendem uma teoria de duas raças e não de quatro?" (Gupta, 2013________ (2013). "Caste, race, politics", em UMAKANT, Sukhadeo Thorat (ed.). Caste, race and discrimination. Discourses in international context. New Delhi: Indian Institute of Dalit Studies., p. 72).
  • 6
    Gupta não apenas ressalta o fato de haver somente uma passagem no Rig Veda em que os dravidianos são descritos, supostamente, como "sem nariz e com lábios de touro" (noseless and bull-lipped); ele também questiona as próprias traduções das palavras originárias em sânscrito. Assim, "anas" poderia referir-se não a uma "pessoa sem nariz", mas a uma pessoa que não consegue articular-se bem (constituiria uma referência às línguas "estranhas" faladas pelos povos subjugados); já a expressão "bull-lipped" (talvez usada como metáfora) dificilmente teria sido uma caracterização pejorativa, dado que na Índia o touro sempre foi visto como um ser forte e determinado (Gupta, 2013________ (2013). "Caste, race, politics", em UMAKANT, Sukhadeo Thorat (ed.). Caste, race and discrimination. Discourses in international context. New Delhi: Indian Institute of Dalit Studies., p. 71).
  • 7
    "Dasa" significa algo como "infiel" e "selvagem" em sânscrito. A provável derivação "dasyu" vem sendo traduzida (interpretada) também como "escravo".
  • 8
    Na mencionada Conferência sobre Diáspora Africana em Goa, Margaret Alva, política importante filiada ao Partido do Congresso e empenhada na causa dos sid(d)is de longa data, sublinhou na sua fala inaugural que a Índia é uma sociedade muito ciosa da cor ("colour-conscious"). Para ilustrar sua afirmação, remeteu-se às atitudes das avós indianas. Quando uma das suas filhas está prestes a dar à luz, a primeira pergunta delas seria se o novo membro da família será menino ou menina; e a seguinte, logo a seguir: terá pele clara? (apud Van Kessel, 2011________ (2011). "The African diaspora in India". Disponível em: <http://www.awaazmagazine.com/index.php/archives/item/158-the-africandiaspora-in-india>. Acesso em: 5 fev. 2012.
    http://www.awaazmagazine.com/index.php/a...
    , p. 2).
  • 9
    Jati em sânscrito significa "nascimento" e refere-se à diferenciação entre centenas de grupos endogâmicos tradicionalmente associados a profissões particulares.
  • 10
    O antropólogo (Fuller 2003FULLER, Christopher J. (2003). "Caste", em DAS, Veena. The Oxford India Companion to Sociology and Social Anthropology. Oxford: Oxford University Press., p. 485) analisa este ponto da seguinte maneira: "a ideologia bramânica não é compartilhada por todos os grupos e categorias sociais. Não existe uma ideologia de casta uniforme e, de maneira geral, não há nenhuma ideologia uniforme de hierarquia e de desigualdade social, porque as diferentes unidades sociais possuem ideologias e valores distintos".
  • 11
    A possibilidade de mobilidade interna no sistema de castas leva Gupta a afirmar ainda que "casta enquanto categoria não é tão imutável quanto raça" (Gupta, 2013________ (2013). "Caste, race, politics", em UMAKANT, Sukhadeo Thorat (ed.). Caste, race and discrimination. Discourses in international context. New Delhi: Indian Institute of Dalit Studies., p. 81).
  • 12
    Para sublinhar a diferença entre sistemas de castas e de raças, Gupta gosta de afirmar que era possível e comum ver "um cozinheiro negro numa sociedade racista, mas não um harijan numa cozinha brâmane" (Gupta, 2000GUPTA, Dipankar (2000). Interrogating caste: understanding hierarchy & difference in Indian society. New Delhi: Penguin Books., p. 42). Gupta entende ainda que as "substâncias naturais" que constituiriam as castas são "imaginadas", ao contrário das diferenças raciais, que seriam mais óbvias ou, de fato, "biológicas". A ausência de marcadores biológicos evidentes, no caso das castas, explicaria, inclusive, a necessidade de ritualizar diversas práticas do cotidiano: "No caso da raça, uma diferença física específica é escolhida para comprovar, justificar e perpetuar desigualdades econômicas e sociais entre as pessoas. Mas, no caso das sociedades de castas, em que nenhuma diferença natural pode ser discernida a olho nu, imagina-se a existência de tais diferenças e toma-se muito cuidado para que as substâncias que constituem cada casta não se mesclem com outras. Daí provêm as rebuscadas regras referentes à comensalidade entre castas ou aos casamentos intercastas" (Gupta, 2000GUPTA, Dipankar (2000). Interrogating caste: understanding hierarchy & difference in Indian society. New Delhi: Penguin Books., p. 19).
  • 13
    Chama a atenção o fato de que as análises de Gupta e Béteille são extremamente cuidadosas quando insistem em historicizar e contextualizar a ideia de casta, mas tendem, ao mesmo tempo, a tratar a categoria raça como uma essência imutável e a-histórica (cf. tb. Gupta, 2006________ (2006). "Caste, race, politics". Disponível em: <http://www.india-seminar.com/2001/508/508%20dipankar%20gupta.htm>. Acesso em: 4 fev. 2012.
    http://www.india-seminar.com/2001/508/50...
    , p. 10).
  • 14
    Posteriormente, no Novo Mundo, este "antijudaísmo racial" teria "se transformado em estratégia de racialização, na medida em que codificava relações sociais numa forma hierárquica por meio de símbolos corporais e culturais" (Hering Torres, 2012HERING TORRES, Max S. (2012). "Purity of blood. Problems of interpretation", em, HERING TORRES, Max S. MARTÍNEZ, María Elena& NIRENBERG, David (eds.). Race and blood in the Iberian world. Münster: Lit-Verlag (Racism Analysis, Yearbook, n. 2)., p. 11). Nem todos os cientistas concordam com essa leitura. (Chaves 2012CHAVES, María Eugenia (2012). "Race and caste. Other words and other worlds", em HERING TORRES, Max S., MARTÍNEZ, María Elena & NIRENBERG, David (eds.). Race and blood in the Iberian world. Münster: Lit-Verlag (Racism Analysis, Yearbook, n. 2)., p. 50-51), um dos autores da coletânea mencionada, destaca que o critério de pureza de sangue não parece ter tido grande importância no discurso dos letrados hispânicos que, no início da colonização, raciocinavam sobre a diferença entre colonizadores e escravos negros. Eles teriam se orientado pelo critério de "civilidade" para criar e justificar classificações hierárquicas. Nos meus estudos, tenho chamado a atenção para ideários de branco e de negro fundamentados em Escrituras Sagradas, mais especificamente, para reinterpretações de Gênesis - cap. IX que serviriam como justificativa para escravizar populações concebidas como negras (cf. Hofbauer, 2006HOFBAUER, Andreas (2006). Uma história de branqueamento ou o negro em questão. São Paulo: Editora da Unesp.).
  • 15
    (Xavier 2012XAVIER, Ângela Barreto (2012). "Purity of blood and caste. Identity narratives among early modern Goan elites", em TORRES, Max S. Hering, MARTÍNEZ, María Elena& NIRENBERG, David (eds.). Race and blood in the Iberian world. Münster: Lit-Verlag (Racism Analysis, Yearbook, n. 2)., p. 143) resume a relação entre casta e pureza de sangue, construída e remodelada pelo poder colonial português, da seguinte maneira: "Se o conceito de pureza de sangue teve uma história particular na configuração da sociedade goesa, o mesmo pode ser dito, por razões diferentes, sobre o conceito de casta. A palavra portuguesa 'casta' era principalmente usada, no contexto indiano, para identificar grupos sociais nos quais a endogamia era vinculada à transmissão de profissões. Em pouco tempo, a lógica das castas produziu denominações para vários e diversos grupos sociais, denominações que se tornariam conceitos tanto descritivos quanto prescritivos, munindo a gramática imperial (primeiramente, a portuguesa e, posteriormente, a britânica) de diferenciação com um novo objeto de discurso. Nesse sentido puramente discursivo, foram os portugueses que inventaram a casta indiana. Além disso, a difusão da palavra 'casta' como um instrumento de identificação das formas indianas de agrupamento deu-se paralelamente à crescente presença da pureza de sangue no reino de Portugal".
  • 16
    Cf. as palavras do Conselho de Goa, 1567: "Em algumas partes desta província (de Goa), os Gentoos [sic] dividem-se em diferentes raças ou castas de maior ou menor dignidade, mantendo cristãos como sendo de grau inferior e cultivando isso de forma tão supersticiosa que ninguém de casta superior pode comer ou beber com aqueles pertencentes a uma casta inferior" (apud Loomba, 2009LOOMBA, Ania (2009). "Race and the possibilities of comparative critique". New Literary History, n. 40, p. 501-22., p. 513).
  • 17
    No seu "Ensaio sobre os melhoramentos de Portugal e do Brazil" (de 1821), em que apresenta medidas políticas - incentivo à imigração de colonos europeus e a casamentos entre mestiços e brancos - que deveriam "reduzir a casta preta" num prazo de três gerações, o médico e filósofo Francisco Soares Franco fala indistintamente de "raças brancas/pretas" e de "castas brancas/pretas". De forma semelhante, o inglês (Koster 1942KOSTER, Henry (1942). Viagens ao Nordeste do Brasil. São Paulo: Editora Nacional., p. 510), que permaneceu no Brasil entre os anos 1809 e 1815, também falava de "castas mestiçadas" ao se referir a mulatos e mestiços. Até o final do século XIX, pode-se encontrar em jornais o uso de casta como sinônimo de raça - cf. p.ex. artigo publicado pelo Diário da Bahia (12 dez. 1896) condenando os "batucajés" promovidos no Engenho Velho que, segundo o autor do texto, atraem "uma multidão de toda a casta" (Rodrigues, 1977RODRIGUES, Raimundo Nina (1977). Os africanos no Brasil. São Paulo: Editora Nacional., p. 240).
  • 18
    Escreve (Dirks 2001DIRKS, Nicholas B. (2001). Castes of mind: colonialism and the making of modern India. Princeton: Princeton University Press., p. 13): "Na Índia pré-colonial, havia múltiplas unidades de identidade social, cujas respectivas relações e trajetórias faziam parte de um mundo político complexo e conjuntural em constante mutação. As referências à identidade social não eram apenas heterogêneas: eram também determinadas pelo contexto. Comunidades de templos, grupos territoriais, segmentos de linhagens, unidades familiares, cortejos reais, subcastas de guerreiros, 'pequenos' reinos, grupos ocupacionais de referência, associações agrícolas ou comerciais, redes de devoção e comunidades sectárias, inclusive sociedades cabalísticas sacerdotais, eram apenas algumas das unidades significativas de identificação, todas elas em diversos momentos muito mais importantes que qualquer metonímia uniforme de agrupamentos de 'casta' endogâmicos". De acordo com autores como Bayly, as tradições bramânicas teriam ganhado destaque no regime colonial britânico (Bayly apud Xavier, 2012XAVIER, Ângela Barreto (2012). "Purity of blood and caste. Identity narratives among early modern Goan elites", em TORRES, Max S. Hering, MARTÍNEZ, María Elena& NIRENBERG, David (eds.). Race and blood in the Iberian world. Münster: Lit-Verlag (Racism Analysis, Yearbook, n. 2)., p. 129).
  • 19
    No livro The people of India, Risley (1908)________ (1908). The people of India. London: W. Thacker &Co. recorreu aos dados do censo de 1901 que ele tinha organizado na função de Census Commissioner. Ele diferenciava, basicamente, três grupos raciais: os arianos (invasores de cor de pele clara), os dravidianos (população autóctone) e um grupo mongoloide.
  • 20
    Com a Independência, os adivasis passaram a ser tratados pela administração estatal como "sociedades tribais" (scheduled tribes).
  • 21
    Gopal Baba Walangkar (1840-1900), fundador da primeira revista dos intocáveis (Vital Vidhvansak [Abolicionista da Intocabilidade], 1888), reproduziu a ideia de que os intocáveis eram os habitantes originários da Índia; para ele, os brâmanes chitipavan seriam "judeus berberes" e os ancestrais dos maratas teriam sido "turcos" (apud Zelliot, 2004ZELLIOT, Eleanor (2004). Dr. Babasaheb Ambedkar and the untouchable movement. New Delhi: Blumoon., p. 43).
  • 22
    Para Thakur, o sistema de castas possibilitava às "raças com notáveis diferenças culturais e com características sociais e religiosas antagônicas viverem pacificamente lado a lado" (apud Slate, 2011SLATE, Nico (2011). "Translating race and caste". Journal of Historical Sociology, v. 24, n. 1, p. 62-78., p. 65).
  • 23
    "A harmonização entre diferentes grupos étnicos era buscada por meio do Varnashrama Dharma [divisão social de acordo com os varnas, fundamentada no Rig Veda]. Mas hoje as condições mudaram e nós precisamos de uma síntese mais elaborada e mais científica" (apud Slate, 2011SLATE, Nico (2011). "Translating race and caste". Journal of Historical Sociology, v. 24, n. 1, p. 62-78., p. 66).
  • 24
    Escreveu Ambedkar: "Eu era um estudioso do problema racial e li todos os seus escritos. Há tanta semelhança entre a condição dos intocáveis na Índia e a condição dos negros na América que o estudo da situação deste último grupo torna-se não somente natural, mas também necessário. Foi muito interessante pra mim ler que os negros da América tinham encaminhado uma petição à ONU. Os intocáveis na Índia estão pensando em seguir o mesmo exemplo" (apud Zelliot, 2010________ (2010). "India's Dalits: racism and contemporary change". Global Dialogue, v. 12, n. 2, p. 1-10. Disponível em: <http://www.worlddialogue.org/content.php?id=490>. Acesso em: 21 dez. 2011.
    http://www.worlddialogue.org/content.php...
    , p. 4). Dois anos antes, Ambedkar havia feito uma comparação em que julgava a situação dos intocáveis pior do que a dos escravos americanos (Ambedkar, 1944AMBEDKAR, Bhimrao Ramji (1944). "Which is worse? Slavery or untouchability?". Disponível em: <http://www.ambedkar.org/amdcd/62.Which is Worse_Slavery or Untouchability.htm>. Acesso em: 14 ago. 2014.
    http://www.ambedkar.org/amdcd/62.Which i...
    , p. 7).
  • 25
    Como primeiro-ministro de Justiça na Índia independente, Ambedkar teve um papel importante na primeira Constituinte (como presidente do Comitê de Elaboração da Constituição), na qual se empenhava em fixar direitos individuais, opondo-se a propostas de transformar unidades coletivas (p.ex., aldeias) em base para a legislação (cf. Berg, 2007BERG, Dag Erik (2007). "Sovereignties, the World Conference against Racism 2001 and the Formation of a Dalit Human Rights Campaign". Questions de Recherche/Research in Question, n. 20. Disponível em: <http://www.ceri-sciences-po.org/publica/qdr.htm>. Acesso em: 18 jan. 2011.
    http://www.ceri-sciences-po.org/publica/...
    , p. 24).
  • 26
    E continua: "Que afinidade existe entre um brâmane de Punjab e um brâmane de Madras? Que afinidade existe entre um intocável de Bengala e um intocável de Madras? Os brâmanes de Punjab pertencem ao mesmo tronco racial [racially the same stock] que os chamar de Punjab, e os brâmanes de Madras são da mesma raça que os párias de Madras. O sistema de castas não delimita divisões raciais", conclui Ambedkar (apud Omvedt, 2010________ (2010). "Nation and civilisation". Disponível em: <>. Acesso em: 7 ago. 2014., p. 1).
  • 27
    Também no Brasil, aliás, os especialistas debateram com fervor, durante longas décadas (no mínimo, até os anos 1960), se a sociedade escravista brasileira podia ou não ser considerada um sistema de castas. Enquanto pesquisadores como Pierson e T. Azevedo negavam tal aproximação, cientistas ligados à sociologia das relações raciais - Florestan Fernandes, Octavio Ianni, Fernando Henrique Cardoso - definiam o "velho regime" como uma sociedade de castas.
  • 28
    Cf. o seguinte trecho do manifesto dos Dalit Panthers (de 1973): "Até mesmo na América, um pequeno grupo de brancos reacionários está explorando os negros. O movimento Black Panther cresceu a fim de enfrentar a força da reação e acabar com esta exploração... Nós pretendemos manter uma relação estreita com esta luta" (apud Immerwahr, 2007IMMERWAHR, Daniel (2007). "Caste or colony? Indianizing race in the United States", Modern Intellectual History, v. 4, n. 2, p. 275-301., p. 300).
  • 29
    Há um diálogo e uma colaboração intensa com intelectuais afrocentristas norte-americanos, como Rashidi, historiador, ativista e autor de diversos artigos e livros - p.ex., African presence in Early Asia (publicado em 1985). Vários intelectuais afrocentristas procuram, inclusive, mostrar que algumas importantes divindades hinduístas revelam uma proveniência africana. Há quem cite a etimologia de krishna (preto, escuro, em sânscrito) e o tipo de cabelo de shiva (identificado como dreadlocks) como provas de uma descendência do continente africano.
  • 30
    Em 1979, Rajshekar publicou o livro intitulado Apartheid in India, posteriormente reeditado (1987) com o nome Dalit: the black untouchables of India, que continua sendo uma importante referência para simpatizantes de teses afrocentristas. Rajshekar vê a luta dos dalits como parte da luta de todos os negros diaspóricos, buscando apoio e solidariedade sobretudo nos Estados Unidos. Num artigo publicado na revista Dalit Voice em 1987 ele expressa essa identificação da seguinte maneira: "Os afroamericanos têm de saber que sua luta de libertação não será completa enquanto seus irmãos e suas irmãs de sangue [blood-brothers and sisters], na Ásia distante, continuarem sofrendo" (apud Rashidi, 2008RASHIDI, Runoko (2008). "The African presence in India". Disponível em: <http://tseday.wordpress.com/2008/08/24/the-african-presence-inindia-by-runoko-rashidi/>. Acesso em: 16 ago. 2014.
    http://tseday.wordpress.com/2008/08/24/t...
    ).
  • 31
    As expressões "scheduled castes" e "scheduled tribes" foram introduzidas pelo governo colonial britânico, que, na época, decidiu fazer um levantamento de castas e tribos, justificando-o com objetivos administrativos. Na era pós-independência, em 1950, a lista foi refeita e ampliada: 1.108 scheduled castes e 744 scheduled tribes foram registradas e reconhecidas. Essas classificações servem até hoje de base para políticas de compensação.
  • 32
    O renomado antropólogo indiano Béteille, autor de diversos artigos sobre casta e raça (p.ex., 1990; 1996), mostrou-se chocado com o fato de que as Nações Unidas estariam prestes a reavivar o conceito "raça". Segundo ele, não há dúvida de que a intocabilidade é uma prática social condenável, escreve num inflamado artigo publicado no jornal The Hindu, mas esse fato não significa que devamos concebê-la como uma forma de discriminação racial. Diz: "Não podemos lançar o conceito de raça pela porta de entrada a fim de usá-lo ("misused") para defender a superioridade social, nem trazê-lo novamente pela porta dos fundos a fim de usá-lo ("misuse") em prol dos oprimidos", terminando o artigo com uma afirmação categórica: tratar casta como raça é "politicamente maldoso" e, o que é pior, "nonsense científico" (Béteille, 2001________ (2001). "Race and caste". The Hindu, 10 mar. Disponível em: <http://www.hindu.com/2001/03/10/stories/05102523.htm>. Acesso em: 5 mar. 2011.
    http://www.hindu.com/2001/03/10/stories/...
    ).
  • 33
    Existem diferentes formas de escrita - sidi, siddi, siddhi, sheedi -, que se explicam também por diferenças regionais e pela diversidade linguística interna ao grupo. Sidi é a grafia preferida para descrever os descendentes dos africanos em Gujarat; já em Karnataka atualmente costuma-se utilizar a grafia siddi. A maioria dos autores acredita que o termo sid(d)i surgiu como uma derivação da palavra árabe sayyid, que era e ainda é usada como termo de respeito e reverência no norte da África (p. ex., Basu, 1995BASU, Helene (1995). Habshi Sklaven, Sidi-Fakire: Muslimische Heiligenverehrung im westlichen Indien. Berlin: Das Arabische Buch., p. 58). Mais recentemente, Lodhi apontou para outra derivação etimológica possível: do termo árabe saydi, que significa "prisioneiro de guerra ou cativo" (apud Prasad, 2005PRASAD, Kiran Kamal (2005). In search of an identity. An ethnographic study of the Siddis in Karnataka. Bangalore: Elegant Printing Works., p. 103).
  • 34
    Habshi provém da palavra habsh, usada pelos árabes para designar escravos provenientes da Abissínia (Al-Habsh). Na Índia, seria o termo mais usual, a partir do final do século XV (antes da disseminação do conceito sid(d)i); em pouco tempo, com a ampliação das atividades de escravização no continente africano, a palavra habshi viria a designar todos os africanos e seus descendentes (Basu, 2003________ (2003). "Slave, soldier, trader, faqir: fragments of African histories in Western India (Gujarat)", em JAYASURIYA, Shinan de Silva & PANKHURST, Richard (eds.). The Indian diaspora in the Indian Ocean. Trenton: Africa World Press., p. 225, 26; Basu, 2005________ (2005). "Interview with Helene Basu: Africans in India". Anthropology, n. 22. Disponível em: <http://www.frontlineonnet.com/fl2218/stories/20050909002609100.htm>. Acesso em: 22 dez. 2011.
    http://www.frontlineonnet.com/fl2218/sto...
    , p. 3; Oka e Kusimba, 2008OKA, Rahul C. & KUSIMBA, Chapurukha M. (2008). "Siddi as mercenary or as African success story on the West Coast of India", em HAWLEY, John C. (ed.). India in Africa, Africa in India. Indian Ocean cosmopolitanisms. Bloomington: Indiana University Press., p. 210). De modo geral, os habitantes da Abissínia têm uma tez mais clara e, não raramente, o cabelo mais liso que o dos africanos que viriam a ser trazidos pelos portugueses da região de Moçambique.
  • 35
    Não há números exatos sobre as populações sid(d)is. Há estimativas que falam de 60 mil a 75 mil sidis no estado de Gujarat (maior comunidade na Índia) e de 20 mil a 30 mil siddis em Karnataka; de qualquer forma, a população sid(d)i não deve chegar a 0,05% da população indiana. O número de 250 mil apresentado por (Lodhi 1992LODHI, Abdulaziz (1992). "African settlements in India". Nordic Journal of African Studies, v. 1, n. 1, p. 83-86., p. 83) destoa da maioria das estimativas. Esse cálculo aproximado pode talvez ser explicado pelo fato de que existem muitos descendentes de sid(d)is que preferem não se identificar como tais.
  • 36
    Cf. o comentário do grande viajante Ibn Batuta depois de ter atravessado o oceano Índico num navio com "cinquenta arqueiros e cinquenta guerreiros abissínios que são os senhores do mar [...]": "Quando há somente um deles a bordo, os piratas hindus e os infiéis evitam atacá-lo" (apud Oka e Kusimba, 2008OKA, Rahul C. & KUSIMBA, Chapurukha M. (2008). "Siddi as mercenary or as African success story on the West Coast of India", em HAWLEY, John C. (ed.). India in Africa, Africa in India. Indian Ocean cosmopolitanisms. Bloomington: Indiana University Press., p. 208).
  • 37
    Oka e Kusimba chamam a atenção para o fato de que os habshis na Índia foram somente um dos grupos de escravos de elite que o mundo muçulmano produziu (mamluks, ghulams ou kuls são nomes de outros grupos similares que atuavam no Egito, no século XIII, e em Sokoto, no século XIX).
  • 38
    Malik Ambar ficou famoso por sua capacidade de organizar exércitos e executar estratégias de guerrilha. Suas tropas integravam, além de 40 mil decanis, 10 mil habshis, que o viajante inglês William Finch descreveu como soldados "de sua casta" (apud Eaton, 2006aEATON, Richard M. (2006a). "Malik ambar and elite slavery in the Deccan, 1400-1650", em ROBBINS, Kenneth X. & McLEOD, John. African elites in India. Habshi Amarat. London: Art Books International., p. 126). Ao casar sua filha com um filho da casa real do Nizam Shah, Malik Ambar buscava estabelecer laços genealógicos com os poderes locais constituídos e, dessa forma, fortalecer sua posição de poder. Ao mesmo tempo, estimulava africanos a integrar-se ao seu exército e incentivava o ensino em escolas de Alcorão (Harris, 1971HARRIS, Joseph E. (1971). The African presence in Asia. Consequences of the East African slave trade. Evanston: Northwestern University Press., p. 95). Numa leitura que se afina com teses pan-africanistas, (Obeng 2008________ (2008). "Religion and empire. Belief and identity among African Indians of Karnataka, South India", em HAWLEY, John C. (ed.). India in Africa, Africa in India. Indian Ocean cosmopolitanisms. Bloomington: Indiana University Press., p. 239) destaca a solidariedade entre os habshis e cita a vida de Ambar para mostrar que "os indianos africanos reestruturaram alianças entre si. Sempre que algum deles assumia o poder, recrutava outros africanos para ocupar posições-chave administrativas e militares. Quando Malik Ambar assumiu o poder, nomeou guardas africanos, incorporou africanos à sua administração e estabeleceu laços diplomáticos com os africanos de Janjira.
  • 39
    Eaton atribuiu à elite mongol ("ruling class") uma postura de "arrogância racial", um forte sentimento de "pedigree" e uma noção de aristocracia hereditária que, segundo esse historiador americano, não eram comuns no Decão. O avanço dos mongóis - que não incorporavam escravos de elite aos seus exércitos - sobre o Decão teria iniciado um processo de decadência das populações habshis na região (Eaton, 2006aEATON, Richard M. (2006a). "Malik ambar and elite slavery in the Deccan, 1400-1650", em ROBBINS, Kenneth X. & McLEOD, John. African elites in India. Habshi Amarat. London: Art Books International., p. 61).
  • 40
    Jahangir mandou fazer um quadro em que ele aponta com arco e flecha para a cabeça cortada de Malik Ambar. É um quadro cheio de simbolismo que, na leitura de Eaton, associa o imperador com luz e justiça, enquanto a imagem de Ambar expressaria noite, escuridão e usurpação. A legenda em persa diz o seguinte: "A cabeça do usurpador da cor da noite tornou-se a casa da coruja" (Eaton, 2006aEATON, Richard M. (2006a). "Malik ambar and elite slavery in the Deccan, 1400-1650", em ROBBINS, Kenneth X. & McLEOD, John. African elites in India. Habshi Amarat. London: Art Books International., p. 59).
  • 41
    Em Hyderabad, onde o regente local (nizam) criou uma cavalaria de africanos (African Cavalry Guard), que atuavam como seus guarda-costas pessoais (além de cumprir a função de músicos e dançarinos em festas), um habshi conhecido por Yacoob obteve fama como grande traficante de escravos, numa época em que o governo britânico já reprimia a importação de escravos. Ele e alguns agentes árabes usavam, aparentemente, viagens de peregrinação à Meca para trazer escravos que, apresentados como "membros de família" ou disfarçados como esposas ou filhas, eram levados a Hyderabad, onde seriam vendidos aos senhores locais (Harris, 1971HARRIS, Joseph E. (1971). The African presence in Asia. Consequences of the East African slave trade. Evanston: Northwestern University Press., p. 101).
  • 42
    A partir de 1540, os portugueses começaram a destruir mesquitas e templos; em 1560, a Inquisição foi instaurada. A proibição de cerimônias hindus levaria milhares de hindus a migrar para outra região (Pinto, 1992PINTO, Jeanette (1992). Slavery in Portuguese India (1510-1842). Delhi: Himalaya Publishing House., p. 67, 88). O clérigo adotou a estratégia de, num primeiro momento, converter os brâmanes para, dessa forma, convencer o resto da população a abandonar os cultos hinduístas (Xavier, 2010XAVIER, P. D. (2010). Goa: a social history (1510-1640). Panaji: Prabhakar Bhide., p. 45). Ao limitar ordenações de padres locais às castas superiores, escreve (Xavier 2010XAVIER, P. D. (2010). Goa: a social history (1510-1640). Panaji: Prabhakar Bhide., p. 44), a Igreja católica "sucumbiu ao sistema de castas". Houve casos em que foram rezadas diferentes missas para brâmanes e xátrias; e houve quem reivindicasse que a hóstia fosse entregue pelo padre num pedaço de pau a fim de evitar contato físico e, dessa forma, prevenir uma possível "contaminação" (Srinivasan, 2012SRINIVASAN, Sheela (2012). Goa: a social history (1640-1750). Panaji: Prabhakar Bhide., p. 69).
  • 43
    Os dados que seguem são resultado de um estágio pós-doutoral que contou com o apoio da Capes, pelo qual agradeço. Além de incluir estudos em arquivos e bibliotecas de Panjim e Dharwad, o trabalho baseia-se fundamentalmente em uma intensa pesquisa de campo, desenvolvida entre fevereiro de 2013 e janeiro de 2014, na província de Uttara Kannada, mais especificamente em seis talukas (distritos administrativos) - Yellapur, Haliyal, Ankola, Joida [Supa], Mundgod e Sirsi -, nos quais vive a maior parte da população siddi do estado de Karnataka. Ao todo, cheguei a conhecer mais de trinta aldeias, além de várias habitações siddis espalhadas pelas matas fechadas. Tive a oportunidade de participar de festas e eventos próprios de cada um dos subgrupos siddis: p.ex., a cerimônia dedicada aos jantes (ancestrais familiares), junto aos siddis hindus; Bakri-Id, com os siddis muçulmanos; Páscoa e Natal, junto aos siddis cristãos. Também participei de festas e eventos que se propõem a reunir todos os siddis, independentemente de seu pertencimento religioso: p.ex., a festa de Siddi Nas; as comemorações de dez anos da conquista do status de scheduled tribe; bem como eventos esportivos promovidos por jovens siddis (como as competições de kabaddi - esporte praticado na Índia e em outros países do sudeste asiático). Em especial, acompanhei as atividades de uma ONG fundada por jovens siddis (Siddi Jana Vikas Society). Além da enorme quantidade de conversas informais que tive ao longo de mais de meio ano de convivência com esse grupo, também gravei, com autorização dos entrevistados, ao menos cinquenta diálogos de caráter mais formal, que seguiram um roteiro de entrevista semiestruturada. Se há alguns trabalhos antropológicos de muito boa qualidade sobre os sidis de Gujarat (p.ex., Basu), estudos aprofundados sobre os siddis de Karnataka, por sua vez, são muito escassos.
  • 44
    A residência em áreas de difícil acesso e questões identitárias têm dificultado o levantamento de dados demográficos, de maneira que não existem números "confiáveis" sobre os siddis. As estimativas demonstram um forte crescimento populacional nas últimas décadas. Em 1976, num dos primeiros estudos sobre os siddis, Palakshappa indicou menos de 4 mil; Hiremath, na década de 1990, falava de 7.223 siddis; Obeng, em 2007OBENG, Pashington (2007). Shaping membership, defining nation. New York, Lexington Books., de 14 mil.
  • 45
    De acordo com estimativas de (Camara 2004CAMARA, Charles (2004). "The Siddis of Uttara Kannada. History, identity and change among African descendants in contemporary Karnataka", em CATLIN-JAIRAZBHOY, Amy & ALPERS, Edward. Sidis and scholars. Essays on African Indians. Delhi: Rainbow Publishers., p. 102).
  • 46
    Apenas os siddis muçulmanos possuem um mito de origem. Eles se dizem descendentes diretos de um dos primeiros seguidores de Maomé, Bilal ibn Rabah (ou Bilal al-Habshi), um ex-escravo negro que foi escolhido pelo profeta para ser o primeiro muezim. Essa narrativa dá respaldo para que os siddis muçulmanos rejeitem a ideia de que eles seriam conversos (um argumento usado por muçulmanos indianos para justificar o tratamento desigual dado aos siddis) e explica também por que muitos deles entendem que os siddis cristãos e hindus são conversos: de acordo com essa visão, eles teriam abandonado o Islão e mudado de religião após chegarem na Índia. Já os muçulmanos não siddis costumam não reconhecer essa narrativa e tratam os siddis muçulmanos como uma espécie de subcasta (a mais baixa) dentro de sua comunidade, denominada shek.
  • 47
    Nesse contexto, vale lembrar também que entre os siddis, tal como ocorre com a maior parte da população indiana (sobretudo no interior do país), a grande maioria dos casamentos é arranjada pelos pais. Os chamados love marriages podem provocar rompimento com a família (casta) e até atos de agressão física (incluindo assassinatos).
  • 48
    As denominações scheduled castes e scheduled tribes ganharam importância social na Índia logo após a promulgação da Constituição, em 1950. Já antes disso, o India Act de 1935 tinha classificado - pela primeira vez - alguns grupos como "backward tribes" e, no censo de 1931, algumas comunidades tinham sido reconhecidas como "primitive tribes", outras como "backward classes" (Lobo, 1984LOBO, Cyprian Henry (1984). Siddis in Karnataka. A report making out a case that they be included in the list of scheduled tribes. Bangalore: Centre for Non-Formal and Continuing Education Ashirvad., p. 89). (Palakshappa 1976PALAKSHAPPA, T.C. (1976). The siddhis of North Kanara. Delhi: Sterling Publishers., p. 14) relata que, em 1953, a chamada Backward Class Commission incluiu os siddis hindus na categoria de backward classes; já os siddis católicos e muçulmanos foram classificados no relatório (report) como forward classes. A conquista do status scheduled caste (ou tribe) garante uma série de benefícios, tais como: recebimento de cesta básica; financiamentos para a construção de casas; bolsas de estudo (ou isenção de taxas em colégios, universidades); cotas para cargos no serviço público (administrativo); direito à posse de terra (este último ponto é fundamental no caso dos siddis).
  • 49
    Posteriormente foram fundados o Sidi Development Project, em 1990, e a Siddi Development Society, em 1995. A maioria das organizações sidis teve vida relativamente curta: geralmente recebem fundos de instituições nacionais e internacionais (contam com a colaboração de agentes da Igreja e/ou de assistentes sociais) e, não raramente, o fim dos financiamentos resulta no término das atividades do grupo.
  • 50
    Aparentemente, o governo seguia as orientações apresentadas no Handbook of scheduled castes and scheduled tribes, publicado em 1968, para definir o que seria uma tribo. O manual cita quatro critérios básicos: origem tribal; maneira primitiva de viver; povoações situadas em áreas afastadas e de difícil acesso; e ainda "retrocesso generalizado em todos os aspectos" (general backwardness in all respects) (cf. Lobo, 1984LOBO, Cyprian Henry (1984). Siddis in Karnataka. A report making out a case that they be included in the list of scheduled tribes. Bangalore: Centre for Non-Formal and Continuing Education Ashirvad., p. 90).
  • 51
    "A assimilação dos siddis dá-se de duas maneiras: primeiro, em relação ao conjunto da cultura hindu da região e, segundo, em relação à estrutura social das diferentes religiões", afirma (Palakshappa 1976PALAKSHAPPA, T.C. (1976). The siddhis of North Kanara. Delhi: Sterling Publishers., p. 103). Já para Lobo, a condição de escravo doméstico teria feito com que os descendentes não pudessem "manter sua vida comunal". "Como resultado, eles eram obrigados a sacrificar sua própria cultura e língua, assimilando o idioma local como forma de comunicação e a cultura a fim de dar sentido e organização às suas vidas" (Lobo, 1984LOBO, Cyprian Henry (1984). Siddis in Karnataka. A report making out a case that they be included in the list of scheduled tribes. Bangalore: Centre for Non-Formal and Continuing Education Ashirvad., p. 16).
  • 52
    Escreve Obeng: "(...) estas noções limitadas de fronteiras de espaço e de pertencimento tendem a não levar em consideração os vínculos afro-indianos no interior de sua própria comunidade transnacional. (...) [tais obras acadêmicas e rótulos] repercutem uma conceituação que os apresenta [os siddis] como grupos isolados que vivem em conglomerados e não se preocupam com sua inter-relação pan-espacial e metaespacial dentro da comunidade social global". "[Este trabalho] fornece assim um arcabouço conceitual para compreender e promover as relações internas entre os africanos na Índia e as comunidades pan-africanas do mundo inteiro" (Obeng, 2007OBENG, Pashington (2007). Shaping membership, defining nation. New York, Lexington Books., p. 205-206).
  • 53
    As descrições e análises que seguem baseiam-se fundamentalmente nas minhas experiências de campo, ao longo das quais acompanhei todas as atividades em torno do festival que ocorreu, no ano em questão (2013), no dia 20 de abril.
  • 54
    Esse tipo de representação ("encenação tribal") foi desenvolvido, aparentemente, primeiro por sidis de Gujarat. Lá há, inclusive, grupos que fazem turnês de divulgação de músicas e danças sidis na Índia e até fora do país, e que utilizam, em partes de suas performances, vestimentas parecidas. Às vezes, os dançarinos da chamada goma dance ainda acrescentam à sua indumentária penas de pavão (pássaro-símbolo da Índia). De acordo com um dançarino entrevistado por (Shroff 2004SHROFF, Beheroze (2004). "Sidis and Parsis. A fimmaker's notes", em CATLIN-JAIRAZBHOY, Amy& ALPERS, Edward (orgs.). Sidis and scholars. Essays on African Indians. Delhi: Rainbow Publishers., p. 173), foi um artista profissional de Udaipur que sugeriu aos sidis usar tal adorno em suas performances, o que se tornaria um costume.
  • 55
    Diferentemente da velha geração, que tendia a "fechar-se" nas aldeias (muitos dizem ter tido medo de pessoas estranhas), esses jovens mostram-se dispostos a abrir-se ao mundo e têm muito interesse em obter informações sobre a África, bem como sobre africanos e afrodescendentes que vivem em outras partes do mundo.
  • 56
    Dois deles foram e continuam sendo meus principais interlocutores que, ao lado de diversos outros jovens siddis, foram fundamentais para que eu pudesse desenvolver a pesquisa entre os siddis.
  • 57
    Nas minhas conversas com jovens siddis em língua inglesa, percebi que as palavras race e racism não são utilizadas; a maioria deles até desconhece esses conceitos, o que não significa, porém, que diferenças fenotípicas não tenham importância em suas vidas.
  • 58
    É sabido que o conceito de racismo surgiu e ganhou força no contexto de luta contra políticas de discriminação que se disseminaram com a ascensão do nazismo na Alemanha (não antes dos anos 1920) e, como (Taguieff 1998TAGUIEFF, Pierre-André (1998). "Die Metamorphosen des Rassismus und die Krise des Antirassismus", em BIELEFELD, Ulrich (Hg.). Das Eigene und das Fremde. Hamburg: Hamburger Edition HIS., p. 227) chamou a atenção, serviu muito mais como conceito de luta do que como um instrumento analítico. Antes de ser dilatado para outros contextos, a propagação do conceito de racismo visava denunciar e atacar conteúdos biologizados e deterministas da ideia de raça, que eram usados como suporte ideológico por regimes autoritários europeus (cf. Hofbauer, 2006HOFBAUER, Andreas (2006). Uma história de branqueamento ou o negro em questão. São Paulo: Editora da Unesp., p. 216 ss.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2015

Histórico

  • Recebido
    27 Set 2014
  • Aceito
    09 Fev 2015
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