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Rogélio Perez-Perdomo. Los Juristas Académicos de Venezuela: Historia Institucional y Biografía Colectiva

Perez-Perdomo, Rogélio. Los Juristas Académicos de Venezuela: Historia Institucional y Biografía Colectiva . Caracas: Un Metropolitiana ed., 2013 (versão e-book disponível em: <http://ecollections.law.fiu.edu/faculty_books/>)

Trabalhos que analisam a trajetória de grupos dirigentes centrais no exercício do poder de Estado construídos nas fronteiras disciplinares entre a Sociologia e a História têm trazido importante renovação para a agenda dos estudos sobre a problemática das instituições na Ciência Política. Seja na “redescoberta” das instituições pelos sociólogos, como apontam Lagroye & Offerlé (2010)LAGROYE, Jacques & OFFERLÉ, Michel. Sociologie de l’institution. Paris: Ed. Belin, 2010. na sua proposta de “Sociologia das Instituições” ou nas sucessivas publicações de politicólogos franceses que investem em uma agenda de pesquisas voltada para a história social das instituições e grupos políticos, tendo como pano de fundo as categorias analíticas desenvolvidas por Pierre Bourdieu e Norbert Elias (COHEN, LACROIX & RIUTORT, 2009COHEN, Antonin; LACROIX, Bernard & RIUTORT, Philippe. Nouveau manuel de science politique. Paris: La Decouverte, 2009.; GARRIGOU & LACROIX, 2001LACROIX, B. & GARRIGOU, A. Norbert Elias - a política e a história. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2001. ; e Engelmann, 2010ENGELMANN, Fabiano. The legitimacy of power as an object of political science. Brazilian Political Science Review, v. 4, 2010. ). Em especial nos estudos que relacionam a longa trajetória dos juristas e suas ambiguidades na relação com o espaço do poder político. Essa perspectiva analítica tem trazido importantes contribuições para evidenciar os diferentes graus de solidariedade e entrelaçamento entre as elites jurídicas e políticas. (COMMAILLE & KALUZINSKI, 2007COMMAILLE, Jacques & KALUSZYNSKI, Martine. La fonction politique de la justice. Paris: La Decouverte , 2007.; ROUSSEL, 2002ROUSSEL, Violaine. Affaires de juges. Les magistrats dans les scandales politiques en France. Paris. Ed. La Découverte, 2002. ).

É nessa perspectiva que Rogélio Perez-Perdomo, em seu livro Los Juristas Académicos de Venezuela: Historia Institucional y Biografía Colectiva, analisa a criação e difusão do conhecimento jurídico na Venezuela, bem como a trajetória dos juristas posicionados nas faculdades de Direito que produziram intelectualmente nos últimos dois séculos. O autor, já no início do livro, chama a atenção que o Direito, enquanto saber disciplinar, combina conhecimentos constantemente reformulados, atos de vontade do poder político e competências técnicas. A lei, portanto, não é um simples ato de vontade, mas é geralmente formulada a partir dos sentidos compartilhados pelos juristas acadêmicos - entendidos por Pérez-Perdomo como os autores de obras jurídicas - e envolve a reflexão sobre o Direito e a sociedade que se quer regular. É esse desenvolvimento intelectual do Direito que o autor propõe entender a partir da trajetória dos juristas venezuelanos. Apesar de a produção de obras jurídicas pelos intelectuais não se qualificar como direito em sentido estrito, pois não cria normas, ela é uma importante fonte complementar para entender a disputa em torno do monopólio de dizer o direito.

O interesse do autor, no entanto, não está centrado nas ideias que foram elaboradas na evolução do direito no País. O importante para o trabalho desenvolvido por Pérez-Perdomo é entender quem são os produtores do conhecimento jurídico e que tipo e estilo de saber foram produzidos. Esse conhecimento produzido na forma abstrata está estreitamente relacionado ao debate político que se desenvolve ao longo da história venezuelana.

A preocupação com a produção intelectual dos juristas, a manipulação do saber jurídico e sua relação com a legitimidade do poder político e a dominação social são constantes na Sociologia Política desde Weber, passando por trabalhos mais recentes dedicados especificamente ao estudo da legitimação da competência técnica e política dos bacharéis em Bourdieu (1986)BOURDIEU, Pierre. La force du Droit: Eléments pour une sociologie du champ juridique. Actes du la recherche en Sciences Sociales, v. 64, n. 1, p. 3-19, 1986., Lacroix (1992)LACROIX, B. Le politiste et l’usage des institutions: comment parler de la présidence de la République. In: LACROIX, B.; LAGROYE, J. (dir.). Le président de la république: usages et genèses d’une institutions. Paris: Presses de la Fondation Nationale de Sciences Po., 1992. e Charle (1987CHARLE, Christophe. Les Elites de la République 1880-1900. Paris: Fayard, 1987.; 1989______. Pour une histoire sociale des professions juridiques a l’époquecontemporaine: Notes pour une recherche. Actes de la Recheche en Sciences Sociales, v. 76, n. 1, p. 117-119, 1989). Ao propor a análise dos padrões que estruturam as lógicas presentes na “instituição do monopólio de dizer o direito”, fundamento da competência social dos juristas na França; Bourdieu (1986)BOURDIEU, Pierre. La force du Droit: Eléments pour une sociologie du champ juridique. Actes du la recherche en Sciences Sociales, v. 64, n. 1, p. 3-19, 1986. vai chamar a atenção para os elementos presentes na “ciência jurídica” que conformam o espaço de possíveis das decisões e da teorização abstrata.

Conforme Bourdieu (1986)BOURDIEU, Pierre. La force du Droit: Eléments pour une sociologie du champ juridique. Actes du la recherche en Sciences Sociales, v. 64, n. 1, p. 3-19, 1986., as categorias de percepção compartilhadas entre os juristas estruturam a apreciação dos conflitos orientando o trabalho destinado a transformar-se em confrontações jurídicas. Essa perspectiva conduz à impossibilidade de separar o saber apreendido no sistema de conceitos presentes na “ciência jurídica” do contexto das lutas sociais e políticas. Ou seja, ao se estudar a história social e política das doutrinas jurídicas e dos sentidos do direito que prevalece em determinadas conjunturas deve-se levar em conta em máxima amplitude; o espaço social em que os agentes produtores do sentido do direito se movem.

Aprofundando a reflexão sobre a especialização das funções na atuação dos profissionais do Direito, Lacroix (1992)LACROIX, B. Le politiste et l’usage des institutions: comment parler de la présidence de la République. In: LACROIX, B.; LAGROYE, J. (dir.). Le président de la république: usages et genèses d’une institutions. Paris: Presses de la Fondation Nationale de Sciences Po., 1992. enfoca o trabalho de formalização jurídica empreendido pelos especialistas em Direito e suas diversas trajetórias sociais e políticas. Conforme Lacroix (1992)LACROIX, B. Le politiste et l’usage des institutions: comment parler de la présidence de la République. In: LACROIX, B.; LAGROYE, J. (dir.). Le président de la république: usages et genèses d’une institutions. Paris: Presses de la Fondation Nationale de Sciences Po., 1992., é no exercício dessas especialidades que se verificam as diferenças intrínsecas que separam os usos sociais, bastante diversos dos saberes jurídicos. Na França, o trabalho de formalização jurídica, o uso do direito como forma de justificar ações políticas está associado ao aparecimento da atividade acadêmica do jurista-constitucionalista. A ligação do professor de Direito Constitucional com a “vida política” se funda na legitimidade de sua competência técnica de interpretar e dizer se determinada ação política enquadra-se na regra de direito conforme demonstra o trabalho de Sacriste (2011)SACRISTE, Guillaume. La Republique des constitutionalistes: professeurs de droit et légitimation de l’État en France (1870-1914). Paris: Presses de Sciences Pó., 2011., que evidencia a imbricação da produção intelectual dos professores de Direito Constitucional com a legitimação política do republicanismo na França.

Se tomarmos o caso brasileiro, analisado por Engelmann e Penna (2014)ENGELMANN, Fabiano; PENNA, Luciana. Política na forma da lei: o espaço dos constitucionalistas no Brasil democrático. Lua Nova, ago., n. 92, p. 177-206, 2014., constata-se que desde o Império os juristas estiveram posicionados como intérpretes legítimos das instituições políticas. Em um primeiro momento, por meio dos estudos na Universidade de Coimbra e da posterior ocupação de postos de poder na administração imperial3 3 As escolas de Direito constituídas no Brasil a partir do modelo de Coimbra, assim como as práticas políticas dos bacharéis em Direito se constituíram em um saber-fazer político específico - o bacharelismo - baseado na retórica, na conciliação política e na importação de modelos europeus, conforme indicam os estudos de Adorno (1988), Carvalho (1996). Sobre a organização da magistratura no Império, ver Koerner (1998). e, a partir de 1827, pela formação nas academias de São Paulo e Olinda, estendida, com a proclamação da República, para as demais províncias brasileiras (VENÂNCIO FILHO, 1977VENÂNCIO FILHO, Alberto. Das arcadas ao bacharelismo: 150 anos de ensino jurídico no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1977). Contudo, o fraco desenvolvimento da carreira acadêmica como atividade profissional é um fator relevante que distingue a intervenção dos brasileiros em relação a outros contextos, como a França e a Alemanha (BOURDIEU, 1986BOURDIEU, Pierre. La force du Droit: Eléments pour une sociologie du champ juridique. Actes du la recherche en Sciences Sociales, v. 64, n. 1, p. 3-19, 1986.; CHEVALIER, 1993CHEVALIER, J. Les interprètes du droit. In: POIRMEUR, Y.; BERNARD, A. La doctrine juridique. Paris: PUF, 1993.; SACRISTE, 2011SACRISTE, Guillaume. La Republique des constitutionalistes: professeurs de droit et légitimation de l’État en France (1870-1914). Paris: Presses de Sciences Pó., 2011.).

Os porta-vozes do sentido da Constituição no Brasil, portanto, não aparecem ancorados apenas nas universidades e nas profissões jurídicas, mas circulam em diversos espaços públicos, desde associações de constitucionalistas, consultoria a governos, membros de comissões legislativas até a ocupação de postos políticos. A legitimidade dos constitucionalistas no espaço do poder não é dada apenas por sua expertise intelectual, a ela se agrega um conjunto de condicionantes presentes em seus trajetos profissionais e políticos. Assim, mesmo com a grande expansão do ensino jurídico de pós-graduação a partir da segunda metade da década de 1990, a legitimidade da produção intelectual é estreitamente condicionada à relação do “mundo dos teóricos” com o universo dos “práticos”. Nesse sentido, o caso venezuelano apresentado no livro de Pérez-Perdomo, aproxima-se muito do brasileiro e mesmo de um padrão latino-americano de relação entre o espaço dos juristas e o espaço da política.

Para analisar o amplo universo de 169 autores juristas que marcaram os últimos 200 anos da história da Venezuela, Pérez-Perdomo divide o período em três grandes grupos. O primeiro transcorre entre 1800 a 1847, época que abarca a independência e a construção inicial do Estado. O segundo período se dá entre 1848 a 1958, quando o sistema jurídico perde importância política. Por último, o período de 1958 a 2012 se subdivide entre 1958 a 1998, quando houve um esforço para institucionalizar, profissionalizar e estimular a pesquisa jurídica durante a chamada “democracia de partidos”, e entre 1999 a 2012, época definida pelo autor como de grande turbulência política.

No primeiro período, os juristas tiveram a importante tarefa de forjar uma nova forma de legitimação do poder estatal frente à ruptura do vínculo colonial participando do esforço de organizar o País como um Estado independente. Apesar da metodologia de ensino tradicional baseada em um texto decidido não pelo professor, mas por legislação ou pelas autoridades da universidade, o desencontro entre os valores trazidos pelas modernas obras oriundas da Europa protestante e os da república venezuelana católica gerou um incentivo à tradução e adaptação delas à cultural local. Assim, os professores passaram a produzir, ou traduzir, o material didático que utilizariam. Portanto, a necessidade de justificar juridicamente o novo poder e o trabalho de adaptação de obras alimentaram a expansão da produção intelectual na área jurídica, marcada para fins didáticos ou políticos.

Entre os 22 juristas do período, os advogados representavam metade do universo (11). Na época, a profissão de advogado não era de tempo integral e sua remuneração era voluntária, de modo que eles tinham que ter outros meios de subsistência. No grupo também há uma forte presença de sacerdotes (oito), o que pode ser explicado tanto pela forte vinculação entre universidades e igreja, sendo as duas faculdades mais importantes da época, Teologia e Direito, quanto pelo relevante espaço ocupado pelo Direito canônico na sociedade, devido ao peso da igreja e dos tribunais eclesiásticos, o que despertava o interesse dos advogados em manejá-lo. O estudo do Direito canônico também atraía atenção dos sacerdotes para a ascensão na burocracia da Igreja. O último grupo é formado pelos juristas que não tinham formação em Direito nem eram advogados. Conforme o autor, os 3 exemplares deste grupo mostram que o direito e outras disciplinas estavam muito mais integrados que atualmente.

Após o esforço de construir a república, o país inicia um processo de desintegração conformando o segundo período analisado, entre 1848 a 1958, como o mais conturbado da história venezuelana. Pérez-Perdomo pontua que a Venezuela era marcada por ser um país predominantemente rural, pobre e convulsionado por guerras civis e frequentes epidemias características que não favoreceram o progresso da produção intelectual do Direito. Por outro lado, entre 1873 e 1948 o país presenciou a modernização da legislação pela promulgação dos Códigos Civil, Comercial, Penal, de Processo Civil e de Processo Penal. Conforme o autor, esses Códigos passaram a ser o centro da educação jurídica, concentrando a atenção de muitos juristas acadêmicos. A codificação do Direito, porém, não levou à organização imediata da profissão jurídica, que se configurou apenas nas primeiras décadas do século XX, quando o país apresentou cenário mais estável.

A modernização do Direito também não levou à expansão da formação jurídica. Na realidade, o período se caracteriza pela falta de atratividade dos estudos jurídicos no país e, consequentemente, pelo reduzido número de advogados. Da década de 1840 até a década de 1950, a educação jurídica denominava-se “Ciências Políticas e Sociais”, pois era considerada como uma forma de educação política por excelência, tendo a responsabilidade de formar a elite política do país4 4 Tal realidade reflete o padrão clássico de reprodução das elites da América Latina observado por Dezalay e Garth (2002). Conforme os autores, o Direito e o ensino jurídico serviram para 1) ligar os vários segmentos da elite dirigente; 2) prover os meios para trocar, converter e reproduzir o capital das famílias dominantes, e 3) prover a linguagem e a autoridade que legitimou o controle sobre o Estado. Entretanto, o importante papel do Direito e da educação jurídica no sistema político significou a desqualificação e desvalorização das bases institucionais para a autonomia do Direito. . A tradução e adaptação das obras europeias ainda era a principal fonte de material didático, de modo que os professores continuaram sendo meros transmissores do saber estabelecido na Europa. Não se esperava, assim, que eles fossem bons pesquisadores ou que publicassem. A codificação do Direito expandiu as funções dos docentes, visto que, a partir desse processo, eles passariam a ensinar os códigos, no entanto, essa função não se diferenciava muito das demais, pois, conforme Pérez-Perdomo, os Códigos também eram traduções ou adaptações dos seus análogos europeus.

Dos 74 juristas acadêmicos analisados desse período, de modo geral, todos são homens, venezuelanos, tiveram sua formação no país e ocuparam altos cargos públicos, como ministros de Estado, juízes da Suprema Corte, embaixadores e parlamentares. Para analisá-los, o autor subdividiu-os em três grupos. O primeiro é dos juristas comentaristas de Códigos e refletem a tendência a uma concepção de Direito como regras a serem encontradas na legislação e, em menor grau, nas decisões judiciais. O segundo grupo, que concentra a maioria dos juristas que publicaram, abrange aqueles com interesse multidisciplinar que desenvolvem estudos vinculando Direito com História, Economia, Sociologia e Literatura. O último grupo, o mais numeroso, concentra os que não publicaram. A falta de publicação diminuiu o reconhecimento de seus pares como juristas acadêmicos, o que, de acordo com Pérez-Perdomo, pode ser explicado tanto por corresponderem à “imagem do sábio”, que não precisava deixar seu testemunho escrito, quanto por serem “falsos positivos”, ou seja, que receberam reconhecimento não pela sua projeção intelectual, mas por amizade ou adulação.

O último período analisado, entre 1958 a 2010, foi marcado pela instauração de um sistema político democrático, caracterizado pelo importante papel dos partidos políticos que intervinham em muitos aspectos da vida social. O sistema político instaurado era conhecido como uma “democracia de partidos” e manteve-se estável até meados da década de 1980. Em 1998, com o regime cada vez mais debilitado, o Coronel Hugo Chávez foi eleito presidente, o primeiro desde 1958 a não pertencer aos partidos tradicionais.

Com o aumento da taxa de escolarização, o ensino superior se expandiu, de modo que o período se caracteriza pelo estímulo à produção e difusão do conhecimento. Um exemplo disso é a Lei das Universidades, instituída em 1958, que estabeleceu a criação dos institutos de pesquisa nas universidades, onde trabalhariam os professores-pesquisadores, e da carreira universitária fazendo, com que os professores tivessem que seguir um plano de ingresso e ascensão por meio de critérios objetivos para medir sua contribuição acadêmica na universidade. A internacionalização foi promovida pelas bolsas de estudos de pós-graduação no exterior e da maior participação de professores em congressos internacionais. Ao fim, todas essas medidas acabaram por institucionalizar a pesquisa no país.

O aumento da população estudantil e do número de docentes, assim como a instituição da carreira acadêmica, criaram um mercado importante para o desenvolvimento das publicações jurídicas. Nesse sentido, na década de 1970 foi reconhecido que a publicação era produto da pesquisa, de modo que os professores eram cada vez mais pressionados a publicar ao atrelar a produtividade à ascensão e verbas. As universidades assumiram um papel importante nesse sistema, convertendo-se nas principais editoras jurídicas do país.

As revistas, por sua vez, também sofreram uma grande expansão, assim, ao contrário da debilidade institucional da primeira metade do século XX, que fazia com que elas tivessem um tempo de vida curto, o aumento dos interessados em ler e escrever na área jurídica possibilitou a manutenção e continuidade delas. Já os regulamentos e políticas universitárias, a criação dos institutos de pesquisa e o aumento do público leitor com formação jurídica; garantiu uma melhora na qualidade das publicações.

Para esse período, o autor separa seu universo de 73 juristas em dois grupos. O primeiro grupo abrange os mais velhos, nascidos nas primeiras décadas do século XX e o segundo os mais jovens. Tais grupos se diferenciam pelos seguintes fatores: 1) presença de mulheres, sendo a representação feminina maior no segundo grupo, contudo, ainda é uma presença débil, refletindo a dificuldade das mulheres em obter reconhecimento acadêmico no universo conservador dos juristas; 2) pelo local de nascimento, tendo havido um deslocamento do interior para Caracas - no entanto, em ambos os grupos, a maioria é formada na capital, principalmente na Universidade Central de Venezuela; 3) pela internacionalização, sendo possível observar que, a partir da década de 1950, a realização de estudos no exterior é um fator extremamente relevante, mas que, devido às dificuldades econômicas dos anos 1980, essa tendência vai sendo neutralizada; 4) pela ocupação de cargos políticos, característica majoritária no primeiro grupo, mas que no segundo não se faz presente, mostrando que o exercício de cargos públicos já não oferece prestígio intelectual ou profissional; 5) pelo exercício da advocacia, que no grupo mais velho se dá apenas por curtos períodos e nunca como atividade econômica principal, enquanto, no segundo grupo, a advocacia aparece, juntamente com a docência, como fonte principal de remuneração, e 6) pela publicação, que se tornou mais frequente e mais especializada.

Na parte final do livro, o autor buscar refletir sobre a importância dos juristas-acadêmicos no sistema jurídico e político da Venezuela. Pérez-Perdomo aponta que o direito é produzido por uma combinação de forças sociais que não se expressam por si mesmas, sendo função dos juristas-acadêmicos interpretar esse processo e enquadrá-lo nas doutrinas jurídicas. Na Venezuela, os juristas-acadêmicos cumpriram o papel de construção de um “ideário jurídico” ao mesmo tempo em que participaram nos debates políticos que desenvolveram os diferentes códigos legais.

A longa construção de um modelo de autonomia e independência política do sistema judicial nos países latino-americanos passa por diferentes questões e problemas relacionados à própria estabilidade política dos países analisados que oscilam em diferentes períodos entre modelos mais liberais e regimes autoritários. As reformas constitucionais, nas últimas duas décadas, representaram a construção de novos marcos institucionais nos países latino-americanos. Trouxeram tentativas de estabelecer mecanismos de recrutamento das magistraturas de base, e mesmo das cúpulas judiciais, mais próximos dos modelos de solidificação do Rule of Law que contemplam a independência e autonomia do poder judicial como pressuposto do regime democrático.

A grande dificuldade analítica é justamente apreender como as sucessivas tentativas de reforma do sistema de justiça, que envolvem tanto agências internacionais quanto a geração de políticos que chega ao poder comprometida com a promoção da democracia, interagem com os fatores histórico-estruturais específicos de cada país.

Nesse sentido, os elementos apontados por Pérez-Perdomo sobre a trajetória dos juristas-acadêmicos venezuelanos assumem grande importância. Esses agentes têm um papel-chave na conformação de trajetórias mais longas dos modelos de Direito ancorados nacionalmente. Conforme mostra o autor, o processo de emergência da condição acadêmica autônoma dos juristas é muito incipiente, diferenciando-se do contexto europeu (CHARLE, 1989______. Pour une histoire sociale des professions juridiques a l’époquecontemporaine: Notes pour une recherche. Actes de la Recheche en Sciences Sociales, v. 76, n. 1, p. 117-119, 1989; BOURDIEU, 1986BOURDIEU, Pierre. La force du Droit: Eléments pour une sociologie du champ juridique. Actes du la recherche en Sciences Sociales, v. 64, n. 1, p. 3-19, 1986. e SACRISTE, 2011SACRISTE, Guillaume. La Republique des constitutionalistes: professeurs de droit et légitimation de l’État en France (1870-1914). Paris: Presses de Sciences Pó., 2011.). Em regra, nos países latino-americanos a maioria dos juízes das cortes superiores atuam paralelamente como docentes em universidades, apesar de ser uma minoria que possui titulação de mestrado ou doutorado. O mesmo valendo para o grande número de docentes com publicação de livros na forma de manuais de Direito, mais da metade, em casos como o Brasil.

As configurações sociopolíticas dos países latino-americanos mais recentes apontam tanto um cenário de grande politização do Judiciário, combinado com um aumento da independência judicial frente às elites políticas. (ENGELMANN, VEIGA e PEREZ-PERDOMO, 2015). O grau de independência e de politização varia na mesma medida dos padrões histórico-políticos de interação entre as elites de juristas e as elites políticas. Nesse sentido, estudos mais amplos que explorem de forma combinada o perfil sociopolítico, ideológico e cultural de seus agentes, assim como os vínculos que estabelecem, ao longo das suas trajetórias políticas, acadêmicas e profissionais, são fundamentais. Contribuem para a história social dos intérpretes autorizados do Direito em séries temporais mais longas, explicitando as condições de sua inserção no debate político nas recentes democracias latino-americanas onde assumem crescente protagonismo.

Referências

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  • 3
    As escolas de Direito constituídas no Brasil a partir do modelo de Coimbra, assim como as práticas políticas dos bacharéis em Direito se constituíram em um saber-fazer político específico - o bacharelismo - baseado na retórica, na conciliação política e na importação de modelos europeus, conforme indicam os estudos de Adorno (1988)ADORNO, Sérgio. Os aprendizes do poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988., Carvalho (1996). Sobre a organização da magistratura no Império, ver Koerner (1998)KOERNER, Andrei. Judiciário e cidadania na Constituição da república brasileira. São Paulo: Hucitec/Edusp, 1998..
  • 4
    Tal realidade reflete o padrão clássico de reprodução das elites da América Latina observado por Dezalay e Garth (2002)DEZALAY, Yves; GARTH, Bryant. The internationalization of palace wars: lawyers, economists and the contest to transform Latin American States. Chicago: University of Chicago, 2002.. Conforme os autores, o Direito e o ensino jurídico serviram para 1) ligar os vários segmentos da elite dirigente; 2) prover os meios para trocar, converter e reproduzir o capital das famílias dominantes, e 3) prover a linguagem e a autoridade que legitimou o controle sobre o Estado. Entretanto, o importante papel do Direito e da educação jurídica no sistema político significou a desqualificação e desvalorização das bases institucionais para a autonomia do Direito.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan 2018
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