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RESENHA - Leonardo Avritzer, Carlos R. S. Milani e Maria do Socorro Braga (Organizadores). A Ciência Política no Brasil 1960-2015. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2016

Avritzer, Leonardo; Milani, Carlos R. S.; Braga, Maria do Socorro. (Organizadores). A Ciência Política no Brasil 1960-2015. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2016

Há algumas décadas as ciências sociais brasileiras têm realizado balanços sobre as suas produção e institucionalização. Com esse espírito veio a lume o livro A ciência política no Brasil: 1960-2015Leonardo Avritzer, Carlos R. S. Milani e Maria do Socorro Braga (Organizadores). A Ciência Política no Brasil 1960-2015. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2016, que tem como intento formar um retrato plural, tanto das diversas subáreas e abordagens dessa ciência, bem como de algumas experiências de sua institucionalização regional, superando, em parte, um viés das análises, que até então se concentravam quase exclusivamente no Sudeste. A obra, organizada pela ABCP (Associação Brasileira de Ciência Política), consiste, pois, na análise de importantes especialistas sobre o desenvolvimento desse saber no país ao longo dos seus cinquenta anos. Estruturado em treze capítulos, a obra mescla textos memorialísticos com a análise quantitativa e qualitativa da produção dessa ciência, procurando identificar os seus principais entraves e as suas agendas de pesquisa na atualidade.

Avalio que essa obra constitui a mais importante iniciativa da ciência política brasileira (CPB) em realizar um amplo e rigoroso mapeamento de sua própria história e produção. Dividida em duas partes, ela pode ser descrita do seguinte modo: os capítulos 1, 3 e 4 reconstroem as experiências da CPB em três estados, Minas Gerais, Rio Grande Sul e Brasília, respectivamente; os capítulos 5 e 6 fazem um balanço desse processo em todo o território nacional; e um bloco maior de capítulos (7 a 13) avalia o desenvolvimento de algumas subáreas da CPB. O capítulo 2 trata da história da CPB, mas também aborda subárea dos estudos das instituições políticas.

Os três casos de institucionalização da ciência política (CP) narrados no livro, seguiram o mesmo roteiro: criação de novo departamento e/ou curso de pós-graduação em CP por meio do suporte financeiro da Fundação Ford, da colaboração com outras universidades brasileiras e estrangeiras e da complementação da formação dos docentes em cursos de pós-graduação no exterior, em especial nos EUA.

O primeiro deles é avaliado por Fábio Wanderley Reis, um dos protagonistas na criação do primeiro mestrado na área no Brasil, em 1966. Chamo a atenção alguns elementos daquele cenário intelectual, tal como a preponderância de leituras da sociologia francesa e do marxismo e, sobretudo, o desconhecimento generalizado da CP estadunidense, que se tornaria a principal referência para os politólogos do país. Reis considera que um fator decisivo do surgimento da CP na UFMG foi o curso de pós-graduação em sociologia da FLACSO, onde ele e outros puderam ter contato com a literatura internacional em sociologia, particularmente norte-americana, e voltada para a articulação entre empiria e teoria.

O terceiro capítulo apresenta uma análise do processo de institucionalização da CP no Rio Grande do Sul (RS), cenário frequentemente ignorado pelos estudos dessa temática. Seu autor, Hélgio Trindade, relembra que foi fundamental a organização de um banco de dados eleitorais sobre os municípios do RS e a realização de surveys sobre o comportamento político local, em que se descobriu a força eleitoral do trabalhismo e também o amplo apoio da população na região à ditadura militar. A colaboração com docentes de outros programas de pós-graduação do país resultou em estudos que constataram na eleição de 1974 uma importante inflexão em relação à ditadura brasileira. Trindade recorda igualmente os primeiros estudos sobre as tradições políticas e partidárias do estado, dentre eles seu clássico estudo sobre o integralismo.

O quarto capítulo, escrito por David Fleischer consiste, essencialmente, na descrição dos principais momentos do processo de institucionalização da CP na UNB. A criação do primeiro curso de graduação em CP no país (1989), do mestrado (1984) e do doutorado (2002), é relembrada, bem como a atuação de alguns precursores, como Victor Nunes Leal e Theotônio dos Santos, muitos deles cassados e exilados com o golpe de 64. Nesse caso particular, cumpre notar as relações entre o Departamento de CP e Relações Internacionais (RI) e os poderes da República, como, por exemplo, por meio da oferta de um curso de especialização em Assessoria Parlamentar dado pela UNB.

Deixando de lado esse conjunto de capítulos que trata da história da CP em três estados brasileiro, o segundo capítulo, de natureza híbrida, reconstrói como o neoinstitucionalismo chegou ao país, substituindo certas abordagens macroestruturais que subestimavam o potencial das instituições políticas como variáveis independentes. Fernando Limongi, Maria de Almeida e Andrea Freitas lembram o trabalho seminal de Juan Linz que caracterizava o presidencialismo como uma fonte de permanente instabilidade no cenário latino-americano, o que gerou um intenso debate no Brasil. Também fundamental à época era o próprio regime militar, não apenas algo contra o qual se contrapunham os intelectuais brasileiros, mas também um objeto de investigação científica. Aos poucos, os estudos se expandem para os temas da transição democrática e das idiossincrasias da Nova República, tal como no conceito de presidencialismo de coalizão. Até esse período, o modelo político brasileiro era caracterizado em tons negativos, associando quer a forma presidencialista, quer a legislação eleitoral à ingovernabilidade. A partir dos anos 90, na medida em que se reviu a ideia de que o sistema político brasileiro era ingovernável, outros elementos desse sistema passaram a receber mais atenção, como o pacto federativo e a relação entre os poderes.

Os capítulos cinco e seis apresentam teses convergentes e complementares sobre a formação e o desenvolvimento da CPB. No primeiro deles, André Marenco expõe um panorama da CPB em comparação com outras nações. Em relação à CP no Norte da América e na Europa, ela se forma mais tarde. Ademais, a existência prévia de uma tradição de intérpretes da política, no nosso caso, foi positiva, pois já se havia superado o formalismo jurídico das análises sobre a política, de modo que a principal ruptura se deu em relação à sociologia, o que gerou um certo “descolamento” da esfera institucional. Em relação a países como México, Chile e Argentina, no Brasil, a CP se consolida primeiramente como curso de pós-graduação e só mais tardiamente funda as associações científicas. Avaliando a produção da CP a partir da revista Dados, Marenco constata certo pluralismo temático, ainda que a sua maior parte trate da realidade brasileira.

Leonardo Avritzer, autor do sexto capítulo, argumenta que a consolidação da CPB só ocorreu por conta da sua dispersão territorial e maior pluralidade. Ele esclarece que essa consolidação pressupõe o surgimento de estudos sobre o poder e o sistema político, a aquisição de metodologias adequadas ao estudo desses objetos, a criação de meios para divulgação científica e o surgimento de cursos de pós-graduação. Descontado o período formativo (1950-60), a história da CPB é dividida em três fases. A primeira (1966-85) é marcada por sua concentração em instituições de ensino público (com a notória exceção do IUPERJ) e pela ausência de associações científicas. A segunda (1985-2005), pelo surgimento da ABCP (1986) e pela desestruturação das universidades públicas e estagnação da área nos mesmos programas de pesquisa. A fase subsequente, a partir de 2004, é marcada pela expansão regional, criação de cursos em instituições privadas, internacionalização e incorporação de novos temas de pesquisa da CPB.

Os capítulos subsequentes abordam as subáreas mais significativas da CPB, construindo uma história de sua fundação, uma análise de seu desenvolvimento e uma avaliação de seus problemas e suas soluções.

O sétimo analisa a de estudos legislativos (EL). Argelina Figueiredo e Fabiano Santos argumentam que antes dos anos 90, esses estudos não compunham uma agenda de pesquisa organizada. Com a divulgação dos estudos sobre o Congresso estadunidense, estabelece-se um programa sistemático de investigação sobre o funcionamento do Legislativo e de sua relação com o Executivo no Brasil. No que concerne aos temas privilegiados pela área, evidencia-se um interesse especial no Legislativo após a redemocratização do país, sendo poucos os estudos sobre o período da ditadura militar ou da República de 45. Ainda sob esse aspecto, as relações entre Executivo e Legislativo, o papel do Legislativo nas políticas públicas e a sua própria organização constituem os assuntos mais privilegiados pelos EL. A diversificação e ampliação dessa subárea desmistificou algumas ideias sobre o parlamento brasileiro, tal como a de que o poder de legislar do Executivo produza necessariamente mais conflito e pressuponha a passividade do primeiro.

João Feres, San Romanelli e Luiz Campos são os responsáveis pelo texto em sobre a teoria política normativa (TPN). Eles investigam como os periódicos brasileiros mais bem avaliados concebem a TPN, área que envolve os debates sobre teorias da justiça e da democracia, pós-colonialismo, etc. Diferentemente dos estudos sobre a CPB, há poucos trabalhos que examinam o desenvolvimento da TPN no país. Em geral, esses estudos assumem concepções restritas de TPN e os trabalhos sobre a CPB tampouco dão atenção à TPN. Eles identificam uma tensão frequente da CPB em relação à TPN: particularmente para aqueles que se identificam com uma CP empiricamente orientada, a teoria política é vista como estéril e pré-científica. Contra as avaliações que menosprezam a TPN, os autores salientam a importância da discussão sobre direitos de minorias, direitos humanos, etc. na contemporaneidade, além de defenderem certa vocação “iluminista” da CPB, segundo a qual o uso metódico da razão, propiciado pela teoria, pode contribuir para o esclarecimento humano.

Christian Lynch, autor do capítulo sobre pensamento político brasileiro (PPB), esclarece que esse pode ser compreendido como objeto de estudo ou como disciplina acadêmica. No primeiro caso, é possível entendê-lo como ideologia, isto é, como os discursos políticos de qualquer país (e que, no caso brasileiro, seria marcado pela condição autoreconhecida de periferia, o que explica a permanente preocupação com a modernização do país), ou como o conjunto de textos “clássicos” de interpretação do país. Como disciplina, o PPB se concretizou mais tardiamente, dada o necessário reconhecimento das tradições políticas como parte importante da cultura nacional e um rico repositório de hipóteses a serem examinadas (e não como sintomas ideológicos do atraso). Diferentemente dos EUA, a transição aqui para a “nova” CP realizou apenas uma ruptura de ordem metodológica, pois a “agenda” da “velha” ciência foi incorporada. Lynch discute, então, alguns entraves ao desenvolvimento desse campo, tal como a recorrência de trabalhos de “recuperação” de autores do passado, ou não reconhecidos pelo cânone, e a separação entre teoria política e PPB, concebendo o último ainda sob o complexo de inferioridade cultural.

As políticas públicas (PP) são o tema do décimo capítulo. Celina Souza e Eduardo Marques diferenciam três fases desses estudos no Brasil: uma primeira, marcada por estudos mais amplos sobre o Estado nacional, seguida de uma segunda fase, iniciada nos anos 80, com estudos mais específicos sobre PP e a burocracia estatal. Data desse segundo momento a criação do primeiro grupo de trabalho (GT) na ANPOCS. Um terceiro momento se dá no final dos anos 90, com a criação de GT na ABCP, gerando um volume de trabalhos maior e mais disperso nacionalmente. Ao longo dessas décadas, esse campo tem vivido crescente expansão, o que pode ser explicado pela maior oferta de cursos de graduação e de pós-graduação em PP. Eles identificam atualmente quatro temas centrais da produção de PP: o federalismo brasileiro, as burocracias (o modo como se estruturam e produzem as PP, suas relações com os atores políticos e privados, etc.), as novas institucionalidades de maior participação social, como os conselhos de PP, e as políticas sociais que visam a redução das desigualdades. Os autores, a cabo, defendem uma maior interação com outras subáreas da CPB com o fito de promover os estudos sobre PP.

Marlise Matos é a autora do capítulo que analisa a institucionalização das pesquisas sobre gênero e feminismo. Em comparação com a sociologia e a antropologia, na CPB, essa área se institucionalizou mais tardiamente e de modo incompleto. Matos critica a sub-representação das mulheres nos cargos de direção das associações científicas, em especial na CP, ela própria uma área tradicionalmente masculina, o que se conforma com os baixíssimos índices de participação feminina na política nacional. Com relação aos artigos publicados nessa subárea, ela nota que a maioria é de autoria de mulheres, e muito concentrada em algumas pesquisadoras. No tocante às dissertações e teses, avalia que não há muita produção nos programas de pós-graduação em CP e que ela está concentrada no Sudeste (quase 50%). A maior parte desses trabalhos tem autoria de mulheres (86,4%), tanto como orientandas, quanto como orientadoras, de modo que fica patente que ainda são elas, as responsáveis pela construção desse campo na CPB.

O capítulo doze trata da análise de política externa (APE) e mais particularmente da política externa brasileira (PEB). Maria de Lima e Carlos Milani lembram que esse campo teve formação mais tardia do que outras subáreas da CP. No final dos anos 80 havia poucos cursos na área, situação que só revertida na virada do século. Uma das razões para tal atraso é a preponderância de abordagens que bloqueavam a atenção dos pesquisadores: de um lado, teorias que enfatizavam o domínio imperialista e, de outro, as que compreendiam a política externa como resultado da geopolítica e do domínio militar de certos grupos. Na década 80 há uma transição para paradigmas que relativizam o diagnóstico segundo o qual os países periféricos eram sempre dependentes. Os autores falam, então, de um processo de renovação dos estudos de PEB, dado um conjunto de modificações nas últimas três décadas: globalização, mundialização de movimentos sociais, etc. Essas transformações obscureceram a própria fronteira entre política doméstica e política internacional, além de terem produzido uma multiplicação de atores na APE, além dos Estados nacionais. A renovação mencionada fez também questionar a tese da imutabilidade da PEB e do insulamento do Itamaraty, de modo que a PEB passou a ser pensada como uma PP que deve ser responsiva e aberta ao controle democrático, tema, contudo, controverso entre os especialistas.

O derradeiro capítulo do livro, de Gláucio Soares, trata da área da segurança pública (SPU), área que nas últimas duas décadas sofreu enorme expansão. Soares lembra inicialmente que SPU, pela história brasileira, ficou associada à segurança nacional e à ditadura militar. O crescimento da violência, particularmente nas grandes cidades, exigiu que ela fosse dissociada de tais assuntos e que a polícia militar deixasse de ser instrumento das Forças Armadas. Examinando resultados no Google, Soares avalia que ainda é pequena a inserção dos estudos sobre SPU na CPB, quando comparada, por exemplo, à sociologia, à antropologia e ao direito. O autor trata, então, da sua trajetória profissional, como estudioso da SPU, criticando a marginalidade atual da área na CPB.

Como se vê, a obra resenhada é o resultado de um belo trabalho coletivo, exaustivo e amplo sobre os cinquenta anos da CPB, na sua diversidade temática e de abordagens, além de identificar um conjunto de caminhos para o seu desenvolvimento futuro

Referência

  • Leonardo Avritzer, Carlos R. S. Milani e Maria do Socorro Braga (Organizadores). A Ciência Política no Brasil 1960-2015. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2016

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Set 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    25 Jul 2019
  • Aceito
    24 Ago 2019
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