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Qualificando a adesão à democracia: quão democráticos são os democratas brasileiros?

Qualifying support for democracy in Brazil: how democratic are Brazilians democrats?

Resumo

O presente artigo busca qualificar a adesão à democracia no Brasil. Ele parte da ideia de que a adesão à democracia é mais bem entendida de um ponto de vista multidimensional. Os indivíduos podem aderir a diferentes princípios subjacentes à democracia, em vez de optarem pela simples adesão ou não a ela. Nosso enfoque são os democratas: queremos saber quão democráticos são os democratas brasileiros. Utilizamos aqui o banco de dados Barômetro das Américas de 2006 a 2012. Os resultados mostram que existem diferentes níveis de adesão à democracia, conforme o princípio democrático em questão. Os brasileiros aderem com maior intensidade à dimensão participativa, em detrimento da procedimental e da representativa. Mostramos, no entanto, que esses princípios podem caminhar de forma mais ou menos independente.

Palavras chave:
adesão à democracia; apoio político; legitimidade política; atitudes políticas; consolidação da democracia

Abstract

This article aims to qualify the support for democracy in Brazil. He starts from the idea that support for democracy is better understood from a multidimensional point of view. That is, individuals may adhere to different principles underlying democracy, rather than simple adherence to the political regime or not. Our focus is on the Democrats. Based on the multidimensional view, we want to know how democratic are the Brazilian Democratic. To meet this goal, we use the database of the Americas Barometer data from 2006 to 2012. The findings show that there are different levels of adherence to democracy, as the democratic principle in question. Brazilians adhere more strongly participatory dimension, rather than procedural and representative. We have shown, however, that these principles are not strongly connected to each other, ie they can move relatively independently.

Keywords:
support for democracy; political support; political legitimacy; political attitudes; consolidation of democracy

Nas últimas três décadas, vários estudos sobre legitimidade política mostraram a crescente preferência dos cidadãos pela democracia como forma de governo (Klingemann e Fuchs, 1995KLINGEMANN, H-D. & FUCHS, D. (1995). Citizens and the State. Oxford: Oxford University Press.; Klingemann, 1999KLINGEMANN, H-D. (1999). "Mapping political support in the 1990s: a global analysis", em NORRIS, P. (ed.). Critical citizens: global support for democratic government. Oxford: Oxford University Press.; Dalton, 1999DALTON, R. J. (1999). "Political support in advanced industrial democracies", em NORRIS, P. (ed.). Critical citizens: global support for democratic government. Oxford: Oxford University Press.; Dalton 2004______ (2004). Democratic challenges, democratic choices: the erosion of political support in advanced industrial democracies. Oxford: Oxford University Press.; Norris, 2011______ (2011). Democratic deficit: Critical citizens revisited. New York: Cambridge University Press.). No entanto, o alcance e a natureza desse avanço têm sido relativizados por estudiosos das chamadas "novas democracias" (Mishler e Rose, 1999MISHLER, W. & ROSE, R. (1999). "Five years after the fall: Trajectories of support for democracy in post-communist Europe", em NORRIS, P. (ed.). Critical citizens: global support for democratic governance. Oxford: Oxford University Press, p. 78-103.; Torcal e Monteiro, 2006TORCAL, M. & MONTEIRO, J. R. (2006). Political disaffection in contemporary democracies: social capital, institutions, and politics. London: Routledge.; Bratton e Mattes, 2001BRATTON, M. & MATTES, R. (2001). "Support for democracy in Africa: intrinsic or instrumental?" British Journal of Political Science, n. 31, p. 447-74.; Booth e Selison, 2009BOOTH, J. & SELIGSON, M. A. (2009). The legitimacy puzzle in Latin America: political support and democracy in eight nations. New York: Cambridge University Press. ). Ao pesquisarem países com transição política recente, esses autores apontam para a fragilidade da adesão à democracia nesses contextos.

As pesquisas realizadas no Brasil têm seguido a mesma direção. De modo geral, elas mostram que a maioria dos brasileiros acredita no regime democrático como a melhor forma de governo (Moisés, 1995MOISÉS, J. A. (1995). Os brasileiros e a democracia: bases sócio-políticas da legitimidade democrática. São Paulo: Ática.; Moisés e Carneiro, 2008MOISÉS, J. A. & CARNEIRO; G. P. (2008). "Democracia, desconfiança política e insatisfação com o regime: o caso do Brasil". Opinião Pública, v. 14, n. 1, p. 1-42.; Moisés, 2012MOISÉS, J. A. & MENENGUELLO, R. (2012). A desconfiança política e os seus impactos na qualidade da democracia. São Paulo: Edusp.). Mas, ainda que isso seja interpretado como um sinal da consolidação da democracia, alguns autores são cautelosos e não deixam de ressaltar os problemas que acompanham essa adesão. Após tantos anos sob a tutela de um regime militar e diante de todas as dificuldades causadas pela instabilidade econômica e social nos anos posteriores à transição política, é razoável supor que essa adesão à democracia possa ser problemática.

De fato, como demonstra a pesquisa de (Moisés, 2008MOISÉS, J. A. & CARNEIRO; G. P. (2008). "Democracia, desconfiança política e insatisfação com o regime: o caso do Brasil". Opinião Pública, v. 14, n. 1, p. 1-42.), boa parte dos brasileiros tem atitudes ambivalentes em relação à democracia, expressando-as de maneira contraditória quando questionados sobre qual a melhor forma de governo. Outras pesquisas têm identificado essa ambivalência não só em relação aos brasileiros como, também, aos latino-americanos de forma geral (Colen, 2010COLEN, C. M. L. (2010). "As covariantes da confiança política na América Latina". Opinião Pública, v. 16, n. 1, p. 1-27.; Carrión, 2008CARRIÓN, J. F. (2008). "Illiberal Democracy and Normative Democracy: How is Democracy Defined in the Americas?", em SELIGSON, M. (ed.). Challenges to democracy in Latin America and the Caribbean: evidence from the Americas Barometer. Nashville (TN): USAID, LAPOP.).

Apesar dos resultados encontrados, acreditamos que as evidências em relação à consistência da adesão à democracia no Brasil e na América Latina ainda são escassas. Faltam aos estudos atuais lidar com dois pontos. Em primeiro lugar, é necessária uma discussão mais sistemática a respeito da adesão à democracia e da sua mensuração. Tradicionalmente, essa dimensão é medida por meio da pergunta direta sobre a preferência pela democracia. Estudos mais recentes, no entanto, alertam que a adesão à democracia deve ser avaliada a partir de um conjunto mais amplo de perguntas, cobrindo suas várias dimensões (Schedler e Sarsfield, 2007SCHEDLER, A. & SARSFIELD, R. (2007). "Democrats with adjectives: linking direct and indirect measures of democratic support". European Journal of Political Research, v. 46, n. 5, p. 637-59.; Booth e Seligson, 2009BOOTH, J. & SELIGSON, M. A. (2009). The legitimacy puzzle in Latin America: political support and democracy in eight nations. New York: Cambridge University Press. ; Carlin e Singer, 2011CARLIN, R. E. & SINGER, M. M. (2011). "Support for polyarchy in the Americas". Comparative Political Studies, v. 44, n. 11, p. 1500-26.). Isso porque a adesão aos diversos princípios associados a esse regime seria mais reveladora quanto à presença de atitudes democráticas do que a mera manifestação de preferência pelo regime democrático (Booth e Seligson, 2009BOOTH, J. & SELIGSON, M. A. (2009). The legitimacy puzzle in Latin America: political support and democracy in eight nations. New York: Cambridge University Press. ).

Outro aspecto pouco considerado pela literatura é o perfil de um personagem central do processo democrático: o democrata. Em geral, as pesquisas analisam as atitudes e comportamentos dos autoritários ou dos ambivalentes, uma vez que são esses indivíduos que representam riscos à estabilidade democrática (Moisés, 2008MOISÉS, J. A. & CARNEIRO; G. P. (2008). "Democracia, desconfiança política e insatisfação com o regime: o caso do Brasil". Opinião Pública, v. 14, n. 1, p. 1-42.). Com isso, pouca atenção é dedicada à investigação da consistência das atitudes dos democratas. Entretanto, em última instância, esse é o perfil que compõe a base de sustentação da democracia.

O presente artigo busca contribuir para a superação dessas lacunas, apresentando evidências em relação ao caso brasileiro, comparando-o com os outros países da América Latina. A comparação permite observar se os padrões observados no Brasil acompanham os de outros países com contextos políticos semelhantes. Além disso, os testes são realizados em diferentes anos, o que minimiza eventuais erros de mensuração e proporciona uma perspectiva longitudinal dos padrões de estabilidade e de mudança no tempo.

Na primeira seção, apresentamos o debate a respeito da adesão à democracia e a fragilidade dessa adesão no Brasil. Na segunda, propomos uma visão multidimensional da adesão à democracia, elencando suas dimensões a partir dos diferentes princípios que subjazem ao regime democrático. Na terceira seção, examinamos se aqueles que afirmam preferir o regime democrático apoiam ou não essas dimensões. Por fim, analisamos se essas dimensões estão associadas, ou seja, em que medida o democrata que apoia uma dimensão apoia também as demais.

Para atingir esses objetivos, utilizamos os bancos de dados do Barômetro das Américas de 20061 1 No caso do Brasil as entrevistas ocorreram em 2007. , 2008, 2010 e 2012, organizado pelo Latin American Public Opinion Project (LAPOP). Nas pesquisas do LAPOP, todos os entrevistados são selecionados por meio de amostra probabilística estratificada em estágios múltiplos, com seleção proporcional ao tamanho do local, o que garante a representatividade dos dados. Em todos os testes foram utilizados pesos estratificados para a correção das frequências.

A natureza problemática da adesão à democracia

Desde o trabalho pioneiro de (Almond e Verba, 1965ALMOND, G. & VERBA, S. (1965). The civic culture: political attitudes and democracy in five nations. Boston: Little Brown.), a ciência política investiga a relação entre cultura e regimes políticos. Apesar de todas as críticas e debates em torno da obra (Almond, 1989ALMOND, G. (1989). "The study of political culture", em ALMOND, G. (ed.). A discipline divided: schools and sects in political science. Newbury Park: Sage.; Barry, 1970BARRY, B. (1970). Sociologists, economists and democracy. London: Collier-Macmillan.; Diamond, 1994DIAMOND, L. (1994). Political culture and democracy in developing countries. Boulder (CO): Lynne Rienner.), a questão de pesquisa levantada pelos autores continua a ser alvo de discussões: qual o papel das orientações políticas subjetivas dos indivíduos para a estabilidade - assim como a qualidade (Putnam, 1993PUTNAM, R. (1993). Making democracy work. Princeton: Priceton University Press.; Inglehart e Welzel, 2005INGLEHART, R. & WELZEL, C. (2005). Modernization, cultural change, and democracy: the human development sequence. New York: Cambridge University Press.) - do regime democrático?

Em relação às atitudes que compõem a cultura política, existe um consenso sobre a importância da adesão à democracia. Sem um "estoque de apoio" (Easton, 1965EASTON, D. (1965). A systems analysis of political life. New York: John Wiley and Sons.) dos cidadãos em relação aos princípios, normas e valores inerentes ao regime, as democracias teriam dificuldade em se manter, especialmente diante de crises econômicas, políticas e sociais. Ao estudar os processos de consolidação das democracias, (Linz e Stepan, 1996LINZ, J. & STEPAN, A. (1996). Problems of democratic transition and consolidation: southern Europe, South America, and post-communist Europe. Baltimore: Johns Hopkins University Press.) destacam a importância da adesão à democracia nesse percurso:

Um regime democrático se consolida quando uma forte maioria da opinião pública, mesmo em meio a grandes problemas econômicos e profunda insatisfação com o governo, mantém a crença de que os procedimentos e as instituições democráticas são a forma mais adequada de governar a vida coletiva da sociedade e quando o apoio para alternativas anti-sistema é muito pequeno ou isolado pelas forças pró-democráticas (Linz e Stepan, 1996LINZ, J. & STEPAN, A. (1996). Problems of democratic transition and consolidation: southern Europe, South America, and post-communist Europe. Baltimore: Johns Hopkins University Press., p. 95)

Nesse sentido, a "boa notícia" é que pesquisas em todo o mundo demonstram que a maior parte dos cidadãos prefere a democracia a qualquer outra forma de governo (Norris, 2011______ (2011). Democratic deficit: Critical citizens revisited. New York: Cambridge University Press.). Contrapondo uma visão mais "otimista" presente nas análises sobre as democracias mais antigas (Norris, 1999NORRIS, P. (1999). Critical citizens: global support for democratic government. Oxford: Oxford University Press.; Dalton, 2003DALTON, R. & SHIN, D. C. (2003). Democratic aspirations and democratic ideals: citizen orientations toward democracy in East Asia. Oxford: Oxford University Press.; Inglehart e Welzel, 2005INGLEHART, R. & WELZEL, C. (2005). Modernization, cultural change, and democracy: the human development sequence. New York: Cambridge University Press.), a alta adesão à democracia foi recebida com mais cautela na literatura sobre as "novas democracias". Segundo (Mishler e Rose, 1999MISHLER, W. & ROSE, R. (1999). "Five years after the fall: Trajectories of support for democracy in post-communist Europe", em NORRIS, P. (ed.). Critical citizens: global support for democratic governance. Oxford: Oxford University Press, p. 78-103.), diferentes das antigas democracias, que tiveram um longo processo de formação e aperfeiçoamento, os novos regimes democráticos enfrentam a dura tarefa de reconstrução do Estado em meio a uma forte instabilidade econômica, social e política. Além disso, experimentam uma forte pressão da população, que enxerga na democracia uma resposta aos problemas até então não solucionados pela antiga forma de governo. Diante desse quadro, a adesão à democracia seria uma atitude mais frágil e dependente das ações específicas do "governo do dia" (Mishler e Rose, 2001______ (2001). "Political support for incomplete democracies: realist vs. idealist theories and measures". International Political Science Review, n. 22, p. 303-20.).

(Bratton e Mattes, 2001BRATTON, M. & MATTES, R. (2001). "Support for democracy in Africa: intrinsic or instrumental?" British Journal of Political Science, n. 31, p. 447-74.), em seus estudos sobre países africanos, reforçam essa tese. Os autores mostram que os percentuais de adesão à democracia na região são tão altos quanto os de outras novas democracias na América Latina ou Europa, mas chamam a atenção para o fato de que boa parte desse apoio é de natureza "instrumental" em vez de "intrínseca". Querem dizer com isso que, ao contrário de um valor enraizado nas crenças dos indivíduos e na cultura política da região, a adesão à democracia depende de avaliações conjunturais, como a popularidade do governo ou o sucesso das políticas econômicas.

Os estudos sobre América Latina, por sua vez, identificam altos níveis de desconfiança e insatisfação com as instituições políticas da democracia. Em vez de uma "cidadania crítica", nos moldes das antigas democracias (Norris, 1999NORRIS, P. (1999). Critical citizens: global support for democratic government. Oxford: Oxford University Press.), essas atitudes estariam mais ligadas a um sentimento de apatia e de descrença no sistema político. Mesmo não sendo alarmistas, vários autores consideram que, em longo prazo, esse cenário pode colocar problemas tanto para a estabilidade quanto para a qualidade dos regimes democráticos (Lagos, 2000LAGOS, M. A. (2000). "A máscara sorridente da América Latina". Opinião Pública, v. 6, n. 1, p. 1-16.; Power e Jamison, 2005POWER, T. J. & JAMISON, G. D. (2005). "Desconfiança política na América Latina". Opinião Pública, v. 21, n. 1, p. 64-93.; Menenguello, 2006MENENGUELLO, R. (2006). "Aspects of democratic performance: democratic adherence and regime evaluation in Brazil, 2002". Revue Internationale de Sociologie, v. 16, p. 617-635,.; Moisés, 2008______ (2008). "Cultura política, instituições e democracia: lições da experiência brasileira". Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 23, n. 66, p.11-44.; Moisés e Carneiro, 2008MOISÉS, J. A. & CARNEIRO; G. P. (2008). "Democracia, desconfiança política e insatisfação com o regime: o caso do Brasil". Opinião Pública, v. 14, n. 1, p. 1-42.; Moisés, 2012MOISÉS, J. A. & MENENGUELLO, R. (2012). A desconfiança política e os seus impactos na qualidade da democracia. São Paulo: Edusp.; Moisés e Menenguello, 2012MOISÉS, J. A. & MENENGUELLO, R. (2012). A desconfiança política e os seus impactos na qualidade da democracia. São Paulo: Edusp.; Rennó et al. 2011RENNÓ, L. R.; SMITH, A. E.; LAYTON, M. L. & PEREIRA, F. P. (2011). Legitimidade e qualidade da democracia no Brasil: uma visão da cidadania. São Paulo: Intermeios.).

Tendo em vista esse horizonte, algumas pesquisas na América Latina tiveram como foco o alcance e as limitações da adesão à democracia. (Carrión, 2008CARRIÓN, J. F. (2008). "Illiberal Democracy and Normative Democracy: How is Democracy Defined in the Americas?", em SELIGSON, M. (ed.). Challenges to democracy in Latin America and the Caribbean: evidence from the Americas Barometer. Nashville (TN): USAID, LAPOP.) constatou que cerca de 30% dos cidadãos que afirmam preferir o regime democrático são, ao mesmo tempo, a favor de intervenções militares em casos de crises sociais, como o desemprego, crime e corrupção. (Colen, 2010COLEN, C. M. L. (2010). "As covariantes da confiança política na América Latina". Opinião Pública, v. 16, n. 1, p. 1-27.), por sua vez, ao combinar diferentes atitudes em relação ao regime democrático, identificou que 32% dos latino-americanos têm um perfil de fraca adesão, 26% adotam atitudes de indiferença e apenas 40% têm um perfil de forte apoio à democracia. Ao estudar o caso brasileiro, (Menenguello, 2006MENENGUELLO, R. (2006). "Aspects of democratic performance: democratic adherence and regime evaluation in Brazil, 2002". Revue Internationale de Sociologie, v. 16, p. 617-635,.) mostrou que, embora a esmagadora maioria dos brasileiros apoie as eleições e o voto, grande parte não mantém atitudes positivas quando perguntada sobre a importância dos partidos políticos.

Em um estudo particularmente importante nessa direção, (Moisés, 2008MOISÉS, J. A. & CARNEIRO; G. P. (2008). "Democracia, desconfiança política e insatisfação com o regime: o caso do Brasil". Opinião Pública, v. 14, n. 1, p. 1-42.) observa que são poucos os países na América Latina em que a democracia não sofreu alguma interrupção no século passado. Ao contrário, na maior parte da região, os cidadãos tiveram contato com longos períodos de regime autoritário. Tendo em vista o importante papel da socialização na formação da cultura política, explica o autor, não se pode pensar que a generalização da preferência pela democracia implique, necessariamente, um apoio incondicional a todos os elementos do novo regime. É possível que nesse contexto ainda sobrevivam traços autoritários: "a expectativa é que os traços de sobrevivência de concepções autoritárias sobre política, expressos em preferências autoritárias e em atitudes de ambivalência política, ainda sejam fortes" (Moisés, 2008MOISÉS, J. A. & CARNEIRO; G. P. (2008). "Democracia, desconfiança política e insatisfação com o regime: o caso do Brasil". Opinião Pública, v. 14, n. 1, p. 1-42., p. 23).

Para testar essa proposta, (Moisés, 2008MOISÉS, J. A. & CARNEIRO; G. P. (2008). "Democracia, desconfiança política e insatisfação com o regime: o caso do Brasil". Opinião Pública, v. 14, n. 1, p. 1-42.) realizou a construção de uma tipologia2 2 A construção dessa tipologia é feita com base em dois indicadores de adesão à democracia: 1) "você concorda muito, concorda, discorda ou discorda muito que a democracia pode ter problemas, mas é o melhor o melhor sistema de governo"; 2) "com qual das seguintes frases você concorda mais; a democracia é preferível a qualquer outra forma de governo; em algumas circunstâncias um governo autoritário pode ser preferível; para pessoas como eu, dá no mesmo um regime democrático ou não democrático". Ao cruzar esses dois indicadores, (Moisés, 2008) classifica os indivíduos em autoritários, democratas e ambivalentes. Os autoritários são aqueles que, em uma resposta, disseram discordar que a democracia seja a melhor forma de governo e que, na outra, disseram que um regime democrático possa ser preferível ou que tanto faz um regime democrático e um não democrático. Os democratas, por sua vez, concordam que a democracia é a melhor forma de governo e acreditam que ela é preferível a qualquer outra forma de governo. Os ambivalentes são aqueles que oscilam suas respostas, ou seja, eles podem concordar que a democracia é a melhor forma de governo, mas acreditar que em algumas situações um governo autoritário pode ser preferível ou que tanto faz um regime democrático ou não democrático; ou ainda, no caminho inverso, acreditar que a democracia é preferível a qualquer outra forma de governo, mas, em seguida, discordar que ela seja a melhor forma de governo. destinada a verificar as orientações dos indivíduos em relação à democracia. De acordo com o autor, "além das atitudes de simples adesão ou de rejeição à democracia, a tipologia buscou caracterizar o fenômeno de ambivalência política na sociedade brasileira e seus efeitos para a legitimação da democracia" (Moisés, 2008MOISÉS, J. A. & CARNEIRO; G. P. (2008). "Democracia, desconfiança política e insatisfação com o regime: o caso do Brasil". Opinião Pública, v. 14, n. 1, p. 1-42., p. 23). O autor não oferece uma definição mais sistemática do que entende por "ambivalência", mas deixa claro que ela não significa, obrigatoriamente, uma atitude de contestação ou oposição à democracia, mas sim uma falta de consistência na escolha desse regime como "the only game in town".

Ao analisar os dados, (Moisés, 2008MOISÉS, J. A. & CARNEIRO; G. P. (2008). "Democracia, desconfiança política e insatisfação com o regime: o caso do Brasil". Opinião Pública, v. 14, n. 1, p. 1-42.) mostra que boa parte dos cidadãos da América Latina são ambivalentes em relação à democracia; no caso brasileiro, em particular, apenas 40% dos cidadãos são democratas, enquanto 54% são ambivalentes. O autor destaca que o Brasil é o país que apresenta o maior número de ambivalentes de toda a região, assim como um dos menores percentuais de democratas, atrás apenas de Paraguai e Equador.

Além de identificar o alto número de ambivalentes, (Moisés, 2008MOISÉS, J. A. & CARNEIRO; G. P. (2008). "Democracia, desconfiança política e insatisfação com o regime: o caso do Brasil". Opinião Pública, v. 14, n. 1, p. 1-42.) também mostra que esse tipo de cidadão está propenso a adotar atitudes autoritárias. Em alguns casos, como, por exemplo, uma situação de grave crise econômica, os ambivalentes são tão a favor de uma intervenção militar quanto os próprios autoritários.

Não resta dúvida de que o estudo de (Moisés, 2008MOISÉS, J. A. & CARNEIRO; G. P. (2008). "Democracia, desconfiança política e insatisfação com o regime: o caso do Brasil". Opinião Pública, v. 14, n. 1, p. 1-42.) representa um avanço no entendimento da natureza problemática da adesão à democracia na América Latina e, especialmente, no Brasil. Como vemos pela quantidade de ambivalentes, boa parte dos brasileiros não demonstra grande convicção na sua escolha pelo regime democrático. Entretanto, ao enfocar a sua análise nos ambivalentes, o autor deixou de sublinhar um fato também muito importante: ainda que em menor medida quando comparados os autoritários e os ambivalentes, uma boa parcela dos próprios democratas apresentam atitudes autoritárias. Salta aos olhos, por exemplo, que 45,4% daqueles definidos como democratas apoiem um regime não democrático para que sejam resolvidos problemas econômicos. Ou mesmo que 38,4% dos democratas sejam favoráveis a um presidente que não observe as leis em uma situação de dificuldade. Diante desses resultados, acreditamos ser importante responder a seguinte questão: quão democráticos são os democratas brasileiros?

Qualificando a adesão à democracia

Para avançar na resposta à questão feita na seção anterior é preciso ir além da simples pergunta sobre adesão à democracia. Uma importante contribuição nessa direção é dada pela pesquisa de (Booth e Seligson, 2009BOOTH, J. & SELIGSON, M. A. (2009). The legitimacy puzzle in Latin America: political support and democracy in eight nations. New York: Cambridge University Press. ) com países das Américas. Segundo eles, a melhor maneira de mensurar a legitimidade democrática não é por meio de uma pergunta direta em relação à preferência pelo regime, mas por perguntas indiretas, capazes de medir o grau em que os cidadãos concordam com os princípios e valores democráticos. Mais do que uma questão metodológica, (Booth e Seligson, 2006) propõem uma visão multidimensional da própria adesão ao regime democrático.

(Schedler e Sarsfield, 2007SCHEDLER, A. & SARSFIELD, R. (2007). "Democrats with adjectives: linking direct and indirect measures of democratic support". European Journal of Political Research, v. 46, n. 5, p. 637-59.) defendem a importância de captar não somente a preferência pelo regime democrático, mas as atitudes em relação aos seus "adjetivos" (Collier e Levitsky, 1997COLLIER, D. & LEVITSKY, S. (1997). "Democracy with adjectives: conceptual innovation in comparative research". World Politics, v. 49, n. 3, p. 430-51.), isto é, aos princípios que qualificam essa forma de governo. Investigando o caso mexicano, eles demonstram que existem diferentes perfis de democratas. Alguns, por exemplo, apoiam a liberdade de organização e expressão, mas são pouco receptivos à inclusão de minorias na democracia, como gays e índios.

Outro estudo que segue a mesma orientação é o de (Carlin e Singer, 2011CARLIN, R. E. & SINGER, M. M. (2011). "Support for polyarchy in the Americas". Comparative Political Studies, v. 44, n. 11, p. 1500-26.). Os autores retomam a definição de poliarquia de (Dahl, [1972] 1997DAHL, R. A. ([1972] 1997). Poliarquia: participação e oposição. São Paulo: Edusp.) e analisam o apoio dos cidadãos latino-americanos não só a democracia, mas às suas diferentes dimensões, como a contestação pública e a participação inclusiva, os limites da autoridade executiva e as atitudes em relação às instituições e aos processos políticos. A conclusão dos autores é que essas dimensões têm uma dinâmica própria, de forma que elas são afetadas de diferentes formas por variáveis econômicas, políticas e culturais.

Tendo como referência esses últimos estudos, o presente artigo pretende tratar a adesão à democracia a partir de uma visão multidimensional. Não obstante quais seriam esses diferentes princípios e dimensões? A resposta a essa pergunta passa pelo velho tema da natureza da democracia: o que é um regime democrático e quais são os seus requisitos? Evidentemente, é grande a lista de pensadores que se dedicaram a explorar essas questões. Todavia, para o objetivo do nosso artigo, vamos resgatar apenas aqueles componentes que encontram maior consenso na literatura como indispensáveis à existência do regime democrático.

Além disso, é preciso ressaltar que o nosso objetivo não é o de analisar as condições objetivas para a existência do regime democrático, mas apenas os requisitos subjetivos. Isso significa que o nosso interesse está direcionado apenas para os aspectos atitudinais da democracia, ou seja, a forma como os cidadãos comuns se relacionam com o sistema político em termos de atitudes, preferências e de valores.

Uma primeira característica do regime democrático são as eleições livres e competitivas para a escolha dos cargos de liderança. Qualquer regime que não satisfaça essa condição não pode ser considerado uma democracia (Cheibub e Przerworski, 1997CHEIBUB, J. A. & PRZEWORSKI, A. (1997). "Democracia, eleições e responsabilidade política". Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 12, n. 35, p. 49-61.; Dahl, 1997DAHL, R. A. ([1972] 1997). Poliarquia: participação e oposição. São Paulo: Edusp.; Bobbio, 1994BOBBIO, N. (1994). Liberalismo e democracia. 6. ed. São Paulo: Brasiliense.). Ao transportarmos para o terreno das atitudes políticas, entendemos que um indivíduo ao aceitar outros meios que não eleições livres e competitivas para a escolha dos governantes fere uma de suas dimensões mais elementares, que chamaremos aqui de "adesão aos procedimentos de escolha".

Para mensurar essa dimensão, utilizamos três variáveis feitas a partir das perguntas: "Diante de desemprego muito alto, seria justificado que os militares tomassem o poder por um golpe de estado?"; "Quando há muito crime seria justificado que os militares tomassem o poder por um golpe de estado?"; "Diante de muita corrupção seria justificado que os militares tomassem o poder por um golpe de estado?". Todas essas perguntas referem-se à possibilidade de um golpe militar em situações de crise econômica (empregos), social (crime) e política (corrupção), contrárias ao princípio da alternância de poder a partir de eleições competitivas. Para cada resposta que rejeita um golpe militar é atribuído um ponto, de forma que a variável final é vai de 0 (aceita todas) a 3 (rejeita todas).

Outro ponto consensual é a participação eleitoral, ou seja, o voto (Dahl, 1997DAHL, R. A. ([1972] 1997). Poliarquia: participação e oposição. São Paulo: Edusp.). Do ponto de vista das atitudes políticas, esse princípio está associado ao valor que o indivíduo atribui ao seu direito de votar. Em países como o Brasil e vários outros da América Latina, em que o voto é obrigatório, essa dimensão se torna particularmente importante, pois ajuda a compreender em que medida o comportamento dos cidadãos está de acordo com a norma internalizada ou reflete uma simples obrigação imposta pelo Estado. Consideramos essa dimensão da adesão à democracia como "adesão normativa ao voto".

Para mensurar essa atitude, utilizamos a pergunta: "Existem pessoas que dizem que precisamos de um líder forte, que não seja eleito através do voto. Outros dizem que, ainda que as coisas não funcionem, a democracia eleitoral, ou seja, o voto popular é sempre o melhor. O que o(a) sr./sra. pensa?". Nesse caso, são democratas aqueles que acreditam ser a democracia eleitoral, ou seja, o voto popular, sempre a melhor opção.

A participação política não se limita à esfera da participação eleitoral. Outro princípio presente numa concepção um pouco mais exigente é o da participação política não eleitoral dos cidadãos. Em termos de atitudes políticas, esse princípio envolve o reconhecimento do cidadão de quão importantes e legítimas são as diferentes formas de participação política, como manifestações e protestos ou ativismo em organizações da sociedade civil (Booth e Seligson, 2009BOOTH, J. & SELIGSON, M. A. (2009). The legitimacy puzzle in Latin America: political support and democracy in eight nations. New York: Cambridge University Press. ). Essa dimensão refere-se à "adesão ao princípio da participação política".

Para medir essa atitude foram utilizadas duas perguntas: "Quero que me diga o quanto o(a) sr./sra. aprovaria ou desaprovaria as seguintes ações: a participação de pessoas em manifestações permitidas por lei. Até que ponto aprova ou desaprova? A participação de pessoas em uma organização ou grupo para resolver os problemas das comunidades. Até que ponto aprova ou desaprova?". As respostas vão de 1 (desaprova fortemente) até 10 (aprova fortemente). A variável final é a soma das duas respostas.

Uma última dimensão refere-se ao papel assumido pelos canais de representação no processo democrático. Embora a participação seja um aspecto fundamental da democracia, a representação é um elemento indispensável na sua forma atual (Sartori, 1999SARTORI, G. (1999). Elementos de teoria política. São Paulo: Alianza.). Destaca-se, aqui a centralidade dos partidos políticos, peças fundamentais da engrenagem democrática moderna (Mainwaring, 1999MAINWARING, S. (1999). Rethinking party systems in the third wave of democratization: the case of Brazil. Stanford: Stanford University Press,.). A atitude política correlata a essa dimensão é o reconhecimento da importância dos partidos. Nesse caso, espera-se de um indivíduo com orientação democrática que, ainda que não tenha preferência partidária, atribua um valor positivo ao papel dos partidos políticos no regime democrático. Essa dimensão refere-se ao que chamamos aqui de "adesão ao princípio da representação política".

A pergunta que mede essa dimensão é: "Pode haver democracia sem que existam partidos políticos. Até que ponto concorda ou discorda desta frase?". As respostas podem variar em uma escala que vai de 1 (discorda muito) até 7 (concorda muito).

Para fim de comparação, todas as escalas das variáveis elaboradas - com exceção da adesão normativa o voto que é uma variável binária - foram convertidas em uma escala que vai de 0 a 100.

Uma vez definidas as dimensões da legitimidade do regime democrático e explicada a forma como cada uma delas foi construída, a próxima seção pretende testar o quão democráticos são os democratas brasileiros. Para tanto, observaremos em que medida aqueles que dizem aderir à democracia têm, ou não, atitudes de adesão às dimensões propostas: adesão aos procedimentos de escolha, adesão normativa ao voto, adesão ao princípio da participação e adesão ao princípio da representação política.

Quão democráticos são os democratas brasileiros?

Como vimos anteriormente, a pergunta tradicional que mede a adesão à democracia é a chamada "hipótese de Churchill" (Rose, 2002), que enfatiza a oposição entre os regimes políticos. Sua construção se baseia nas questões: para você "a democracia é preferível a qualquer forma de governo; em algumas circunstâncias um governo autoritário pode ser preferível a um democrático; tanto faz um regime democrático ou não democrático". Consideram-se democratas aqueles que, mesmo diante de todas as falhas que o regime possa apresentar, escolhem a democracia como a melhor forma de governo.

O Gráfico 1 mostra que o percentual de entrevistados que consideram a democracia a melhor forma de governo é constante no tempo. Entre 2006 e 2012, o percentual de respondentes na América Latina oscilou entre 73,25% e 76,37%, ou seja, uma diferença de apenas 3,12%. No Brasil, o percentual esteve entre 71,53%, em 2006, e 65,97%, em 2012, uma variação um pouco maior, de 5,56%. Chama atenção, no entanto, que os percentuais são sempre menores no Brasil do que na América Latina. Esse fato não é novo e já foi notado por outros estudos (Moisés, 1995MOISÉS, J. A. (1995). Os brasileiros e a democracia: bases sócio-políticas da legitimidade democrática. São Paulo: Ática.; Moisés e Carneiro, 2008MOISÉS, J. A. & CARNEIRO; G. P. (2008). "Democracia, desconfiança política e insatisfação com o regime: o caso do Brasil". Opinião Pública, v. 14, n. 1, p. 1-42.).

Gráfico 1
Percentual de respondentes que prefere a democracia a qualquer outra forma de governo

A questão que nos interessa, no entanto, é outra. Apesar do percentual relativamente alto de indivíduos que afirmaram preferir a democracia no Brasil, em que medida suas atitudes estão em sintonia com as normas, valores e princípios inerentes à democracia? Ou seja: quão democráticos são os democratas brasileiros? Como o foco do nosso estudo é o democrata, as análises realizadas daqui em diante serão feitas com base apenas nos democratas, ou seja, somente nas pessoas que dizem que a democracia é preferível a qualquer outra forma de governo.

O primeiro passo é analisar a dimensão da adesão aos procedimentos de escolha. Até que ponto os democratas defendem a manutenção de procedimentos democráticos diante de alternativas autoritárias, mesmo em situações de crise econômica, social e política? Pode-se observar, no Gráfico 2, uma forte estabilidade, tanto no Brasil quanto na América Latina. Devemos destacar que, nesse caso, o Brasil se mantém acima da média da região.

Gráfico 2
Média de rejeição a golpe militar por alto desemprego, criminalidade e corrupção

Mas o ponto mais importante a ser considerado é que, mesmo que as pontuações médias sejam, em sua maior parte, elevadas, uma parcela considerável de democratas está disposta a aceitar um golpe militar caso o país passe por problemas graves de desemprego, crime e corrupção. Isso ocorre especialmente com os outros países da América Latina considerados em conjunto.

O Gráfico 3 apresenta a distribuição percentual da segunda dimensão, referente à adesão normativa ao voto. Há uma forte estabilidade ao longo do tempo e quase não existem diferenças entre Brasil e América Latina. É importante notar o alto percentual de democratas que reconhecem o valor do voto para a democracia. Pode-se ver que, ao longo dos anos, apenas 10% dos democratas consideram que a eleição de um líder forte não eleito através do voto é melhor do que uma democracia eleitoral para resolver os problemas do país. Trata-se de uma dimensão da democracia que poucos democratas discordam.

Gráfico 3
Percentual de democratas que acham a democracia eleitoral melhor do que um líder forte

Outra dimensão da adesão à democracia diz respeito à importância dada à participação política. Vale notar que essa é uma média alta, mantendo-se sempre acima de setenta pontos, em toda a América Latina. Isso mostra que participação política é vista pelos democratas como um importante componente do regime democrático.

O Gráfico 4 mostra os valores para a adesão ao regime democrático baseado no princípio da representação política. Com exceção de 2006, as médias do Brasil e da América Latina são muito similares, por volta dos 55 e 60 pontos, ou seja, próximas à metade da escala. Diferentemente da dimensão anterior, trata-se de uma média bastante baixa, revelando a fragilidade com que os brasileiros e os latino-americanos enxergam a importância dos partidos políticos no regime democrático.

Gráfico 4
Média de apoio à participação em manifestações e protestos e em associações e organizações da sociedade civil

Gráfico 5
Média de discordância de que pode haver uma democracia sem partidos políticos

Esse conjunto de dados nos permite retomar a questão: quão democráticos são os democratas brasileiros? A resposta não é simples, sobretudo quando analisada por uma abordagem multidimensional da adesão à democracia. Quando decomposta em diferentes dimensões, é possível observar que a adesão é mais consistente em algumas do que em outras.

Podemos ver, por exemplo, que a grande maioria dos democratas brasileiros prefere que o governante seja eleito a que ele chegue ao poder por outras vias. De forma semelhante, uma expressiva maioria dos democratas apoia a participação dos cidadãos, seja em manifestações e protestos, seja em associações e organizações da sociedade civil.

No entanto, o mesmo grau de adesão não é verificado quando o princípio em questão são os procedimentos de escolha. Quando amaçados por muito desemprego, crime ou corrupção, um número considerável de democratas está disposto trocar o governo civil por um regime militar. Isso é particularmente interessante porque, de alguma forma, relativiza a adesão normativa ao voto. Quando confrontados com situações de crises, parcela considerável dos democratas está disposta a reavaliar a sua preferência por uma democracia eleitoral e considerar a possibilidade de um "procedimento" de outra natureza, como um golpe militar.

Ainda menor do que a adesão aos procedimentos de escolha é a adesão ao princípio da representação política. Uma grande parcela dos democratas acredita que os partidos políticos não são necessários para a democracia. Esse resultado não é trivial, pois expõe, de forma ainda mais clara do que a própria desconfiança na instituição (Moisés, 2008MOISÉS, J. A. & CARNEIRO; G. P. (2008). "Democracia, desconfiança política e insatisfação com o regime: o caso do Brasil". Opinião Pública, v. 14, n. 1, p. 1-42.), a fragilidade dos partidos políticos como mediadores das vontades e dos interesses coletivos. Se existe alguma dimensão da democracia brasileira que apresenta um déficit de legitimidade, ela refere-se à representação política.

Se os diferentes princípios subjacentes à democracia não formam um sistema de crenças coeso, podemos supor que cada um deles tenha uma dinâmica independente. É o que revela a Tabela 1. Nela observa-se uma baixa correlação entre as variáveis de cada uma das dimensões. Isso significa que não seria um evento raro encontrar um democrata brasileiro que seja um defensor fervoroso da participação política e, ao mesmo tempo, acredite que crises econômicas, sociais e políticas justifiquem golpes militares. Da mesma forma, há uma chance razoável de que o mesmo indivíduo defenda a importância dos partidos políticos para a democracia e não valorize a participação política fora do contexto eleitoral.

Tabela 1
Matriz de correlação policórica3 3 A análise de componentes principais utilizando correlação policórica permite a associação entre variáveis discretas considerando a sua natureza, nesse caso ordinal. Esta é uma solução para evitar possíveis vieses ao considerá-las variáveis contínuas normalmente distribuídas (Kolenikov e Angeles, 2004). e análise fatorial

A Tabela 1 também apresenta uma análise fatorial a partir das quatro dimensões da adesão à democracia4 4 A análise foi gerada a partir do software estatístico Stata 12. Foi selecionado apenas um fator, partindo da suposição de que cada uma das dimensões da democracia deveria fazer parte de um mesmo constructo. . Pode-se ver, no entanto, que nenhuma das dimensões apresenta uma carga fatorial satisfatória, sendo todas menores que 0,5. Esse resultado reforça a nossa interpretação das baixas correlações encontradas: a associação entre as diferentes dimensões não é suficientemente forte para integrá-las num conceito mais amplo da legitimidade democrática.

A inconsistência atitudinal dos democratas brasileiros pode ser interpretada como um indício de que eles não são muito democráticos. Mas seriam a presença de atitudes não democráticas e a inconsistência entre as atitudes democráticas um traço singular do democrata brasileiro ou mesmo latino-americano? Para responder essa questão é necessário buscar parâmetros comparativos mais robustos. O "salto" analítico que propomos é a comparação entre os democratas brasileiros e os democratas que vivem em democracias mais antigas.

A partir do Barômetro das Américas, é possível realizar essa comparação com os Estados Unidos, uma democracia de reconhecida longevidade. É interessante notar que, de fato, os democratas norte-americanos são mais democráticos em quase todas as dimensões, porém, as diferenças não são substantivas. Tendo como referência o ano de 2012 e a mesma escala que vai de zero a cem, temos uma pontuação média de 82,9 para a rejeição a um golpe militar em caso de desemprego, corrupção e violência, enquanto no Brasil ela é de 75,3. Em relação ao apoio à participação política, a média, nos Estados Unidos, é 75,7 e, no Brasil, 73,5. Quanto à adesão ao voto, 96,1% dos norte-americanos valorizam a eleição, 5,2% a mais do que os brasileiros.

Há, no entanto, uma notável e surpreendente exceção. Enquanto no Brasil a média de discordância de uma democracia sem partidos é de 57,5, nos Estados Unidos é de apenas 42,9. Ou seja, os democratas norte-americanos estão, em média, mais dispostos a apoiar uma democracia sem partido do que os brasileiros. Embora esse resultado mereça uma investigação mais cuidadosa, fica claro que a baixa legitimidade da representação política não é uma exclusividade do Brasil, nem tampouco das novas democracias. Uma possível interpretação desses dados é a de que estaria em curso um processo de convergência entre as culturas políticas das novas e velhas democracias. Isso seria resultado de fenômenos distintos: de um lado, a fragilidade da cultura política democrática em países sem tradição democrática e, de outro, a crise de legitimidade de instituições centrais das democracias consolidadas, como os partidos políticos (Wattenberg, 1998WATTENBERG, M. (1998). The decline of American political parties, 1953-1996. Cambridge: Harvard University Press.; Clarke e Stewart, 1998CLARKE, H. D. & STEWART, M. C. (1998). "The decline of parties in the minds of citizens". Annual Review of Political Science, n. 1, p. 357-78.).

Considerações finais

O presente artigo buscou avançar na compreensão da adesão à democracia no Brasil. Com esse objetivo, propomos que essa adesão fosse medida não apenas a partir da preferência por esse regime político, mas também por meio do apoio aos princípios e valores próprios da democracia.

Retomando a questão colocada no começo do artigo - quão democráticos são os democratas brasileiros, chegamos à conclusão de que não existe uma resposta simples para ela. Isso porque os resultados mostram que os brasileiros não aderem com a mesma intensidade as diferentes dimensões da democracia. Algumas contam com um forte apoio, como o voto e a participação política, enquanto outras são mais frágeis, como os procedimentos de escolha e a representação política.

Esses resultados são reveladores, pois, mesmo entre o público que supostamente teria atitudes mais democráticas (os democratas), o apoio às diferentes dimensões da democracia está longe de ser consensual. Por outro lado, os democratas brasileiros apresentam atitudes mais democráticas do que os democratas dos outros países da América Latina e, surpreendentemente, próximas das atitudes dos norte-americanos. Isso abre caminho para estudos comparativos que levem a sério a hipótese da convergência das culturas políticas das novas e antigas democracias.

Além de verificar o apoio a cada uma das dimensões da legitimidade democrática, nosso estudo também analisou a relação entre elas. A baixa correlação encontrada indicou que cada uma das dimensões tem um padrão de adesão relativamente independente.

Para aprofundar as causas desse fenômeno, duas interpretações merecem ser consideras em estudos futuros. Uma delas refere-se à adesão a distintos modelos de democracia. Os indivíduos podem, por exemplo, acreditar que a democracia seja, essencialmente, um sistema político baseado na participação direta e não na representação, isto é, na eleição dos líderes políticos. Nesse caso, não há motivo para esperar que, para eles, haja convergência entre o princípio da participação e o princípio da representação. Ambos podem perfeitamente trilhar caminhos separados aos olhos do cidadão.

A outra linha interpretativa - com a qual concordamos - argumenta que a ambivalência é uma característica compartilhada por amplos segmentos da população. Assim, é natural que muitos que consideram a democracia a melhor forma de governo sejam inconsistentes em suas atitudes em relação aos princípios da democracia. Seguindo essa linha de interpretação, apenas o democrata "sofisticado" compreendeu e internalizou o conjunto de valores, normas e princípios interligados que constituem a legitimidade democrática, o que faz com que as suas atitudes em relação ao regime sejam coerentes.

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  • 1
    No caso do Brasil as entrevistas ocorreram em 2007.
  • 2
    A construção dessa tipologia é feita com base em dois indicadores de adesão à democracia: 1) "você concorda muito, concorda, discorda ou discorda muito que a democracia pode ter problemas, mas é o melhor o melhor sistema de governo"; 2) "com qual das seguintes frases você concorda mais; a democracia é preferível a qualquer outra forma de governo; em algumas circunstâncias um governo autoritário pode ser preferível; para pessoas como eu, dá no mesmo um regime democrático ou não democrático". Ao cruzar esses dois indicadores, (Moisés, 2008______ (2008). "Cultura política, instituições e democracia: lições da experiência brasileira". Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 23, n. 66, p.11-44.) classifica os indivíduos em autoritários, democratas e ambivalentes. Os autoritários são aqueles que, em uma resposta, disseram discordar que a democracia seja a melhor forma de governo e que, na outra, disseram que um regime democrático possa ser preferível ou que tanto faz um regime democrático e um não democrático. Os democratas, por sua vez, concordam que a democracia é a melhor forma de governo e acreditam que ela é preferível a qualquer outra forma de governo. Os ambivalentes são aqueles que oscilam suas respostas, ou seja, eles podem concordar que a democracia é a melhor forma de governo, mas acreditar que em algumas situações um governo autoritário pode ser preferível ou que tanto faz um regime democrático ou não democrático; ou ainda, no caminho inverso, acreditar que a democracia é preferível a qualquer outra forma de governo, mas, em seguida, discordar que ela seja a melhor forma de governo.
  • 3
    A análise de componentes principais utilizando correlação policórica permite a associação entre variáveis discretas considerando a sua natureza, nesse caso ordinal. Esta é uma solução para evitar possíveis vieses ao considerá-las variáveis contínuas normalmente distribuídas (Kolenikov e Angeles, 2004KOLENIKOV, S. & ANGELES, G. (2004). "The use of discrete data in PCA: theory, simulations, and applications to socioeconomic indices". CPC/Measure Working Paper, WP-04-85.).
  • 4
    A análise foi gerada a partir do software estatístico Stata 12. Foi selecionado apenas um fator, partindo da suposição de que cada uma das dimensões da democracia deveria fazer parte de um mesmo constructo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2016

Histórico

  • Recebido
    01 Nov 2014
  • Aceito
    28 Jul 2015
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