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Victor Nunes Leal, a ciência política e as linhagens do pensamento político brasileiro

Victor Nunes Leal, the political science and the lines of Brazilian political thought

Resumo:

Este trabalho pretende dar continuidade a uma interpretação da obra de Victor Nunes Leal sugerida por Gildo Marçal Brandão em meio ao projeto das linhagens do pensamento político brasileiro, no qual o cientista político uspiano aproxima-o do assim chamado radicalismo de classe média - baseado numa visão democratizante sobre o Brasil e assentado na totalidade social. Para atingir este objetivo, lançaremos mão de algumas obras do autor e fortuna crítica, com o fito de distanciar o pensamento do jurista de interpretações que: a) vinculam-no a certa tradição de ciência política, a qual se estabeleceu no Brasil principalmente sob o paradigma da autonomia da esfera política em relação às demais esferas da vida social; b) ou ao pensamento conservador de Oliveira Viana.

Palavras-chave:
teoria política; pensamento político e social brasileiro; linhagens do pensamento político brasileiro; ciência política no Brasil; radicalismo de classe média; Victor Nunes Leal

Abstract:

This paper intends to give continuity to an interpretation of the work of Victor Nunes Leal suggested by Gildo Marçal Brandão in the middle of the project of lines of brazilian political thought, in which the uspian political scientist brings him closer than the so-called middle class radicalism - basead on democratizing vison about Brazil and based on social totality. In order to reach this goal, we will use some works by the author and a critical fortune, with the aim of distancing the jurist’s thinking from interpretations that: a) link him to a certain tradition of Political Science, which was established in Brazil mainly under the paradigm of the autonomy of political sphere in relation to the other spheres of social life b) or the conservative thinking of Oliveira Viana.

Keywords:
political theory; brazilian political and social thought; lines of brazilian political thought; Brazilian Political Science; middle class radicalism; Victor Nunes Leal

Introdução

Este artigo tem como objetivo dar continuidade a uma interpretação da obra de Victor Nunes Leal apenas sugerida anteriormente pelo cientista político Gildo Marçal Brandão (2005)BRANDÃO, Gildo Marçal. Linhagens do pensamento político brasileiro. Dados - Revista de Ciências Sociais, v. 48, n. 2, p.231-269, 2005.. Conforme Brandão argumentava, em meio ao seu trabalho sobre as linhagens do pensamento político e social brasileiro, Leal deveria ser pensado e aproximado ao radicalismo de classe média. Essa forma de pensamento - o radicalismo de classe média - teve sua teorização iniciada por Antonio Candido em alguns de seus escritos e posteriormente fora retomada e desenvolvida pelo cientista político Gildo Marçal Brandão. Tendo isso em vista, procuramos nos afastar de duas outras interpretações da obra do jurista mineiro: a primeira tenta vincular sua produção à chamada “moderna ciência política brasileira”, de matriz neoinstitucionalista - conforme fora descrita e interpretada por Forjaz (1997)FORJAZ, Maria Cecília. A emergência da Ciência Política no Brasil: aspectos institucionais. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 12, n. 35, p. 1-22, 1997. e por Keinert e Silva (2010)KEINERT, Fábio; SILVA, Dimitri. A gênese da ciência política brasileira. Tempo Social, v. 22, n. 1, p.79-98, 2010. -, numa tentativa de construir uma tradição que a precederia e a justificaria perante o que era feito nas ciências sociais brasileiras até então; a segunda interpretação, por seu turno, lê-o quase como um desdobramento do pensamento conservador de Oliveira Viana.

Para a consecução de tais objetivos, procura-se tratar do lugar das ideias em Victor Nunes Leal a partir de algumas obras do autor, como: Coronelismo, Enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil e outros artigos de sua lavra, buscando entendê-las em dois eixos. Primeiramente, são apresentadas e discutidas algumas leituras sobre os textos de Leal, as quais almejavam localizá-lo na tradição de certa forma de se fazer ciência política que se estabeleceu no Brasil principalmente sob o paradigma da autonomia da esfera política em relação às demais esferas da vida social. Em segundo lugar, procura-se mostrar que Leal, ao trabalhar o coronelismo como uma superposição de formas sofisticadas de representação política a uma estrutura econômica e social não adequada, alicerça-se no debate, conhecido do pensamento político e social brasileiro, a respeito da sensação de desajuste entre ideias, instituições políticas e o meio material brasileiro, dando-lhe uma conformação específica que o aproximaria de um conjunto de ideias presentes no chamado radicalismo de classe média (CANDIDO, 2011CANDIDO, Antonio. Vários escritos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011.; BRANDÃO, 2005BRANDÃO, Gildo Marçal. Linhagens do pensamento político brasileiro. Dados - Revista de Ciências Sociais, v. 48, n. 2, p.231-269, 2005.). Com este movimento, acabamos por distanciar o jurista mineiro de leituras que o aproximavam por demais de Oliveira Viana e de certa visão assentada no idealismo orgânico - melhor explicitada e exposta adiante.

O lugar das ideias em Victor Nunes Leal.

Neste artigo, pretendemos retomar a obra de Victor Nunes Leal a partir de dois eixos de interpretação - expostos parcialmente acima - desde os quais a produção do jurista mineiro é lida atualmente nas ciências sociais em geral e na ciência política em particular. Tal retomada, apesar de reconhecer a importância e a riqueza destes dois eixos interpretativos, objetiva, na verdade, confrontar estas leituras com outra, a saber: a de que o pensamento de Nunes Leal se aproxima daquilo que Candido (2011)CANDIDO, Antonio. Vários escritos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011. e Brandão (2005)BRANDÃO, Gildo Marçal. Linhagens do pensamento político brasileiro. Dados - Revista de Ciências Sociais, v. 48, n. 2, p.231-269, 2005. conceituavam como pensamento radical de classe média ou, simplesmente, como forma de pensar radical. Nesse sentido, apesar de Antonio Candido não se referir ao jurista em seus ensaios sobre o radicalismo e Gildo Marçal Brandão tê-lo citado apenas lateralmente como um componente desta linhagem de pensamento, pensamos que a sua produção em muito se aproxima deste modo de pensar em dois sentidos, ao menos. Em primeiro lugar, Nunes Leal, de um ponto de vista teórico ou epistemológico, detém uma visão multifacetada da totalidade social, na qual as diversas esferas da vida como economia, política e sociedade se inter-relacionam e se determinam mutuamente. Em segundo lugar, o cientista político mineiro tem como ponto de fuga, em relação ao Brasil, a constituição de uma sociedade democrática, na qual a democracia representativa fosse desenvolvida em todas as suas potencialidades, isso tudo imantado por certo constitucionalismo progressista. À vista disto, adiantaremos algumas determinações importantes dos dois eixos de leitura aqui invocados.

O primeiro eixo consiste numa leitura da obra de Leal a qual tenta não só vinculá-la à assim chamada “moderna ciência política brasileira”, conforme teorizaram Forjaz (1997)FORJAZ, Maria Cecília. A emergência da Ciência Política no Brasil: aspectos institucionais. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 12, n. 35, p. 1-22, 1997. e Keinert e Silva (2010)KEINERT, Fábio; SILVA, Dimitri. A gênese da ciência política brasileira. Tempo Social, v. 22, n. 1, p.79-98, 2010., como também pretende tornar Nunes Leal uma espécie de precursor desta configuração específica de feitura da ciência política e, deste modo, um ponto de arrimo em sua legitimação em meio às ciências sociais brasileiras. A nosso ver, como iremos explorar ao longo de nossa exposição - principalmente nas seções A invenção de uma tradição e O texto de Victor Nunes Leal: Coronelismo, enxada e voto deste artigo -, essa vinculação carece de maiores fundamentações, pois as duas formas de pensar e de pesquisa são, em suas bases, um tanto antitéticas. De maneira resumida, é possível argumentar que, de acordo com Forjaz (1997)FORJAZ, Maria Cecília. A emergência da Ciência Política no Brasil: aspectos institucionais. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 12, n. 35, p. 1-22, 1997. e Keinert e Silva (2010)KEINERT, Fábio; SILVA, Dimitri. A gênese da ciência política brasileira. Tempo Social, v. 22, n. 1, p.79-98, 2010., desde meados da década de 1970 no Brasil, logrou-se constituir um modo hegemônico de fazer ciência política fortemente baseado no modelo estadunidense e fundado nos paradigmas neoinstitucionalistas, os quais sustentavam a autonomia da esfera política frente a outras esferas da vida. Assim, a esfera do político deteria determinações e regramentos próprios, os quais deveriam ser buscados em suas causalidades internas, sem estarem sombreadas por elementos de outras searas e disciplinas, como a economia e a sociologia. Tais elementos postos e pressupostos pela chamada moderna ciência política brasileira não são partilhados por Victor Nunes Leal. Seguindo os escritos do jurista mineiro, podemos ver ali uma compreensão da política enquanto lócus peculiar e específico, mas não alheio e fechado frente a outras searas da vida, cuja fundamentação tinha como pedra de toque uma visão complexificada da totalidade social em movimento, em que as diversas esferas da sociedade se interpenetram e se determinam reciprocamente. Elementos que se aproximariam, de modo muito sugestivo, do radicalismo de classe média.

O eixo segundo, no que lhe concerne, embasa-se numa leitura dos escritos de Nunes Leal que o aproxima e liga ao pensamento conservador de Oliveira Viana. De nossa parte, no entanto, procuramos demonstrar - essencialmente nas seções Crítica da cópia e o lugar das ideias em Nunes Leal e O texto de Victor Nunes Leal: Coronelismo, enxada e voto deste trabalho - que essa visão é parcial e deixa de lado elementos importantes da argumentação do cientista político mineiro. De forma sumária, nota-se nas argumentações de André Botelho (2007)BOTELHO, André. Seqüências de uma sociologia política brasileira. Dados - Revista de Ciências Sociais, v. 50, n. 1, p. 49-82, 2007., Felipe Fontana e Carla Ferezin (2016)FONTANA, Felipe e FEREZIN, Carla. As contribuições de Oliveira Viana para a análise da formação dos partidos políticos no Brasil. Aurora (UNESP. Marília), v. 09, n.01, p. 1-27, 2016. uma forte aproximação da forma de pensar de Victor Nunes Leal ao conservadorismo de Oliveira Viana. Isso se daria, sucintamente, por dois motivos: i) várias categorias utilizadas por Leal teriam sido emprestadas de Viana; ii) boa parte do diagnóstico do jurista mineiro sobre a política brasileira e sobre as relações entre o público e o privado seriam originárias do sociólogo fluminense. Contudo, se no pensamento de Viana seria essencial a constituição de um Estado vigoroso de modo a imprimir ordem e coesão à sociedade nacional fortemente desmembrada, com o fito de forjar aqui uma organização social civilizada; no pensamento de Leal o fundamental era a construção de uma organização constitucional e societal desde a qual tanto a autonomia municipal ganhasse efetividade material e política frente a outras entidades estatais, quanto as classes populares marginalizadas fossem integradas à vida nacional de maneira reformista.

De todo modo, não deixamos de reconhecer que Nunes Leal lança mão de alguns textos de Oliveira Vianna e de algumas de suas argumentações, não obstante o faz segundo uma forma de pensar e uma visão política progressista e não conservadoras. Sendo assim, mesmo que chegue a utilizar os mesmos termos que o jurista fluminense, Leal o faz de forma diversa e sem as mesmas implicações políticas que as de Viana. Aqui é sugestivo lembrar, a título de comparação, que autores como Caio Prado Jr. (2011)PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. e Celso Furtado (2001FURTADO, Celso. Economia colonial no Brasil nos séculos XVI e XVII. São Paulo: Hucitec; Alphe, 2011., 1995FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 25 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1995.), por exemplo, lançaram mão do pensamento de Oliveira Viana em particular e do pensamento conservador brasileiro em geral. Mesmo assim distanciam-se fortemente deles num sentido progressista e democratizante. O caso de Celso Furtado é até mais sugestivo, fazendo mesmo com que Francisco de Oliveira (2003)OLIVEIRA, Francisco de. Viagem ao olho do furacão: Celso Furtado e o desafio do pensamento autoritário brasileiro. In: OLIVEIRA, F. de. A navegação venturosa: ensaios sobre Celso Furtado. São Paulo: Boitempo, 2003. p. 59-83 apontasse um diálogo essencial do economista paraibano com o pensamento conservador de Oliveira Viana e Alberto Torres, do qual teria surgido um pensamento mais complexificado - frente ao que era propagado pela esquerda e direita contemporâneas a Furtado - sobre o Estado no Brasil e sua relação com a sociedade.

Em vista do que até aqui fora exprimido de maneira abreviada, passaremos agora a expor de modo mais pormenorizado o nosso argumento a respeito da vinculação de Victor Nunes Leal ao radicalismo de classe média em suas demonstrações textuais e no pensamento do cientista político mineiro.

A invenção de uma tradição.

Algumas leituras sobre o livro Coronelismo, enxada e voto têm apontado que, na verdade, ao se olhar objetivamente tal obra, poder-se-ia notar em Nunes Leal uma autonomia da esfera política em relação às demais esferas da sociedade. Até porque, segundo esta interpretação, o problema real do coronelismo, apontado por Leal sem este se dar conta, estaria localizado no governismo dos coronéis e não na relação entre coronéis e trabalhadores rurais. Estas formulações podem ser encontradas nas interpretações de Lamounier (1999)LAMOUNIER, Bolivar. Victor Nunes Leal: coronelismo, enxada e voto. In: MOTA, L. D. (org.). Introdução ao Brasil: um banquete no trópico. São Paulo: Senac, 1999. e de Limongi (2012)LIMONGI, Fernando. Eleições e Democracia no Brasil: Victor Nunes Leal e a transição de 1945. Dados - Revista de Ciências Sociais, v. 55, n.1, p. 37-69, 2012..

Tal leitura da obra de Leal é compatível com o paradigma da autonomia da política, característica de uma forma de fazer ciência política no Brasil, a qual fora sistematizada por Silva e Keinert (2010)KEINERT, Fábio; SILVA, Dimitri. A gênese da ciência política brasileira. Tempo Social, v. 22, n. 1, p.79-98, 2010. e por Forjaz (1997)FORJAZ, Maria Cecília. A emergência da Ciência Política no Brasil: aspectos institucionais. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 12, n. 35, p. 1-22, 1997.. Segundo argumentam Silva e Keinert (2010)KEINERT, Fábio; SILVA, Dimitri. A gênese da ciência política brasileira. Tempo Social, v. 22, n. 1, p.79-98, 2010., a partir do movimento disciplinar de autonomização da ciência política nos anos 1960, seguiu-se uma certa invenção da tradição desta forma de feitura da ciência política, que se voltava para o pensamento social brasileiro da Primeira República, com os devidos esquecimentos e obliterações, para se reivindicar como uma tradição oposta àquela da chamada Escola Sociológica Paulista (Cf. Bastos, 2002BASTOS, Elide Rugai. Pensamento social da escola sociológica paulista. In: MICELI, S. (org.). O que ler na ciência social brasileira. São Paulo: Editora Sumaré; ANPOCS, 2002. p. 183-230.). Isso porque esta escola seria a principal adversária desta pretensa primeira geração de modernos cientistas políticos, os quais tinham como ponto de fuga desenvolver esta disciplina como um campo autônomo do conhecimento no Brasil (Forjaz, 1997FORJAZ, Maria Cecília. A emergência da Ciência Política no Brasil: aspectos institucionais. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 12, n. 35, p. 1-22, 1997.).

Silva e Keinert demonstram este movimento no texto de Lamounier (1999)LAMOUNIER, Bolivar. Victor Nunes Leal: coronelismo, enxada e voto. In: MOTA, L. D. (org.). Introdução ao Brasil: um banquete no trópico. São Paulo: Senac, 1999., cujo argumento era de que na obra de Nunes Leal seria possível vislumbrar no Brasil o funcionamento de instituições liberal-democráticas independentemente da estrutura social encontrada aqui. Buscamos argumentar em nosso texto que Limongi opera o mesmo procedimento que Lamounier ao reivindicar Nunes Leal como a tradição da ciência política que pratica, à revelia do pensamento do jurista mineiro, visto que os pressupostos, o sentido do trabalho, o método e o debate do qual Leal participa não são os mesmos e não seriam compatíveis com uma visão autônoma das instituições políticas no Brasil - conforme será debatido posteriormente - e que é empregada por Limongi.

Para desenvolver seu argumento, Limongi aponta que o problema do funcionamento político do Brasil, na obra Coronelismo, Enxada e Voto, está em um lugar diferente do que explicita Leal. Para o jurista mineiro, os coronéis controlam os trabalhadores rurais que não têm terra e dependem exclusivamente deles para votarem em seu candidato para o governo municipal. Por fazerem isso, os governos estaduais dão recursos para os coronéis e candidatos governistas, de forma que todos ganham com este esquema político e predomina o governismo. Para Limongi, contudo, o problema não está no controle dos coronéis sobre os trabalhadores rurais, mas sim na ligação coronel-município-estado, dado que o problema que o próprio Leal não percebeu era o de explicar o governismo em uma etapa acima, uma vez que o próprio autor mineiro argumenta que havia disputas entre os coronéis e ganhariam aqueles que conseguissem mobilizar a maior quantidade de votos para governo. Por conseguinte, se o município não dependesse financeiramente do estado, haveria competição, posto que os coronéis divergentes fariam eleições competitivas.

Desta feita, Limongi argumenta que de nada adiantaria melhores condições para os trabalhadores rurais: “a elevação do nível ‘cultural e material’ dos eleitores sempre pode ser julgado insuficiente para garantir que o voto seja verdadeiramente livre, sobretudo quando os eleitores votam em desacordo com as expectativas do que o observador considera razoável” (LIMONGI, 2012LIMONGI, Fernando. Eleições e Democracia no Brasil: Victor Nunes Leal e a transição de 1945. Dados - Revista de Ciências Sociais, v. 55, n.1, p. 37-69, 2012., p. 44-45). Da mesma forma, o cientista político uspiano expõe que Nunes Leal não deixa claro o mecanismo através do qual se daria a ligação entre a base material e a deturpação do governo representativo, ou melhor dizendo, entre a base social inadequada e a determinação de que as eleições não poderiam ser competitivas. Esta última condição, a saber, a competividade, Limongi julga ser necessária e suficiente para um sistema representativo adequado ou democrático. Outro passo importante do artigo de Limongi é argumentar que Nunes Leal se atentou para a ruptura política de 1945. De acordo com o cientista político uspiano, Leal chegou mesmo a construir importantes contrastes entre as eleições pré e pós 1945 e, nesse sentido, viu-se forçado a explicar essa ruptura política essencial ao período. Não obstante, nesse caso, Leal não teria invocado a estrutura social e econômica para corroborar a sua explicação e, contudo, também não teria oferecido uma explicação institucional, já que não daria importância para as reformas eleitorais e para o código de 1932 e suas alterações posteriores.

Voltando à questão do governismo, de acordo com Limongi, podemos encontrar no próprio Leal a ideia segundo a qual o governismo não está ligado às questões econômicas e sociais, mas sim às questões de centralização e descentralização de recursos e controles. Algo que pode ser visto na seguinte passagem:

Nunes Leal não vincula o governismo à grande propriedade e à dependência social do eleitor. Nada impede que proprietários de terra disputem o poder entre si. O fato de as eleições não serem competitivas não decorre da estrutura social. O governo sempre vence as eleições, mas o faz sem controlar diretamente os eleitores. O controle é, por assim dizer, descentralizado. Esta é uma das grandes contribuições da obra: apresentar um modelo em que há coordenação e alinhamento políticos dos líderes dos três níveis distintos de governo. O que há por explicar é porque o chefe político local, o ‘coronel’, que comanda discricionariamente um lote considerável de votos de cabresto, se vê impelido a perfilar-se com o governo (LIMONGI, 2012, p. 47).

Seguindo o argumento de Limongi, o problema do sistema representativo estaria na falta de autonomia e amesquinhamento das instituições municipais:

Eis porque o sistema representativo é invertido: a maioria não escolhe livre e espontaneamente os governantes. E isto ocorreria mesmo em uma situação limite em que as eleições fossem “livres e regulares”. A escolha é induzida, mais ou menos forçada, pelo alinhamento prévio com as forças dominantes no plano estadual e as vantagens decorrentes. Contassem os municípios com autonomia legal e financeira, e a maioria poderia fazer suas escolhas, não teria que se inclinar necessariamente em direção ao oficialismo (LIMONGI, 2012, p. 50).

O pressuposto de que a concorrência entre os coronéis bastaria para ter eleições competitivas caso houvesse autonomia municipal desemboca em uma visão procedimentalista, institucionalista e minimalista de democracia, a partir da qual basta a competição para ser julgada adequada. Apesar disso, ao se considerar os argumentos de Limongi, fica uma questão a ser resolvida ainda, a saber, a da relação entre município autônomo e coronéis. Dado que, mesmo se supondo um município autônomo dos governos estaduais, a relação com os coronéis continuaria sendo a troca de recursos por votos mobilizados. Exposto isto, o que queremos destacar é que Limongi volta a um autor clássico do pensamento brasileiro para argumentar que, mesmo que Nunes Leal não se desse conta, estaria fazendo uma análise compatível com aquela da tradição de Limongi, isto é, com o modo norte-americano de ciência política, característico da constituição da disciplina no Brasil como um campo autônomo das demais ciências sociais - assim como fez Lamounier (1999)LAMOUNIER, Bolivar. Victor Nunes Leal: coronelismo, enxada e voto. In: MOTA, L. D. (org.). Introdução ao Brasil: um banquete no trópico. São Paulo: Senac, 1999. com o Nunes Leal.

Nesse bojo, é interessante notar em textos posteriores de Leal que seus pressupostos não se aproximam daqueles narrados por Forjaz (1997)FORJAZ, Maria Cecília. A emergência da Ciência Política no Brasil: aspectos institucionais. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 12, n. 35, p. 1-22, 1997. e Keinert e Silva (2010)KEINERT, Fábio; SILVA, Dimitri. A gênese da ciência política brasileira. Tempo Social, v. 22, n. 1, p.79-98, 2010. e colocados em prática por Limongi (2012)LIMONGI, Fernando. Eleições e Democracia no Brasil: Victor Nunes Leal e a transição de 1945. Dados - Revista de Ciências Sociais, v. 55, n.1, p. 37-69, 2012. na chamada moderna ciência política aqui estabelecida a partir de meados de 1960. Citaremos, como exemplos, antes de passarmos para uma análise mais detida do livro Coronelismo, enxada e voto, a palestra proferida em 1954 por Leal e depois reunida em livro em 1955 com o título “A divisão dos poderes no quadro político da burguesia” - e, posteriormente, publicada como artigo na antiga Revista de Ciência Política no ano de 1977 - e o artigo intitulado “O coronelismo e o coronelismo de cada um”, de 1980, publicado na revista Dados.

No primeiro escrito, “A divisão dos poderes no quadro político da burguesia”, Leal procura argumentar, grosso modo, que o verdadeiro sentido sociológico da divisão de poderes defendida por Montesquieu não era propriamente para impedir a usurpação de poder pelo executivo e sim como um modo de obstar as reivindicações das massas populares. Até porque, com a Revolução Francesa, gestou-se um tipo de Estado débil, dividido e vagaroso (Leal, 1977LEAL, Victor Nunes. A divisão dos poderes no quadro político da burguesia. In: Revista de Ciência Política, v. 1, n. 20, p.127-142, 1977., p. 135), o qual mais convinha à ascendente - tanto economicamente, quanto socialmente -- burguesia francesa, de modo a garantir a sua liberdade em todos os sentidos e, principalmente, a integridade da propriedade privada. Não obstante, boa parte da população não tinha condições e possibilidades de chegar à situação social e econômica burguesa. Com efeito, essas massas populares apelariam ao Estado por melhorias de vida e pela participação dos benefícios materiais da sociedade, assaltando a cidadela do poder burguês e colocando na ordem do dia um governo a seu favor. Tudo isso se daria por meio do voto e das eleições representativas, levando a burguesia a reconfigurar os mecanismos de representação do Estado Liberal num sentido restritivo à vontade das massas assalariadas, algo bem exemplificado, segundo argumenta o jurista mineiro na Convenção da Filadélfia e nas falas de Madison lá proferidas (Leal, 1977LEAL, Victor Nunes. A divisão dos poderes no quadro político da burguesia. In: Revista de Ciência Política, v. 1, n. 20, p.127-142, 1977., p. 137).

De toda forma, ao final de sua exposição, permeada pelo fundo histórico da Guerra Fria, Leal argumenta que esta teoria da divisão dos poderes era à época algo já superado, posto que não atendia às necessidades modernas de salvaguarda das liberdades humanas, sua antiga finalidade histórica. Tal mudança histórica quanto à efetividade da divisão de poderes ocorre devido ao fato de viver-se em um período crítico recheado por fortes reivindicações sociais, tendentes a aumentar e que “encontram no regime representativo ainda em vigor em muitos países o instrumento adequado à sua expressão e realização” (Leal, 1977LEAL, Victor Nunes. A divisão dos poderes no quadro político da burguesia. In: Revista de Ciência Política, v. 1, n. 20, p.127-142, 1977., p. 141). Destarte, estas reivindicações ou mudam o sistema capitalista, e o estado representativo terá reformado a sociedade, ou o sistema capitalista desfigura o regime representativo, e, então, a estrutura econômica terá reajustado a estrutura política. Em qualquer uma delas um Estado fortificado se fará presente, à esquerda ou à direita. À vista disto, Leal termina seu texto com seguinte diagnóstico de época:

ainda está para ser encontrada uma técnica eficaz de proteção das liberdades humanas, e tudo indica, nos dias de hoje, que há de ser descoberta através da organização do próprio povo, isto é, o povo a descobrir, por si mesmo, com a sua própria experiência e a ajuda de seus líderes autênticos, a maneira de se organizar para resistir a todas as tentativas de usurpação das suas liberdades. É possível, entretanto, que essa organização do povo não seja viável senão depois que, no mundo contemporâneo, certas mudanças sejam feitas no sentido de eliminar os principais motivos de atrito, que presentemente dividem a sociedade em dois grandes campos hostis, tão hostis, que um deseja a liquidação do outro. Se a sociedade moderna não for alterada em alguns dos seus traços fundamentais, a ponto de atenuar esse conflito mortal, talvez seja impossível descobrir-se uma nova técnica de proteção das liberdades humanas, e então só nos estará reservado um período, que ninguém sabe quanto tempo durará, de colapso dos direitos individuais. [...] Este é, portanto, o grande desafio que o nosso tempo lança aos homens de estudo e de ação: o desafio à sua capacidade de organizar adequadamente a felicidade humana (LEAL 1977, p. 142).

Como último elemento que nos chama a atenção neste artigo, no sentido de mostrar certo afastamento de Leal dos pressupostos formais da chamada moderna ciência política anteriormente exposta, é importante que destaquemos uma compreensão singular do político - bastante influenciada, conforme rodapés do artigo, pela obra do importante cientista político marxista e antigo líder do Partido Trabalhista inglês Harold Laski:

Em primeiro lugar, desejamos pôr em relevo a natureza instrumental ou teleológica das construções políticas. Sem essa noção prévia não podemos compreender adequadamente nenhuma instituição política. [...] De outro lado, as instituições políticas formam uma superestrutura, que é condicionada pela estrutura econômica e social. Pode assumir essa superestrutura formas variadas em função da mesma estrutura econômica e social. Mas ambas não podem coexistir duradouramente em situação de conflito. [...] A função da organização política é precisamente favorecer a realização das potencialidades do meio social correspondente. Nem sempre, porém, se observa isso. Às vezes a superestrutura política cerceia a evolução da sociedade, já que a evolução de uma e outra não se faz simultaneamente ou harmonicamente, não se processa com a mesma rapidez. O desenvolvimento - inclusive a mudança - das instituições políticas retarda-se quase sempre em relação ao da estrutura econômica e social. Pode-se mesmo dizer que a superestrutura política é dotada de certa flexibilidade, em virtude da qual, embora solicitada pelo desenvolvimento mais rápido da sociedade, não obstante resiste à mudança, como peça elástica suporta determinada pressão. Se, entretanto (dentro de um período que é impossível determinar-se a priori), a essa pressão não corresponde uma reforma, é de se esperar que a tensão provoque uma ruptura na organização do Estado, no sentido de um reajustamento das formas políticas às novas formas sociais e econômicas (LEAL, 1977, p. 127-128).

O mesmo timbre de compreensão da política também pode ser encontrado no artigo em que Leal (1980)LEAL, Victor Nunes. O coronelismo e o coronelismo de cada um. Dados - Revisa de Ciências Sociais, vol. 23, n. 1, p. 11-14, 1980. elabora uma pequena revisão crítica da literatura sobre coronel e coronelismo gerada após seu livro a respeito do tema. Conforme argumenta o jurista mineiro, a sua preocupação não era estudar o coronel em si e sim o coronel como parte de um sistema e estrutura de relações de poder desenvolvidas em meio à Primeira República. Afastando-se, por conseguinte, do senso comum presente nos estudos mais clássicos sobre clientelismo e formas aparentadas de dominação política. Desta feita:

Em nenhum momento - repito - chamei o coronel de senhor absoluto. Nem jamais me passou isso pela cabeça. Ao contrário, divergindo da noção corrente, digamos, da noção vulgar de coronelismo - que punha ênfase no mandonismo, apresentando sempre o coronel como um homem valente, destemido, desafiador da autoridade pública, um homem rico, poderoso, condutor de exércitos privados - o que procurei acentuar, como característica dominante na Primeira República, foi, ao contrário, a decadência sócio-econômica dos senhores rurais - mostrados numa agricultura decadente, numa agricultura depredadora -, incapazes, portanto, de solucionar os próprios problemas que a agricultura colocava para eles. Esse personagem da vida local, o que me pareceu sobretudo foi um homem mais fraco do que forte, precisando, por isso, de apoio do governo do Estado para fortalecer sua posição, para afirmar sua hegemonia no conflito de poder de âmbito municipal e, depois, na trajetória subsequente, para o âmbito estadual e, eventualmente, para o âmbito federal. Era exatamente a fraqueza dos coronéis, a fraqueza do senhoriato rural, na Primeira República, era isso que proporcionava ao governo do Estado - em troca do apoio eleitoral - o ensejo de utilizar o seu poder, a sua força, os seus recursos, as suas escolas, as suas professoras, enfim, toda a sua parafernália de violência e de redistribuições e benefícios, para fortalecer a posição dos senhores rurais - a de uns contra os outros - na disputa política local (LEAL, 1980, p. 13).

À vista disto, pode-se concluir, mesmo que provisoriamente, que a forma política em Victor Nunes Leal sofre condicionamentos importantes da economia e da sociedade em geral. Tal raciocínio leva a crer que o afastamento de Leal em relação à ciência política praticada por Limongi e descrita por Forjaz (1997)FORJAZ, Maria Cecília. A emergência da Ciência Política no Brasil: aspectos institucionais. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 12, n. 35, p. 1-22, 1997. e por Keinert e Silva (2010)KEINERT, Fábio; SILVA, Dimitri. A gênese da ciência política brasileira. Tempo Social, v. 22, n. 1, p.79-98, 2010. é substantivo. Isso porque esta última aposta justamente no contrário do que é visto na obra do Leal, a saber: que o político deveria ser visto como uma esfera autônoma em relação a outras esferas da vida social e dotada de regras próprias e não condicionadas e/ou compartilhadas com outros domínios. Isto posto, passaremos agora para algumas considerações sobre a relação de Nunes Leal com um tema clássico no seio do pensamento político e social brasileiro, a relação entre ideias importadas e meio social e político brasileiro bem como suas aproximações e distanciamentos de algumas linhagens de pensamento nele encontradas.

Crítica da cópia e o lugar das ideias em Nunes Leal.

A questão do lugar das ideias no cenário social e político brasileiro passa a ser de fato importante após o período da Independência, no qual se tenta formular um Estado-Nação e instituições que correspondessem à situação política, econômica e social brasileira (RICUPERO, 2011RICUPERO, Bernardo. Sete lições sobre as interpretações do Brasil. São Paulo: Alameda, 2011.; SCHWARZ, 2012SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2012., p.168). Em meio a este contexto independentista, desdobra-se um grande debate entre os Conservadores, de que fazia parte Paulino José Soares de Souza, o Visconde de Uruguai, e os Liberais, representados, por exemplo, por Tavares Bastos. Aqueles, os conservadores, eram animados por certo espírito romântico na tentativa de marcar o Brasil com uma identidade própria e, nesse diapasão, argumentavam que os liberais estavam apenas copiando instituições vindas de fora. Instituições estrangeiras como as inglesas, as quais eram inadequadas para a situação brasileira, forjando assim o que ficaria conhecido como crítica da cópia (Cf. URUGUAI, 2002URUGUAI, Visconde do. Visconde do Uruguai. São Paulo: Ed.34, 2002., p. 468-507) - um dos pilares do pensamento conservador ao menos desde meados de 1822 (SCHWARZ, 2012SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2012., p. 166). Já Tavares Bastos e os liberais, grosso modo, apontavam para o caráter fundamental da criação de instituições, a partir das quais mudanças cívicas e de cultura política de peso em direção à liberdade seriam efetuadas (cf. BASTOS, 1870, p. 3-13; 31-37; cf. FERREIRA, 1999FERREIRA, Gabriela Nunes. Centralização e descentralização no império: o debate Tavares Bastos e Visconde do Uruguai. São Paulo: Departamento de Ciência Política da USP; Ed. 34, 1999., p. 175-195).

Nesta contenda, chama a atenção a leitura e utilização do livro Democracia na América (TOCQUEVILLE, 2014aTOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América: leis e costumes. São Paulo: Martins Fontes, 2014a.) entre os liberais e os conservadores (FERREIRA, 1999FERREIRA, Gabriela Nunes. Centralização e descentralização no império: o debate Tavares Bastos e Visconde do Uruguai. São Paulo: Departamento de Ciência Política da USP; Ed. 34, 1999.). Nesta obra, Tocqueville argumenta haver um caminho irrefreável para a democracia, no sentido de ocorrer uma igualização como que providencial das condições, permeado pelo desenvolvimento de uma verdadeira tensão entre liberdade e a igualdade (TOCQUEVILLE, 2014aTOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América: leis e costumes. São Paulo: Martins Fontes, 2014a., p. 3) - lembrando que o ponto de fuga do pensador francês é justamente fazer com que a solução da liberdade tenha como condição a igualdade, ao modo do que vê nos Estados Unidos da América (QUIRINO, 2001)3 3 Frise-se que a igualdade era atravessada por uma série de infortúnios, os quais poderiam mesmo introjetar desgraças no desenvolvimento democrático de alguns povos como o surgimento, por exemplo, do que chama de despotismo democrático (cf. QUIRINO, 2001, p. 55-129; cf. TOCQUEVILLE, 2014b, p.113-117). . No desenrolar do livro, Tocqueville lança mão de uma argumentação pautada em uma espécie de pluralidade causal, assentada numa hierarquia de causas: em primeiro lugar, os costumes; como segundo elemento, as leis e, em último, as condições físicas (TOCQUEVILLE, 2014aTOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América: leis e costumes. São Paulo: Martins Fontes, 2014a., p.359). Assim sendo, conservadores darão maior preponderância para os costumes - contribuindo para manutenção do status quo -, liberais, por seu turno, darão maior importância para as leis, seu poder transformativo e as possibilidades de mudança de uma nação.

A partir de tais leituras, liberais e conservadores desdobraram uma discussão sobre a descentralização/centralização política e administrativa no Brasil. Contenda na qual liberais tomavam como fundamental a descentralização administrativa, pois, ao modo dos povos anglo-saxões, haveria abertura para a estruturação de um self-government (cf. BASTOS, 1870). Já Visconde do Uruguai argumentava que esta atitude levaria a um verdadeiro caos, pois o Brasil não possuía características centrais para este modelo, no caso: um povo homogêneo, ilustrado e que estivesse habituado a governar bem a si mesmo (URUGUAI, 2002URUGUAI, Visconde do. Visconde do Uruguai. São Paulo: Ed.34, 2002., p. 497; FERREIRA, 1999FERREIRA, Gabriela Nunes. Centralização e descentralização no império: o debate Tavares Bastos e Visconde do Uruguai. São Paulo: Departamento de Ciência Política da USP; Ed. 34, 1999.). Mesmo assim, é importante ter em mente que Uruguai teria o conceito de self-government como ideal possível de ser alcançado pelo Brasil. Nesse sentido, é interessante lembrar o que diz Wanderley Guilherme dos Santos sobre os “autoritários instrumentais”, próximos do que até aqui chamamos de conservadores, e sobre os “liberais doutrinários”, um tanto assemelhados ao que denominamos liberais: ambos têm como fim instaurar a “Ordem Burguesa” no Brasil, mas divergem nos caminhos. Os “autoritários instrumentais” optavam por um Estado forte, já os “liberais doutrinários” preferiam as instituições liberais, o que Santos chama de “fetichismo institucional” (SANTOS, 1978SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Ordem burguesa e liberalismo político. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1978. )4 4 Textos como “Paradigma e história”, publicado entre os anos 1974-1975 e “A práxis liberal no Brasil”, publicado em 1978 - ambos posteriormente coligidos no volume de 1978, Ordem burguesa e liberalismo político - suscitaram fortes debates com Boulivar Lamounier (1977) e Hélgio Trindade (1976). O primeiro argumentava que Santos mostrava-se simpático ao “autoritarismo instrumental” e de que, no fundo, o pensamento autoritário brasileiro não tinha como ponto de fuga uma sociedade liberal, baseando-se em uma “ideologia de estado” contrária ao liberalismo autêntico, cujo fundamento seria o mercado. Já o segundo, afirmava que o paradigma de Santos era por demais generalista, algo que mostrava seus limites no enquadramento errôneo dos integralistas. Para mais sobre o debate ver Lynch (2013) e Ricupero (2011). .

Outro autor que nessa mesma linha aponta um descompasso entre instituições, ideias e a realidade social brasileira é Oliveira Viana (1939)VIANA, Oliveira. O idealismo da constituição. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1939.. Viana, em seu livro O Idealismo da Constituição, também fez uma crítica às instituições liberais implantadas no Brasil, contudo não uma crítica às instituições em si, mas sim à sua aplicação em uma realidade social que nada teria em comum com àquelas. Na consecução de seu argumento, Viana formula uma importante distinção entre os ‘idealistas orgânicos’ e os ‘idealistas utópicos’: aqueles pensariam na realidade nacional, conseguindo perceber a evolução orgânica da sociedade brasileira; já estes, por seu lado, apenas copiariam ideias e instituições vindas de fora, em desacordo, por consequência, com o país que pretendiam dirigir.

Viana (1939)VIANA, Oliveira. O idealismo da constituição. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1939. argumenta assim que, no fundo, idealistas utópicos não teriam em consideração o fato de que aqui não haveria povo no sentido anglo-saxão da palavra. Partiriam, portanto, de uma falácia e tirariam daí as conclusões e instituições, que, na prática, teriam o efeito contrário do almejado. Esse movimento de tornar-se o seu contrário seria eximiamente exemplificado com o que ocorreria nos partidos brasileiros, os quais acabam por representar apenas interesses de camarilha, em um país marcado por um profundo ‘insolidarismo social’ e não os interesses de segmentos estruturados de uma sociedade civil organizada. Nesse bojo, Viana mesmo argumentava que a única solidariedade se faria presente na família patriarcal, encontrada nos latifúndios de mesmo tipo (Viana, 1939VIANA, Oliveira. O idealismo da constituição. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1939.).

Tendo em vista o que aqui fora discutido seria interessante que repassássemos algumas lições de Gildo Marçal Brandão sobre as linhagens do pensamento político brasileiro. Segundo argumenta o cientista político uspiano, certo senso comum historiográfico teria mania de enxergar nossa vida mental sob o signo da inorganicidade e da noção de que ideias nunca pesaram ou pesaram muito pouco na vida nacional. Contra isso, Brandão afirma que o estudo do pensamento político, dada a sua acumulação, seria capaz de justamente:

formular ou de discriminar na evolução política e ideológica brasileira a existência de ‘estilos’ determinados, formas de pensar extraordinariamente persistentes no tempo, modos intelectuais de se relacionar com a realidade que subsumem até mesmo os mais lídimos produtos da ciência institucionalizada, estabelecendo problemáticas e continuidades que permitem situar e pôr sob nova luz muita proposta política e muita análise científica atual (BRANDÃO, 2005BRANDÃO, Gildo Marçal. Linhagens do pensamento político brasileiro. Dados - Revista de Ciências Sociais, v. 48, n. 2, p.231-269, 2005., p. 236).

Deste modo, Brandão conseguiria identificar certas famílias intelectuais no Brasil, ou melhor, formas de pensamento dominantes no pensamento social e político brasileiro do século XIX para cá. Nessa toada, o ensaísta uspiano identificou quatro linhagens intelectuais brasileiras, a saber: (a) o idealismo constitucional; (b) o idealismo orgânico; (c) o pensamento radical de classe média e (d) o marxismo de matriz comunista. De acordo com os nossos propósitos, desenvolver-se-á, respectivamente e resumidamente, os termos (b) e (c).

Conforme as lições de Brandão, no termo (b) a imagem do Brasil seria a de um país totalmente fragmentado e inorgânico, dependente de um Estado forte, qualificado tecnicamente, imune aos partidos políticos e capaz de subordinar o interesse privado ao social (público). Estado que, ao fim e ao cabo, conseguiria prezar pela ordem em lugar da liberdade e com isso lograria forjar uma sociedade civil civilizada por meio de sua ação racional - só depois disto é que poderíamos, quiçá, pensar em uma democracia política (Cf. BRANDÃO, 2005BRANDÃO, Gildo Marçal. Linhagens do pensamento político brasileiro. Dados - Revista de Ciências Sociais, v. 48, n. 2, p.231-269, 2005., p. 246-247). Aqui figuras importantes seriam, por exemplo, Visconde do Uruguai, Oliveira Viana e Wanderley Guilherme dos Santos.

Quanto ao termo (c), o diagnóstico e reflexões seriam diferentes. Continuando alguns ensinamentos de Antonio Candido (2011)CANDIDO, Antonio. Vários escritos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011. sobre o tema - ele mesmo um radical desta cepa (CANDIDO, 1996CANDIDO, Antonio. Antonio Candido: marxismo e militância. Entrevista concedida a José Pedro Renzi. Praga: Revista de Estudos Marxistas, v.1, n.1, p. 5-21, 1996., 2002CANDIDO, Antonio. Textos de intervenção. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2002., 2004CANDIDO, Antonio. Recortes. 3 ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004., 2007CANDIDO, Antonio. Tererina etc. 3 ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2007.), algo também sugerido por Ramassote (2011)RAMASSOTE, Rodrigo Martins. Inquietudes da crítica literária militante de Antonio Candido. Tempo social, v.23, n.2, p.41-70, 2011. e, com diferenças, por Mota (2008)MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira (1933-1974). 2 ed. São Paulo: Ed. 34, 2008. 5 5 As diferenças com Mota e seu balanço sobre a cultura brasileira devem-se ao fato, principalmente, deste considerar que a tradição radical brasileira teria se dissolvido no esforço do reformismo desenvolvimentista (MOTA, 2008, p. 191). Algo que aparece, para nós, como uma diminuição da complexidade desta linhagem. Para mais sobre o radicalismo presente na geração de Candido, a qual contava, por exemplo, com Paulo Emilio Sales Gomes, ver Neme (1945) ou Gomes (2014). Além do trabalho minucioso sobre o grupo Clima de Heloísa Pontes (1998). -, Brandão identifica um pensamento que, do ponto de vista normativo talvez não fosse exagerado caracterizar como democrático e socializante, via de regra socialista, além de devedor de uma matriz liberal, bastante próxima do constitucionalismo (BRANDÃO, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Editora HUCITEC, 2007.). Em sua dimensão teórico-explicativa, ou melhor, a sua “forma de abordar o real, organizar a experiência e delinear a ação política” (BRANDÃO, 2010BRANDÃO, Gildo Marçal. Ideias e argumentos para o estudo da história das ideias políticas no Brasil. In: MARTINS, C. B. e LESSA, R. (orgs). Horizonte das ciências sociais no Brasil. São Paulo: Editoras Discurso Editorial e Barcarolla, 2010. p.367-376., p. 375), o cientista político uspiano acaba por tomar como sinônimos o pensamento “radical” e o que chamará de “materialismo histórico” de um “ponto de vista frouxo”. Brandão argumenta que a principal característica desse materialismo é o de analisar a sociedade como uma totalidade em movimento, sendo que o que os une, apesar das especificidades como cada um concebe a totalidade, é justamente a tentativa de ver as coisas de modo global e procurar as conexões entre elas. Destarte, podemos agrupá-los tanto em um campo, quanto em uma problemática, sendo “marcados pela propensão à leitura realista do mundo e, forçando um pouco a barra, ao reformismo revolucionário na política” (2011, p. 374). Seus “representantes” seriam, não de modo exaustivo, Manoel Bonfim, Sérgio Buarque de Holanda, Celso Furtado e o próprio Victor Nunes Leal.

Ainda num esforço de especificação destas duas linhagens, mostraremos distanciamentos e aproximações entre elas. Duas seriam as características que as distanciam. Em primeiro lugar, o diagnóstico do idealismo orgânico apontava precisamente para a constituição de um Estado centralizador e forte, de modo que conseguisse conferir ordem e estabilidade à sociedade brasileira inorgânica e anárquica; por sua vez, o diagnóstico difundido em meio ao radicalismo de classe média era galvanizado por um horizonte democrático e democratizante da sociedade em escala nacional. Em segundo lugar, se a aposta, via de regra, do idealismo conservador era numa saída conservadora para o país, o radicalismo, por seu turno, propugnava soluções reformistas, progressistas e, em certa medida, constitucionalistas ao Brasil. Se algo os aproxima, mesmo que de forma extremamente tênue, seria, na verdade, um estudo mais pormenorizado da realidade nacional. Postura que os diferenciaria do pensamento liberal e do idealismo constitucional, fortemente cosmopolita e preso, muitas vezes, a abstrações pouco aparentadas às especificidades nacionais (Cf. BRANDÃO, 2005BRANDÃO, Gildo Marçal. Linhagens do pensamento político brasileiro. Dados - Revista de Ciências Sociais, v. 48, n. 2, p.231-269, 2005.).

Posto isto, a dúvida que fica é: se Leal é de fato uma figura do radicalismo, por que não expomos apenas esta linhagem? Pelo fato de que interpretações como a de André Botelho (2007)BOTELHO, André. Seqüências de uma sociologia política brasileira. Dados - Revista de Ciências Sociais, v. 50, n. 1, p. 49-82, 2007., Felipe Fontana e Carla Ferezin (2016)FONTANA, Felipe e FEREZIN, Carla. As contribuições de Oliveira Viana para a análise da formação dos partidos políticos no Brasil. Aurora (UNESP. Marília), v. 09, n.01, p. 1-27, 2016. tensionarem esta posição e o aproximarem um bocado de Oliveira Viana. Nesse ponto, é interessante lembrar, tal qual expõe Brandão (2005, p. 241)BRANDÃO, Gildo Marçal. Linhagens do pensamento político brasileiro. Dados - Revista de Ciências Sociais, v. 48, n. 2, p.231-269, 2005., que, por vezes, estas formas de pensamento não são excludentes entre si necessariamente, podendo almas contrapostas conviverem no pensamento de um mesmo autor. Porém, acreditamos ser o caso de Leal distinto e, de acordo com sugestão do cientista político uspiano (BRANDÃO, 2005BRANDÃO, Gildo Marçal. Linhagens do pensamento político brasileiro. Dados - Revista de Ciências Sociais, v. 48, n. 2, p.231-269, 2005., p. 241), aproximamos o pensamento de Victor Nunes Leal do radicalismo de classe média, marcado pelo constitucionalismo reformista e por um ponto de vista mais voltado à totalidade social. Desta forma, mesmo que haja algumas proximidades de pensamento entre Nunes Leal e Oliveira Viana ou até mesmo a utilização dos mesmos termos, Leal logrou efetuar mudanças e reconfigurações teóricas sensíveis6 6 Aqui utilizamos livremente conhecida formulação de Pocock (2003), entretanto, com isso, não pretendemos filiar nosso trabalho ao contextualismo linguístico e suas implicações. Mas, tão somente, a partir de um uso desembaraçado de uma passagem do historiador neozelandês: i) realizar a corroboração de nosso argumento sobre mudanças de pensamento e de termos a partir da argumentação distinta de autores tomados, a priori, como aproximados e ii) mostrar o lugar desde o qual nos inspiramos nessa passagem de nossa exposição. Até porque, à diferença do contextualismo linguístico, não pretendemos neste artigo fazer uma análise da natureza, dos limites, dos desdobramentos e dos embates de um vocabulário normativo disponível em uma época e contextos sociais e políticos específicos. No mais, o próprio Gildo Marçal Brandão utilizava, em sentido bastante idiossincrático, essa metodologia contextualista. Não obstante, criticava-a justamente por não ver que grandes constelações de ideias não se resolveriam apenas em seu imediato contexto (Cf. BRANDÃO, 2005; FEMIA, 1988). em suas exposições, as quais foram galvanizadas precisamente por um horizonte político democratizante, constitucionalista e voltado a uma solução com e desde os setores populares da nação. Ainda nesta seara das criações, uma das realizações mais criativas por parte do jurista mineiro fora a circulação de uma relação mais complexa entre forma política e vida material, a partir de imbricamentos interessantes entre, por exemplo, determinações sociais, econômicas e políticas. Tudo isso tendo em vista um horizonte de democratização profuso da sociedade brasileira e suas instituições, resguardado por um forte constitucionalismo.

Destarte, adiantando um pouco os argumentos das próximas seções, apostamos numa diferenciação importante entre o pensamento de Oliveira Viana e Victor Nunes Leal. Isso se dá porque, enquanto o jurista fluminense se amparava sistematicamente num diagnóstico de Brasil constitutivo do idealismo orgânico, no qual um Estado fortificado conseguiria dar ordem a uma sociedade fortemente desagregada, imprimindo coesão e construindo uma futura sociedade civil civilizada; Nunes Leal, por seu turno, achegando-se à linhagem do radicalismo de classe média, apostava numa interpretação multifacetada da totalidade social e num ponto de vista normativo de uma sociedade difusamente democrática e democratizante, com fortes tinturas constitucionalistas e de um reformismo progressista perceptível.

Dito isto, passemos agora a um exercício de leitura da obra de Victor Nunes Leal sobre o coronelismo e seu caráter de sistema para melhor burilarmos nossas hipóteses e interpretações até aqui apresentadas.

O texto de Victor Nunes Leal: Coronelismo, enxada e voto.

Coronelismo como sistema.

Já ao começo do texto, Victor Nunes Leal lança mão de uma definição clara e ao mesmo tempo polêmica sobre o coronelismo, tomando-o como “resultado da superposição de formas desenvolvidas do regime representativo a uma estrutura econômica e social inadequada” (LEAL, 2012LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2012., p. 43). Clara, pois nos insere diretamente na temática a ser enfrentada; polêmica, visto que causou uma grande impressão na época; até porque a maioria dos autores identificava o coronelismo como um mandonismo local, isto é, como um poder privado superior e ascendente frente ao poder público débil. Leal, contrariando esse quase senso comum dos estudos políticos à época, colocaria em circulação um conceito de coronelismo o qual “incorporava, sim, traços de mandonismo local, mas era mais do que isso, fazia parte de um sistema, de uma trama que ligava coronéis (mandões), governadores e presidentes da República”. Sendo assim, “era a ideia de um sistema que distinguia seu conceito e lhe conferia originalidade” (CARVALHO, 2012CARVALHO, José Murilo de. Prefácio à sétima edição. In: LEAL, V. N. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2012., p. 10)7 7 Conforme adverte Carvalho (1997), ao contrário de Leal, que distinguia mandonismo, clientelismo e coronelismo, boa parte da bibliografia sobre poder local e suas relações com o estado não faz estas distinções. Algo que pode ser visto, só para ficarmos com algumas obras, em Carone (1971), Galjart (1964; 1965), Kaufman (1979), Machado Neto et alli (1972), Pang (1979), Pereira de Queiroz (2006), Sá (1974), Silva (1975) e Vilaça e Albuquerque (1965). Distinções sem as quais, dada a amplitude dos fenômenos em questão (mandonismo, clientelismo e coronelismo), as obras poderiam padecer de certa abstração e perda da especificidade do fenômeno coronelista. . Logo, a despeito do que se pensava, a base do fenômeno, para Nunes Leal, era a decadência do poder privado e o fortalecimento do poder público. Portanto, uma adaptação do primeiro em relação ao último. Desta feita, o fenômeno coronelista acabava por se constituir como uma forma de manifestação do decadente poder privado, tornada possível a partir de um regime representativo - dado que o governo, qualquer que seja, não pode deixar de lado os votos do eleitorado rural. Trocando em miúdos, o coronelismo não seria uma prova da vitalidade dos senhores rurais e sim sintoma de seu decaimento, algo visto no seguinte fato: “é do sacrifício da autonomia municipal que ele se tem alimentado para sobreviver” (LEAL, 2012LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2012., p. 74). Nesse sentido, é necessário lembrar que a interpretação feita por Eul-Soo Pang (1979PANG, Eul-Soo. Coronelismo e Oligarquias, 1881-1943. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.)8 8 Outra interpretação bastante conhecida sobre o coronelismo é a de Maria Isaura Pereira de Queiroz. Como nosso objetivo aqui não é levar a cabo uma revisão bibliográfica sobre o tema, não entraremos mais detidamente nos autores citados, todavia é interessante notar que Pereira de Queiroz lança mão de uma interpretação distinta, apesar de por vezes se aproximar, da de Leal. Para a socióloga uspiana, o coronelismo deve ser compreendido a partir de causas, por assim dizer, múltiplas, posto que a essência do poder do coronel encontra-se em seus bens de fortuna, no entanto esta deve ser compreendida conjuntamente com a parentela e suas lideranças carismáticas. Para conferência disto, veja-se o seguinte trecho: “Pode-se dizer, pois, que o mando político do coronel era resultado de sua posição econômica, em primeiro lugar, que dava ao indivíduo a possibilidade de exercício do poder colocando-o em situação de fazer favores; a existência de parentela era condição importante de apoio para a conservação do poder dentro do conjunto de parentes; mas entre os parentes, o chefe, por excelência era aquele que apresentasse as qualidades indispensáveis: o grande coronel era sempre um primus inter paris” (PEREIRA DE QUEIROZ, 2006, p. 199). da noção de coronelismo e coronel presente na obra do jurista mineiro carece de maior fundamentação, pois o pesquisador coreano dirá que na obra de Leal o coronel teria o status de senhor soberano, cujo mando baseava-se em expressões de ordem pessoal9 9 A esse respeito, Nunes Leal burila um pouco mais sua posição também no artigo de 1980: “Portanto, não é aquele coronelismo, em que o coronel fosse um ‘senhor absoluto’, o coronelismo de que eu cuidei. É evidente que encontramos na história do coronelismo coronéis que tinha aquela categoria, lembrando os antigos senhores de engenho do tempo da Colônia, que eram muitas vezes autoridades por si mesmos, desafiando a autoridade da Coroa. Mas isso, a meu ver, já não existia mais como sistema, na Primeira República. O poder público se engrandecera, se reforçara e se tornara mais presente, mais capaz, portanto, de reprimir rebeldias dessa natureza” (LEAL, 1980, p. 13). .

Não deixa de chamar a atenção o fato de a definição de Leal aproximar-se das formulações críticas em relação à cópia estrangeira, apresentadas anteriormente, apontando desta forma um descompasso entre as ideias, as instituições e a realidade social brasileira. Nesse mesmo diapasão, é preciso notar que o cientista político mineiro em vários momentos chega mesmo a citar a obra Idealismo da constituição de Viana, já mencionada anteriormente, para assinalar o caráter postiço de algumas de nossas instituições democráticas (Cf. LEAL, 2012LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2012., p. 136; p. 245, rodapé 10). Leal acentua ser impossível compreender o coronelismo sem levar em conta a nossa estrutura agrária, fornecedora da “base de sustentação das manifestações de poder privado ainda tão visíveis no interior do Brasil” (LEAL, 2012LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2012., p. 44). Desta feita, a aproximação com o pensamento de Oliveira Viana, conforme apostam Botelho (2007)BOTELHO, André. Seqüências de uma sociologia política brasileira. Dados - Revista de Ciências Sociais, v. 50, n. 1, p. 49-82, 2007. 10 10 Raciocínio análogo também pode ser encontrado em obra mais recente de Botelho (2019). , Fontana e Ferezin (2016)FONTANA, Felipe e FEREZIN, Carla. As contribuições de Oliveira Viana para a análise da formação dos partidos políticos no Brasil. Aurora (UNESP. Marília), v. 09, n.01, p. 1-27, 2016. , torna-se sugestiva. Até porque, para além de certa ideia de crítica da cópia, o diagnóstico de Leal aproxima-se um bocado ao de Viana (2005)VIANA, Oliveira. Populações meridionais do Brasil. Brasília: Conselho Editorial do Senado Federal, 2005. em seu texto Populações meridionais do Brasil11 11 Barbosa Lima Sobrinho (2012, p. 38; p. 42) aproxima-o também do pensamento de Alberto Torres, contudo acreditamos que, do ponto de vista do livro que será analisado mais detidamente, a influência de Torres é bastante menor que a de Oliveira Viana. No mais, sabe-se que Torres influenciou fortemente Viana. .

Para Viana (2005)VIANA, Oliveira. Populações meridionais do Brasil. Brasília: Conselho Editorial do Senado Federal, 2005., a dominação política peculiar brasileira e tudo que lhe diz respeito é determinada por nossa formação social, sendo raras as instituições de solidariedade social; destarte prevalece a existência de homens isolados vivendo em latifúndios ou em seu círculo familiar - isto é, preponderando o latifúndio autossuficiente e o forte domínio rural. Por conseguinte, a nossa organização social não seria marcada pelo conflito de classes, em razão de que classe alguma podia voltar-se contra os senhores de terra, pois todas elas, “pela ação simplificadora do grande domínio, são atraídas para a aristocracia rural e se deixam absorver por ela” (VIANA, 2005VIANA, Oliveira. Populações meridionais do Brasil. Brasília: Conselho Editorial do Senado Federal, 2005., p. 234). Nesse contexto, é forçoso lembrar que o conflito social é considerado pelo autor como fator essencial para solidariedade dos povos ocidentais. Assim, o que operaria aqui é um conflito entre o público e o privado, entendidos como ordens sociais diferentes e concorrentes. Disputa que poderia ser traduzida no plano político pelo caráter violento e pessoalizado das relações políticas. Mas qual seria o fundamento desta competição? De acordo com Viana (2003, p 223-224), seria a peculiaridade da solidariedade social constituída no Brasil. Dado que, à falta de instituições ocidentais clássicas de solidariedade, esta última seria construída no Brasil a partir do grande latifúndio, central na sociedade colonial, e dos clãs patriarcais. Gerando uma solidariedade marcada pela ambiguidade, como sugere Botelho (2007)BOTELHO, André. Seqüências de uma sociologia política brasileira. Dados - Revista de Ciências Sociais, v. 50, n. 1, p. 49-82, 2007.. Nas palavras do próprio jurista de Saquarema:

Eis aí a particularidade nossa, a particularidade da nossa organização social: todas essas classes rurais que vemos, no ponto de vista dos interesses econômicos, separadas, desarticuladas, pulverizadas, integram-se, na mais íntima interdependência, para os efeitos políticos. O que nem o meio físico, nem o meio econômico podem criar de uma forma estável, à semelhança do que acontece no Ocidente, cria-o a patronagem política, a solidariedade entre as classes inferiores e a nobreza rural. Vimo-las disjuntas; vemo-las agora dependentes e conexas (VIANA, 2003, p. 223-224, ênfases do próprio autor).

Complementando esse rápido quadro do pensamento de Viana, é preciso ressaltar, consoante ao já exposto rapidamente acima, que contra o poder dos grandes proprietários do clã rural não havia força de oposição resistente e empoderada o suficiente (Ibid., p. 241-242). Sem forma alguma de contestação ou contando com contestações deveras tímidas, estes clãs rurais tinham grande liberdade para incrustarem-se no poder público, usufruindo-o de modo privado. Resultando no que o jurista fluminense chama de “anarquia branca” (Ibid., 212), cujo efeito é eximiamente expresso na apropriação privada das instituições republicanas e/ou públicas, destorcendo-lhes o sentido. Consequentemente, seguindo a exposição de Viana:

o povo brasileiro só organiza aquela espécie de solidariedade, que lhe era estritamente necessária e útil - a solidariedade do clã rural em torno do grande senhor de terras. Todas essas outras formas de solidariedade social e política - os “partidos”, as “seitas”, as “corporações”, os “sindicatos”, as “associações”, por um lado; por outro, a “comuna”, a “província”, a “Nação” - são, entre nós, ou meras entidades artificiais e exógenas, ou simples aspirações doutrinárias, sem realidade efetiva na psicologia subconsciente do povo (VIANA, 2003, p. 345, ênfases do próprio autor).

A partir deste quadro desalentador, Viana sugere, como saída para o enfrentamento contraoligárquico e para a constituição de uma sociedade mais coesa e civilizada, a ação reformadora e lenta de um Estado “soberano, incontrastável, centralizado, unitário, capaz de impor-se a todo o país pelo prestígio fascinante de uma grande missão nacional” (VIANA, 2003, p. 366, ênfases do próprio autor).

Depois de exposto alguns lineamentos que julgamos essenciais da obra e do pensamento do pensamento do jurista fluminense, faz-se benfazejo expor alguns traços essenciais da vida política nas cidades do interior, com o fito de explicitar melhor o esquema argumentativo de Victor Nunes Leal.

Leal, ao longo de sua obra, acentua algumas características que são fundamentais para entender a vida política no interior do Brasil, dentre elas destaca-se justamente a propriedade da terra, que é um dos principais fatores para a manutenção das lideranças políticas locais. Uma vez que essa ascendência social permite aos senhores locais terem uma ampla jurisdição sobre os seus dependentes. Com efeito, “a massa humana que tira a subsistência das suas terras vive no mais lamentável estado de pobreza, ignorância e abandono” (LEAL, 2012LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2012., p. 46). A fim de embasar tal formulação, recorre aos dados de recenseamentos e pesquisas feitos à época que mostravam, de maneira clara, o agravamento da concentração da propriedade fundiária, por mais que tivesse ocorrido o aumento do número de pequenas propriedades no Brasil.

Outro fato importante na vida política interiorana é a própria formulação de melhorias locais e as despesas eleitorais, posto que parte dos eleitores brasileiros residiam no interior - no qual predominava o elemento rural e não o urbano. Necessário lembrar o fato de este eleitorado ser demasiadamente pobre, de forma que o pagamento dos diversos custos eleitorais se dava via chefes políticos locais, além da construção do aparato público municipal, como hospitais e escolas, passar pelas suas mãos. Portanto, é “perfeitamente compreensível que o eleitor da roça obedeça à orientação de quem tudo lhe paga, e com insistência, para praticar um ato que lhe é completamente indiferente” (LEAL, 2012LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2012., p. 57). Com o desenrolar argumentativo, Leal desvela outro mecanismo importante para a manutenção do coronelismo, qual seja: o governismo, ou o comportamento de tomar como a grande prioridade política ficar ao lado do governo. Um expediente político que acabava por gerar disputas inusitadas, nas quais as facções municipais se digladiavam não para conquistar eleições do município e fortalecer a presença e força de um partido no estado, mas sim para “disputar, entre si, o privilégio de apoiar o governo e nele se amparar” (Ibid., p. 67), como exemplificado no quadro a seguir:

A partir de tal esquema podemos notar a grande importância dos governadores, em razão destes possuírem “o cofre das graças e o poder da desgraça” (Ibid., p. 67), detendo, portanto, grande parte dos recursos. A partir disso, gera-se uma situação na qual sempre os líderes políticos municipais tentavam fazer parte da força política situacional, caso contrário teriam o acesso negado aos recursos necessários para, por exemplo, a constituição de obras públicas, sem as quais não seria possível manter por muito tempo a sua liderança municipal. Deve-se ter em vista, ainda, que o financiamento destes líderes municipais dava-se tanto de maneira direta, com pagamentos sem mediações, quanto de maneira indireta, com a cessão de espaços ou por meio de contratos com boa margem de lucros.

Estado, por seu turno, detém uma quantidade pequena de recursos, os quais necessitavam ser distribuídos a partir de uma ótica eleitoreira entre as unidades municipais pertencentes aos aliados políticos. Aliados que muitas vezes obtinham, também, um trunfo decisivo: a colocação da polícia do Estado sob as suas ordens. Consequentemente, por meio destas autoridades repressivas, políticos da situação podiam fingir a inexistência de perseguições políticas de adversários, dando aos aliados governistas plenas condições de fazerem o que Nunes Leal chama de mal político. De maneira sucinta o autor define o compromisso coronelista da seguinte forma:

da parte dos chefes locais, incondicional apoio aos candidatos do oficialismo nas eleições estaduais e federais; da parte da situação estadual, carta branca ao chefe local governista (de preferência o líder da facção local majoritária) em todos os assuntos relativos ao município, inclusive na nomeação de funcionários estaduais do lugar (Ibid., p. 68).

Com o desenvolvimento argumentativo, o cientista político mineiro chega a uma questão central de seu trabalho e a qual atribui grande importância para a manutenção da prática coronelista: a autonomia municipal.

Anteriormente dissemos que há uma crítica, logo no início de seu livro, à superposição de formas de representação sofisticadas e uma estrutura socioeconômica inadequada, lembrando da crítica feita por Visconde de Uruguai e Viana à importação ou à cópia de ideias e instituições vindas de fora e que estariam em descompasso com a realidade social brasileira. Todavia, Viana e Visconde do Uruguai defendiam a instituição de um Estado forte e administrativa e politicamente centralizado e não a maior autonomia da unidade municipal, que levariam necessariamente a uma anarquia. Nunes Leal, por seu turno, diferenciando-se decisivamente dos dois autores anteriores, acha justamente o contrário. A partir da divisão da autonomia em dois tipos, quais sejam: a) autonomia extralegal, ou a “carta branca que o governo estadual outorga aos correligionários locais, em cumprimento da sua prestação no compromisso típico do ‘coronelismo’” (Ibid., p. 69), e b) autonomia legal, que seria a garantia jurídica “contra as intromissões do poder estadual” e estaria “assentada em sólida base financeira”, a qual faria com que a autonomia do municipal fosse “naturalmente exercida, no regime representativo, pela maioria do eleitorado, através de seus mandatários nomeados nas urnas” (Ibid., p. 69); o jurista mineiro defende, justamente, a segunda em detrimento da primeira.

Logo, a consecução de uma legislação que instaurasse e aumentasse a autonomia de segundo tipo (legal) é fundamental para a desestruturação do ‘sistema coronelista’, posto que as unidades municipais não mais ficariam à mercê do possível recebimento de recursos estaduais - e, consequentemente, do próprio ‘compromisso coronelista’ descrito acima. Nesse bojo, o cientista político mineiro chama a atenção para as reformas constitucionais ocorridas ao longo de um amplo arco histórico no Brasil, formulando um quadro que comparava as diversas fases que ampliaram ou restringiram a esfera dos municípios e suas atribuições. Nesse ínterim, ressalta a importância da formulação de legislações eleitorais mais sofisticadas com o fito de deixar o voto mais transparente e menos acessível ao coronel, além de tentar coibir a importância do poder aglutinador do governo que diminui as incertezas do pleito, pois predispõe o eleitorado a votar em candidatos governistas. Em meio à argumentação de Leal, a questão da estruturação de uma maior ou menor autonomia municipal vai afigurando-se como uma peça essencial, de sorte que agora passaremos a exposição de algumas de suas atribuições e estruturação.

Um breve quadro de atribuições municipais.

Durante o período colonial, houve um tempo de apogeu das câmaras municipais, podendo ser constituídas em locais que ao menos estivessem nas categorias de vila. Em seu funcionamento interno, desde os oficiais da câmara até funcionários subordinados cuidavam de todas as atribuições locais. Tais modelos de câmaras municipais dispunham de rendas próprias e contribuições especiais, num período marcado pela manifestação do poderio local, assentado no extenso domínio rural, monocultor e com trabalho escravo. Com o translado da Corte para o Brasil, há uma tentativa de refrear a nobreza rural da colônia, ou mesmo antes disso, já na metade do século XVII, procuravam reduzir a sua influência, conforme argumentava Caio Prado Jr (2011)PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.. Isso porque a corte portuguesa já detinha um poder maior, tornando possível uma interferência mais efetiva e imediata na colônia, não precisando mais deixar esse serviço nas mãos da nobreza rural. É possível observar neste período o início de censuras mais eficazes por parte da Coroa ao poder local, caso sentisse-se ameaçada pelo choque com os interesses dos colonos. Situação que leva Leal a sugerir que desde esta quadra histórica é possível notar um processo de vitalização do poder público e decadência do setor privado, característica marcante do Brasil na posteridade.

Do período de regresso de D. João VI ao ano de 1828 assistiu-se à ampliação das fraquezas municipais. Com a lei de organização municipal de 1828 há a declaração das câmaras como corporações administrativas, o que, por um lado, é positivo pela divisão do trabalho, mas que também resultou num “eficiente processo técnico de diminuição de sua autonomia” (LEAL, 2012LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2012., p. 86). Nesse momento também fora instaurado o chamado Ato Adicional, descentralizador em relação à província, cujo efeito foi transferir algumas prerrogativas para as assembleias provinciais. Apesar disso, a figura central no cenário provincial continuava sendo o seu presidente. Aqui é igualmente importante ter em mente que desde o regime de 1891 voltou-se a discutir sobre a autonomia municipal, sendo o ambiente federalista propício a esta última. Entretanto, desejos municipalistas não demoraram a esfriar com a diminuição da autonomia das unidades ao mínimo aceitável constitucionalmente.

No governo provisório de 1930 era possível notar a ressurreição da velha doutrina imperial da tutela, constituindo-se como uma das grandes tarefas políticas daquele momento o desmonte do maquinário da República Velha e a injeção de eficiência à administração municipal. Nesse contexto, a administração do município é colocada sob a tutela de órgãos de administração superiores, levando a instauração dos departamentos de municipalidades, dependentes dos interventores. Não obstante, ao contrário do diagnóstico corrente, tais medidas não enfrentaram os famigerados potentados locais, dado que materializavam efetivamente interesses de ordem eleitoral e reforçavam as reciprocidades da política coronelista. Na constituinte de 1934, por sua vez, ocorre, de acordo com Leal, o seguinte: “ao mesmo tempo em que procurava, por um lado, garantir melhor a autonomia municipal, por outro, consciente ou não, permitia aos estados, através dos departamentos de municipalidades, exercer tutela administrativa e política sobre as comunas” (Ibid., p. 101).

Já o regime de 1937 é caracterizado por uma maior coerência centralizadora em razão de haver conservado os departamentos de municipalidades, reduzido a receita municipal, suprimido o direito à eletividade dos prefeitos e ainda ter criado o Departamento Administrativo, o qual tinha como intuito dar assistência ao governo estadual e municipal, exercendo, ainda, controle sobre eles. Na constituição de 1946, por sua vez, “a autonomia dos municípios foi garantida: pela eleição do prefeito e dos vereadores; pela administração própria, no que concerne ao seu peculiar interesse” (Ibid., p. 103). A conceituação desse “peculiar interesse” versava sobre a arrecadação e decretação dos tributos como atribuição municipal, no entanto, a fiscalização da administração financeira e a execução do orçamento ficaram a cargo das constituições estaduais, ainda com certa dose de ação tutelar sobre as comunas.

Leal, a certa altura de sua exposição, ressalta que uma grande parte dos problemas no país ganha um caráter que cada vez mais transcende as atribuições municipais. Todavia, ao invés de uma centralização pura e simples, deveria haver a formulação de entidades específicas municipais, com personalidades jurídicas próprias, portadoras de uma autonomia financeira e administrativa. Ademais, o cientista político mineiro enfatiza a grande importância de se instaurar não só uma autonomia financeira e de receitas nas unidades municipais, mas também política, para não haver a instituição de um sistema de controle. De acordo com Nunes Leal, esta solução voltada para maior autonomia, em todos os níveis, seria mais eficaz e viável para o enfrentamento dos problemas sociais e políticos mais candentes do país.

Algumas mudanças na legislação eleitoral e sua importância.

Nos capítulos três e quatro da obra, o autor expõe o desenvolvimento e sofisticação, ao longo do tempo no Brasil, de um sistema eleitoral cada vez mais pautado na impessoalidade, na incerteza e no caráter secreto do voto. De modo que algumas consequências deste processo devem ser salientadas.

Com o aumento do direito ao sufrágio à época, a importância dos votos da população rural aumentou significativamente, elevando, consequentemente, a importância política dos donos de terra, devido à dependência da população rural mais empobrecida em relação a estes, “consequência direta da nossa estrutura agrária, que mantém os trabalhadores da roça em lamentável situação de incultura e abandono” (Ibid., p. 232, ênfases nossas). Ao mesmo tempo, aquele movimento de sofisticação - o qual permeou desde o código eleitoral de 1932 até a Constituição de 1946 - assentava-se, conforme já dito, no aumento da impessoalidade e da incerteza, os quais confluem para abalar o sistema ‘coronelista’, haja vista o aumento considerável da dificuldade de se intervir na consecução e no andamento das eleições - antes sensivelmente mais simples e frágeis.

Elementos da conjuntura e o abalar do coronelismo.

Nunes Leal, já ao final de sua argumentação, cita alguns elementos os quais concorreram para minar e abalar o sistema coronelista. Dentre estes fatores dá especial importância ao fato de, em meados da década de 1930, a economia brasileira ter deixado de ser essencialmente rural, visto que “a produção industrial rivalizava com a produção agrícola e a crise do café havia reduzido o poder econômico dos fazendeiros, em confronto com o dos banqueiros, comerciantes e industriais” (Ibid., p. 236-237). Concomitantemente a isto, ocorre o aumento da população e o número de eleitores residentes em áreas urbanas, além de uma expressiva expansão dos meios de comunicação e transportes, propiciando uma maior possibilidade de contatos da população rural, o que gerou inevitáveis reflexos sobre sua conduta política.

Devemos lembrar que esses fatores vinham corroendo a estrutura socioeconômica do coronelismo, no entanto, havia até então uma dificuldade muito grande de transpor tais conquistas para o plano político. Deslocamento que se afigurou como um ajustamento superficial, uma vez que não se atacou de maneira profunda e radical o pilar fundamental do coronelismo, qual seja: a base agrária. E o resultado disto foi a continuação da existência desse perverso sistema, que se adaptou de várias maneiras aos diferentes locais. Neste quadro, Leal também sugeriu como urgente incrementar o vitalismo das unidades municipais, as quais deveriam ter uma maior autonomia política e econômica para auxiliar na desestruturação do coronelismo. Até porque, o coronelismo sempre foi, essencialmente, um sistema de compromisso entre um poder privado agonizante e um poder público cada dia mais vivificado.

Já no artigo de 1980, intitulado “O coronelismo e o coronelismo de cada um”, o jurista mineiro arguiu que esse sistema de compromisso coronelista entrou em franca desagregação - que, à época, parecia mais veloz do que efetivamente se via no desenrolar histórico, conforme afirmação de Leal - a partir do movimento de crescente urbanização do Brasil, do forte fluxo migratório do campo para a cidade e do movimento colateral de industrialização, fazendo com que a vida e as atividades urbanas passassem a predominar sobre as rurais. Todavia, como não se assistiu a um movimento concomitante de fortalecimento político, econômico e social das unidades municipais, no bojo da desidratação do coronelismo - que se iniciou desde o final da Primeira República e que sofre marchas e contramarchas ao longo do século XX -, originou-se um novo tipo de compromisso político coronelista; presenciado claramente nas eleições de 1976, entre o governo federal e os chefes políticos locais, ou melhor, entre a presidência da república e os municípios.

Esse novo compromisso, como nomeia Nunes Leal, encontrava-se como possibilidade em seu livro de 1948, visto que àquele tempo existiam uma série de órgãos e mecanismos econômicos, políticos e jurídicos alimentados pelo governo federal e atuantes nas unidades municipais. De sorte que, com a tentativa de acentuada centralização política e administrativa federal pós-política dos governadores de Campos Salles, os presidentes da república deveriam estreitar seus vínculos com as prefeituras e câmaras municipais. Representando, consoante ao argumento do jurista mineiro, “um reforço do coronelismo, o que não era àquele tempo previsível com tanta clareza” (LEAL, 1980LEAL, Victor Nunes. O coronelismo e o coronelismo de cada um. Dados - Revisa de Ciências Sociais, vol. 23, n. 1, p. 11-14, 1980., p.14).

Considerações finais: radicalismo e Victor Nunes Leal.

A partir do que fora sedimentado neste texto, é possível que vislumbremos diferenças importantes entre o modo de pensar de Victor Nunes Leal em relação tanto ao idealismo orgânico de Viana, quanto ao modelo de ciência política praticado predominantemente após a década de 1970 no Brasil.

De saída, é possível afirmar que o diagnóstico de Leal sobre o poder privado é distinto de Oliveira Viana, por dois motivos, ao menos: a) ao invés de fortalecido e irrefreável, o poder local é visto como decadente e extremamente dependente do poder público pelo cientista político mineiro; b) Leal não considerava, como chegou a argumentar Eul-Soo Pang (1979)PANG, Eul-Soo. Coronelismo e Oligarquias, 1881-1943. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. a respeito de seu livro Coronelismo, enxada e voto, que o coronel era uma espécie de senhor absoluto e extremamente fortificado, e sim como parte de um sistema ou estrutura de relações de poder desenvolvidos a partir da Primeira República (LEAL, 1980LEAL, Victor Nunes. O coronelismo e o coronelismo de cada um. Dados - Revisa de Ciências Sociais, vol. 23, n. 1, p. 11-14, 1980.). Nesse diapasão, contrariamente ao ideal de um Estado exageradamente empoderado e centralizador, o cientista política mineiro pensava numa autonomização municipal acentuada, seguida de toda infraestrutura jurídica, econômica, política e social necessária ao desenvolvimento de uma democracia representativa adequada ao país, sem falseamentos e distorções (Cf. CARVALHO, 2012CARVALHO, José Murilo de. Prefácio à sétima edição. In: LEAL, V. N. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2012., p. 18). Além disso, ao contrário do marcante autoritarismo de Viana, vemos na obra de Nunes Leal um reformismo constitucionalista essencialmente democrático e voltado para uma inclusão mais efetiva e não deturpada dos setores populares na vida política do Brasil. Com estes elementos em mente, é possível que o aproximemos, com efeito, da linhagem de pensamento do radicalismo de classe média.

Poder-se-ia argumentar, baseando-se em Botelho (2007)BOTELHO, André. Seqüências de uma sociologia política brasileira. Dados - Revista de Ciências Sociais, v. 50, n. 1, p. 49-82, 2007., Fontana e Farezin (2016)FONTANA, Felipe e FEREZIN, Carla. As contribuições de Oliveira Viana para a análise da formação dos partidos políticos no Brasil. Aurora (UNESP. Marília), v. 09, n.01, p. 1-27, 2016. , que, apesar de distanciamentos, o central da argumentação de Leal corresponde aos esquemas de Viana e ao seu modo de pensar. Porém, mesmo que o cientista político mineiro faça uso de quadro conceitual próximo ou mesmo inspirado em Viana, opera-o de um modo que muda o seu sentido inicialmente conservador e autoritário, fazendo um lance criativo e inovador. Cujo ponto de fuga seria justamente uma democratização difusa da sociedade nacional, algo próprio do radicalismo de classe média e seu modo de pensar.

Nesta mesma toada, é possível também arguir que a interpretação feita por Limongi (2012)LIMONGI, Fernando. Eleições e Democracia no Brasil: Victor Nunes Leal e a transição de 1945. Dados - Revista de Ciências Sociais, v. 55, n.1, p. 37-69, 2012. acaba por obliterar pressupostos e partes importantes da obra intelectual de Leal, pois o jurista mineiro pensa o político não como uma esfera autônoma e afastada, por exemplo, da economia e da sociedade em geral e sim como um lócus específico, o qual, para tornar-se plenamente inteligível, deve ser pensando numa relação complexificada com a totalidade social. Prova disso é a insistência de Nunes Leal em pensar a relação e determinação recíproca entre as formas jurídico-políticas e a base econômica e social agrária brasileira, bem como a inter-relação de ambas com a história política do país. Isso tudo, como já argumentamos, tendo como ponto de fuga político e normativo a constituição de uma sociedade democrática e nacionalmente integrada. Ponto em comum aos pensadores radicais, de acordo com as lições de Brandão (2005)BRANDÃO, Gildo Marçal. Linhagens do pensamento político brasileiro. Dados - Revista de Ciências Sociais, v. 48, n. 2, p.231-269, 2005. e Candido (2011)CANDIDO, Antonio. Vários escritos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011.. Deste modo, reprisando nosso argumento, o pensamento de Victor Nunes Leal desenvolve-se numa pista distinta tanto da ciência política hegemonicamente praticada no Brasil desde meados da década de 1970, quanto do pensamento conservador de Oliveira Vianna. Aproximando-se decisivamente do radicalismo de classe média e seu pensamento assentado em certo ponto de vista multifacetado da totalidade social.

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  • SILVA, Celso José da. Marchas e contra-marchas do mandonismo local. Belo Horizonte: Revista Brasileira de Estudos políticos, 1975.
  • TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América: leis e costumes. São Paulo: Martins Fontes, 2014a.
  • TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América: sentimentos e opiniões. São Paulo: Martins Fontes, 2012b.
  • TRINDADE, Hélgio. Texto e Contexto: nota crítica a alguns aspectos do estudo paradigma e história de Wanderley Guilherme dos Santos. Revista do IFCH, vol. 4, n. 1, p. 126-135, 1976.
  • URUGUAI, Visconde do. Visconde do Uruguai. São Paulo: Ed.34, 2002.
  • VIANA, Oliveira. O idealismo da constituição. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1939.
  • VIANA, Oliveira. Populações meridionais do Brasil. Brasília: Conselho Editorial do Senado Federal, 2005.
  • VILAÇA, Marcos Vinicius e ALBUQUERQUE, Roberto Cavalcanti de. Coronel, coronéis. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.
  • 3
    Frise-se que a igualdade era atravessada por uma série de infortúnios, os quais poderiam mesmo introjetar desgraças no desenvolvimento democrático de alguns povos como o surgimento, por exemplo, do que chama de despotismo democrático (cf. QUIRINO, 2001, p. 55-129; cf. TOCQUEVILLE, 2014bTOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América: sentimentos e opiniões. São Paulo: Martins Fontes, 2012b., p.113-117).
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    Textos como “Paradigma e história”, publicado entre os anos 1974-1975 e “A práxis liberal no Brasil”, publicado em 1978 - ambos posteriormente coligidos no volume de 1978, Ordem burguesa e liberalismo político - suscitaram fortes debates com Boulivar Lamounier (1977)LAMOUNIER, Bolivar. Formação de um pensamento autoritário na Primeira República. In: FAUSTO, B. (org.). História geral da civilização brasileira, tomo III, v. II. São Paulo: DIFEL, 1977. pp. 345-374 e Hélgio Trindade (1976)TRINDADE, Hélgio. Texto e Contexto: nota crítica a alguns aspectos do estudo paradigma e história de Wanderley Guilherme dos Santos. Revista do IFCH, vol. 4, n. 1, p. 126-135, 1976.. O primeiro argumentava que Santos mostrava-se simpático ao “autoritarismo instrumental” e de que, no fundo, o pensamento autoritário brasileiro não tinha como ponto de fuga uma sociedade liberal, baseando-se em uma “ideologia de estado” contrária ao liberalismo autêntico, cujo fundamento seria o mercado. Já o segundo, afirmava que o paradigma de Santos era por demais generalista, algo que mostrava seus limites no enquadramento errôneo dos integralistas. Para mais sobre o debate ver Lynch (2013)LYNCH, Christian. A institucionalização da área do pensamento político brasileiro no âmbito das ciências sociais: revisitando a pesquisa de Wanderley Guilherme dos Santos (1963-1978). In: Dulci, O. (org.). Leituras críticas sobre Wanderley Guilherme dos Santos. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2013. p. 11-63 e Ricupero (2011)RICUPERO, Bernardo. Sete lições sobre as interpretações do Brasil. São Paulo: Alameda, 2011..
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    As diferenças com Mota e seu balanço sobre a cultura brasileira devem-se ao fato, principalmente, deste considerar que a tradição radical brasileira teria se dissolvido no esforço do reformismo desenvolvimentista (MOTA, 2008MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira (1933-1974). 2 ed. São Paulo: Ed. 34, 2008., p. 191). Algo que aparece, para nós, como uma diminuição da complexidade desta linhagem. Para mais sobre o radicalismo presente na geração de Candido, a qual contava, por exemplo, com Paulo Emilio Sales Gomes, ver Neme (1945)NEME, Mário. Plataforma da nova geração. Porto Alegre: Globo, 1945. ou Gomes (2014)GOMES, Paulo Emílio Sales Gomes. Plataforma da nova geração. In: MENDES, A. Encontros: Paulo Emílio Sales Gomes. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2014.. Além do trabalho minucioso sobre o grupo Clima de Heloísa Pontes (1998)PONTES, Heloisa. Destinos mistos: os críticos do Grupo Clima em São Paulo (1940 - 1968). São Paulo: Companhia das Letras, 1998. .
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    Aqui utilizamos livremente conhecida formulação de Pocock (2003)POCOCK, John G. A. O conceito de linguagem e o métier d’historien. In: POCOCK, J. G. A. Linguagens do ideário político. São Paulo: Edusp, 2003. p. 63-82, entretanto, com isso, não pretendemos filiar nosso trabalho ao contextualismo linguístico e suas implicações. Mas, tão somente, a partir de um uso desembaraçado de uma passagem do historiador neozelandês: i) realizar a corroboração de nosso argumento sobre mudanças de pensamento e de termos a partir da argumentação distinta de autores tomados, a priori, como aproximados e ii) mostrar o lugar desde o qual nos inspiramos nessa passagem de nossa exposição. Até porque, à diferença do contextualismo linguístico, não pretendemos neste artigo fazer uma análise da natureza, dos limites, dos desdobramentos e dos embates de um vocabulário normativo disponível em uma época e contextos sociais e políticos específicos. No mais, o próprio Gildo Marçal Brandão utilizava, em sentido bastante idiossincrático, essa metodologia contextualista. Não obstante, criticava-a justamente por não ver que grandes constelações de ideias não se resolveriam apenas em seu imediato contexto (Cf. BRANDÃO, 2005BRANDÃO, Gildo Marçal. Linhagens do pensamento político brasileiro. Dados - Revista de Ciências Sociais, v. 48, n. 2, p.231-269, 2005.; FEMIA, 1988FEMIA, Joseph V. A historicist of ‘revisionist’ methods for studying the history of ideas. In: TULLY, J. (Org.). Meaning and context. Quentin Skinner and his critics. Princeton: Princeton University Press, 1988. p. 29-67).
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    Conforme adverte Carvalho (1997)CARVALHO, José Murilo de. Mandonismo, coronelismo, clientelismo: uma discussão conceitual. Dados: Revista de Ciências Sociais, v. 40, n.2, p. 229-250, 1997., ao contrário de Leal, que distinguia mandonismo, clientelismo e coronelismo, boa parte da bibliografia sobre poder local e suas relações com o estado não faz estas distinções. Algo que pode ser visto, só para ficarmos com algumas obras, em Carone (1971)CARONE, Edgar. Coronelismo: definição histórica e bibliográfica. Revista de Administração de Empresas, v. 11, n. 3, p. 85-92, 1971., Galjart (1964GALJART, Benno. Class and following in rural Brazil. América Latina, vol. 7, n. 3, p. 3-24, 1964.; 1965)GALJART, Benno. A further note on followings: reply to Huizer. América Latina, vol. 8, n. 3, p. 145-152, 1965., Kaufman (1979), Machado Neto et alli (1972)MACHADO NETO, Zahidé et alli. O coronelismo na Bahia. Salvador: Editora da UFBA, 1972., Pang (1979)PANG, Eul-Soo. Coronelismo e Oligarquias, 1881-1943. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979., Pereira de Queiroz (2006)PEREIRA DE QUEIROZ, Maria Isaura. O coronelismo numa interpretação sociológica. In: FAUSTO, B. (org.). História geral da civilização brasileira: O Brasil republicano, v. VIII: estrutura de poder e economia (1889-1930). Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2006. pp. 155-190, Sá (1974)SÁ, Maria Auxiliadora Ferraz de. Dos velhos aos novos coronéis: um estudo das redefinições do coronelismo. Recife: Editora UFPE, 1974. , Silva (1975)SILVA, Celso José da. Marchas e contra-marchas do mandonismo local. Belo Horizonte: Revista Brasileira de Estudos políticos, 1975. e Vilaça e Albuquerque (1965)VILAÇA, Marcos Vinicius e ALBUQUERQUE, Roberto Cavalcanti de. Coronel, coronéis. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.. Distinções sem as quais, dada a amplitude dos fenômenos em questão (mandonismo, clientelismo e coronelismo), as obras poderiam padecer de certa abstração e perda da especificidade do fenômeno coronelista.
  • 8
    Outra interpretação bastante conhecida sobre o coronelismo é a de Maria Isaura Pereira de Queiroz. Como nosso objetivo aqui não é levar a cabo uma revisão bibliográfica sobre o tema, não entraremos mais detidamente nos autores citados, todavia é interessante notar que Pereira de Queiroz lança mão de uma interpretação distinta, apesar de por vezes se aproximar, da de Leal. Para a socióloga uspiana, o coronelismo deve ser compreendido a partir de causas, por assim dizer, múltiplas, posto que a essência do poder do coronel encontra-se em seus bens de fortuna, no entanto esta deve ser compreendida conjuntamente com a parentela e suas lideranças carismáticas. Para conferência disto, veja-se o seguinte trecho: “Pode-se dizer, pois, que o mando político do coronel era resultado de sua posição econômica, em primeiro lugar, que dava ao indivíduo a possibilidade de exercício do poder colocando-o em situação de fazer favores; a existência de parentela era condição importante de apoio para a conservação do poder dentro do conjunto de parentes; mas entre os parentes, o chefe, por excelência era aquele que apresentasse as qualidades indispensáveis: o grande coronel era sempre um primus inter paris” (PEREIRA DE QUEIROZ, 2006PEREIRA DE QUEIROZ, Maria Isaura. O coronelismo numa interpretação sociológica. In: FAUSTO, B. (org.). História geral da civilização brasileira: O Brasil republicano, v. VIII: estrutura de poder e economia (1889-1930). Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2006. pp. 155-190, p. 199).
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    A esse respeito, Nunes Leal burila um pouco mais sua posição também no artigo de 1980: “Portanto, não é aquele coronelismo, em que o coronel fosse um ‘senhor absoluto’, o coronelismo de que eu cuidei. É evidente que encontramos na história do coronelismo coronéis que tinha aquela categoria, lembrando os antigos senhores de engenho do tempo da Colônia, que eram muitas vezes autoridades por si mesmos, desafiando a autoridade da Coroa. Mas isso, a meu ver, já não existia mais como sistema, na Primeira República. O poder público se engrandecera, se reforçara e se tornara mais presente, mais capaz, portanto, de reprimir rebeldias dessa natureza” (LEAL, 1980LEAL, Victor Nunes. O coronelismo e o coronelismo de cada um. Dados - Revisa de Ciências Sociais, vol. 23, n. 1, p. 11-14, 1980., p. 13).
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    Raciocínio análogo também pode ser encontrado em obra mais recente de Botelho (2019)BOTELHO, André. O retorno da sociedade: política e interpretações do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2019..
  • 11
    Barbosa Lima Sobrinho (2012, p. 38; p. 42)LIMA SOBRINHO, Barbosa. Prefácio à segunda edição. In: LEAL, V. N. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. aproxima-o também do pensamento de Alberto Torres, contudo acreditamos que, do ponto de vista do livro que será analisado mais detidamente, a influência de Torres é bastante menor que a de Oliveira Viana. No mais, sabe-se que Torres influenciou fortemente Viana.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Maio 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2020

Histórico

  • Recebido
    26 Ago 2019
  • Aceito
    07 Mar 2020
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