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Uma possível resposta berliniana às críticas de Ronald Dworkin

A berlinian response to Ronald Dworkin’s critiques

Resumo:

O artigo revisita a obra de Isaiah Berlin à luz das críticas que Ronald Dworkin fez a seu pluralismo de valores. Em um primeiro momento, este é caracterizado por meio de quatro elementos. Feito isso, são apresentadas as duas principais críticas que Dworkin faz ao pluralismo de Berlin. Em seguida, examina-se a obra de Berlin, destacando o modo como ele caracteriza o campo da ética e as saídas que nos apresenta para as situações de conflito de valores. Argumenta-se que Berlin reconhece que o campo da ética é regido pelo dever ser e que, diante do conflito, seu pluralismo aponta para a possibilidade de trocas compensatórias entre fins. Reforça-se, ao longo do texto, o compromisso do pluralismo com o valor da liberdade de escolha, com a diversidade de fins e com a autonomia do sujeito.

Palavras-chave:
Isaiah Berlin; pluralismo de valores; Ronald Dworkin; liberdade de escolha; diversidade de fins; autonomia do sujeito

Abstract:

This article revisits Isaiah Berlin’s thought through the lens of Ronald Dworkin’s criticisms of Berlin´s value pluralism (VP). The article begins by defining the four main elements of VP. It then goes on to present Dworkin’s two central criticisms of VP. The paper then revisits Isaiah Berlin’s work, highlighting his particular approach to ethics and the alternatives he identifies for dealing with conflicting values. We argue that Berlin recognizes that ethics is a normative theoretical domain and that his pluralism suggests that compensatory exchanges between values can serve as a way out of value conflicts. Throughout the text, we emphasize pluralism’s commitment to the values of freedom of choice, autonomy and diversity.

Keywords:
Isaiah Berlin; value pluralism; Ronald Dworkin; freedom of choice; diversity; autonomy

Introdução

As sociedades atuais (ao menos as que se podem dizer democráticas) são perpassadas por diversos fins e valores, com um alcance que não encontrou equivalência no passado. Esses fins e valores dizem respeito a várias esferas da vida social, estando relacionados a escolhas individuais, a formas de vidas de grupos e até mesmo a ideais mais amplos que remetem à organização da própria sociedade. No debate teórico e público, muitas correntes abordaram tal característica como algo a ser preservado nos arranjos políticos. Uma das obras que deu bastante atenção a esse aspecto, e pode-se dizer que o tomou como sua ideia central, foi a de Isaiah Berlin (1909-1997). Sua tese do pluralismo de valores - que afirma que nossa experiência ético-moral é marcada por conflitos trágicos e irremediáveis (TORMIN, 2019, p. 28) - teve e tem impacto relevante na teoria política, especialmente no âmbito do liberalismo.3 3 A teoria de Rawls, para ficar em apenas um exemplo emblemático, tem como pressuposto um contexto social marcado pelo fato do pluralismo (i.e., pela existência e pelo endosso de incomensuráveis filosofias e doutrinas morais abrangentes). Ver: RAWLS, 1987, p. 2-4.

Essa tese e as ideias a ela associadas (como a concepção de liberdade negativa de Berlin) foram objeto de várias críticas.4 4 Parte delas foi analisada em COSER (2019a). Uma das mais consistentes foi formulada por Ronald Dworkin (1931-2013), que, ao pluralismo berliniano, contrapôs sua tese da unidade do valor.5 5 O próprio título de um de seus mais importantes livros - Justiça para ouriços (2011) - evidencia essa contraposição. O ouriço é uma referência a um fragmento do poeta grego Arquíloco, que o contrapunha à raposa que, por sua vez, é associada ao pluralismo: “A raposa conhece muitas coisas, mas o porco espinho conhece uma só e muito importante”. Esse elemento muito importante”, na obra de Dworkin, é sua unidade do valor. Ver: TORMIN (2019d, p. 1). O embate entre esses dois autores envolve uma série de questões relevantes para a filosofia e teoria políticas. Neste artigo, pretende-se apresentar uma possível resposta berliniana às críticas de Dworkin.

Para além desta introdução, o texto está dividido em outras quatro seções. Na próxima, será retomada a tese berliniana do pluralismo de valores, que será caracterizada por meio de quatro aspectos: (I) universalidade dos valores; (II) diversidade; (III) incomensurabilidade; e (IV) conflitos trágicos. Apresentada essa importante tese de Berlin, serão retomadas, na terceira seção, as duas principais críticas que Dworkin lhe dirige: (I) Berlin trataria valores como “fatos brutos”, como se saber o que é um valor fosse uma questão meramente descritiva; e (II) Berlin, ao formular sua tese do pluralismo de valores, teria errado ao não distinguir um “estado de incerteza” da “indeterminação”. Ainda nessa terceira seção, como complemento à crítica, será brevemente caracterizada a tese que Dworkin opõe à de Berlin: a unidade do valor.

Essas duas seções são propedêuticas em relação à quarta, a parte mais substantiva do artigo, na qual se pretende apresentar uma possível resposta berliniana às críticas de Dworkin. Quanto à primeira crítica, argumenta-se que, ao contrário do que alega Dworkin, Berlin não trata questões ético-morais como meramente descritivas: ao reconhecer que o campo da ética é distinto do campo da lógica e das ciências sociais, ele também reconhece que o primeiro lida com questões essencialmente normativas. Quanto à segunda crítica, argumenta-se que um pluralismo berliniano não necessariamente se compromete com a tese da indeterminação. Aponta-se que, a partir da obra de Berlin, é possível extrair saídas para o conflito por meio de três importantes ideias: um decisionismo moral, o contexto cultural em que o conflito se dá, e a possibilidade de trocas compensatórias entre os fins, tendo os valores da diversidade e da autonomia do sujeito um papel relevante no equilíbrio sempre instável que se estabelece entre os diversos fins. Na última seção, conclui-se, retomando os pontos principais do artigo.

Os quatro aspectos do pluralismo de valores

O pluralismo de valores está articulado em torno de uma ideia geral, formulada de maneira precisa no famoso ensaio “Dois conceitos de liberdade”: nossa condição humana revela que somos confrontados com diversos fins humanamente aceitáveis - justiça, piedade, fraternidade, busca da realização individual etc. - e estes são não apenas distintos, mas em certas circunstâncias conflitivos. Este conflito força os sujeitos a realizarem escolhas, as quais se revelam trágicas nos casos em que atender a um fim supremo demanda o sacrifício de outro (BERLIN, 2002b, p. 270)BERLIN, Isaiah. Dois conceitos de Liberdade. In: BERLIN, Isaiah. Estudos sobre a humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, p. 226-272, 2002b.. Berlin fundamentou seu pluralismo de valores em quatro aspectos: I) valores universais; II) diversidade; III) incomensurabilidade e IV) conflito (BERLIN, 2002bBERLIN, Isaiah. Dois conceitos de Liberdade. In: BERLIN, Isaiah. Estudos sobre a humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, p. 226-272, 2002b.; CROWDER, 2002CROWDER, George. Liberalism & value pluralism. New York: Continuum, 2002., p. 44-56; GRAY, 2013GRAY, John. Isaiah Berlin: an interpretation of his thought. New Jersey: Princeton University Press, 2013., p. 175-202). Nos próximos parágrafos, detalhamos cada um deles.6 6 Uma discussão mais pormenorizada desses aspectos pode ser encontrada em COSER (2019).

O universalismo recebe, na reflexão de Berlin, o seguinte conteúdo: “todos os homens têm um senso básico de bem e mal, sejam quais forem as culturas a que pertencem” (2002c, p. 52). Tal traço se revela por meio da comparação entre culturas de épocas diferentes e entre culturas distintas situadas no mesmo período. Essa atividade somente é possível porque existem valores compartilhados (BERLIN, 2002d, p. 424)BERLIN, Isaiah. Herder e o iluminismo. In: BERLIN, Isaiah. Estudos sobre a humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, p. 379-446, 2002d., que são objetivos e finitos (o horizonte humano daquilo que é aceitável limita sua quantidade):

Há um mundo de valores objetivos. Com isso me refiro àqueles fins que os homens perseguem pelos próprios fins, para os quais as outras coisas são meios. [...] Os objetivos, os princípios morais, são muitos. Mas não são infinitamente muitos: devem estar dentro do horizonte humano. Se não estão ali, estão fora da esfera humana. Se encontro homens que adoram árvores, não porque sejam símbolos de fertilidade ou porque sejam divinas, [...] mas apenas porque são feitas de madeira; e, se quando eu perguntar por que adoram a madeira, eles responderem porque é madeira, e não me derem nenhuma outra resposta, então não sei o que querem dizer (BERLIN, 2002bBERLIN, Isaiah. Dois conceitos de Liberdade. In: BERLIN, Isaiah. Estudos sobre a humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, p. 226-272, 2002b., p. 50).

O segundo aspecto que é central ao pluralismo é a diversidade de valores. De acordo com Berlin, existe uma multiplicidade de fins humanamente aceitáveis, o que gera modos de vida distintos, todos eles igualmente relevantes: existem várias formas de vida dignas, embora não possam ser compatibilizadas. Essa diversidade de valores humanamente aceitáveis confere importância à liberdade de escolha:

O mundo que encontramos na experiência ordinária é um mundo em que somos confrontados com escolhas entre fins igualmente supremos e reivindicações igualmente absolutas; a realização de algumas dessas escolhas e reivindicações deve envolver inevitavelmente o sacrifício de outras. Na verdade, é por causa dessa situação que os homens atribuem valor tão imenso à liberdade de escolha; pois, se tivessem certeza de que em algum estado perfeito, alcançável pelos homens na terra, nenhum dos fins por eles buscados jamais entraria em conflito, a necessidade e a agonia desapareceriam, e com elas a importância central da liberdade de escolha (BERLIN, 2002b, p. 269)BERLIN, Isaiah. Dois conceitos de Liberdade. In: BERLIN, Isaiah. Estudos sobre a humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, p. 226-272, 2002b..

Os arranjos políticos são marcados por essa pluralidade de valores. Justiça social, liberdade individual, prosperidade econômica, dentre outros, são fins e valores que apenas utopicamente convivem de maneira harmoniosa. Assim, nem todos os fins podem ser atingidos simultaneamente, o que acarreta decisões que são tomadas em favor de um fim em detrimento de outros.

O terceiro aspecto que caracteriza o pluralismo é a incomensurabilidade. Os fins e os valores almejados pelos seres humanos e pelas sociedades não podem ser hierarquizados numa única escala. Supor, por exemplo, que a liberdade individual ou a justiça social possam servir de métrica para ordenar os diversos fins consiste num equívoco (BERLIN, 1984BERLIN, Isaiah. Introdução. In: BERLIN, Isaiah. Quatro ensaios sobre a liberdade. Brasília: Editora UnB, p. 1-41, 1984., p. 27; 2002bBERLIN, Isaiah. Dois conceitos de Liberdade. In: BERLIN, Isaiah. Estudos sobre a humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, p. 226-272, 2002b., p. 232 e 272). Os fins e os valores humanos são diversos e cada qual carrega um valor absoluto, podendo chocar-se irremediavelmente. Nesses casos, não haverá, em princípio, soluções definitivas (BERLIN, 2002eBERLIN, Isaiah. A originalidade de Maquiavel. In: BERLIN, Isaiah. Estudos sobre a humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, p. 299-348, 2002e., p. 344; 1984BERLIN, Isaiah. Introdução. In: BERLIN, Isaiah. Quatro ensaios sobre a liberdade. Brasília: Editora UnB, p. 1-41, 1984., p. 31):

O que eu estou interessado em estabelecer acima de tudo é que, qualquer que seja a base comum entre elas (liberdade negativa e liberdade positiva), e qualquer delas que seja passível de distorção mais grave, a liberdade negativa e a liberdade positiva não são a mesma coisa. Ambas são fins em si mesmas. Esses fins podem chocar-se irreconciliavelmente. Quando isso ocorre, inevitavelmente surgem questões de escolha. [...] O simples ponto que estou interessado em estabelecer é que, onde os valores definitivos são irreconciliáveis, aí, em princípio, não se podem achar soluções categóricas. Decidir racionalmente em tais situações é decidir, à luz de ideais genéricos, o padrão global de vida buscado por um homem, por um grupo ou por uma sociedade (BERLIN, 1984BERLIN, Isaiah. Introdução. In: BERLIN, Isaiah. Quatro ensaios sobre a liberdade. Brasília: Editora UnB, p. 1-41, 1984., p. 27).

O quarto e último aspecto que caracteriza o pluralismo está na ideia de conflito. Se os fins almejados são valores absolutos que não podem ser traduzidos em uma escala comum, então eles podem, em certas circunstâncias, colidir. Essa colisão somente poderia ser evitada caso fosse adotada uma solução utópica, na qual todos os valores estariam harmonizados e numa situação de equilíbrio. A possibilidade de um projeto utópico não encontra respaldo nem na experiência ordinária, nem nos arranjos político-sociais. Na verdade, sua adoção acarretaria, ao invés de equilíbrio, repressão em favor de um valor; ao contrário de produzir harmonia, geraria frustação (BERLIN, 1984BERLIN, Isaiah. Introdução. In: BERLIN, Isaiah. Quatro ensaios sobre a liberdade. Brasília: Editora UnB, p. 1-41, 1984., p. 28):

Valores colidem [...]. Eles podem ser incompatíveis entre culturas, grupos da mesma cultura, ou entre você e eu. [...] A justiça, a justiça rigorosa, é para algumas pessoas um valor absoluto, mas não é compatível com o que talvez sejam valores não menos definitivos para elas - clemência, compaixão - como se torna claro em casos concretos (BERLIN, 2002cBERLIN, Isaiah. A busca do ideal. In: BERLIN, Isaiah. Estudos sobre a humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, p. 41-57, 2002c., p. 50-51).

O conflito entre os fins, no pluralismo de valores, não possui uma síntese apaziguadora e força os sujeitos e as instituições a realizarem escolhas entre fins humanamente aceitáveis. A justiça rigorosa, impessoal e inflexível está em choque com o valor da piedade e da compaixão, sendo que ambas são fins relevantes. Apesar disso, em certas circunstâncias, é preciso fazer uma escolha entre elas - uma escolha trágica, pois ambas são humanamente aceitáveis e incomensuráveis7 7 Em artigo recente (2021), T. Bustamante argumenta que um aspecto importante da tese pluralista - a incomensurabilidade - é compatível com a tese dworkiniana da unidade do valor, sob algumas condições. Para ele, seguindo o próprio Dworkin, não haveria problema em admitir a presença de incomensurabilidade no domínio da ética (entendida aqui como o campo em que fazemos escolhas relativas às nossas responsabilidades com nossas próprias vidas). O problema estaria apenas no campo da moralidade interpessoal (entendida aqui como o campo que diz respeito aos deveres que temos em relação a outras pessoas) - mas apenas se a incomensurabilidade fosse comum e se a tese da unidade do valor fosse lida ontologicamente (2021, p. 2). Bustamante argumenta que, no campo da moralidade interpessoal, a incomensurabilidade ocorre apenas raramente e que a tese da unidade do valor não deve ser lida ontologicamente, mas como um compromisso metodológico (2021, p. 23-24). Conclui, assim, que seria possível compatibilizar a unidade do valor dworkiniana com a tese da incomensurabilidade (tal como formulada por Raz). O argumento é interessante e discuti-lo em detalhes implicaria um desvio do foco deste artigo (voltado a apresentar uma possível resposta berliniana às críticas que Dworkin dirige ao pluralismo de valores). Cabe apenas apontar dois aspectos: I) primeiro, que o argumento de Bustamante parece ter um pressuposto fático discutível (ver BUSTAMANTE, 2021, p. 20). O autor menciona alguns exemplos, que, a nosso ver, são insuficientes para comprovar seu argumento: seria possível pensar em uma série de contraexemplos para sugerir que a incomensurabilidade “tende” a estar significativamente presente não só na ética, mas também na moralidade interpessoal (que, para Berlin, é o que realmente importa). De todo modo, independentemente dessa questão quantitativa, seria ainda possível argumentar que os casos de incomensurabilidade - mesmo que fossem quantitativamente desprezíveis - são qualitativamente importantes, a ponto de o pluralismo de valores ser uma tese que, junto com a da incomensurabilidade, justifica e reflete com mais acurácia nossa experiência ético-moral; II) além disso, cabe assinalar que a comparação de Bustamante é com Raz, cujo pensamento tem diferenças expressivas em relação ao de Berlin. A maneira pela qual Raz (1986) se apega às teses da incomensurabilidade acarreta a afirmação de que o Estado tem o direito e o dever de preservar uma gama de bens genuinamente distintos, mas apenas os incomensuravelmente valiosos (entendidos como aqueles que contribuem para a autonomia do sujeito). Essas características “perfeccionistas” da visão de Raz significam que o pluralismo, tal como se apresenta em sua concepção de política, é muito mais moralizado do que aquilo que aparece na obra de Berlin. Para Berlin, o Estado deve permitir o exercício da liberdade negativa na busca de qualquer objetivo (contanto que este exercício seja consistente com outras pessoas fazendo o mesmo), enquanto para Raz o estado deve garantir as práticas, objetivos e formas de associação que acarretem fins moralmente valiosos para a autonomia do sujeito (1986, p. 407-412). . Caracterizada a tese do pluralismo de valores de Isaiah Berlin, passemos à crítica que Dworkin lhe faz.8 8 Por mais que o embate entre Berlin e Dworkin tenha surgido de uma divergência sobre como definir liberdade, este é apenas um aspecto particular de um desacordo de fundo, que é mais abstrato e mais importante: como devemos definir valores? O pluralismo de valores e a unidade do valor dão respostas distintas a essa questão: enquanto o primeiro propõe definições autônomas dos valores, o segundo propõe definições integradas, visando uma interpretação que mostre nossos valores em uma relação de suporte mútuo. Não nos interessa aqui o caso particular da liberdade, mas sim alguns aspectos do debate mais abstrato entre os dois autores. Para a reconstrução e uma apreciação do embate entre as duas concepções de liberdade, ver: TORMIN (2019a; 2019b).

A crítica de Dworkin ao pluralismo de valores

A crítica de Dworkin às ideias de Berlin foi principalmente formulada em três textos: I) em um ensaio de 2001, elaborado em homenagem a Berlin DWORKIN, Ronald. Do liberal values conflict? In: LILLA, Mark; DWORKIN, Ronald; SILVERS, Robert (eds.). The legacy of Isaiah Berlin. New York, New York Book Review, p. 73-90, 2001.e republicado em 2006 com o título de “Pluralismo moral” no livro A justiça de toga (2006); II) no texto “O pós-escrito de Hart e o ponto da filosofia política”, escrito em 2004 e republicado em 2006 no já citado livro; e III) na obra Justiça para ouriços (2011), cujo título remete diretamente ao verso do poeta grego Arquíloco utilizado por Berlin no seu famoso ensaio sobre Tolstói.

Dois são os aspectos principais da crítica: (I) Berlin teria tomado a diversidade de valores como um “fato bruto” e, a partir dessa ideia, retirado conclusões normativas, o que faria dele um “arquimediano”; e (II) Berlin teria falhado ao não distinguir “incerteza” de “indeterminação”: para Dworkin, o simples fato de não termos certeza a respeito de qual é a resposta certa em um caso de conflito não aponta necessariamente para a indeterminação.

As críticas de Dworkin às ideias de Berlin estão relacionadas diretamente a seu projeto intelectual, sendo parte integrante da sua tese da “unidade do valor”, que se opõe ao pluralismo berliniano.9 9 É importante mencionar que Dowrkin faz uma distinção entre moral e ética que Berlin jamais efetuou. De acordo com o primeiro, moral diz respeito à maneira pela qual o sujeito se comporta em relação a outros sujeitos; em outras palavras, como ele age para com a comunidade na qual ele vive. A ética, por sua vez, refere-se a como ele deseja viver e realizar seus fins (2011, p. 37). A teoria política faz parte da moral, posto que trata de instituições que regulam a vida da comunidade (DWORKIN, 2006, p. 34-35). Já para Berlin, a ética reúne tanto a dimensão de como os sujeitos devem viver, quanto a maneira pela qual devem tratar os demais. Para mais detalhes, ver: BERLIN, 2009, p. 325-326; 2002g, p. 114, 117 e 130. Segundo Dworkin, devemos entender os valores ético-morais de maneira integrada. Para ele, Berlin nega que isso seja possível ao afirmar, reiterada e enfaticamente, a ocorrência de conflitos trágicos e irremediáveis entre valores. Nos próximos parágrafos, apresentaremos cada uma das críticas em mais detalhes, conectando-as ao projeto intelectual mais amplo de Dworkin.10 10 Uma reconstrução detalhada da crítica pode ser consultada em TORMIN, 2019a.

A primeira crítica: Berlin, um arquimediano

A crítica de Dworkin ao pluralismo de valores berliniano associa Berlin ao “arquimedianismo”. O arquimedianismo, em filosofia moral, se baseia em uma separação do discurso em dois planos, um externo e um interno. Este seria um plano substantivo, engajado, em que as pessoas debatem afirmações ético-morais, ao passo que aquele seria um meta-plano, neutro, desengajado, em que as afirmações feitas no plano moral-substantivo são analisadas de maneira externa a ele.

De acordo com Dworkin, Berlin considera que afirmações sobre o que é um valor pertencem a um plano neutro, externo aos debates substantivos. Nesse sentido, a afirmação “na experiência ordinária dos sujeitos existem diversos fins, que são ao mesmo tempo razoáveis e conflitantes, o que os força a escolhas trágicas” seria, para Berlin, um exemplo de afirmação desengajada; apenas debates mais específicos seriam substantivos - por exemplo, aqueles em que se discute sobre a importância relativa de um valor, ou sobre quando ele deve ser sacrificado em detrimento de outros valores. Em outras palavras, é tratado como substantivo o debate sobre se, em um caso concreto, a igualdade deve prevalecer sobre a liberdade, ao passo que a questão sobre o conceito de um valor (“o que é liberdade?”) poderia ser respondida de maneira desengajada, pois estaria em um plano diferente, externo ao plano propriamente substantivo. Portanto, enquanto seria valorativa a questão sobre saber se a criação de um novo imposto fere a liberdade, a existência do conflito (liberdade versus igualdade) seria, para Berlin, um fato bruto ou uma verdade conceitual, já que deflui do próprio conceito de liberdade, que poderia ser formulado de maneira desengajada. É assim que Dworkin o interpreta:

Berlin insistiu que a definição mesma [de liberdade] [...] não é um juízo de valor, [...] mas somente uma afirmação politicamente neutra do que a liberdade, propriamente entendida, realmente é. [...] A escolha entre [a liberdade e a igualdade] [...] é uma questão de valor sobre a qual as pessoas discordarão. Mas que elas necessariamente conflitam, de modo que uma tal escolha seja necessária, era para ele não uma questão de juízo político ou moral, mas um fato conceitual de algum tipo. Berlin era, portanto, um Arquimediano acerca da filosofia política: ele pensava que o projeto de analisar o que a liberdade realmente significa deve ser perseguido por meio de um tipo de análise conceitual que não envolve juízos, pressuposições ou raciocínios normativos (DWORKIN, 2006DWORKIN. Justice in robes. Cambridge, Massachusetts, Harvard University Press, 2006., p. 146, grifo nosso; tradução própria).

Para Dworkin, tal ideia é um erro: definições e análises de conceitos de valores são também juízos de valor. Ele argumenta que a pretendida separação do discurso em dois planos não se sustenta. As afirmações que se pretendem externas não podem ser plausivelmente interpretadas como sendo neutras em relação ao debate substantivo. Em primeiro lugar, porque as próprias pessoas envolvidas nas práticas argumentativas não tratam conceitos de valores como neutros em relação à própria discussão. Ao contrário, o conceito de um valor é tomado como central na prática argumentativa em que figura. Na perspectiva de Dworkin, a definição do conceito é carregada de valores, e não uma tarefa na qual o intérprete elabora o conceito de maneira neutra. A construção e a enunciação do conceito são partes do debate substantivo. A enunciação de um conceito não é nem um projeto de análise semântica, nem um projeto que pretende desvendar os traços essenciais de um conceito, tal como ocorre com os chamados conceitos de tipo natural.11 11 Sobre esta questão em Dworkin, ver: MACEDO JR. (2013, p. 223). Portanto, é um erro pressupor que é possível elaborar uma resposta à questão “o que é a liberdade?” a partir de um ponto arquimediano:

definições ou análises dos conceitos de igualdade, liberdade, direito, dentre outros, são tão substantivas, normativas e engajadas como qualquer das opiniões em disputa nas batalhas políticas envolvendo esses ideais. A ambição de [...] [buscar] uma solução puramente descritiva para os problemas centrais da filosofia do direito é equivocada, assim como o são as ambições semelhantes de muitos dos principais filósofos políticos [dentre os quais, Berlin] (DWORKIN, 2006DWORKIN. Justice in robes. Cambridge, Massachusetts, Harvard University Press, 2006., p. 143).

Em síntese, Dworkin acusa Berlin de tomar a diversidade e o conflito entre os fins como um dado objetivo, uma espécie de dado bruto da experiência ordinária, ignorando que tal perspectiva pertence necessariamente ao domínio ético-moral, não podendo ser tratada como um dado da natureza, externo a debates substantivos.

A segunda crítica: Berlin teria falhado ao não distinguir “incerteza” de “indeterminação”

A segunda crítica associa ao pluralismo de valores um tipo de ceticismo que Dworkin denomina “interno”, cuja principal característica é considerar que a “indeterminação” é a resposta padrão diante de controvérsias morais. De acordo com Dworkin, tanto Berlin quanto o cético interno defendem suas teses a partir de uma inferência: ao se depararem com vários casos de conflitos valorativos em que não há uma resposta certa evidente, concluem que o domínio ético-moral é marcado pela ocorrência de conflitos trágicos e irremediáveis entre valores. Essa tese, segundo a qual não há resposta certa diante de muitos casos de conflitos entre valores, é a que Dworkin associa à chamada “posição de indeterminação”.

Para Dworkin, essa tese é equivocada, pois confunde “indeterminação” com “incerteza” ao afirmar que a primeira é a resposta padrão em casos morais controversos, quando, na verdade, a segunda é que deve ser tomada como tal. Diferentemente da posição de indeterminação, a posição de incerteza se limita a afirmar que, em alguns casos de conflitos entre valores, não se sabe ao certo o que os valores em conflito demandam. Cabe notar que as posições de incerteza e de indeterminação têm diferenças importantes: enquanto a primeira se limita a não endossar nenhuma das teses em debate, a segunda afirma que nenhuma das teses em debate é correta. Sendo assim, a posição de indeterminação, por tomar parte no debate, depende de argumentos substantivos para ser endossada. Já a posição de incerteza, por não tomar parte no debate, não enfrenta esse ônus argumentativo.

Segundo Dworkin, o pluralismo de Berlin não se limita a afirmar que, em muitos casos, não se sabe qual a resposta certa; ele vai além, afirmando que nenhuma resposta é correta - ou seja, que a questão é indeterminada diante da incomensurabilidade entre os valores conflitantes:

Ele [Berlin] afirma, não que frequentemente não sabemos qual é a decisão correta, mas sim que frequentemente sabemos que nenhuma decisão é correta - o que é algo bastante diferente. [Assim, pergunta-se:] quando é que podemos afirmar que [...] sabemos que nada do que dissermos será correto, porque, qualquer que seja nossa decisão, teremos feito algo errado? [...] Será possível termos direito a uma afirmação assim tão ambiciosa? (DWORKIN, 2006DWORKIN. Justice in robes. Cambridge, Massachusetts, Harvard University Press, 2006., p. 110; tradução própria).

A tese da indeterminação se baseia na pressuposição de que valores são independentes uns dos outros. O conflito trágico e irremediável entre, por exemplo, liberdade e igualdade, só ocorre porque Berlin pressupõe que esses valores são independentes, como se fossem provenientes de duas fontes igualmente soberanas e distintas (DWORKIN, 2006DWORKIN. Justice in robes. Cambridge, Massachusetts, Harvard University Press, 2006., p. 110-113).

Segundo Dworkin, o pluralismo berliniano é capaz de compreender a diversidade de fins e valores presentes no mundo moral e o conflito entre eles. Entretanto, o faz ao preço de afastar qualquer possibilidade de articular os valores entre si. Dworkin aponta que é precisamente de uma definição “independente” de liberdade (“liberdade é ausência de interferência”) que surge o conflito inevitável e trágico entre liberdade e igualdade, e esse é o conflito paradigmático mencionado por Berlin para endossar sua tese do pluralismo de valores. Para Dworkin, porém, não há por que aceitar a definição de Berlin, já que é possível conceber “liberdade” de outras maneiras, que não devem ser descartadas de antemão. Não há porque pressupor que a única concepção aceitável de liberdade é a que a concebe de maneira independente de outros valores, a não ser que se apresentem bons argumentos substantivos em favor dessa tese. De acordo com Dworkin, Berlin não cumpre esse requisito, limitando-se a pressupor a existência do conflito e confundindo, desse modo, “incerteza” e “indeterminação”:

De fato, podemos dizer que a grande questão [...] que Berlin introduziu é simplesmente a questão sobre se nossos valores políticos são independentes uns dos outros (tal como insiste sua definição de liberdade), ou se eles são interdependentes (tal como sugere a concepção rival de liberdade que eu esbocei). E essa é uma questão [...] não de definição de dicionário, ou de descoberta empírica, mas uma questão substantiva, de filosofia moral e política (DWORKIN, 2006DWORKIN. Justice in robes. Cambridge, Massachusetts, Harvard University Press, 2006., p. 9).

Ao distinguir incerteza de indeterminação, vemos que necessitamos de uma defesa argumentativa tão forte e positiva para afirmações de indeterminação quanto para afirmações de que existem muitos valores que não podem ser todos concretizados em uma só vida. Pois a questão permanece [...]: qual escolha é, apesar de tudo, a melhor? [...] [E] é, portanto, surpreendente que filósofos que declaram uma ampla indeterminação ética ofereçam tão poucos argumentos para a transição da incerteza para a indeterminação (DWORKIN, 2011DWORKIN. Justice for hedgehogs. Cambridge, Massachusetts, Harvard University Press, 2011., p. 92-94).

Como dito, a crítica de Dworkin ao pluralismo de Berlin está diretamente relacionada ao modo como ele caracteriza a tese que opõe ao pluralismo: a unidade do valor. Em síntese, podemos compreendê-la como uma resposta às posições criticadas por Dworkin, expostas nos parágrafos anteriores. A unidade do valor, portanto, afirma: (I) que não há ponto externo à moralidade a determinar a correção de juízos e proposições éticas e morais; e (II) que valores devem ser entendidos de maneira integrada e coerente, sendo concebidos de um modo que os mostre em uma relação de suporte mútuo. Enquanto a primeira afirmação se opõe ao chamado arquimedianismo em filosofia política, a segunda se opõe às definições independentes de valores que implicam os conflitos “trágicos e incomensuráveis” que caracterizam a posição de indeterminação associada ao pluralismo.

Uma possível resposta berliniana às críticas de Dworkin

O campo da ética é distinto do campo da lógica e do das ciências sociais

Vamos partir da primeira crítica de Dworkin ao pluralismo berliniano apresentada anteriormente: Berlin trataria conceitos valorativos como “fatos brutos”.

A ideia que singulariza a abordagem de Berlin tem o seguinte conteúdo: na experiência ordinária, manifesta-se uma diversidade de fins razoáveis, os quais nem sempre são possíveis de serem compatibilizados, com a consequência de que é imperioso escolher entre eles, conferindo a este ato um valor trágico (BERLIN, 2002aBERLIN, Isaiah. A letter to George Kennan. In: BERLIN, Isaiah. Liberty. Oxford: Oxford University Press, p. 336-344, 2002a., p. 269).

De acordo com o argumento berliniano, as afirmações morais não podem ser analisadas a partir dos instrumentos que regem a lógica ou as ciências empíricas. Na primeira, predomina o princípio da não-contradição, enquanto na segunda busca-se apontar regularidades nos fenômenos. O campo da ética é distinto porque é regido pela ideia do dever ser. Não basta apresentar a recorrência de um fenômeno para justificar uma conduta. Tampouco um juízo de valor, em razão da sua não-contradição, torna-se justo. No campo da ética, os meios utilizados na obtenção dos fins são avaliados como certos ou errados a partir dos valores almejados (BERLIN, 2002eBERLIN, Isaiah. A originalidade de Maquiavel. In: BERLIN, Isaiah. Estudos sobre a humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, p. 299-348, 2002e., p. 326-327).

A teoria política, que, segundo Berlin, faz parte do campo da ética, interessa-se primordialmente pelas justificativas formuladas em termos normativos. A pergunta por que os homens e as mulheres devem obedecer? deve ser analisada a partir de noções normativas sobre o justo e o injusto, o certo e o errado (BERLIN, 2002aBERLIN, Isaiah. A letter to George Kennan. In: BERLIN, Isaiah. Liberty. Oxford: Oxford University Press, p. 336-344, 2002a., p. 105). A tarefa da teoria política seria de esclarecer os valores que regem as ações das pessoas, trazendo-os à luz, de modo que os atores tivessem a oportunidade de conhecer esses valores, tornando-se, assim, conscientes das normas que regem suas ações:

O primeiro passo para compreensão dos homens é trazer à consciência o modelo ou modelos que dominam ou impregnam seu pensamento e sua ação. Como todas as tentativas de tornar os homens conscientes das categorias em que pensam, essa é uma atividade difícil e às vezes dolorosa, propensa a produzir resultados profundamente inquietantes (BERLIN, 2002gBERLIN, Isaiah. Ainda existe a teoria política? In: BERLIN, Isaiah. Estudos sobre a humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, p. 99-130, 2002g., p. 117).

O papel da teoria, por um lado, seria o de apresentar os valores que orientam as ações e, por outro, confrontá-los com a experiência empírica - um conceito de experiência que resulta tanto da observação quanto da introspecção:

O teste máximo da adequação do padrão básico é o único teste oferecido pelo senso comum ou pelas ciências: consiste em averiguar se ele se adapta às linhas gerais segundo as quais pensamos e nos comunicamos; e se alguma dessas linhas gerais são, por sua vez, questionadas, a medida final é, como sempre deve ser, uma confrontação direta com os dados concretos da observação e introspeção que tais conceitos, categorias, hábitos ordenam e tornam inteligíveis. Neste sentido, a teoria política, como qualquer outra forma de pensamento que lida com o mundo real, reside na experiência empírica, embora ainda reste a ser discutido em que sentido de empírico (BERLIN, 2002gBERLIN, Isaiah. Ainda existe a teoria política? In: BERLIN, Isaiah. Estudos sobre a humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, p. 99-130, 2002g., p. 117).

O conceito de experiência mencionado parece reunir tanto os valores postulados pelos agentes, a dimensão da introspeção, como a maneira pela qual estes se desenrolam num mundo povoado por outros agentes, a dimensão da observação. Cabe ao teórico revelar como esta ocorre, retirando o agente do seu solipsismo. A ética, portanto, não só torna visíveis os valores que guiam as ações das pessoas, explicitando-os, como também aponta sua relação com o mundo.

Essa tarefa se relaciona com a perspectiva antiutópica de Berlin: cabe à ética apontar os valores que ordenam a ação e confrontá-los com um mundo externo ao agente, um universo permeado por diversos valores, no qual qualquer tentativa de conformá-los a um único padrão, ajustá-los a um leito de Procusto, produzirá resultados funestos. Se consideramos o mundo moral sob essa ótica, esforços como o de Dworkin, que visam construir um modelo isento de conflitos de valores, revelam-se mera ilusão (BERLIN, 1991aBERLIN, Isaiah. O declínio das ideias utópicas no Ocidente. In: BERLIN, Isaiah. Limites da utopia. São Paulo: Companhia das Letras, p. 29-51, 1991a., p. 50-51). E se existe uma ilusão é porque no campo da ética existe uma verdade tanto conceitual quanto prática: a impossibilidade de se estabelecer uma métrica capaz de suprimir a diversidade de fins.

Cabe à ética, tornando patente essa ilusão, produzir um arrefecimento do sentimento de fanatismo. Quando os agentes compreendem a irredutível diversidade de fins morais, podem acatar a ideia de tolerância (BERLIN, 2005BERLIN, Isaiah. Meu caminho intelectual. In: BERLIN, Isaiah. A força das ideias. São Paulo: Companhia das Letras, p. 17-46, 2005., p. 32). Esta se manifesta de diversas maneiras, dentre estas como uma estrutura que impede os sujeitos de provocarem danos aos demais, permitindo que cada grupo possua um espaço suficiente para a busca dos seus objetivos e fornecendo aos sujeitos uma compreensão de que a diversidade é o resultado de uma sociedade livre e que a diferença não implica a obrigação de suprimir o outro. O respeito para com a alteridade não significa concordância, mas o reconhecimento da liberdade como um bem social.

A teoria política, segundo Berlin, carrega inevitavelmente consigo uma natureza valorativa, pois toda indagação e toda descrição acarretam valores do justo, do injusto, do bem, do mal etc. Para além dessa face, a teoria política desempenha um papel de revelar a diversidade de fins distintos e conflitantes, apontando para a relevância valorativa da liberdade de escolha e da proteção ao sujeito nessa ação. Toda teoria política é um esforço carregado de valores, e a teoria que interpreta corretamente a condição humana vislumbra o papel da liberdade e da diversidade. Nesse sentido, não cabe dizer que Berlin trata valores como “fatos brutos”.

O pluralismo de valores perante a diversidade de fins: possíveis saídas diante do conflito

A crítica de Dworkin aponta que Berlin estaria comprometido com a tese da indeterminação, segundo a qual a resposta padrão em casos de conflito seria que não há como resolvê-lo: o conflito seria irremediável; a questão, indeterminada. No nosso entendimento, Berlin não está necessariamente compromissado com essa tese. Na verdade, de sua obra, é possível extrair três respostas para esse dilema, três saídas para o cenário de indeterminação. A primeira aponta para um decisionismo moral, a segunda indica a cultura, e a terceira e última fundamenta a resposta na possibilidade de trocas compensatórias entre os fins. A primeira e a segunda são suscetíveis à crítica de Dworkin, ao passo que a terceira é a mais consistente das formulações de Berlin. Vejamos a primeira resposta.

Segundo Berlin, a razão tem um papel limitado na escolha derradeira acerca dos fins. O conflito entre fins últimos não pode ser arbitrado por uma razão dedutiva, fundamentada em procedimentos neutros que indicam de maneira inflexível como resolver os dilemas. Esses embates somente podem ser resolvidos através do apelo a valores, os quais por sua vez estão alicerçados no modelo geral da conduta pretendida. Somente o apelo aos valores presentes nos fins pode arbitrar o impasse:

Se desejamos viver à luz da razão, precisaremos seguir normas ou princípios, pois isso é o que é ser racional. Quando essas normas ou princípios colidem em casos concretos, ser racional é seguir o curso de conduta que menos obstrui o padrão geral no qual acreditamos. [...]. Mas, mesmo aqueles que estão cônscios da complexa tessitura da experiência, daquilo que não pode ser reduzido à generalização ou que não é passível de computação, podem, em última instância, justificar suas decisões somente através de sua própria coerência com algum padrão genérico de uma forma desejável de vida pessoal ou social (BERLIN, 1984BERLIN, Isaiah. Introdução. In: BERLIN, Isaiah. Quatro ensaios sobre a liberdade. Brasília: Editora UnB, p. 1-41, 1984., p. 31).

Essa colisão não significa que uns estejam certos e outros, errados. O choque diz respeito à impossibilidade de um consenso, apesar de os fins corresponderem a dimensões relevantes da conduta humana:

O que se torna evidente é que os valores colidem - por isso as civilizações são incompatíveis. Eles podem ser incompatíveis entre culturas, entre grupos da mesma cultura, ou entre mim e você. Você acredita em sempre falar a verdade, não importa o que aconteça; já eu não, porque acredito que a verdade às vezes pode ser demasiado dolorosa e destrutiva. Podemos discutir o ponto de vista um do outro, podemos tentar chegar a um consenso, mas no final o que você busca talvez não seja conciliável com os objetivos aos quais penso ter dedicado a minha vida. Os valores podem colidir facilmente dentro do peito de um único indivíduo; e isso não implica que, se colidem, alguns são verdadeiros e outros são falsos (BERLIN, 2002cBERLIN, Isaiah. A busca do ideal. In: BERLIN, Isaiah. Estudos sobre a humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, p. 41-57, 2002c., p. 50-51).

O que estamos chamando de decisionismo moral consiste no seguinte: existem diversos fins humanamente aceitáveis, mas em certas circunstâncias eles se chocam. O embate não pode ser arbitrado por um método dedutivo, calcado em procedimentos neutros. Nesse caso, o agente escolhe, a despeito de que identifique que existe mais do que uma única concepção de bem. O conflito entre duas éticas que postulam concepções diversas de bem só pode ser resolvido pela decisão do sujeito; eis-me aqui, reconheço as diferenças e os conflitos: não posso (nem desejo) agir de outra maneira (BERLIN, 2002eBERLIN, Isaiah. A originalidade de Maquiavel. In: BERLIN, Isaiah. Estudos sobre a humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, p. 299-348, 2002e., p. 344).

Em seus textos sobre nacionalismo e cultura, Berlin não menciona o decisionismo moral como uma saída para o embate entre fins. Sua ênfase recai sobre o conceito de cultura como aquele conjunto de valores que forneceria a base de sustentação para a escolha entre fins últimos. Consideramos que é importante destacar essa diferença de ênfase ao longo de uma obra extensa que abordou vários temas. Uma obra nem sempre é um desdobrar lógico de ideias, podendo apresentar diferenças de tratamento.

Quando os fins últimos colidem, a escolha não pode ser calcada numa decisão de um sujeito tomado isoladamente, concedendo-lhe uma liberdade ampla e irrestrita. O que deve regular a decisão do sujeito são os modos de vida existentes na sociedade na qual ele vive. Esses modos de vida estão alicerçados em valores objetivos que foram construídos vagarosamente por sucessivas gerações:

Mas, no final, não se trata de uma questão de julgamento puramente subjetivo, mas do que é ditado pelas formas de vida da sociedade a que se pertence, uma sociedade entre outras sociedades, com valores mantidos em comum, estejam ou não em conflito, pela maioria da humanidade ao longo de toda a história registrada (BERLIN, 2002cBERLIN, Isaiah. A busca do ideal. In: BERLIN, Isaiah. Estudos sobre a humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, p. 41-57, 2002c., p. 56).

Quando Berlin discute o nacionalismo, ele o toma como uma manifestação cultural, entendendo cultura no seu sentido amplo, como um conjunto de valores que confere significado às diversas manifestações daquela sociedade (BERLIN, 2002dBERLIN, Isaiah. Herder e o iluminismo. In: BERLIN, Isaiah. Estudos sobre a humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, p. 379-446, 2002d.; 2002fBERLIN, Isaiah. Nacionalismo. In: BERLIN, Isaiah. Estudos sobre a humanidade. São Paulo: Companhia das Letras , p. 585-608, 2002f.). A cultura é o produto de ações ao longo do tempo (seu tempo de maturação é longo, formado por sucessivas camadas, que são alimentadas pelas camadas anteriores), condicionando as ações posteriores ao mesmo tempo que estas a emprestam alguma particularidade. Esse conjunto de atributos fornece ideias normativas acerca do conjunto de manifestações humanas, sejam elas artísticas, econômicas ou políticas. Como um envelope, a cultura envolve e estabelece o conjunto de possibilidades do sujeito.

Em consonância com essa ideia, Berlin acrescenta mais uma. Cada cultura é um conjunto de valores particulares em relação às demais, sem que exista uma cadeia evolutiva universal que estabeleça o valor de cada uma (BERLIN, 2002dBERLIN, Isaiah. Herder e o iluminismo. In: BERLIN, Isaiah. Estudos sobre a humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, p. 379-446, 2002d., p. 439). A pintura rupestre não é inferior à de Michelangelo, nem a constituição ateniense é superior ou inferior às constituições burguesas: “para cada tipo ou cultura pertencem necessariamente características não encontradas em outras” (BERLIN, 1991bBERLIN, Isaiah. Giambatista Vico e a história da cultura. In: BERLIN, Isaiah. Limites da utopia. São Paulo: Companhia das Letras, p. 52-68, 1991b., p. 55). Além disso, os valores de cada cultura são diferentes e não são necessariamente compatíveis entre si (BERLIN, 2002cBERLIN, Isaiah. A busca do ideal. In: BERLIN, Isaiah. Estudos sobre a humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, p. 41-57, 2002c., p. 48). Em síntese, todas as culturas são manifestações particulares e, circunstancialmente, incompatíveis.

Nessa lógica, Berlin aloca os próprios valores liberais. Eles são, meramente, um produto cultural particular, sem capacidade de estabelecer uma métrica para as sociedades passadas nem tampouco para as sociedades do futuro. Por conseguinte, para aqueles que colocam seu argumento numa moldura de um liberal clássico, emerge uma outra paisagem teórica. Para ele, a ideia de uma sociedade liberal cujo arranjo político acolhe a tolerância para com a diversidade de fins e faz desse valor um dos seus pilares é uma manifestação cultural particular como outras no tempo e no espaço:

Talvez o ideal da liberdade de escolher os fins sem reivindicar validade eterna para eles e para o pluralismo de valores ligado a essa ideia seja apenas o fruto tardio de nossa civilização capitalista em declínio: um ideal que as eras remotas e as sociedades primitivas não reconheceram e que a posteridade vai considerar com curiosidade. Talvez seja assim, mas não me parece implicar conclusões céticas. Os princípios não são menos sagrados porque sua duração não pode ser garantida (BERLIN, 2002bBERLIN, Isaiah. Dois conceitos de Liberdade. In: BERLIN, Isaiah. Estudos sobre a humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, p. 226-272, 2002b., p. 272).

Nesse momento é importante que chamemos a atenção para o desfecho do argumento. Berlin reconhece que - a despeito do particularismo cultural dos valores liberais, da força que a cultura possui, envolvendo o sujeito e a sociedade, e da inexistência de um fim universal a-histórico - o nivelamento entre os valores não é uma perspectiva adequada para abordar o problema. É preciso, de alguma maneira, preservar o valor da liberdade de escolha. Para interpretar essa afirmação, é preciso reuni-la a outros valores presentes no seu argumento.

No argumento de Berlin, a liberdade de escolha está vinculada à ideia de que se deve recusar saídas que excluam definitivamente os fins preteridos. Tal recusa encontra amparo na ideia de que a diversidade de fins não deve ser suprimida. Para sustentar tal valor, devem ser empreendidas trocas compensatórias guiadas por uma razão prática. Vejamos um exemplo relevante dessa lógica.

Quando Berlin menciona o embate trágico entre liberdade individual e justiça social, ele se utiliza dessa perspectiva. Segundo ele, a desigualdade requer que seja restringida a liberdade individual de alguns de maneira a que se obtenha um ganho de justiça. Nessa operação, há, sem dúvida, uma perda de liberdade, mas ocorre uma compensação em outra esfera. Há um ganho na justiça social, na diminuição da desigualdade etc. Porém, para que isso ocorra, é preciso que se afaste a ideia de que um valor deva ser tomado como absoluto, no caso a liberdade individual. É preciso estabelecer trocas compensatórias entre os fins últimos:

Ainda assim continua verdadeiro que a liberdade de alguns deve ser restringida para assegurar a liberdade de outros. Com base em que princípio isso deveria ser feito? Se a liberdade é um valor sagrado, intocável, não pode haver tal princípio. Um ou outro de tais princípios ou regras conflitantes deve ceder, pelo menos na prática; nem sempre por razões que podem ser claramente expressas, quanto mais generalizadas em regras ou máximas universais. Ainda assim, um compromisso prático tem de ser encontrado (BERLIN, 2002bBERLIN, Isaiah. Dois conceitos de Liberdade. In: BERLIN, Isaiah. Estudos sobre a humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, p. 226-272, 2002b., p. 232).

No momento em que Berlin aponta para a importância do compromisso prático, é preciso compreender o valor que ele deseja preservar. O compromisso prático deve ser adotado com base no valor de que a diversidade de fins não deve ser suprimida da sociedade. Nessa perspectiva, está presente uma preocupação em evitar uma situação de rompimento da paz social. Todavia, não estamos perante uma capitulação absoluta da preservação da vida em detrimento de outros fins, de tal maneira que o medo da morte violenta em razão da guerra civil conduzisse os sujeitos a aceitarem um arranjo que suprima a diversidade. Suprimir, por exemplo, os ideais de justiça social ou de liberdade individual corresponderia a uma perda para a sociedade, na medida em que ambos correspondem a dimensões relevantes da vida humana. Dessa maneira, emerge, no argumento de Berlin, a perspectiva de que é preciso que sejam adotados compromissos práticos de forma a que um fim não implique a supressão dos demais, preservando dessa forma a diversidade existente na sociedade:

Podemos assumir o risco da ação drástica, na vida pessoal ou pública, mas devemos estar sempre conscientes de que podemos estar equivocados, de que a certeza sobre os efeitos dessas medidas invariavelmente leva ao sofrimento evitável do inocente. Assim devemos nos empenhar no que são as chamadas trocas compensatórias - regras, valores, princípios devem ceder uns aos outros em graus variáveis, em situações específicas. [...] O melhor que podemos fazer, em geral, é manter um equilíbrio precário que impeça a ocorrência de situações desesperadas, de escolhas intoleráveis - esse é o primeiro requisito para uma sociedade decente (BERLIN, 2002cBERLIN, Isaiah. A busca do ideal. In: BERLIN, Isaiah. Estudos sobre a humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, p. 41-57, 2002c., p. 55).

As trocas compensatórias não devem ser regidas por um princípio unívoco, que desempenhe o papel de um algoritmo, mas antes por uma razão prática, que parta das circunstâncias com vistas a encontrar um equilíbrio instável e que permita soluções que nunca são definitivas. Consideramos que, no pluralismo pretendido por Berlin, está presente de maneira implícita a ideia de tolerância. Os arranjos políticos devem ser pensados como equilíbrios instáveis, ou seja, não devem suprimir os fins em disputa, permitindo a sua existência em algum nível. Se, como afirma o trecho acima, os princípios devem ceder, é porque existe o reconhecimento difundido de que é necessário tolerar a diferença.12 12 Com isso, não estamos sugerindo que Dworkin propõe um único fim ou defende algum tipo de perfeccionismo moral. A diferença entre Berlin e Dworkin, entre pluralismo de valores e unidade do valor, se dá em um plano ontológico e não em um plano político (neste último, ambos são pluralistas: ver TORMIN, 2019c, p. 3). A diferença entre Berlin e Dworkin que estamos assinalando no corpo do texto é a seguinte: diante de um caso em que diferentes valores estão em jogo, Dworkin argumenta que devemos buscar uma interpretação que procure harmonizá-los, colocando-os em uma relação de suporte mútuo, ao passo que Berlin argumenta ser necessário fazer “trocas compensatórias”, pois o conflito trágico entre valores não pode ser desfeito interpretativamente, sob pena de estarmos falsificando o que realmente se entende por tais valores.

Diversidade de fins e autonomia do sujeito no pluralismo de valores

Berlin menciona que entre fins incomensuráveis é possível que existam trocas compensatórias que evitem que apenas um fim prevaleça, permitindo que acordos sejam realizados e oferecendo a possibilidade de que valores sejam mantidos, enquanto outros sejam sacrificados (BERLIN, 2002bBERLIN, Isaiah. Dois conceitos de Liberdade. In: BERLIN, Isaiah. Estudos sobre a humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, p. 226-272, 2002b., p. 232; 2002cBERLIN, Isaiah. A busca do ideal. In: BERLIN, Isaiah. Estudos sobre a humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, p. 41-57, 2002c., p. 55). O acordo que emerge representa um equilíbrio necessariamente instável, pois a resolução de um conflito é sempre temporária (BERLIN, 1991aBERLIN, Isaiah. O declínio das ideias utópicas no Ocidente. In: BERLIN, Isaiah. Limites da utopia. São Paulo: Companhia das Letras, p. 29-51, 1991a., p. 50). Qual seria a fundamentação ética para esse equilíbrio instável, quais os valores que justificariam tal hierarquia?

A nosso ver, dois valores são importantes para o pluralismo: a diversidade de fins e a autonomia do sujeito. Conquanto não sejam métricas absolutas, não podem ser negados ou suprimidos (BERLIN; WILLIANS, 1994BERLIN, Isaiah; WILLIAMS, Bernard. Pluralism and liberalism: a reply. Political Studies, n. 42, p. 306-309, 1994., p. 30; CROWDER, 2007CROWDER, George. Two concepts of liberal pluralism. Political Theory, Ann Arbor, v. 35, n. 2, p. 212-246, 2007.). O florescimento humano se desenvolve em sentidos distintos, os quais apontam para fins e meios diversos, que podem se combinar ou se repelirem, mas são partes da condição humana. A ideia de diversidade é desejável porquanto contribuiu para o bem-estar humano. Suprimi-la impossibilita que os sujeitos encontrem um fim que realize sua vontade. Dessa maneira, a existência de diversos fins oferece aos sujeitos a possibilidade de realizar seus anseios, sendo a diversidade, portanto, desejável enquanto um fim normativo.

O pluralismo de valores não envolve a diversidade de fins com o véu do entusiasmo, pois não se trata de um prazer estético frente à infinita variedade de fins.13 13 Tomamos como ponto de partida a interpretação de WALZER (1999, p. 17) sobre a tolerância como prazer estético. São diversos fins, muitos dos quais não podem ser realizados simultaneamente, mas permanecem como sendo relevantes. Tanto ao nível das sociedades, como no do sujeito ordinário, existem limites quanto ao que é possível abarcar. Um sujeito pode reconhecer o valor da caridade, mas preferir uma vida hedonista, sendo impossível uma existência autêntica envolvendo os dois modos de vida. A diversidade de fins não é nem bela nem feia, nem tampouco é um espetáculo que convide ao deslumbramento para com a diversidade da criação humana. Porém, ela confere sentido à autonomia do sujeito e é alimentada por este, resultando numa relação circular: por sermos autônomos, escolhemos; escolhendo, exprimimos fins diversos; exprimindo fins diversos somos conduzidos a escolher (COSER, 2020COSER, Ivo. Uma reinterpretação das liberdades negativa, positiva e de escolha. Dados - Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 63, n. 3, p. 1-34, 2020., p. 20-24).14 14 Um artigo de Plaw (2004) faz apontamentos semelhantes aos nossos, mas com diferenças relevantes. Em primeiro lugar, Plaw considera Dworkin um monista. Conforme já foi mencionado, não enquadramos Dworkin como um monista (ao menos não sem maiores qualificações): as diferenças entre Berlin e Dworkin se dão em um plano ontológico; no plano político, ambos são pluralistas. Em segundo lugar, Plaw destaca apenas a relevância que a liberdade de escolha recebe no argumento de Berlin, ao passo que nós atrelamos a liberdade de escolha ao valor da autonomia do sujeito (aspecto ignorado por Plaw). Para Plaw (2004, p. 122), a liberdade desempenha o papel chave na fundamentação do pluralismo berliniano, enquanto a interpretação de Berlin proposta neste artigo considera que a liberdade caminha pari passu com a ideia de autonomia do sujeito, sem que possam ser separadas em unidades distintas (COSER, 2019; 2020). Por último, sua análise é datada: a principal obra em que Dworkin apresenta e defende sua unidade do valor - Justice for hedgehogs (2011) - é posterior ao artigo de Plaw. Nessa perspectiva, o argumento é construído de o dever ser para o ser, em outras palavras, o dever ser estabelece a norma a partir da qual aquilo que é deve ser julgado.

Em conformidade com esse enfoque, a ideia de autonomia do sujeito revela-se central. A maneira como entendemos a autonomia do sujeito implica colocar em relevo dois aspectos importantes. O primeiro remete ao autorreconhecimento do sujeito como alguém capaz de deliberar. Perante os dilemas morais, existem várias respostas razoáveis, fundamentadas em valores distintos e, circunstancialmente, conflitivos. Como não existe uma resposta certa, mas várias possíveis, torna-se necessário que o sujeito exerça sua capacidade de escolha. Essa capacidade implica que ele se reconheça e seja reconhecido socialmente como um sujeito capaz de escolher. Esse chamar para si conduz o sujeito a justificar suas escolhas a partir de suas ideias. Não há liberdade de escolha sem que exista a autonomia do sujeito, estas duas ideias estão atadas:

Desejo ser alguém, e não ninguém; um agente - decidindo, e não deixando que outros decidam - guiado por mim mesmo e não influenciado pela natureza externa ou por outros homens como se eu fosse uma coisa, um animal ou um escravo incapaz de desempenhar um papel humano, isto é conceber metas e políticas próprias e realizá-las (BERLIN, 2002bBERLIN, Isaiah. Dois conceitos de Liberdade. In: BERLIN, Isaiah. Estudos sobre a humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, p. 226-272, 2002b., p. 237).

A frase emblemática de Kant (cada sujeito deve ser considerado um fim em si mesmo) recebe, do pluralismo de valores, uma leitura que ata a liberdade de escolha à autonomia do sujeito. Todo sujeito possui a faculdade de deliberar acerca dos fins que deseja para a sua vida.15 15 Em uma carta dirigida a George Kennan, Berlin é bastante explícito nesse ponto. Ver: BERLIN (2002a, p. 336-344).

Em síntese, o pluralismo de valores rechaça qualquer ideia que envolva um paternalismo despótico para com o sujeito. Mesmo que o sujeito responda à questão “quem é você?” através da referência a grupos coletivos: eu sou um heterossexual, um evangélico etc., deve existir um momento no qual ele escolhe fundir sua personalidade à do grupo. Ele chama para si tal escolha: quero me diluir no grupo.

Essa capacidade não é isolada do reconhecimento social. Os sujeitos demandam que a sociedade na qual eles vivem os reconheça como sujeitos capazes de escolher. Uma leitura possível dos estudos sobre nacionalismo em Berlin aponta para a centralidade deste valor. A luta de grupos pela emancipação nacional revela que os sujeitos desejam a separação de um Estado-Nação na medida em que seus valores não são reconhecidos como dignos, tornando necessário fundar um outro Estado no qual tenham reconhecimento. Como Berlin escreve, citando Burke, nenhum sujeito é um átomo isolável (BERLIN, 2002bBERLIN, Isaiah. Dois conceitos de Liberdade. In: BERLIN, Isaiah. Estudos sobre a humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, p. 226-272, 2002b., p. 259), ele requer que a sociedade o veja como alguém capaz de escolher os fins e os valores que irão orientar sua vida, e não como um menor de idade, que precise ser tutelado:

Posso sentir que não sou livre, no sentido de não ser reconhecido como um ser humano individual que se autogoverna; mas também posso me sentir sem liberdade como membro de um grupo não reconhecido ou insuficientemente respeitado; nesse caso, desejo a emancipação de toda a minha classe, comunidade, nação, raça ou profissão (BERLIN, 2002bBERLIN, Isaiah. Dois conceitos de Liberdade. In: BERLIN, Isaiah. Estudos sobre a humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, p. 226-272, 2002b., p. 259).

O segundo atributo remete à capacidade do sujeito em avaliar suas escolhas. A autonomia do sujeito consiste em sua capacidade de colocar sob avaliação suas escolhas, analisá-las criticamente, confrontando-as com outros fins e valores. Tal ideia significa a faculdade de um sujeito em colocar-se fora de um embate a fim de julgar quais fins e valores lhe são mais relevantes. Nenhum sujeito vive sem fins e valores, mas estes devem estar sujeitos à sua capacidade de avaliá-los. Estabelecer que a autonomia do sujeito necessita da capacidade deste em revisar seus fins e valores pode sugerir a ideia de que o sujeito tenha encarnado a figura de um juiz imparcial. No entanto, não é o atributo da imparcialidade entendida como ausência de valores que está presumida, mas sim a figura de alguém que é capaz de confrontar os fins e os valores com novos contextos e a sua reavaliação (COSER, 2020COSER, Ivo. Uma reinterpretação das liberdades negativa, positiva e de escolha. Dados - Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 63, n. 3, p. 1-34, 2020., p. 24-25).

Essa faculdade do sujeito em avaliar suas escolhas desempenha um papel central na ideia de liberdade, a qual, por sua vez, está imbricada na ideia de autonomia. Uma das características importantes do conceito de liberdade consiste na presença de caminhos desimpedidos perante a avaliação do sujeito. Entretanto, se estes caminhos não são percebidos pelo sujeito, pode-se afirmar que a liberdade existe formalmente, mas não é real (BERLIN, 1984BERLIN, Isaiah. Introdução. In: BERLIN, Isaiah. Quatro ensaios sobre a liberdade. Brasília: Editora UnB, p. 1-41, 1984., p. 27-31; CROWDER, 2007CROWDER, George. Two concepts of liberal pluralism. Political Theory, Ann Arbor, v. 35, n. 2, p. 212-246, 2007., p. 127). Neste sentido, a autonomia do sujeito requer, para seu exercício, políticas públicas que lhe forneçam suporte, já que sem estas a autonomia pode ser formal, mas jamais será real (CROWDER, 2009CROWDER. Pluralism, liberalism and distributive justice. San Diego Law Review, San Diego, v. 46, n. 4, p. 773-802, 2009.; COSER, 2019bCOSER, Ivo. Lei, liberdade e diversidade de fins no pluralismo de valores. Lua nova - Revista de cultura e política, São Paulo, n. 107, p. 169-202, 2019b.).

Portanto, a diversidade de fins e a autonomia do sujeito permanecem como dois valores que fornecem as bases para qualquer equilíbrio entre os fins. Liberdade individual ou igualdade social, justiça impessoal ou família, bem-estar material ou asceticismo, são fins que podem, em face das circunstâncias, serem ponderados, e perdas podem ocorrer, mas esse jogo é pensado a partir desses dois valores. A diversidade de fins exige a presença da autonomia do sujeito, da mesma maneira que um violino não produz sons sem o arco: não existe orquestra silenciosa, como não há diversidade de fins sem liberdade de escolha pelo sujeito.

Apontamentos finais

Ao longo de toda sua trajetória, Berlin nunca escreveu um texto que organizasse suas ideias na forma de um sistema, como o fizeram Dworkin e Rawls. Seu argumento apresenta antes uma certa forma de pensar sobre os problemas morais e políticos do que pressupostos que ordenam os fenômenos e os conceitos estabelecendo os princípios morais que devem julgá-los (LUKES, 2008LUKES, Steven. Prólogo. In: BERLIN, Isaiah. Lo singular y lo plural. Conversaciones con Steven Lukes. Barcelona: Página Indómita, p. 13-58, 2008., p. 29). A ideia que perpassa grande parte de sua obra e lhe confere singularidade teve, ao longo dela, enfoques distintos. Essa instabilidade interna não deve obliterar sua relevância. A nosso ver, da obra de Berlin aflora uma contribuição importante para a teoria política liberal. A ideia de que existem diversos fins na vida ordinária dos sujeitos e nos arranjos políticos pode ser encontrada em antecessores, como, por exemplo, em Stuart Mill. Entretanto, Berlin apresentou um desdobramento relevante: os fins não são apenas diversos, mas, em certas circunstâncias, conflitivos, acrescido de um elemento trágico, haja vista que existem vários fins que são humanamente aceitáveis, mas incompatíveis. Nenhum arranjo político institucional é capaz de integrá-los e não existe uma medida universal que os harmonize. Sendo assim, é imperativo que sejam feitas escolhas, as quais Berlin denomina de trágicas.

A nosso ver, Dworkin compartilha da visão acerca da presença de diversos fins razoáveis nos campos da ética e da moral, reconhece a possibilidade de conflitos, mas considera necessário o empreendimento intelectual de uma arquitetura teórica que busque integrá-los. Na sua visão, a maneira pela qual Berlin apresenta o elemento trágico acarreta um componente de indeterminação moral. O pluralismo berliniano produziria uma forma de engajamento nos problemas morais que tomaria os fins como absolutos, dados brutos, sem possibilidade de um suporte entre eles. À Teoria Política restaria a tarefa de registrar essa diversidade conflitiva, deixando a solução dos conflitos para discussões circunstanciais. O esforço de Dworkin em superar tal impasse o conduz a formular críticas a Berlin, apresentando sua unidade do valor como alternativa ao pluralismo berliniano.

Neste artigo, apresentamos uma possível resposta berliniana às críticas de Dworkin. Após uma primeira seção introdutória, retomamos, na segunda seção, a tese berliniana do pluralismo de valores, caracterizando-a por meio de quatro aspectos: (I) universalidade dos valores; (II) diversidade; (III) incomensurabilidade; e (IV) conflitos trágicos. Apresentada essa importante tese de Berlin, passamos, na terceira seção, às duas principais críticas que Dworkin lhe dirige: (I) Berlin trataria valores como “fatos brutos”, como se saber o que é um valor fosse uma questão meramente descritiva; e (II) Berlin, ao formular sua tese do pluralismo de valores, teria errado ao não distinguir um “estado de incerteza” da “indeterminação”. Ainda nessa terceira seção, como complemento à crítica, foi brevemente caracterizada a tese que Dworkin opõe à de Berlin: a unidade do valor.

Como dito na introdução, essas duas seções são propedêuticas em relação à quarta, a parte mais substantiva do artigo, na qual apresentamos uma possível resposta berliniana às críticas de Dworkin. Quanto à primeira crítica, argumentou-se que, ao contrário do que alega Dworkin, Berlin não trata questões ético-morais como meramente descritivas: ao reconhecer que o campo da ética é distinto do campo da lógica e das ciências sociais, ele também reconhece que o primeiro lida com questões essencialmente normativas. Quanto à segunda crítica, argumentou-se que um pluralismo berliniano não necessariamente se compromete com a tese da indeterminação.16 16 Para um argumento em favor da indeterminação, ver: TORMIN (2021, p. 35-39). Apontou-se que, a partir da obra de Berlin, é possível extrair saídas para o conflito por meio de três importantes ideias: um decisionismo moral, o contexto cultural em que o conflito se dá, e a possibilidade de trocas compensatórias entre os fins, tendo a diversidade e a autonomia do sujeito um papel relevante no equilíbrio sempre instável que se estabelece.

Em outras palavras, consideramos que o argumento de Berlin não relega o conflito entre os fins apenas aos ventos incertos e variáveis das circunstâncias, tal como um relativista o faria. Dois valores são orientadores de toda teoria política que se inspire na sua forma de pensar: a diversidade de fins e a autonomia do sujeito. As deliberações são, sem dúvida, fortemente regidas por uma razão prática. Os arranjos políticos, segundo Berlin, não podem ser fruto de uma decisão isolada de um sujeito, nem de uma medida absoluta: em consonância com seu pluralismo - ontológico e político -, eles devem resultar de trocas compensatórias que preservem espaços para os fins preteridos.

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  • WALZER, Michael. Da tolerância. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
  • 3
    A teoria de Rawls, para ficar em apenas um exemplo emblemático, tem como pressuposto um contexto social marcado pelo fato do pluralismo (i.e., pela existência e pelo endosso de incomensuráveis filosofias e doutrinas morais abrangentes). Ver: RAWLS, 1987RAWLS, John. The idea of an overlapping consensus. Oxford Journal of Legal Studies, v. 7, n. 1, p. 1-25, 1987., p. 2-4.
  • 4
    Parte delas foi analisada em COSER (2019a)COSER, Ivo. Dois conceitos de liberdade 60 anos após a sua publicação. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 34, n. 100, p. 1-21, 2019a..
  • 5
    O próprio título de um de seus mais importantes livros - Justiça para ouriços (2011) - evidencia essa contraposição. O ouriço é uma referência a um fragmento do poeta grego Arquíloco, que o contrapunha à raposa que, por sua vez, é associada ao pluralismo: “A raposa conhece muitas coisas, mas o porco espinho conhece uma só e muito importante”. Esse elemento muito importante”, na obra de Dworkin, é sua unidade do valor. Ver: TORMIN (2019d, p. 1)TORMIN, Mateus Matos. Conclusão. In: TORMIN, Mateus Matos. Como definir valores políticos? O pluralismo de valores de Isaiah Berlin e a unidade do valor de Ronald Dworkin. 2019. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019d. p. 1-8 [Cap. 5]. Disponível em: Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8131/tde-19122019-160654/pt-br.php . Acesso em: 10 abr. 2022.
    https://www.teses.usp.br/teses/disponive...
    .
  • 6
    Uma discussão mais pormenorizada desses aspectos pode ser encontrada em COSER (2019).
  • 7
    Em artigo recente (2021), T. Bustamante argumenta que um aspecto importante da tese pluralista - a incomensurabilidade - é compatível com a tese dworkiniana da unidade do valor, sob algumas condições. Para ele, seguindo o próprio Dworkin, não haveria problema em admitir a presença de incomensurabilidade no domínio da ética (entendida aqui como o campo em que fazemos escolhas relativas às nossas responsabilidades com nossas próprias vidas). O problema estaria apenas no campo da moralidade interpessoal (entendida aqui como o campo que diz respeito aos deveres que temos em relação a outras pessoas) - mas apenas se a incomensurabilidade fosse comum e se a tese da unidade do valor fosse lida ontologicamente (2021, p. 2). Bustamante argumenta que, no campo da moralidade interpessoal, a incomensurabilidade ocorre apenas raramente e que a tese da unidade do valor não deve ser lida ontologicamente, mas como um compromisso metodológico (2021, p. 23-24). Conclui, assim, que seria possível compatibilizar a unidade do valor dworkiniana com a tese da incomensurabilidade (tal como formulada por Raz). O argumento é interessante e discuti-lo em detalhes implicaria um desvio do foco deste artigo (voltado a apresentar uma possível resposta berliniana às críticas que Dworkin dirige ao pluralismo de valores). Cabe apenas apontar dois aspectos: I) primeiro, que o argumento de Bustamante parece ter um pressuposto fático discutível (ver BUSTAMANTE, 2021BUSTAMANTE, Thomas. Between unity and incommensurability: Dworkin and Raz on moral and ethical values, In: Jurisprudence, 2021. [online]. DOI: 10.1080/20403313.2021.2005950.
    https://doi.org/10.1080/20403313.2021.20...
    , p. 20). O autor menciona alguns exemplos, que, a nosso ver, são insuficientes para comprovar seu argumento: seria possível pensar em uma série de contraexemplos para sugerir que a incomensurabilidade “tende” a estar significativamente presente não só na ética, mas também na moralidade interpessoal (que, para Berlin, é o que realmente importa). De todo modo, independentemente dessa questão quantitativa, seria ainda possível argumentar que os casos de incomensurabilidade - mesmo que fossem quantitativamente desprezíveis - são qualitativamente importantes, a ponto de o pluralismo de valores ser uma tese que, junto com a da incomensurabilidade, justifica e reflete com mais acurácia nossa experiência ético-moral; II) além disso, cabe assinalar que a comparação de Bustamante é com Raz, cujo pensamento tem diferenças expressivas em relação ao de Berlin. A maneira pela qual Raz (1986)RAZ, Joseph. Ch 14: autonomy and pluralism. In: The Morality of Freedom. Oxford, Oxford University Press, p. 369-399, 1986. se apega às teses da incomensurabilidade acarreta a afirmação de que o Estado tem o direito e o dever de preservar uma gama de bens genuinamente distintos, mas apenas os incomensuravelmente valiosos (entendidos como aqueles que contribuem para a autonomia do sujeito). Essas características “perfeccionistas” da visão de Raz significam que o pluralismo, tal como se apresenta em sua concepção de política, é muito mais moralizado do que aquilo que aparece na obra de Berlin. Para Berlin, o Estado deve permitir o exercício da liberdade negativa na busca de qualquer objetivo (contanto que este exercício seja consistente com outras pessoas fazendo o mesmo), enquanto para Raz o estado deve garantir as práticas, objetivos e formas de associação que acarretem fins moralmente valiosos para a autonomia do sujeito (1986, p. 407-412RAZ, Joseph. Ch 15: freedom and autonomy. In: The Morality of Freedom. Oxford, Oxford University Press, p. 400-430, 1986.).
  • 8
    Por mais que o embate entre Berlin e Dworkin tenha surgido de uma divergência sobre como definir liberdade, este é apenas um aspecto particular de um desacordo de fundo, que é mais abstrato e mais importante: como devemos definir valores? O pluralismo de valores e a unidade do valor dão respostas distintas a essa questão: enquanto o primeiro propõe definições autônomas dos valores, o segundo propõe definições integradas, visando uma interpretação que mostre nossos valores em uma relação de suporte mútuo. Não nos interessa aqui o caso particular da liberdade, mas sim alguns aspectos do debate mais abstrato entre os dois autores. Para a reconstrução e uma apreciação do embate entre as duas concepções de liberdade, ver: TORMIN (2019aTORMIN, Mateus Matos. A crítica de Ronald Dworkin a Isaiah Berlin e os dois problemas que ela introduz. In: TORMIN, Mateus Matos. Como definir valores políticos? O pluralismo de valores de Isaiah Berlin e a unidade do valor de Ronald Dworkin. 2019. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019a. p. 1-28 [Cap. 1]. Disponível em: Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8131/tde-19122019-160654/pt-br.php . Acesso em: 10 abr. 2022.
    https://www.teses.usp.br/teses/disponive...
    ; 2019b)TORMIN, Mateus Matos. O problema da liberdade: qual das concepções é a mais convincente? In: TORMIN, Mateus Matos. Como definir valores políticos? O pluralismo de valores de Isaiah Berlin e a unidade do valor de Ronald Dworkin. 2019. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019b. p. 1-30 [Cap. 2]. Disponível em: Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8131/tde-19122019-160654/pt-br.php . Acesso em: 10 abr. 2022.
    https://www.teses.usp.br/teses/disponive...
    .
  • 9
    É importante mencionar que Dowrkin faz uma distinção entre moral e ética que Berlin jamais efetuou. De acordo com o primeiro, moral diz respeito à maneira pela qual o sujeito se comporta em relação a outros sujeitos; em outras palavras, como ele age para com a comunidade na qual ele vive. A ética, por sua vez, refere-se a como ele deseja viver e realizar seus fins (2011, p. 37). A teoria política faz parte da moral, posto que trata de instituições que regulam a vida da comunidade (DWORKIN, 2006DWORKIN. Justice in robes. Cambridge, Massachusetts, Harvard University Press, 2006., p. 34-35). Já para Berlin, a ética reúne tanto a dimensão de como os sujeitos devem viver, quanto a maneira pela qual devem tratar os demais. Para mais detalhes, ver: BERLIN, 2009BERLIN, Isaiah. Ética subjetiva versus ética objetiva. In: BERLIN, Isaiah. Ideias políticas na era romântica. São Paulo: Companhia das Letras, p. 323-329, 2009., p. 325-326; 2002gBERLIN, Isaiah. Ainda existe a teoria política? In: BERLIN, Isaiah. Estudos sobre a humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, p. 99-130, 2002g., p. 114, 117 e 130.
  • 10
    Uma reconstrução detalhada da crítica pode ser consultada em TORMIN, 2019aTORMIN, Mateus Matos. A crítica de Ronald Dworkin a Isaiah Berlin e os dois problemas que ela introduz. In: TORMIN, Mateus Matos. Como definir valores políticos? O pluralismo de valores de Isaiah Berlin e a unidade do valor de Ronald Dworkin. 2019. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019a. p. 1-28 [Cap. 1]. Disponível em: Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8131/tde-19122019-160654/pt-br.php . Acesso em: 10 abr. 2022.
    https://www.teses.usp.br/teses/disponive...
    .
  • 11
    Sobre esta questão em Dworkin, ver: MACEDO JR. (2013, p. 223)MACEDO JR. Ronaldo. Do xadrez à cortesia: Dworkin e a teoria do direito contemporâneo. São Paulo: Editora Saraiva, 2013..
  • 12
    Com isso, não estamos sugerindo que Dworkin propõe um único fim ou defende algum tipo de perfeccionismo moral. A diferença entre Berlin e Dworkin, entre pluralismo de valores e unidade do valor, se dá em um plano ontológico e não em um plano político (neste último, ambos são pluralistas: ver TORMIN, 2019cTORMIN, Mateus Matos. Como conceber valores políticos? O embate entre o ouriço e a raposa. In: TORMIN, Mateus Matos. Como definir valores políticos? O pluralismo de valores de Isaiah Berlin e a unidade do valor de Ronald Dworkin. 2019. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019c. p. 1-36 [Cap. 3]. Disponível em: Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8131/tde-19122019-160654/pt-br.php . Acesso em: 10 abr. 2022.
    https://www.teses.usp.br/teses/disponive...
    , p. 3). A diferença entre Berlin e Dworkin que estamos assinalando no corpo do texto é a seguinte: diante de um caso em que diferentes valores estão em jogo, Dworkin argumenta que devemos buscar uma interpretação que procure harmonizá-los, colocando-os em uma relação de suporte mútuo, ao passo que Berlin argumenta ser necessário fazer “trocas compensatórias”, pois o conflito trágico entre valores não pode ser desfeito interpretativamente, sob pena de estarmos falsificando o que realmente se entende por tais valores.
  • 13
    Tomamos como ponto de partida a interpretação de WALZER (1999, p. 17)WALZER, Michael. Da tolerância. São Paulo: Martins Fontes, 1999. sobre a tolerância como prazer estético.
  • 14
    Um artigo de Plaw (2004)PLAW, Ayer. Why monist critiques feed value pluralism: Ronald Dworkin’s critique of Isaiah Berlin. Social Theory and Practice, v. 30, n. 1, p. 105-126, jan. 2004. faz apontamentos semelhantes aos nossos, mas com diferenças relevantes. Em primeiro lugar, Plaw considera Dworkin um monista. Conforme já foi mencionado, não enquadramos Dworkin como um monista (ao menos não sem maiores qualificações): as diferenças entre Berlin e Dworkin se dão em um plano ontológico; no plano político, ambos são pluralistas. Em segundo lugar, Plaw destaca apenas a relevância que a liberdade de escolha recebe no argumento de Berlin, ao passo que nós atrelamos a liberdade de escolha ao valor da autonomia do sujeito (aspecto ignorado por Plaw). Para Plaw (2004, p. 122)PLAW, Ayer. Why monist critiques feed value pluralism: Ronald Dworkin’s critique of Isaiah Berlin. Social Theory and Practice, v. 30, n. 1, p. 105-126, jan. 2004., a liberdade desempenha o papel chave na fundamentação do pluralismo berliniano, enquanto a interpretação de Berlin proposta neste artigo considera que a liberdade caminha pari passu com a ideia de autonomia do sujeito, sem que possam ser separadas em unidades distintas (COSER, 2019; 2020COSER, Ivo. Uma reinterpretação das liberdades negativa, positiva e de escolha. Dados - Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 63, n. 3, p. 1-34, 2020.). Por último, sua análise é datada: a principal obra em que Dworkin apresenta e defende sua unidade do valor - Justice for hedgehogs (2011) - é posterior ao artigo de Plaw.
  • 15
    Em uma carta dirigida a George Kennan, Berlin é bastante explícito nesse ponto. Ver: BERLIN (2002a, p. 336-344)BERLIN, Isaiah. A letter to George Kennan. In: BERLIN, Isaiah. Liberty. Oxford: Oxford University Press, p. 336-344, 2002a..
  • 16
    Para um argumento em favor da indeterminação, ver: TORMIN (2021, p. 35-39)TORMIN, Mateus Matos. A reply to Ronald Dworkin’s critique of moral skepticism. Ethics, Politics & Society, v. 4, n. 1, p. 23-45, 2021..

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    16 Jul 2021
  • Aceito
    19 Abr 2022
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