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Políticas públicas e inundações do rio Uruguai no município de São Borja: o olhar dos atingidos e a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil

Public policies and floods of the Uruguay river in the municipality of São Borja: the eyes of those affected and the National Policy on Protection and Civil Defense

Resumo

Este trabalho visa investigar a relação das comunidades ribeirinhas do município de São Borja, no oeste do estado do Rio Grande do Sul, com as inundações recorrentes do rio Uruguai no decorrer no século XX e início do século XXI. O texto analisa a mudança na percepção do referido fenômeno, que era visto como cíclico e passa a ocorrer de forma “desordenada” em períodos mais recentes. Essa análise terá por base relatos de moradores das áreas afetadas. Será examinada, ainda, a posição do Direito acerca de tais eventos, enquadrados como desastres naturais, com exploração da legislação pertinente, bem como das políticas públicas adotadas em termos de prevenção e defesa civil, no sentido de demonstrar, também nessa perspectiva, uma mudança na forma de compreensão e enfrentamento do tema.

Palavras-chave:
rio Uruguai; inundações; políticas públicas; Direito dos Desastres; prevenção

Abstract

The aim of this paper is to investigate the relationship between the coastal communities in São Borja, at the west of Rio Grande do Sul state, and the repeated flooding’s of the Uruguay river during the course of the twentieth century and early twenty-first century. The paper analyzes the changes in the perception of this phenomenon, which was seen as cyclical and happens to occur in a “disorderly” way in recent times. This analysis will be based on the reports of residents of the affected areas. We will use also the laws that are applied on such events, classified as natural disasters, to analyze the pertinent legislation and the public policies adopted in terms of prevention and civil defense, to demonstrate also in this perspective, a mind change of the way of understanding and dealing with the theme.

Keywords:
Uruguay river; floods; public policies; Disaster Law; prevention

Introdução

As inundações são fenômenos de ordem natural; porém, a ação antrópica, seja nas áreas urbanas, seja nas áreas rurais que margeiam o rio Uruguai no estado do Rio Grande do Sul, tem contribuído, consideravelmente, para sua maior frequência e dimensão, a ponto de impressionar os habitantes locais, em tese acostumados a esses eventos.

Nessa região, mesmo sendo recorrentes, as inundações têm sido tratadas historicamente como fenômenos isolados, tanto pelo Estado quanto pelas populações atingidas, sem que sejam detectadas, na maioria das vezes, correlações entre esses eventos. No caso destas populações, torna-se premente entender a maneira com que produzem e reproduzem, em particular, suas condições materiais de sobrevivência, hoje e em tempos idos. Com relação ao Estado, faz-se fundamental a análise acerca das mudanças nas tomadas de decisões que acompanham tais eventos.

Para tanto, quando se propõe o exame sobre as inundações do rio Uruguai que atingem áreas urbanizadas do município de São Borja, na verdade pretende-se examinar a própria mudança de sentido dos discursos sobre as águas. A reconstrução semântica do significado das “cheias”, “enchentes” e “inundações” é o parâmetro inicial para a compreensão de que eventos potencialmente desastrosos hoje podem não ter sido vistos como tal em outros tempos. Diante disso, entende-se este estudo como versando tanto sobre os fenômenos naturais quanto sociais, e que as políticas idealizadas e por vezes colocadas em prática, como soluções para tais fenômenos, nem sempre os consideram como interligados.

No Brasil, para conhecer e mapear esses “desastres naturais”, uma das fontes de dados mais relevantes são os decretos de situação de emergência ou estado de calamidade pública, reconhecidos pelo governo federal. O critério para que se decrete situação de emergência ou estado de calamidade pública baseia-se na intensidade dos desastres, assim como na comparação entre a necessidade e a disponibilidade de recursos para o restabelecimento da situação de normalidade dos municípios.

Quando se trata de inundações, faz-se referência às causas também interligadas aos eventos, especialmente em áreas mais pobres do globo, em termos planetários, ou áreas mais carentes de cidades, em âmbito local/regional. Isso deixa transparente a intrínseca relação entre fenômenos naturais e sociais, e é claramente perceptível quando se observa o elevado número de mortos nesse tipo de evento em países pobres. Essa identificação ocorre ao se levar em consideração as condições socioeconômicas adversas com repercussão direta na baixa renda, que acabam refletindo-se “na carência de políticas educacionais, na pressão sobre os recursos naturais, na ineficiência do ordenamento territorial que, consequentemente, resulta na ocupação de áreas de risco, como as planícies de inundação” (Marcelino, Nunes e Kobiyama, 2006MARCELINO, Emerson Vieira; NUNES, Lucí Hidalgo; KOBIYAMA, Masato. Banco de dados de desastres naturais: análise de dados globais e regionais. Caminhos de Geografia, Uberlândia, v. 6, n. 19, p. 130-149, out. 2006., p. 130). Para Marcelino, Nunes e Kobiyama (op. cit.), o impacto econômico de um desastre também tem consequências diretas (como os danos na infraestrutura, nas edificações e na agricultura) e indiretas, que aparecem em médio prazo e consistem na diminuição do Produto Interno Bruto (PIB), no desemprego, na instabilidade financeira e nas migrações (ibidem, p. 131).

Nas últimas décadas do século XX, especificamente entre 1980 e 2005, foram registrados mais de 25 eventos classificados como enchentes1 nos municípios que margeiam o rio Uruguai, de acordo com Reckziegel e Robaina (2007RECKZIEGEL, Bernadete Weber; ROBAINA, Luis Eduardo de Souza. Desastres naturais no estado do Rio Grande do Sul no período de 1980 a 2005: enchentes e enxurradas. In: SIMPÓSIO BRASILEIRO DE DESASTRES NATURAIS E TECNÓLOGICOS (SIBRADEN), 2., 2007, Santos. Anais... Santos: Acqua Consultoria, 2007.). Muitas cidades e comunidades ribeirinhas, entre elas São Borja, já foram atingidas por esses “desastres naturais”2 2 Para Nodari, Espíndola e Lopes (2015), a noção de desastre comumente aceita define-se como um evento extraordinário. em áreas urbanas ou agrícolas.

Cabe destacar que, semanticamente, enchentes e cheias são sinônimos, porém a compreensão das comunidades ribeirinhas do rio Uruguai, na região contemplada por este estudo, atribui noções diferentes a elas. Como apontado anteriormente, o sentido conferido às cheias3 3 Enchentes (ou cheias) consistem na elevação do nível de água normal de drenagem, devido a acréscimo de descarga. Tecnicamente, a Classificação e Codificação Brasileira de Desastres (Cobrade) adota e expressão inundação para definir esses eventos, que são a “submersão de áreas fora dos limites normais de um curso de água em zonas que normalmente não se encontram submersas. O transbordamento ocorre de modo gradual, geralmente ocasionado por chuvas prolongadas em áreas de planície” (Brasil, 2015). do rio Uruguai figurou em reportagens de jornais, relatos de moradores e mesmo documentos oficiais, como eventos esporádicos e normais, especialmente na primeira metade do século XX. Em períodos mais recentes, a palavra cheia foi dando lugar à enchente, esta entendida pelos ribeirinhos como um evento de caráter devastador e associada à ideia de desastre, configurando uma situação de risco, posto que a planície de inundação em questão passou a tratar-se de área ocupada pelo homem.

Diante de tal quadro, o foco de análise, aqui, recai sobre a relação das comunidades ribeirinhas do município de São Borja, no oeste do estado do Rio Grande do Sul, com as inundações recorrentes do rio Uruguai no decorrer no século XX e início do século XXI. A pesquisa baseia-se em bibliografia de caráter exploratório e pesquisa documental descritiva em acervos digitais dos governos federal, estadual e municipal, analisando informações referentes à legislação brasileira para o setor ambiental e de defesa civil. Também são consultados os periódicos de circulação local e regional que noticiaram as inundações ou “enchentes” do rio Uruguai, especialmente a partir da segunda metade do século XX. Neste sentido, verifica-se que o cunho das políticas públicas direcionadas ao setor até o início do século XXI era puramente paliativo e voltado à mitigação de danos já causados, não se preocupando com controle e prevenção. O tema só foi reconhecido efetivamente a partir da década de 1990, quando o referido setor passa a fazer parte, claramente, da agenda governamental e a ter políticas de desenvolvimento próprio.

As enchentes, como foram classificadas pelos jornais locais e regionais, causaram e causam, repetidamente, destruições que alteram profundamente a paisagem, e, com ela, a percepção dos moradores locais acerca de sua interdependência com o rio, além de provocar uma grande transformação nos hábitos e costumes dos homens, no meio ambiente, nas práticas e apropriações da natureza. Esse processo de transformação é observado sob o ponto de vista das Ciências Humanas e das Ciências Sociais Aplicadas, em especial o Direito, e a abordagem dá-se em torno da apropriação e do uso da dita “natureza” local para fins econômicos e as consequências ambientais decorrentes das enchentes desastrosas que atingem a região, as quais requerem novas posturas do ordenamento jurídico pátrio.

As inundações do rio Uruguai: breve análise histórica

Historicamente, as denominadas cheias do rio Uruguai têm importância econômica positiva para toda a região oeste de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul. Estas “cheias” eram esperadas como as estações do ano, e não provocavam grandes tragédias nessas regiões, pois, além de a ocupação urbana ser pequena, evitava-se ocupar as baixadas e várzeas. A designação de “enchentes” e o reconhecimento recente desses eventos como catastróficos são indicativos da mudança de percepção das comunidades ribeirinhas e suas relações com o rio e suas margens.

Um dos reflexos dessa mudança de percepção quanto às chamadas enchentes, seu potencial devastador, as áreas de risco e o consequente papel do Estado nesses eventos consiste no maior destaque que o tema passa a receber da imprensa local, como indica a reportagem de capa do jornal Folha de São Borja, de 6 de junho de 1990 (Enchente..., 1990). Notícias e imagens de teor semelhante tornam-se recorrentes e cobram do poder público maior eficiência não apenas após as enchentes, mas na elaboração de políticas de controle e prevenção, tema desenvolvido posteriormente.

Figura 1
Manchete de capa do jornal Folha de São Borja, de 6 de junho de 1990

É importante lembrar que esse fato é recorrente e comum em outras regiões do Brasil em diferentes momentos históricos.

Em 1926, o renomado engenheiro sanitarista Saturnino de Brito lembrava, em sua obra Melhoramentos do Rio Tietê em São Paulo, que as cheias nem sempre eram prejudiciais aos humanos, sendo bastante conhecidos “seus efeitos benéficos para a lavoura, devido à fertilização natural que em certas condições pode ocorrer, como ilustra o famoso caso do Nilo, mas também o da Normandia e outras localidades, inclusive no Brasil, com destaque para Amazonas e Mato Grosso”. Para que as inundações fossem tidas como nocivas, era preciso “que o homem [insistisse] em querer ocupar as várzeas inundáveis, ou que as enchentes diluvianas [invadissem] localidades habitadas e nunca dantes inundadas” (Brito, 1926 apud Santos et al., 2014SANTOS, Fábio Alexandre et al. A enchente de 1929 na cidade de São Paulo: memória, história e novas abordagens de pesquisa. Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, n. 8, p. 149-166, 2014., p. 150).

As relações entre as novas dinâmicas urbanas, diretamente ligadas às questões econômicas, estão intrinsecamente articuladas e refletem-se no fenômeno das inundações, cada vez mais cotidianas. Outro ponto ligado a esse é o tema da salubridade. As inundações passaram a ser também um problema de saúde pública e não apenas de urbanização. As obras públicas, especialmente nos anos 1960 e 1970, tornaram-se necessárias para minimizar e controlar epidemias já percebidas como decorrentes desses eventos.

Se hoje os jornais são os divulgadores de tais eventos, em outros momentos da história eles foram registrados por viajantes e naturalistas estrangeiros ou brasileiros que percorreram as mais variadas regiões do país. No século XIX e início do século XX, eram classificadas como cheias, e não inundações ou enchentes, como em períodos recentes. No Rio Grande do Sul e no rio Uruguai, em especial, Auguste de Saint-Hilaire registrou sua experiência, que destacava as cheias como normais e esperadas em certas épocas do ano, especialmente no inverno. O naturalista francês fez esse trajeto nos anos 1820 e apontava as dificuldades de navegação no rio Uruguai, com suas ilhas e pequenas quedas-d’água. Já nos períodos de cheia, a navegação era fácil e percorriam-se grandes extensões. É importante destacar que estas cheias sazonais e esperadas não eram designadas por “enchentes”, palavra com conotação de evento desastroso ou mesmo catastrófico.

[...] recifes que, a pouca distância do lugar onde está construída, embaraçam o leito do rio e não deixam passar as canoas, senão ao tempo das enchentes. Até o momento, não se realizou obra alguma para facilitar o descarregamento de mercadorias; apenas abriram uma picada no meio das árvores que margeiam o Jacuí e parece que não cuidaram do caminho que liga este rio à cidade (Saint-Hilaire, 2002 apud Costa, 2013COSTA, Marcus Vinicius. Nação, contrabando e alianças políticas na fronteira oeste do Rio Grande do Sul na segunda metade do século XIX: relações transfronteiriças entre as comunidades de São Francisco de Borja e Santo Tomé. Florianópolis: UFSC, 2013., p. 123).

Do ponto de vista econômico, especialmente na primeira metade do século XX, a exploração da natureza local dá-se pela seleção dos recursos dos biomas que compõem a região. Neste estudo, a região engloba os domínios dos biomas Mata Atlântica e Pampa; o primeiro, que pode ser definido pela presença predominante de vegetação florestal, estende-se por cerca de 37% do território gaúcho, ocupando a metade norte do estado; o segundo é a porção sul do estado gaúcho, formado por campos e pastagens com vegetação arbustiva típica do bioma Pampa, que cobre 63% da área do Rio Grande do Sul.

A ocupação desse território também tem elementos importantes nas diferentes formas de exploração da natureza local.

Em 1920, o processo de ocupação das terras do Rio Grande do Sul estava consolidado […], as condições históricas de ocupação geraram duas regiões diferenciadas quanto ao uso do solo, estrutura fundiária e divisão político-administrativa. A região norte, ocupada por colonos (principalmente imigrantes), caracteriza-se por pequenos municípios e pela pequena propriedade onde se desenvolveu a agricultura familiar. Por outro lado, a região sul, que é composta de grandes municípios, grandes propriedades, pelo desenvolvimento da pecuária como principal atividade e dos produtos derivados dela (Righi e Robaina, 2010RIGHI, Eléia; ROBAINA, Luis Eduardo de Souza. Enchentes do rio Uruguai no Rio Grande do Sul entre 1980 e 2005: uma análise geográfica. Sociedade & Natureza, Uberlândia, v. 22, n. 1, p. 35-54, abr. 2010., p. 39).

Nas áreas de Mata Atlântica, a madeira tornou-se um grande e valioso produto de exportação nas primeiras décadas do século XX, especialmente nas áreas fronteiriças com Santa Catarina. Ela geralmente era comprada em pé, em propriedades de colonos. A compra era feita por um responsável conhecido como patrão, que fazia a escolha das árvores que eram de seu interesse em uma determinada propriedade rural; depois de especificar quantidades e custos, os peões, que eram homens contratados para a derrubada e o transporte, acampavam durante dias em meio à floresta para promover a derrubada das árvores com machados e serras manuais (Cabral e Cesco, 2008CABRAL, Diogo Carvalho; CESCO, Susana. Notas para uma história da exploração madeireira na Mata Atlântica do Sul-Sudeste. Ambiente & Sociedade, Campinas, v. 11, n. 1, p. 33-48, jan./jun. 2008., p. 44).

A madeira era transportada pelo rio Uruguai na forma de balsas em que as toras eram amarradas com cipós e formavam grandes estruturas, que chegavam a 80 ou 100 metros.

Essas balsas ficavam montadas nas margens do rio até a época das chuvas que provocavam as conhecidas enchentes do rio Uruguai. Essas enchentes representavam um aumento de até seis metros no nível das águas, ficando, assim, em “ponto de balsa” - expressão usada pelos balseiros para designar o momento ideal para o início da viagem (Cabral e Cesco, 2008CABRAL, Diogo Carvalho; CESCO, Susana. Notas para uma história da exploração madeireira na Mata Atlântica do Sul-Sudeste. Ambiente & Sociedade, Campinas, v. 11, n. 1, p. 33-48, jan./jun. 2008., p. 44).

Esses dados coletados de entrevistas no ano de 2002 (Cabral e Cesco, 2008CABRAL, Diogo Carvalho; CESCO, Susana. Notas para uma história da exploração madeireira na Mata Atlântica do Sul-Sudeste. Ambiente & Sociedade, Campinas, v. 11, n. 1, p. 33-48, jan./jun. 2008.) com antigos balseiros do rio Uruguai, indicam um ponto fundamental para este estudo, qual seja, a previsibilidade da ocorrência e dimensão das cheias do rio Uruguai, que eram de conhecimento tanto dos balseiros quanto dos ribeirinhos e grupos indígenas da região. Estas cheias aproximavam-se, normalmente, dos 6 metros até meados do século XX. Eventos diferentes eram, sim, considerados desastres. Isso é um indicativo de que o crescimento populacional, especialmente urbano, trata-se de um elemento essencial do impacto das inundações, que não se configuram como acontecimentos exclusivamente naturais ou exclusivamente sociais; “a interpretação histórica desse evento demanda o respeito por sua polissemia” (Santos et al., 2014SANTOS, Fábio Alexandre et al. A enchente de 1929 na cidade de São Paulo: memória, história e novas abordagens de pesquisa. Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, n. 8, p. 149-166, 2014., p. 163).

Nas últimas décadas tem havido um incremento na frequência e na intensidade dos desastres naturais em todo o globo. De acordo com os dados do EM-DAT, [...] este aumento foi mais significativo a partir da década de 50, agravando-se na década de 80. [...] com base nos dados da ONU, também observou-se um aumento significativo da população total mundial [no final do século XX]. Assim, pode-se, preliminarmente, chegar a afirmações categóricas sobre a relação direta entre o aumento da população e o incremento das ocorrências de desastres, omitindo outros fatores tão importantes quanto esse (Marcelino, Nunes e Kobiyama, 2006MARCELINO, Emerson Vieira; NUNES, Lucí Hidalgo; KOBIYAMA, Masato. Banco de dados de desastres naturais: análise de dados globais e regionais. Caminhos de Geografia, Uberlândia, v. 6, n. 19, p. 130-149, out. 2006., p. 133).

Em décadas mais recentes, concomitantemente à construção de barragens ao longo do curso do rio Uruguai, esse cenário alterou-se sensivelmente e pode ser comprovado em números. O quadro 1, elaborado por Righi e Robaina (2010RIGHI, Eléia; ROBAINA, Luis Eduardo de Souza. Enchentes do rio Uruguai no Rio Grande do Sul entre 1980 e 2005: uma análise geográfica. Sociedade & Natureza, Uberlândia, v. 22, n. 1, p. 35-54, abr. 2010.), destaca os anos, os meses e os dias de ocorrência de enchentes na bacia hidrográfica do rio Uruguai entre 1980 e 2005. Esses autores destacam que “muitas situações de emergência e calamidade pública foram registradas, destacando os anos de 1983, 1984, 1989, 1990, 1993, 1997 e 1998” (ibidem, p. 47); em todos esses períodos, São Borja foi atingido.

O aspecto que deve ser salientado é a recorrência dos eventos; em alguns fenômenos, como as inundações, existe um padrão de frequência, o que possibilita identificar períodos preferenciais de ocorrência. As séries históricas fornecem importantes elementos para análise, como, por exemplo, relacionar as ocorrências com fenômenos globais, tais como El Niño ou La Niña. A existência de dados referentes a esses desastres constitui-se como uma das maneiras de se conhecer a gênese e o desenvolvimento desses fenômenos para, assim, estabelecer medidas preventivas de redução dos danos (Saito et al, 2009, p. 2333).

As inundações em São Borja aparecem como calamidades em muitos anos nas últimas quatro décadas, sendo 32 ocorrências com estragos registradas no município entre 1980 e 2005. Os estudos mais recentes apontam o El Niño como elemento comum na maior parte dos períodos anteriormente citados, com destaque para a inundação de 1983.

Neste ano o evento El Niño foi considerado com intensidade forte, ocorrendo grandes excessos de precipitação pluvial em todo o estado, mas a região noroeste foi a mais atingida, com excedentes pluviométricos iguais ou maiores do que 300 mm, em algumas áreas, ocasionando grandes enchentes, especialmente no médio e baixo vale do rio Uruguai (Righi e Robaina, 2010RIGHI, Eléia; ROBAINA, Luis Eduardo de Souza. Enchentes do rio Uruguai no Rio Grande do Sul entre 1980 e 2005: uma análise geográfica. Sociedade & Natureza, Uberlândia, v. 22, n. 1, p. 35-54, abr. 2010., p. 49).

O quadro 1 apresenta uma relação entre os anos e os meses de ocorrência de inundações que atingiram áreas ribeirinhas do município de São Borja - além de outros municípios no curso do rio - e provocaram perdas materiais. Também se registra o número de dias em que as águas permaneceram com seu nível elevado, acima do normal e fora da calha do rio.

Quadro 1
Inundações do rio Uruguai (1980 a 2005)

O que fica dessas análises e experiências é que o tratamento dado às cheias mudou porque a relação econômica com o rio também foi alterada. A diminuição do número de pescadores que dependiam economicamente do rio, o fim de sua função de via navegável em longos cursos e de escoamento de mercadorias são algumas das mudanças socioeconômicas registradas. Consequentemente, os registros também mudaram. As cheias que eram retratadas em textos e fotografias associadas ao transporte de pessoas e mercadorias, como rotas comerciais, passam a retratar desastres.

Outra mudança fundamental deu-se no poder público em geral e na legislação concernente ao tema. Se a delimitação de áreas protegidas nas margens de rios navegáveis já era realidade no século XIX, isso era justamente para que esses cursos d’água, vias de transporte de mercadorias, não fossem impedidos ou obstruídos por construções ou mesmo assoreamento. Atualmente, o controle da ocupação de áreas ribeirinhas - e esse também é o caso de São Borja - ocorre com o objetivo de prevenir e mitigar o impacto das inundações recorrentes, além de outras funções de cunho ambiental.

Comunidades e águas

Narrativas sobre enchentes nas mais variadas regiões do Brasil têm em comum o sentimento de despojo, perda. Para Silva (2014SILVA, Kamillo Karol Ribeiro. “Não tem jeito, o jeito que tem é sair” - as enchentes do rio Jaguaribe na cidade de Jaguaruana (CE) nos anos de 1960, 1974 e 1985. Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, n. 8, 167-181, 2014.), em texto sobre as enchentes do rio Jaguaribe nas décadas de 1960, 1970 e 1980:

as narrativas sobre os momentos de uma enchente seguem sempre um denotado fio condutor […]. Os sujeitos desta pesquisa, afirmam que o momento mais difícil é o de sair de casa. É o tempo da resistência. É comum ouvir dos narradores o desejo de permanecer em suas casas e suas estratégias de permanência, até chegar o tempo do sofrimento, quando o risco de perder a vida alerta que já não é mais possível resistir (Silva, 2014SILVA, Kamillo Karol Ribeiro. “Não tem jeito, o jeito que tem é sair” - as enchentes do rio Jaguaribe na cidade de Jaguaruana (CE) nos anos de 1960, 1974 e 1985. Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, n. 8, 167-181, 2014., p. 168).

Os moradores ribeirinhos foram, historicamente, os mais atingidos pelos eventos objeto de análise. Pescadores, artesãos e comerciantes que vivem nas áreas que margeiam o rio já tiveram suas casas e seus estabelecimentos comerciais muitas vezes tomados pelas águas barrentas do rio e restaram forçados a recorrer a amigos, familiares e, fundamentalmente, ao Estado. O poder público passou a intervir mais na contenção e na prevenção dessas ocorrências, concomitantemente ao aumento das inundações em número e altura das águas.

Inicialmente, é preciso destacar que existem variáveis importantes no que diz respeito às inundações e seus efeitos. Os vários momentos que antecedem o evento, o evento em si e o que ocorre posteriormente a ele, acionam ou deveriam acionar distintos setores, quer do poder público, quer da sociedade civil. As dificuldades da saída de casa, o ritmo da subida das águas, as doenças, os lugares de abrigo e, por fim, as ações governamentais em forma de políticas públicas ou legislação, demonstram a variedade de frentes de análise, sendo aqui privilegiados os relatos históricos e aspectos da Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (PNPDEC).

Para Sedrez e Maia (2014SEDREZ, Lise; MAIA, Andrea Casa Nova. Enchentes que destroem, enchentes que constroem: natureza e memória da Cidade de Deus nas chuvas de 1966 e 1967. Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, n. 8, p. 183-199, 2014.),

as enchentes, ao deslocarem populações, forçarem a adoção de certas políticas públicas, redesenharem a agenda urbana, os temas de debate em jornais, dão forma à paisagem urbana construindo uma natureza urbana, e assim questionam a separação tradicional de mundo natural e mundo humano (Sedrez e Maia, 2014SEDREZ, Lise; MAIA, Andrea Casa Nova. Enchentes que destroem, enchentes que constroem: natureza e memória da Cidade de Deus nas chuvas de 1966 e 1967. Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, n. 8, p. 183-199, 2014., p. 185).

Ainda na década de 1980, sem o planejamento adequado para a retirada da população de áreas de risco e sua instalação em locais adequados, imagens como a seguinte, publicada no jornal Folha de São Borja em 13 de julho de 1983, eram recorrentes.

Figura 2
Família desabrigada pela enchente do rio Uruguai

As notícias recentes sobre as enchentes em São Borja indicam esse papel do poder público. A atuação do Estado alcança todos os níveis; em jornais locais, como a Folha de São Borja, em reportagem de 27 de julho de 2015, é relatado que “os desabrigados irão receber ajuda humanitária por parte do estado. Serão distribuídos kits de cesta básica, kits de higiene pessoal, kits de limpeza, kits dormitórios e colchões” (Em São Borja..., 2015). Essa mudança na relação dos moradores locais com o rio Uruguai e suas cheias/enchentes ainda será objeto de análises mais abrangentes, porém, é importante destacar que a mudança também passa pelo campo semântico: cheias como sinônimo de um fenômeno natural positivo para a região banhada pelo rio e enchentes ou inundações como sinônimo de desastre e calamidade pública.

No mesmo caminho, é imprescindível examinar de que forma o Estado visualiza e reage a tais mudanças. Não foi somente a percepção dos atingidos que sofreu alteração; o poder público também passa a enfrentar os mencionados eventos em outra perspectiva, como se verá nas linhas a seguir.

Direito dos Desastres: formação e perspectivas

Los impactos de los recientes fenómenos extremos conexos al clima, como olas de calor, sequías, inundaciones, ciclones e incendios forestales, ponen de relieve una importante vulnerabilidad y exposición de algunos ecosistemas y muchos sistemas humanos a la actual variabilidad climática (nivel de confianza muy alto). Entre los impactos de esos fenómenos extremos conexos al clima figuran la alteración de ecosistemas, la desorganización de la producción de alimentos y el suministro de agua, daños a la infraestructura y los asentamientos, morbilidad y mortalidad, y consecuencias para la salud mental y el bienestar humano. Para los países, independientemente de su nivel de desarrollo, esos impactos están en consonancia con una importante falta de preparación para la actual variabilidad climática en algunos sectores (IPCC, 2015, p. 6, grifos nossos).

As conclusões do Grupo Intergovernamental de Especialistas sobre Mudança Climática do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, do inglês Intergovernmental Panel on Climate Change), exposto no documento Cambio Climatico 2014 - Impactos, Adaptación y Vulnerabilidad, corroboram os dados elencados neste artigo. O incremento das inundações, nas últimas décadas, é inegável, assim como sua relação com as alterações experimentadas pelo clima em termos mundiais. Assim como aumentaram a frequência da ocorrência e a amplitude de tais eventos, a percepção das popularmente chamadas “cheias”, antes vistas como canais para o desenvolvimento, foi alterada, passando a carregar conotação negativa tanto sob o ponto de vista dos atingidos quanto do Estado.

Tendo presentes tais mudanças, o ordenamento jurídico, no cumprimento de sua missão de tutelar dinâmicas sociais, volta seu olhar para a temática dos desastres “naturais”, de modo a fornecer respostas (ou tentativas) à problemática, a qual se intensifica a partir da década de 1970, como destaca Délton Winter de Carvalho, ancorado em informações do Atlas Brasileiro de Desastres Naturais 1991 a 2010:

o histórico longínquo de desastres naturais no Brasil limitava-se às secas que ocorrem principalmente no Nordeste. Recentemente, este cenário apresentou profunda alteração com a intensificação das ocorrências, primordialmente, de inundações e deslizamentos de terra. Em números, o cenário de danos humanos é revelador, sendo que, entre 1991 a 2010, de um total de 96.220.879 (noventa e seis milhões, duzentos e vinte mil e oitocentos e setenta e nove) pessoas afetadas, a estiagem e a seca são o desastre que mais afeta a população no país, sendo a mais recorrente (50,34%). Contudo, são as inundações bruscas, com 29,56% das vítimas, que causam maior número de mortes (43,19%) (Carvalho, 2013CARVALHO, Délton Winter. As mudanças climáticas e a formação do Direito dos Desastres. Revista Novos Estudos Jurídicos, v. 18, n. 3, p. 397-415, set./dez. 2013., p. 404).

Se tomada como fonte a Base de Dados de Eventos de Emergência (EM-DAT, do inglês The International Disaster Database), do Centro de Pesquisa sobre a Epidemiologia de Desastres (CRED, do inglês Centre for Research on the Epidemiology of Disasters), nos últimos dez anos (2006-2016), o Brasil registrou 97 desastres, sendo que, deste total, 44 foram classificados como inundações (flood), o que corresponde a 45% dos eventos registrados (CRED, 2016). Tais dados deixam clara a relevância que essa tipologia de desastre possui no cenário brasileiro, bem como a urgência de políticas públicas destinadas ao setor.

Nesse caminho, considerando o perfil socioambiental assumido por eventos como os citados, consolida-se o chamado Direito dos Desastres, fortemente conectado com o Direito Ambiental, sobretudo diante das causas de tais fenômenos, na maioria das vezes ligadas às mudanças climáticas (nas quais a ação antrópica faz-se presente), como explicita Carvalho, principal expoente da doutrina pátria acerca do tema:

isto é especialmente significativo, quando se reflete neste fenômeno climático como um evento cumulativo constituído histórica, lentamente e gradualmente (slow motion disaster). Ainda, os deficit na regulação ambiental potencializam a ocorrência de desastres, tais como ocupação irregular do solo, contaminações em larga escala, desrespeito à proteção de Áreas de Preservação Permanente, ausência de reservas legais, ocupação de áreas em encostas de morros e áreas propensas a inundações. Assim, o futuro do Direito Ambiental num contexto de mudanças climáticas apresenta-se ligado intimamente ao Direito dos Desastres. Em outras tintas, o que na era industrial consistia num dano ambiental, num momento pós-industrial, com todos os fatores cumulativos e incrementos no potencial tecnológico da humanidade, muitas vezes consistirá em um desastre ambiental (Carvalho, 2013CARVALHO, Délton Winter. As mudanças climáticas e a formação do Direito dos Desastres. Revista Novos Estudos Jurídicos, v. 18, n. 3, p. 397-415, set./dez. 2013., p. 402).

Ao traçar tal assertiva, sobressai do texto de Carvalho que os eventos objeto de análise comportam elementos de várias ordens, tais como o ambiental, o social, o político e o histórico, os quais se interligam na atualidade. Com efeito, enfrentar a temática dos desastres ambientais, e, no caso específico deste artigo, das inundações, requer uma compreensão multifacetada, inserta na perspectiva do Estado Socioambiental de Direito; eis que envolve não somente o aspecto ecológico, mas possui impacto social de extrema relevância. Note-se que se está a tratar de danos ao meio ambiente com rebatimentos amplos; há paisagens destruídas - e, com essa ocorrência, histórias de vida alteradas, como relatado na primeira parte deste trabalho -, surgimento de refugiados ambientais (indivíduos que são obrigados a deixar seus lugares de origem em função dos desastres), prejuízos econômicos de grande monta e um saldo de problemas sociais a ser equacionado, envolvendo os direitos à moradia e à saúde, entre outros.

Está-se diante do preço cobrado pela sociedade do risco, tal como concebida por Ulrich Beck (2010BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2010., p. 27-28), cenário de uma modernidade tardia em que os riscos não se apoiam nas mesmas categorias e fundamentos de outrora (espaço e tempo, empresa e Estado nacional, fronteiras etc.). Na atualidade, os riscos ganham roupagem de irreversibilidade (e invisibilidade proposital, por vezes), geram situações sociais de ameaça, representam big business, em um barril sem fundo de necessidades, e não oferecem opção, pois todos são afetados independentemente de sua conduta ou classe econômica e social (efeito bumerangue). Além disso, o que era apolítico torna-se político; “sua prevenção e seu manejo podem acabar envolvendo uma reorganização do poder e da responsabilidade” (ibidem, p. 28). É neste contexto que se inserem os chamados desastres “naturais” e as ações e omissões que os circundam, panorama que não pode ser olvidado quando procedida análise desse tema, inegavelmente afeito à Ciência Política pelas razões ora explicitadas.

Ainda, para compreender a amplitude das discussões operadas em torno das inundações, bem como das políticas públicas adotadas nesta seara - as quais se inserem no campo de estudos do chamado Direito dos Desastres, mas também integram o objeto da Ciência Política -, é imprescindível que se identifique, com maior precisão, o significado do termo desastre, muitas vezes banalizado e utilizado de forma tecnicamente equivocada.

Inicialmente, o emprego da expressão desastre natural deve ser descartado, posto que, na atualidade, dificilmente haverá uma ocorrência assim denominada que seja inteiramente natural; na maioria dos casos, o desastre é acompanhado de uma ação ou omissão humana.

Seja pela má-canalização de um rio, pela construção de um dique de má qualidade ou pela indevida e incorreta expansão populacional, a ingerência humana nas atividades modernas acaba dificultando a distinção do que é natural ou não. Dessa maneira, hoje se tornou extremamente raro um acontecimento com características exclusivamente naturais (ressalvadas algumas situações específicas como o impacto de um meteorito contra a Terra, por exemplo) (Carvalho e Damacena, 2012 CARVALHO, Délton Winter; DAMACENA, Fernanda Dalla Libera. A intensificação dos desastres naturais, as mudanças climáticas e o papel do Direito Ambiental. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 49, n. 193, p. 83-97, jan./mar. 2012., p. 89).

Além disso, a expressão é rejeitada porque, caso não atinja um grupamento humano, o conceito não se configura.4 4 Nesse sentido, a posição de Paula Emília Gomes de Almeida: “essa noção de desastre considera tal ocorrência não como uma consequência causal de uma ameaça (hazard) natural - furações, enxurradas, enchentes, deslizamentos de terra, terremotos etc. - mas como o resultado do choque entre uma ameaça natural e um agrupamento humano vulnerável. Por essa razão, a fim de reforçarmos o rompimento da ideia de que as ameaças naturais causam os desastres, nos referiremos a tais eventos sempre como desastres com desencadeadores naturais, e não como desastres naturais, forma como são corriqueiramente referidos tais acontecimentos” (Almeida, 2015). Se tomarmos como fonte a legislação, o conceito de desastre, conforme o Art. 2°, inciso II, do Decreto Federal nº 7.257/2010, é o seguinte: “resultado de eventos adversos, naturais ou provocados pelo homem sobre um ecossistema vulnerável, causando danos humanos, materiais ou ambientais e consequentes prejuízos econômicos e sociais” (Brasil, 2010). A Instrução Normativa nº 1, de 24 de agosto de 2012, do Ministério da Integração Nacional, por sua vez, acresce outros elementos ao conceito, como se infere de seu Art. 1º, inciso I:

[...] resultado de eventos adversos, naturais ou provocados pelo homem sobre um cenário vulnerável, causando grave perturbação ao funcionamento de uma comunidade ou sociedade envolvendo extensivas perdas e danos humanos, materiais, econômicos ou ambientais, que excede a sua capacidade de lidar com o problema usando meios próprios (Brasil, 2012c).

Nítida, em ambas as definições, é a questão da vulnerabilidade do sistema ou cenário em que ocorreu o desastre, vulnerabilidade esta que, se consideradas as causas dos principais desastres no território brasileiro, pode embasar um novo conceito, formulado por Oliveira e Hora: “concretização dos riscos, provocados pela má política do uso de solo, da má gestão do uso das águas, da deficiência na infraestrutura, do parcelamento urbano e da distribuição de renda, sobre um zoneamento deficiente, resultante da política de expansão desordenada das áreas urbanas” (Oliveira e Hora, 2015).

Como é possível observar, o conceito de desastre, na visão dos autores citados, possui forte conexão com a Ciência Política, já que resta atrelado ao campo de estudo das políticas públicas, uma das vertentes das quais muito se ocupam os politólogos hodiernamente. Também vale ressaltar que, quando se examina temática que envolve desastres, está-se diante de problemática que possui força para agredir o princípio da dignidade da pessoa humana, inscrito como fundamento da República Federativa do Brasil, no Art. 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988. Por tal razão, sua análise merece ser feita à luz do Estado Socioambiental de Direito, o qual pode ser compreendido, em apertada síntese, por meio das palavras de Sarlet e Fensterseifer:

assim como são imprescindíveis determinadas condições materiais para assegurar adequados níveis de bem-estar social (saúde, educação, alimentação, moradia etc.), sem as quais o pleno desenvolvimento da personalidade humana e mesmo a inserção política do indivíduo em determinada comunidade estatal são inviabilizadas, também na seara ecológica há um conjunto mínimo de condições materiais em termos de qualidade ambiental, sem o qual o desenvolvimento da vida humana (e mesmo a integridade física do indivíduo em alguns casos) também se encontra fulminado, em descompasso com o comando constitucional que impõe ao Estado o dever de tutelar a vida (Art. 5º, caput, da CF) e a dignidade humana (Art. 1º, III, CF) contra quaisquer ameaças existenciais (Sarlet e Fensterseifer, 2010SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Estado socioambiental e mínimo existencial (ecológico?): algumas aproximações. In: SARLET, Ingo Wolfgang. (Org.). Estado socioambiental e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010., p. 28).

Em termos legislativos, a preocupação efetiva e operacional do Estado brasileiro com os chamados desastres pode ser tida como recente, mas dotada de vieses de extrema relevância, antes relegados a segundo plano: a prevenção e a precaução. Com efeito, a PNPDEC somente foi instituída em 2012, por meio da Lei nº 12.608/2012, a qual recepcionou diplomas anteriores referentes ao tema (Decreto Federal nº 7.257/2010 e Lei Federal nº 12.340/2010), e reforçou a necessidade de postura preventiva.5 5 Vale o registro de que a implementação da PNPDEC, no Brasil, teve influência de eventos mundiais. Com efeito, a Organização das Nações Unidas (ONU10 declarou 1990 como a Década Internacional para Redução dos Desastres Naturais (DIRDN). Em 2001, a Estratégia Internacional para Redução de Desastres (EIRD) propôs a continuidade e o reforço das ações. Já em 2005, resta instituído o Marco de Ação de Hyogo (2005-2015), o qual estabelece diretrizes e objetivos em redução dos desastres durante o período assinalado. “A abordagem utilizada nessa resolução, como já podia ser observada na EIRD, traz, finalmente, a discussão para a questão do desenvolvimento sustentável, a fim de diminuir os riscos de desastres, bem como sugere maior integração entre governos e população local. O atual Marco de Ação foi instituído em abril do presente ano: o Marco de Ação de Sendai vigorará pelos próximos 15 anos (2015-2030), levando à frente as propostas e os desafios ainda não conquistados pelos marcos anteriores na agenda de desastres (Almeida, 2015). Tal assertiva pode ser verificada logo no Art. 2º, caput, do diploma normativo, que determina ser “dever da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios adotar as medidas necessárias à redução dos riscos de desastre” (Brasil, 2012a) (prevenção), bem como no § 2º do artigo supracitado, o qual estabelece que a “incerteza quanto ao risco de desastre não constituirá óbice para a adoção das medidas preventivas e mitigadoras da situação de risco” (op. cit.) (precaução). É relevante registrar, ainda, que a lei procede a um chamamento à coletividade para o cumprimento da PNPDEC; neste sentido, o teor do Art. 2º, § 1º: “as medidas previstas no caput poderão ser adotadas com a colaboração de entidades públicas ou privadas e da sociedade em geral” (op. cit.).6 6 É importante salientar que a Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil coordena o Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres (Cenad), criado em fevereiro de 2005, e cujo objetivo consiste em gerenciar, com agilidade, ações estratégicas de preparação e resposta a desastres em território nacional e, eventualmente, também no âmbito internacional (Brasil, 2016).

Nesse ponto, cabe destaque novamente para a terminologia empregada nesse momento mais recente, qual seja, “desastre”. Se, inicialmente, ainda no século XIX e início do XX, o termo empregado era “cheia”, o final do século XX tratava esses eventos como “enchentes”, já com uma conotação negativa e, por vezes, catastrófica. Porém, o emprego do termo “desastre” às inundações7 7 De acordo com a Cobrade, inundação significa “submersão de áreas fora dos limites normais de um curso de água em zonas que normalmente não se encontram submersas. O transbordamento ocorre de modo gradual, geralmente ocasionado por chuvas prolongadas em áreas de planície” (Brasil, 2016, p. 2). atuais dá a medida da relação hodierna estabelecida entre as comunidades e os rios ou mesmo riachos que margeiam ou localizam-se no seio dos territórios. A ideia de rios como fontes de vida animal e vegetal, equilíbrio hídrico e ecológico ou locais de comércio ou lazer, ou seja, com destaque para suas características positivas, foi deixada de lado nesses momentos de caos para dar lugar ao rio como problema. Outro extremo na relação das cidades com os rios é a seca retratada recentemente na grave crise de abastecimento na região Sudeste do Brasil, que fez com que a população percebesse novamente a necessidade dos rios.

Nesse sentido, o advento do Direito dos Desastres é um forte indicativo da mudança de sensibilidade do poder público para com esses eventos tão recorrentes na atualidade. Também aponta a nova relação entre rios, população - especialmente comunidades ribeirinhas - e a legislação como amparo em momentos críticos ou perante a sua iminência, embora o suporte legal pareça não estar alcançando efetividade suficiente, como discutido alhures.

Mesmo diante de tal hipótese, é imperioso ressaltar que a PNPDEC reforça a conexão do Direito dos Desastres com o Direito Ambiental, ao destacar os princípios da prevenção e da precaução,8 8 Paulo Affonso Leme Machado é um dos autores que estabelece diferença entre precaução e prevenção, apontando como característica da primeira justamente a incerteza do dano ambiental (Machado, 2005. p. 72), tal como explicitado no Princípio 15 da Declaração do Rio de Janeiro, resultante da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, também conhecida como Eco-92, no qual estabelecido que a precaução deverá ser amplamente observada pelos Estados, de acordo com suas capacidades, bem como que a ausência de certeza científica não pode adiar medidas economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental. É importante consignar que, ao mesmo tempo em que é elogiada, esta previsão é tida como inútil. Pascual (2006, p. 307-308), por exemplo, a entende como precaução em sentido suave, posto que se limita a sublinhar uma obviedade e aí se esgota, não indicando qualquer direção a seguir. Já para Carla Amado Gomes (2007), trata-se bem mais de uma diretiva política; “parece que os Estados estendem um tapete vermelho à precaução na entrada principal do Direito Internacional e depois encaminham-no, subtilmente, para as traseiras...” (ibidem, p. 274). Ver Ceolin (2012). de extremo peso nas questões ambientais. Tal concepção pode ser verificada nos objetivos da mencionada política:

Art. 5º São objetivos da PNPDEC:

  1. I - reduzir os riscos de desastres;

  2. II - prestar socorro e assistência às populações atingidas por desastres;

  3. III - recuperar as áreas afetadas por desastres;

  4. IV - incorporar a redução do risco de desastre e as ações de proteção e defesa civil entre os elementos da gestão territorial e do planejamento das políticas setoriais;

  5. V - promover a continuidade das ações de proteção e defesa civil;

  6. VI - estimular o desenvolvimento de cidades resilientes e os processos sustentáveis de urbanização;

  7. VII - promover a identificação e avaliação das ameaças, suscetibilidades e vulnerabilidades a desastres, de modo a evitar ou reduzir sua ocorrência;

  8. VIII - monitorar os eventos meteorológicos, hidrológicos, geológicos, biológicos, nucleares, químicos e outros potencialmente causadores de desastres;

  9. IX - produzir alertas antecipados sobre a possibilidade de ocorrência de desastres naturais;

  10. X - estimular o ordenamento da ocupação do solo urbano e rural, tendo em vista sua conservação e a proteção da vegetação nativa, dos recursos hídricos e da vida humana;

  11. XI - combater a ocupação de áreas ambientalmente vulneráveis e de risco e promover a realocação da população residente nessas áreas;

  12. XII - estimular iniciativas que resultem na destinação de moradia em local seguro;

  13. XIII - desenvolver consciência nacional acerca dos riscos de desastre;

  14. XIV - orientar as comunidades a adotar comportamentos adequados de prevenção e de resposta em situação de desastre e promover a autoproteção; e

  15. XV - integrar informações em sistema capaz de subsidiar os órgãos do SINPDEC na previsão e no controle dos efeitos negativos de eventos adversos sobre a população, os bens e serviços e o meio ambiente (Brasil, 2012a).

Do teor do artigo transcrito, sobressaem, inegavelmente, os princípios da prevenção e da precaução. Todavia, é notório que a política não atingiu a maior parte dos seus objetivos, considerando que, não obstante os avanços científicos e tecnológicos, o Brasil continua a assistir a desastres sem que ocorram alertas antecipados. De igual sorte, é questionável se medidas de redução de riscos são adotadas na proporção que deveriam e em todos os setores; tome-se como exemplo o recente desastre ocorrido em Mariana, estado de Minas Gerais, no qual barragens da mineradora Samarco romperam, gerando destruição, morte e danos ambientais de grande monta, caso em que se investiga possível negligência da empresa e do poder público.

Vale registrar, ainda, que a PNPDEC não se trata de algo isolado; pelo contrário, conecta-se obrigatoriamente com distintas legislações, tais como as relativas a resíduos sólidos, ordenamento territorial, desenvolvimento urbano, saúde, entre outras.9 9 Nesse sentido, conforme Nilton Carlos de Almeida Coutinho: “[...] tem-se que diversas outras políticas públicas implementadas pelo poder público constituem-se como instrumentos que podem ser utilizados na proteção contra desastres ‘naturais’ hidrológicos. Aliás, é justamente por meio da junção e alinhamento de diferentes ações e políticas públicas que a proteção contra desastres poderá ser realizada de maneira eficaz. E tal junção exige planejamento e gestão adequados” (Coutinho, 2014, p. 593). Não há espaço neste artigo para traçar todas as relações, mas se pode ilustrar, a título exemplificativo, com o chamado Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001), o qual regulamentou os Arts. 182 e 183 da Constituição Federal de 1988,10 10 “Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo poder público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. § 1º O Plano Diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana. § 2º A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no Plano Diretor. [...] Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural [...]” (Brasil, 1988). e restou modificado pela lei da PNPDEC. Com efeito, se tomado o Art. 42-A, constata-se que o Plano Diretor dos municípios incluídos no Cadastro Nacional de Municípios com áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos correlatos deve conter conteúdos adicionais, tais como o planejamento de ações de intervenção preventiva e realocação de população de áreas de risco de desastre (inciso III, incluído pela Lei nº 12.608/2012). Neste particular, é inevitável a conexão com o direito à moradia, como adverte Coutinho:

segundo o entendimento de Sachs, o direito à moradia decente constitui-se como uma necessidade básica da população e, ao mesmo tempo, um enorme desafio para o chamado desenvolvimento includente. Lazari, por sua vez, fala sobre a existência de um “direito de não perder um lar”, acrescentando (com base no princípio do mínimo existencial) o direito de que este lar seja servido por prestações estatais de absoluta necessidade (Coutinho, 2014COUTINHO, Nilton Carlos de Almeida. Direitos sociais e políticas públicas ambientais e urbanísticas: o direito de proteção contra desastres. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, n. 65, p. 583-602, jul./dez. 2014., p. 589).

Não é esse o estado da arte da política em tela. O que se observa caminha bem mais para a falta de efetividade dos deveres impostos legalmente, ruindo as prescrições legais da mesma forma que vão abaixo lares e paisagens Brasil afora, sem que haja uma prevenção ou reparação efetiva. Com efeito, uma aproximação do cotidiano de (tentativa de) implementação da PNPDEC revela carência em termos técnicos, financeiros, de planejamento e operacionais, o que dificulta ou até mesmo obstaculiza a concretização de políticas públicas efetivas. Há falhas na prevenção e na precaução, na agilidade que as situações requerem e que o Estado não consegue prestar, bem como na estrutura dos órgãos que atuam diretamente nas ocorrências. Neste sentido, conforme as colocações de Oliveira e Hora:

políticas enganosas concedem infraestrutura para locais ocupados por assentamentos precários, valorizando a localidade e criando condições para o aumento das construções, uma vez que a fiscalização não atua por falta de competência, ou por corrupção ou desânimo, e inúmeras vezes porque é impedida pela ação de políticos cujos interesses não são claros. O déficit de fiscalização da ocupação das áreas de risco gera áreas vulneráveis a quaisquer condições climáticas, mesmos as de menores intensidades.

[...]

Além disso, há que se considerar a lentidão na análise dos processos administrativos, seja por falta de funcionários ou pela burocracia gerada pelos órgãos. Mesmos os projetos emergenciais demoram muito para serem analisados, processados, contratados e executados.

[...]

Para as cidades que sofrem periodicamente com desastres, a sua recuperação está vinculada à ajuda do governo federal, e, por conta disso, muitas vezes acabam deixando de se desenvolver, gerando um ciclo de vulnerabilidade e subdesenvolvimento.

Neste contexto, há que se considerar também a fragilidade dos órgãos municipais de defesa civil, que além de contar com estruturas precárias, possuem funcionários que muitas vezes trabalham, cumulativamente, em outras funções (Oliveira e Hora, 2015OLIVEIRA, Joelson; HORA, Mônica de Aquino Galeano Massera. A política brasileira do desastre. Âmbito Jurídico, Rio Grande, v. 18, n. 137, jun. 2015. Disponível em: <Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=16092 >. Acesso em: 18 jan. 2017.
http://www.ambito-juridico.com.br/site/?...
).

Além da consideração das variáveis anteriormente descritas, há necessidade de uma visão que considere as obrigatórias ligações entre planejamento urbano, destinação de resíduos, questões ambientais e sanitárias com a temática dos desastres, mas que também tenha presente que tais políticas públicas somente poderão ter êxito com a participação da coletividade, como adverte Fagner Vilas Boas Souza:

[...] o ideal é a existência de grupos de trabalho junto à população, formados por membros da população envolvida diretamente e por técnicos e profissionais, em espaços públicos ou privados, a fim de promover, em caráter permanente, cursos de formação e palestras, com o objetivo de não apenas informar diretamente a população, mas também criar uma verdadeira cultura de prevenção de enchentes. Aliás, trata-se de medida essencial para as cidades que querem ser tidas como resilientes, isto é, com capacidade de resistir, absorver e se recuperar de forma eficiente dos efeitos de um desastre e de maneira organizada prevenir que vidas e bens sejam perdidos (direito fundamental) (Souza, 2014SOUZA, Fagner Vilas Boas. Administração Pública x enchentes: a postura do procurador do estado ante os novos instrumentos urbanísticos introduzidos pela Lei Federal nº 12.608/12. Tese submetida ao XL Congresso Nacional dos Procuradores dos Estados e do DF. João Pessoa: Anape, 2014. Disponível em: <Disponível em: http://www.apesp.org.br/comunicados/images/fagnervilasboassouza_tese_17092014.pdf >. Acesso em: 8 nov. 2015.
http://www.apesp.org.br/comunicados/imag...
).

A questão, portanto, também é de caráter cultural, o que se conecta fortemente com os dados expostos na primeira parte deste trabalho, os quais dão conta de uma comunidade - em especial, os ribeirinhos - que visualizava as “cheias” de modo positivo, e hoje sofre com as inundações, que trazem prejuízos socioambientais incalculáveis.

Ainda, é preciso ter presente que o gerenciamento de riscos requer o envolvimento de atores variados, exigindo uma mudança de postura que coloque a coletividade (e não somente o Estado) como responsável por atividades tanto de prevenção quanto de reparação, desiderato que exige ajustes entre economia e política:

a elaboração de uma política de gerenciamento de desastres requer a união de esforços de diversos subsistemas existentes na sociedade. Do contrário, nasce fadada ao fracasso. Nesse aspecto, economia e política precisam convergir de maneira ativa e fazer parte de um mesmo projeto. Uma das formas de tornar essa necessidade uma realidade é o cultivo das relações com empreendedores, que pode maximizar as parcerias em políticas ambientais (Carvalho e Damacena, 2012 CARVALHO, Délton Winter; DAMACENA, Fernanda Dalla Libera. A intensificação dos desastres naturais, as mudanças climáticas e o papel do Direito Ambiental. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 49, n. 193, p. 83-97, jan./mar. 2012., p. 91).

Há que se considerar, ao lado disso, que a ocorrência de desastres pode ensejar a responsabilização tanto de particulares quanto do poder público, uma vez existente liame entre a ação ou omissão cometida e o dano gerado, sem necessidade de perquirir a ocorrência de culpa (responsabilidade objetiva),11 11 “[...] o fato de o Estado não garantir uma moradia simples e segura àquelas pessoas que não podem provê-la por escassez de recursos próprios, ocupando geralmente áreas de preservação permanente ou outras áreas de risco ambiental, faz com que o ente estatal concorra, com a sua omissão, na responsabilidade pelos danos causados a tais pessoas em um episódio climático extremo decorrente das mudanças climáticas que tenha ocasionado o deslizamento de terra e enchentes no local das suas moradias” (Fensterseifer, [s.d.]). o que constitui outro fator para que a temática seja enfrentada de modo comprometido.

Diante dessas ponderações, passa-se a questionar de que forma o município de São Borja age perante tais desastres, tendo como parâmetro a PNPDEC.

O enfrentamento das inundações no município de São Borja (RS)

O Direito, seja como prática nuclear (judiciária jurisprudencial) ou periférica (legislação), deve normatizar um processo de estabilização dinâmica dos desastres. Neste sentido, as melhores práticas (better practices) consistem em aplicações locais de formas de enfrentamento dos desastres, enfatizando o conhecimento cultural, geografia, ambiente e ciência local. Uma das principais características das melhores práticas consiste em sua variabilidade de acordo com o caso em concreto (flexibilidade orientada), levando em consideração os fatores de uma determinada comunidade, seus riscos e eventos (Carvalho, 2013CARVALHO, Délton Winter. As mudanças climáticas e a formação do Direito dos Desastres. Revista Novos Estudos Jurídicos, v. 18, n. 3, p. 397-415, set./dez. 2013., p. 407).

A afirmação de Carvalho (2013CARVALHO, Délton Winter. As mudanças climáticas e a formação do Direito dos Desastres. Revista Novos Estudos Jurídicos, v. 18, n. 3, p. 397-415, set./dez. 2013.) confere especial relevância às aplicações locais que considerem aspectos culturais, geográficos, ambientais e científicos. É nessa perspectiva que se examina se, no município de São Borja, as práticas adotadas voltam seu olhar para a situação concreta da comunidade, no intuito de atender às atribuições que lhe são impostas pela Lei nº 12.608/2012 (Art. 8º), a saber:

  1. I - executar a PNPDEC em âmbito local;

  2. II - coordenar as ações do SINPDEC no âmbito local, em articulação com a União e os Estados;

  3. III - incorporar as ações de proteção e defesa civil no planejamento municipal;

  4. IV - identificar e mapear as áreas de risco de desastres;

  5. V - promover a fiscalização das áreas de risco de desastre e vedar novas ocupações nessas áreas;

  6. VI - declarar situação de emergência e estado de calamidade pública;

  7. VII - vistoriar edificações e áreas de risco e promover, quando for o caso, a intervenção preventiva e a evacuação da população das áreas de alto risco ou das edificações vulneráveis;

  8. VIII - organizar e administrar abrigos provisórios para assistência à população em situação de desastre, em condições adequadas de higiene e segurança;

  9. IX - manter a população informada sobre áreas de risco e ocorrência de eventos extremos, bem como sobre protocolos de prevenção e alerta e sobre as ações emergenciais em circunstâncias de desastres;

  10. X - mobilizar e capacitar os radioamadores para atuação na ocorrência de desastre;

  11. XI - realizar regularmente exercícios simulados, conforme Plano de Contingência de Proteção e Defesa Civil;

  12. XII - promover a coleta, a distribuição e o controle de suprimentos em situações de desastre;

  13. XIII - proceder à avaliação de danos e prejuízos das áreas atingidas por desastres;

  14. XIV - manter a União e o estado informados sobre a ocorrência de desastres e as atividades de proteção civil no município;

  15. XV - estimular a participação de entidades privadas, associações de voluntários, clubes de serviços, organizações não governamentais e associações de classe e comunitárias nas ações do SINPDEC e promover o treinamento de associações de voluntários para atuação conjunta com as comunidades apoiadas; e

  16. XVI - prover solução de moradia temporária às famílias atingidas por desastres (Brasil, 2012a).

Conforme o então coordenador municipal da Defesa Civil em São Borja, Élcio dos Santos Carvalho, o órgão ainda se encontra em fase de implantação no município, contando, por ocasião da realização da pesquisa (2015), somente com o próprio responsável pela coordenação e uma funcionária. Quando questionado sobre as medidas adotadas tendo em vista o gerenciamento de riscos e de desastres, as quais devem ser direcionadas a ações de prevenção, mitigação, preparação, resposta e recuperação e demais políticas setoriais, com o propósito de garantir a promoção do desenvolvimento sustentável, o coordenador mencionou alertas e monitoramento quando da ocorrência de inundações (ou iminência de):

[...] o que possuímos são alertas emitidos pela Rede de Defesa Civil (formal e informal), bem como a observação constante através do site da Prefectura Naval Argentina de como está o nível do rio. As inundações em São Borja, com raras exceções, são precedidas de inundações em cidade a montante do rio, o que nos permite alertar a população e projetar a altura que o rio vai atingir e a quantidade de residências afetadas (Carvalho, 2015CARVALHO, Élcio dos Santos. Coordenador municipal da Defesa Civil em São Borja aborda medidas adotadas frente a inundações. [S.l.]: [s.n.], 2015. Arquivo pessoal.).

A afirmação vai ao encontro do que restou apurado por Almeida em relação à realidade nacional, tendo por base dados da Pesquisa de Informações Básicas Municipais (Munic) de 2013 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE):

dos 5.570 municípios brasileiros, 1.840 (33%) possuem algum tipo de instrumento de gerenciamento de risco de desastres desencadeados por enchentes ou enxurradas, sendo o mapeamento de áreas de risco a medida com maior inserção, presente em 19% dos municípios. Entretanto, quando confrontada com a existência de mecanismos de controle e fiscalização da ocupação dessas áreas de risco, a porcentagem cai para 11% de municípios, mostrando que, mesmo com mapeamento das áreas de risco, nem todos esses municípios conseguem prevenir a ocupação de tais áreas. Além disso, apenas 14% possuem Planos de Contingência, enquanto 4% apresentam sistema de alerta antecipado de desastres - medidas estas que garantem o salvamento de inúmeras vidas na ocorrência de tais eventos (Almeida, 2015ALMEIDA, Paula Emília Gomes. A Política Nacional de Proteção e Defesa Civil: os desastres como problema político. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE CIÊNCIA POLÍTICA, 1., 2015, Porto Alegre. Anais... Porto Alegre: UFRGS, 2015. Disponível em: <Disponível em: https://www.ufrgs.br/sicp/wp-content/uploads/2015/09/ALMEIDA-Paula-Em%C3%ADlia-G.-A-Pol%C3%ADtica-Nacional-de-Prote%C3%A7%C3%A3o-e-Defesa-Civil-desastres-como-um-problema-pol%C3%ADtico.pdf >. Acesso em: 10 dez. 2016.
https://www.ufrgs.br/sicp/wp-content/upl...
).

O coordenador também foi questionado acerca do cumprimento do Art. 8º da Lei nº 12.608/2012, que prevê como competência dos municípios, entre outras, a de “identificar e mapear as áreas de risco de desastres” e “promover a fiscalização das áreas de risco de desastre e vedar novas ocupações nessas áreas” (Brasil, 2012a). Quanto ao ponto, afirma que “nós temos as áreas que são atingidas, quanto à fiscalização das áreas está tudo previsto no Plano Diretor da cidade e vedada a construção de novas ocupações, mas o problema são as construções consolidadas” (Carvalho, 2015CARVALHO, Élcio dos Santos. Coordenador municipal da Defesa Civil em São Borja aborda medidas adotadas frente a inundações. [S.l.]: [s.n.], 2015. Arquivo pessoal.).

O Plano Diretor do Município de São Borja consta na Lei Complementar nº 8, de 1° de agosto de 1997. Segundo o então assessor de Relações Institucionais da Prefeitura Municipal, Alex Pinto, um novo plano já foi elaborado, mas ainda não obteve aprovação na Câmara de Vereadores, pois há pontos sobre os quais pairam discussões.

O fato é que, conforme o plano em vigor, a questão das Áreas de Preservação Permanente (APPs) não se encontra atualizada e clara, salvo melhor juízo. A Lei Complementar n° 8/1997 prevê, em seu Art. 25, que nas “Áreas de Preservação Ambiental (APAs) deverão ser preservadas a flora e a fauna existentes, devendo ser aprovado pelo órgão técnico do município, previamente, qualquer pedido de construção” (São Borja, 1997). Todavia, este mesmo artigo trata de APPs, as quais não possuem o mesmo significado de APAs, se considerados os conceitos constantes na legislação federal.

Com efeito, APA, de acordo com o Art. 14 da Lei nº 9.985/2000, trata-se de uma categoria de unidade de conservação, conceituada como:

uma área em geral extensa, com um certo grau de ocupação humana, dotada de atributos abióticos, bióticos, estéticos ou culturais especialmente importantes para a qualidade de vida e o bem-estar das populações humanas, e tem como objetivos básicos proteger a diversidade biológica, disciplinar o processo de ocupação e assegurar a sustentabilidade do uso dos recursos naturais (Brasil, 2000, Art. 15).

Já APP, conforme a Lei nº 12.651/2012 (Código Florestal), significa “área protegida, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas” (Brasil, 2012b, Art. 3°, inciso II).

O Código Florestal também estabelece, em seu Art. 4°, que se considera APP, em zonas rurais ou urbanas, para os efeitos desta lei: “I - as faixas marginais de qualquer curso d’água natural perene e intermitente, excluídos os efêmeros, desde a borda da calha do leito regular, em largura mínima de: [...] e) 500 (quinhentos) metros, para os cursos d’água que tenham largura superior a 600 (seiscentos) metros” (Brasil, 2012b, grifos nossos) - como é o caso do rio Uruguai. No Plano Diretor de São Borja, por sua vez, consta, no Art. 25, § 8º, que, “ao longo do rio Uruguai, na área situada abaixo da cota máxima de enchente (65), não sendo permitidas edificações, excetuando as construções especiais de interesse público, ouvido o Conselho do Plano Diretor e as referentes ao § 2º deste artigo” (São Borja, 1997, grifos nossos). Parece-nos que há uma incoerência entre a legislação federal e a municipal, e que seria salutar esclarecer tais pontos na nova normativa que se encontra em fase de elaboração, de modo a proteger, de maneira mais precisa, as áreas que margeiam o mencionado rio. Como já frisado, o município trabalha para adequar seu Plano Diretor às exigências atuais, as quais passaram a integrar o ordenamento jurídico pátrio após 1997, data de aprovação da Lei Complementar nº 8/1997, em vigor há quase duas décadas.

Quanto à ocupação em áreas de risco, Carvalho destaca que as vilas Mario Roque Weis e Leonel Brizola foram construídas para abrigar pessoas que saíram dos locais atingidos, mas o que se observou foi o retorno das famílias à zona ribeirinha, não tendo a ação municipal, portanto, atingido seu objetivo. Releva registrar que tais ocorrências são comuns em inúmeros municípios brasileiros, como destaca Carlos Teodoro José Hugueney Irigaray, ao tratar das dificuldades de manutenção de APPs12 12 Conforme o Art. 3º, inciso II, da Lei nº 12.651/2012 (Código Florestal), a APP consiste em “área protegida, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas” (Brasil, 2012b). no perímetro urbano:

[...] a prevalência do entendimento de que os limites fixados pela norma federal aplicam-se aos municípios não tem sido suficiente para salvaguardar essas áreas especialmente “desprotegidas”. Na grande maioria dos municípios a população ocupa as margens dos cursos d’água e encostas, inclusive áreas de elevado risco, com a aquiescência, algumas vezes expressa, do poder público municipal.

Mesmo em municípios onde a Prefeitura atua firmemente para cumprir a lei, nem sempre o consegue, dada a resistência de parte da população que confia na impunidade e prefere trabalhar com a perspectiva favorável dos fatos consumados (Irigaray, 2015IRIGARAY, Carlos Teodoro José Hugueney. Desafios à preservação de APP no perímetro urbano. In: BRAUNER, Maria Cláudia Crespo; LOBATO, Anderson Orestes Cavalcante (Orgs.). Direito e justiça social: a construção jurídica dos direitos de cidadania. Rio Grande: Editora da Furg, 2015., p. 273).

Uma alternativa em estudo no município de São Borja seria o projeto de contenção do rio Uruguai, “algo semelhante às ‘costaneiras’ que observamos na Argentina. No nosso projeto ela começaria na Ponte Internacional e terminaria posterior à Vila Mario Roque Weis, protegendo, desta forma, todo o perímetro urbano” (Carvalho, 2015CARVALHO, Élcio dos Santos. Coordenador municipal da Defesa Civil em São Borja aborda medidas adotadas frente a inundações. [S.l.]: [s.n.], 2015. Arquivo pessoal.).

Nessa senda, ressurge o elemento cultural que circunda as inundações, abordado no princípio do trabalho. Mesmo que a legislação sobre proteção e defesa civil tenha como finalidade resguardar as comunidades, residir na zona ribeirinha integra um modo de vida, uma identidade que, em muitos casos, resiste às ações do poder público. Tem-se ciência de que há situações em que as famílias retornam para as zonas de risco porque não encontram condições dignas de moradia nos locais para os quais são realocadas. Mesmo diante dessa constatação, o aspecto identitário não pode ser desconsiderado, eis que possui força no município de São Borja, no qual o chamado Bairro do Passo, que margeia o rio Uruguai, é o mais populoso.

Porém, embora considerando o aspecto mencionado, as comunidades atingidas necessitam de uma conscientização sobre as mudanças que se operaram, sobretudo nas últimas décadas, de modo a compreender que o alerta acerca de eventos hidrológicos trata-se de um direito que lhes pertence, assim como a assistência quando da ocorrência das inundações.

Sobre o ponto, no município de São Borja, há iniciativas dirigidas a essa finalidade, como a criação do Fundo para Enfrentamento de Catástrofes Naturais, idealizado por Roque Feltrin, hoje vice-prefeito, que conduz tal postulação desde 2010, e a considera “necessária e urgente” (Feltrin, 2015). Em sua visão, o fundo seria uma resposta adequada à carência e demora de repasse de recursos para fazer frente ao atendimento a ser prestado aos atingidos:

em nossa região e município os eventos climáticos, sejam eles derivados de chuvas, ventos, granizo ou outros, estão ocorrendo com uma frequência muito maior nos últimos tempos. A cada evento sempre há uma dificuldade para uma resposta rápida às pessoas atingidas por parte do poder público, esbarrando em vários problemas, como a falta de recursos, materiais, etc.

Com o fundo o atendimento emergencial seria mais rápido e eficaz, pois o município disporia de condições mínimas, enquanto aguarda socorro do estado e da União, para solucionar problemas como disponibilização de lonas, cestas básicas, medicamentos, materiais de construção, etc.

Poderá o fundo, além de dispor de recursos financeiros, estar aparelhado com estoque dos materiais e equipamentos necessários ao atendimento imediato (lonas, telhas, etc.).

Ainda com a existência do fundo, organismos de outras esferas (estadual e federal) poderiam repassar recursos diretamente [...] ao fundo, sem burocracia (Feltrin, 2015FELTRIN, Roque. Fundo para Enfrentamento de Catástrofes Naturais. [S.l.]: [s.n.], 2015. Arquivo pessoal.).

Ainda de acordo com Feltrin, as competências atribuídas aos municípios pela Lei n° 12.608/2012 são amplas e complexas para uma cidade como São Borja, mas, não obstante tal entendimento, o autor posiciona-se no sentido de que “o município tem cumprido, mesmo com dificuldades, em parte essa determinação. Precisa, porém, ser aperfeiçoada, e a existência do fundo daria um suporte fundamental na busca de recursos ao cumprimento desse dispositivo” (Feltrin, 2015).

Diante do que restou apurado no município, faz-se coro com a assertiva de Marques, no sentido de que a prevenção e a precaução ainda são princípios que enfrentam muita resistência por parte dos atores envolvidos nas políticas públicas. Os problemas entram na agenda sob tais argumentos, mas a concretização não se opera.

Defender o “ciclo de gestão dos riscos” é uma tarefa difícil no Brasil, pois não é fácil conciliar uma tríade de tarefas como “ser verde”, “ser justo” e “manter a segurança”. Por isso, a insistência se faz no firme compromisso público, privado e da sociedade civil no que diz respeito a proteger os sistemas naturais, com o Direito diante de um papel muito novo no ordenamento jurídico brasileiro: prevenir e precaver visando às gerações futuras e não apenas presentes (Marques, 2016MARQUES, Thiago Feltes. O nascimento do Direito dos Desastres no Brasil. Revista Acadêmica Licenciaturas, Ivoti, v. 4, n. 1, p. 108-123, jan./jun. 2016., p. 122).

Considerações finais

Diante do exposto, percebe-se que a relação das comunidades ribeirinhas do município de São Borja com o rio Uruguai passa por modificações significativas no decorrer do século XX, e inicia o século XXI com características seriamente negativas, as quais em nada lembram o comércio de madeiras e outros produtos que, por décadas, era comum nas águas do rio em seus períodos de “cheias”. Atualmente, a área ribeirinha do município é composta por uma população em sua maioria carente economicamente, o que tem reflexos no número de beneficiários do Programa Bolsa Família em São Borja, por exemplo, que são, em boa parte, moradores dessa zona portuária. Além disso, o bairro vizinho ao rio é o mais distante do centro urbano e, consequentemente, sua população tem maiores dificuldades em acessar serviços públicos, como hospital, fórum ou mesmo a Prefeitura, que, como na maioria dos municípios de pequeno porte como São Borja, concentram-se na área central da cidade.

Quanto às políticas públicas referentes ao enfrentamento das inundações, verifica-se que o município de São Borja ainda não consegue atender integralmente ao que preconiza a Lei nº 12.608/2012, sobretudo por falta de pessoal e recursos. Entretanto, observa-se que os poderes e os órgãos competentes movimentam-se neste sentido, adotando as estratégias possíveis, dentro de suas limitações.

Os princípios da prevenção e da precaução não são cumpridos de modo pleno diante das imposições legais, mas tal afirmação deve ser ponderada com as condições que o ente municipal (não) dispõe para atender aos desideratos do Direito dos Desastres, em sua obrigatória conexão com o Direito Ambiental. Essa realidade aqui apresentada e discutida é um indicativo de nosso objetivo-fim nessa análise, qual seja: o de contribuir para a definição de políticas públicas futuras, no caso das regiões “afetadas” pelas inundações do rio Uruguai, e também o de prevenção de outros desastres, assim como para um melhor equacionamento dos problemas hodiernos. Conhecer o atual cenário e o processo histórico que o constituiu é fundamental para futuras ações, quer sejam de proposição de novas políticas, quer sejam de conhecimento e aplicação das existentes.

Ainda a título de conclusão, entende-se que a questão das inundações no município de São Borja consiste em matéria que merece ser tratada entre as prioritárias, dada a sua ocorrência frequente e os danos dela advindos. Nessa trilha, além dos projetos que o município já examina, um ponto que merece estudo é a verificação do grau de impacto que empresas, in casu, responsáveis por hidrelétricas, possuem na ocorrência desses eventos, considerando que, muitas vezes, as inundações dão-se pela abertura de comportas. Isso porque o Brasil registra casos de indenização em função de enchentes geradas nesse contexto. Dito de outra forma, São Borja sofreu e sofre com tais eventos, o que exige uma postura firme tanto do poder público quanto da coletividade, considerando que os danos socioambientais acabam tendo repercussões difusas.

Nessa trilha, seguindo François Ost (1995OST, François. A natureza à margem da lei: a ecologia à prova do direito. Tradução de Joana Chaves. Lisboa: Instituto Piaget, 1995., p. 395), urge sejam criadas práticas concertadas, de caráter público, privado ou associativo, de modo que o desenvolvimento sustentável do município não persista como um objetivo seriamente comprometido nessa seara. Há que se ter presente que a responsabilidade pelo patrimônio natural comum recai sobre o poder público e a coletividade, de modo a resguardar tanto as presentes gerações quanto as futuras, que possuem os cidadãos, utilizadores e consumidores de hoje como seus únicos advogados de defesa.

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    » http://www.apesp.org.br/comunicados/images/fagnervilasboassouza_tese_17092014.pdf
  • 2
    Para Nodari, Espíndola e Lopes (2015), a noção de desastre comumente aceita define-se como um evento extraordinário.
  • 3
    Enchentes (ou cheias) consistem na elevação do nível de água normal de drenagem, devido a acréscimo de descarga. Tecnicamente, a Classificação e Codificação Brasileira de Desastres (Cobrade) adota e expressão inundação para definir esses eventos, que são a “submersão de áreas fora dos limites normais de um curso de água em zonas que normalmente não se encontram submersas. O transbordamento ocorre de modo gradual, geralmente ocasionado por chuvas prolongadas em áreas de planície” (Brasil, 2015).
  • 4
    Nesse sentido, a posição de Paula Emília Gomes de Almeida: “essa noção de desastre considera tal ocorrência não como uma consequência causal de uma ameaça (hazard) natural - furações, enxurradas, enchentes, deslizamentos de terra, terremotos etc. - mas como o resultado do choque entre uma ameaça natural e um agrupamento humano vulnerável. Por essa razão, a fim de reforçarmos o rompimento da ideia de que as ameaças naturais causam os desastres, nos referiremos a tais eventos sempre como desastres com desencadeadores naturais, e não como desastres naturais, forma como são corriqueiramente referidos tais acontecimentos” (Almeida, 2015).
  • 5
    Vale o registro de que a implementação da PNPDEC, no Brasil, teve influência de eventos mundiais. Com efeito, a Organização das Nações Unidas (ONU10 declarou 1990 como a Década Internacional para Redução dos Desastres Naturais (DIRDN). Em 2001, a Estratégia Internacional para Redução de Desastres (EIRD) propôs a continuidade e o reforço das ações. Já em 2005, resta instituído o Marco de Ação de Hyogo (2005-2015), o qual estabelece diretrizes e objetivos em redução dos desastres durante o período assinalado. “A abordagem utilizada nessa resolução, como já podia ser observada na EIRD, traz, finalmente, a discussão para a questão do desenvolvimento sustentável, a fim de diminuir os riscos de desastres, bem como sugere maior integração entre governos e população local. O atual Marco de Ação foi instituído em abril do presente ano: o Marco de Ação de Sendai vigorará pelos próximos 15 anos (2015-2030), levando à frente as propostas e os desafios ainda não conquistados pelos marcos anteriores na agenda de desastres (Almeida, 2015).
  • 6
    É importante salientar que a Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil coordena o Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres (Cenad), criado em fevereiro de 2005, e cujo objetivo consiste em gerenciar, com agilidade, ações estratégicas de preparação e resposta a desastres em território nacional e, eventualmente, também no âmbito internacional (Brasil, 2016).
  • 7
    De acordo com a Cobrade, inundação significa “submersão de áreas fora dos limites normais de um curso de água em zonas que normalmente não se encontram submersas. O transbordamento ocorre de modo gradual, geralmente ocasionado por chuvas prolongadas em áreas de planície” (Brasil, 2016, p. 2).
  • 8
    Paulo Affonso Leme Machado é um dos autores que estabelece diferença entre precaução e prevenção, apontando como característica da primeira justamente a incerteza do dano ambiental (Machado, 2005. p. 72), tal como explicitado no Princípio 15 da Declaração do Rio de Janeiro, resultante da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, também conhecida como Eco-92, no qual estabelecido que a precaução deverá ser amplamente observada pelos Estados, de acordo com suas capacidades, bem como que a ausência de certeza científica não pode adiar medidas economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental. É importante consignar que, ao mesmo tempo em que é elogiada, esta previsão é tida como inútil. Pascual (2006, p. 307-308), por exemplo, a entende como precaução em sentido suave, posto que se limita a sublinhar uma obviedade e aí se esgota, não indicando qualquer direção a seguir. Já para Carla Amado Gomes (2007), trata-se bem mais de uma diretiva política; “parece que os Estados estendem um tapete vermelho à precaução na entrada principal do Direito Internacional e depois encaminham-no, subtilmente, para as traseiras...” (ibidem, p. 274). Ver Ceolin (2012).
  • 9
    Nesse sentido, conforme Nilton Carlos de Almeida Coutinho: “[...] tem-se que diversas outras políticas públicas implementadas pelo poder público constituem-se como instrumentos que podem ser utilizados na proteção contra desastres ‘naturais’ hidrológicos. Aliás, é justamente por meio da junção e alinhamento de diferentes ações e políticas públicas que a proteção contra desastres poderá ser realizada de maneira eficaz. E tal junção exige planejamento e gestão adequados” (Coutinho, 2014, p. 593).
  • 10
    “Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo poder público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. § 1º O Plano Diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana. § 2º A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no Plano Diretor. [...] Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural [...]” (Brasil, 1988).
  • 11
    “[...] o fato de o Estado não garantir uma moradia simples e segura àquelas pessoas que não podem provê-la por escassez de recursos próprios, ocupando geralmente áreas de preservação permanente ou outras áreas de risco ambiental, faz com que o ente estatal concorra, com a sua omissão, na responsabilidade pelos danos causados a tais pessoas em um episódio climático extremo decorrente das mudanças climáticas que tenha ocasionado o deslizamento de terra e enchentes no local das suas moradias” (Fensterseifer, [s.d.]).
  • 12
    Conforme o Art. 3º, inciso II, da Lei nº 12.651/2012 (Código Florestal), a APP consiste em “área protegida, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas” (Brasil, 2012b).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2017

Histórico

  • Recebido
    18 Dez 2015
  • Aceito
    07 Fev 2017
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