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Resenhas

Sikkink, Kathryn. La cascada de la justicia: como los juicios de lesa humanidade están cambiando el mundo da la política. Buenos Aires: Gedisa Editorial, 2013

Kathryn Sikkink, atualmente professora da Universidade de Harvard, é uma pesquisadora dos direitos humanos e justiça de transição. Seu último livro, La Cascada de la justicia, aqui resenhado, busca analisar como os julgamentos de crimes de lesa-humanidade - torturas, terrorismo de Estado e desaparecimento de pessoas - contribuem para o desenvolvimento das democracias que nasceram em países com passado autoritário.

O livro de Kathyn Sikkink é um estudo não apenas sobre transição política e justiça transicional, mas também sobre o impacto de julgamentos no estado atual da democracia. Portanto, diz respeito ao efeito na democracia de decisões jurídicas, tomadas no âmbito democrático e respeitando a defesa dos acusados. Não se trata de analisar "revanchismos" por parte daqueles que um dia sofreram e hoje estão no poder, mas o fato de que estes buscam respaldo jurídico - e de respeito à dignidade humana - para que antigos agentes de Estado terrorista sejam julgados por crimes que não prescrevem.

Seu argumento central reside na teoria da "cascata da justiça", na qual o julgamento e a condenação de funcionários do alto escalão do governo autoritário em um país influenciaram outros Estados democráticos a julgarem antigos poderosos (até mesmo ex-presidentes), em um "efeito cascata". O livro é dividido em quatro partes.

Na primeira, Sikkink inicia sua argumentação pelo que chama de "navegar sem mapa". São os primeiros casos apresentados, considerados como um marco inicial dos julgamentos e da responsabilidade penal individual. Trata-se de Portugal e da Grécia no fim dos anos 1970. Esses dois países europeus se democratizaram no início da "terceira onda" de democratização do globo. Portugal, particularmente, é justamente o marco inicial da "terceira onda", quando a Revolução dos Cravos, de 1974, derruba a ditadura salazarista, em uma ruptura que rapidamente pôs em cheque o governo autoritário (Huntington, 1994HUNTINGTON, Samuel (1994).A terceira onda: democratização no final do século XX. São Paulo: Ática.).

Nos dois países, os antigos agentes do regime autoritário não se viram anistiados ou protegidos pela justiça, pelo contrário. Grécia e Portugal começaram a "navegar sem mapa", pois promoveram o exercício de julgar responsáveis pela política de Estado baseada na violência e na coação ilegítima e autoritária, entretanto, garantindo a defesa e os direitos individuais desses agentes. Não se tratava, portanto, de julgamentos políticos ou de vingança, mas da aplicação da lei e da coibição da possível continuidade de crimes de lesa-humanidade em novas democracias.

Em que pesem as experiências iniciais de Grécia e Portugal, Sikkink aponta o processo argentino como modelo bem-sucedido de julgamento de ditadores. Para a autora, o Estado argentino soube, durante a transição democrática, consolidar uma justiça de transição que julgou os responsáveis pelo terror estatal. A Argentina seria a responsável, portanto, pela institucionalização de uma justiça que investigue crimes imprescritíveis cometidos por agentes estatais.

Com esses três casos, Portugal, Grécia e Argentina, criou-se no mundo da política e da justiça a responsabilidade penal individual para agentes de Estado. Na segunda parte do livro, a autora analisa como a ideia da responsabilidade penal individual se propagou para outros Estados com passado autoritário. Nesse sentido, a Argentina assumiu um importante papel na promoção dos direitos humanos, passando da condição de "Estado pária para protagonista internacional", sobretudo após os julgamentos de crimes de lesa-humanidade.

Poucos dias depois de encerrar-se o regime militar, o Estado argentino instalou a Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas (Conadep), responsável pelo informe final Nunca más, registrando um número inicial de desaparecidos políticos e quase quatrocentos centros clandestinos de detenção. Nunca más serviu, salienta Sikkink, não apenas para mobilizar a sociedade civil, mas também como material para os julgamentos e imputação de responsabilidade penal individual aos envolvidos em terrorismo estatal.

Os julgamentos na Argentina espalharam pelo mundo a sensação de que era possível, e também preciso, um Estado responsabilizar seus agentes por violações de direitos humanos. Segundo a autora, "a justiça de transição se converteu, então, em uma questão internacional: as decisões particulares tomadas por atores nacionais estavam condicionadas - porém não determinadas - pelas decisões preexistentes em outros lugares" (p. 106). Dessa forma, os julgamentos de crimes de lesa-humanidade argentinos criaram jurisprudências para casos semelhantes ao resto do mundo, sem, entretanto, criar uma "fórmula mágica" de resolução da questão. É o que autora chama de "afluentes da cascata". Em cada lugar, há um novo entendimento e um avanço na questão. A inserção do indivíduo no direito internacional e a responsabilidade penal individual por crimes de guerra internacional são dois "afluentes" próprios da experiência argentina.

Alguns Estados e governantes parecem estar, entretanto, "imunes" ao efeito da cascata da justiça, fenômeno analisado por Sikkink na terceira parte do livro. É o caso dos funcionários do alto escalão do governo de George W. Bush (2001-2009). Ao institucionalizarem a tortura como prática de combate ao terrorismo, funcionários ligados à CIA a utilizaram de forma contínua em diversas partes do mundo. A agência buscou "blindar" os funcionários, mas o resultado foi pouco efetivo. Em torno de 79 julgamentos aconteceram nos Estados Unidos, e grande parte condenou os funcionários ligados às práticas de tortura e violação de direitos humanos em territórios invadidos pelo governo norte-americano.

Situando o Brasil dos anos 1960 a 1980 no contexto latino-americano, é preciso lembrar que a ditadura militar foi contemporânea das ditaduras de países próximos - Uruguai (1973-85), Chile (1973-90), Paraguai (1954-89) e Argentina (1976-83). Mas quando o assunto é "punição" aos agentes da ditadura, os resultados foram bem diferentes se compararmos o caso brasileiro ao dos países vizinhos, sobretudo o argentino. Dessa forma, em um livro sobre justiça de transição em que a base empírica são, sobretudo, países latino-americanos, o Brasil passa a ser um caso desviante da amostra de Sikkink.

Os efeitos dos julgamentos em países da América Latina são, entre outros, uma melhora na qualidade democrática, a diminuição de conflitos políticos letais nos anos pós-julgamentos e, sobretudo, um maior controle civil sobre as instituições militares e o combate à "cultura da impunidade" por parte dos agentes estatais. Há, dessa forma, um maior respeito aos direitos humanos em Estados latino-americanos que promoveram julgamentos de crimes de lesa-humanidade.

No caso brasileiro, a literatura admite as dificuldades da transição política no tocante à punição dos agentes da ditadura e ao controle civil (Zaverucha, 2000ZAVERUCHA, Jorge (2000). Frágil democracia: Collor, Itamar, FHC e os militares (1990-1998). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.), bem como os efeitos disso sobre a democracia brasileira. Extremamente pactuada, a nossa transição é considerada a mais longa da América Latina, durando cerca de trinta anos (Marenco, 2007MARENCO, André (2007). "Devagar se vai longe? A transição para a democracia no Brasil em perspectiva comparada", em MELO, C. R. & SAÉZ, M. A (orgs.). A democracia brasileira: balanços e perspectivas para o século 21. Belo Horizonte: Editora da UFMG.), sendo um caso de "transição por transação" (Share e Mainwaring, 1986SHARE, Donald & MAINWARING, Scott (1986). "Transição pela transação: democratização no Brasil e na Espanha". Dados, v. 29, n. 2, p. 207-36.; Santos, 2000SANTOS, Fabiano (2000). "Escolhas institucionais e transição por transação: sistemas políticos de Brasil e Espanha em perspectiva comparada". Dados, v. 43, n. 4, p. 637-69.), em que os acordos políticos de impunidade ainda se fazem presentes no atual sistema político. Em que pesem os acordos políticos no âmbito doméstico, há uma pressão internacional - ou a "cascata da justiça" - para a revisão da lei de impunidade no Brasil. Como demonstra a autora, não há Estado imune aos julgamentos de crimes de lesa-humanidade.

O livro de Katharyn Sikkink tem a qualidade de combinar dados sólidos e análise politóloga com testemunho pessoal da autora. Desde os anos 1970 ela trabalha com questões de resistência às ditaduras, sobretudo na América Latina, quando morou e trabalhou no Uruguai. Depois, já de volta aos Estados Unidos, esteve ligada à ONG Washington Office on Latin America(WOLA), entidade de atuação na proteção aos direitos humanos na América Latina.

Entremeando a análise científica, Sikkink relembra momentos marcantes da política latino-americana e resistência aos Estados autoritários. Uma dessas passagens diz respeito a uma estadia das Mães da Praça de Maio (Argentina) na capital norte-americana, Washington, a fim de buscar apoio à busca dos desaparecidos. A autora relembra que qualquer minuto não investido na busca pelos desaparecidos políticos argentinos, no fim dos anos 1970, era considerado um minuto perdido para as Mães da Praça de Maio.

Seus casos empíricos localizam-se em diferentes partes do globo. Isso porque, segundo a autora, os julgamentos dessa natureza em um país criam condições e influenciam novos julgamentos em outras localidades. Nesse sentido, a América Latina teve um papel destacado: a Argentina é a referência mundial para os julgamentos de crimes de lesa-humanidade de funcionários de alto escalão de governos. O Estado argentino julgou não apenas agentes responsáveis pela repressão política nas ruas e em cárceres, mas também ditadores que no passado ocuparam a cadeira destinada à Presidência da República. Anos depois, foi no país das Mães e Avós da Praça de Maio que a luta por justiça, verdade e memória melhor se consolidou no continente latino-americano.

Referências

  • HUNTINGTON, Samuel (1994).A terceira onda: democratização no final do século XX. São Paulo: Ática.
  • MARENCO, André (2007). "Devagar se vai longe? A transição para a democracia no Brasil em perspectiva comparada", em MELO, C. R. & SAÉZ, M. A (orgs.). A democracia brasileira: balanços e perspectivas para o século 21. Belo Horizonte: Editora da UFMG.
  • SANTOS, Fabiano (2000). "Escolhas institucionais e transição por transação: sistemas políticos de Brasil e Espanha em perspectiva comparada". Dados, v. 43, n. 4, p. 637-69.
  • SHARE, Donald & MAINWARING, Scott (1986). "Transição pela transação: democratização no Brasil e na Espanha". Dados, v. 29, n. 2, p. 207-36.
  • ZAVERUCHA, Jorge (2000). Frágil democracia: Collor, Itamar, FHC e os militares (1990-1998). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2016

Histórico

  • Recebido
    25 Jun 2015
  • Aceito
    17 Out 2015
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