Acessibilidade / Reportar erro

As mutações do PT olhadas por dentro

The transformation of the PT viewed from the inside

GOIRAND, Camille. . Le Parti des Travailleurs au Brésil: des luttes sociales aux épreuves du pouvoir. Paris: Karthala, 2019. 418p.

Há décadas o Partido dos Trabalhadores tem sido objeto dominante entre os estudos sobre partidos brasileiros e gerado volume considerável de publicações a seu respeito. Fundado oficialmente no início de 1980, após uma primeira fornada de trabalhos dedicados em especial à formação do PT vieram muitos outros, em diferentes ondas de interesse, sobretudo a partir dos anos 2000, década que viu a ascensão da sigla ao governo federal. Como nota Camille Goirand na parte introdutória de sua obra, a esse aumento no número de publicações não correspondeu, contudo, uma diversificação dos métodos ou dos olhares. Estes se mantiveram mais focados no nível nacional, apoiados em análises quantitativas e situados em agendas caras em especial à Ciência Política mainstream, sob influência das teorias da democracia e de enfoques institucionalistas pouco abertos a contribuições da Sociologia e da Antropologia.

É justamente pelo viés da Sociologia Política, e com amplo recurso à etnografia, que a cientista política procurou responder a uma série de interrogações que não costumam receber atenção dos especialistas em partidos no Brasil - a começar pela desconstrução do PT como um coletivo homogêneo. Professora do Institut des Hautes Études de l’Amérique Latine da Université Sorbonne Nouvelle (Paris) e contando anos de experiência de vida e de pesquisa no Brasil, Goirand reúne no livro resultados de denso trabalho de campo conduzido no Recife ao longo dos anos 2000. O material também se enquadra em reflexões sistemáticas da autora sobre processos de mobilização política e movimentos sociais no Brasil e na América Latina, com algumas publicações disponíveis em português e espanhol (GOIRAND 2009GOIRAND, Camille. Movimentos sociais na América Latina: elementos para uma abordagem comparada. Estudos Históricos, v. 22, n. 44, p. 323-354, 2009.; 2013GOIRAND, Camille. Pensar los movimientos sociales en América Latina. Perspectivas sobre las movilizaciones a partir de los años setenta. Revista de Antropología y Sociología: Virajes, v. 15, n. 1, p. 21-52, jun. 2013.; 2015GOIRAND, Camille. Pensar las movilizaciones y la participacíon: continuidad de las perspectivas e imbricación de las posiciones. In: COMBES, Hélène; TAMAYO, Sergio; VOEGTLI, Michael (coords.). Pensar y mirar la protesta. Mexico: UAM, 2015. p. 93-135.).

A obra se divide em três grandes partes que seguem uma ordem cronológica - “Do movimento social ao partido”, “A institucionalização do partido nos anos 1990” e “Da contestação à ação pública”. Antes, porém, um prefácio oportuno de 21 páginas situa em especial leitores menos familiarizados com a política brasileira dentro das turbulências conhecidas desde o processo de impeachment de Dilma Rousseff até a eleição de Jair Bolsonaro em 2018. Na sequência, uma introdução que, muito mais do que apenas apresentar o contexto da pesquisa, localiza o trabalho em dois sentidos. Primeiro, e de modo mais amplo, no interior de um campo de discussões favorável a comparações de processos de “institucionalização” e transformação de partidos originados de movimentos contestatórios na América Latina e além. Mas, principalmente, trata-se ali de demarcar o trabalho em relação ao conjunto de estudos dentro do campo brasileiro.

Longe de qualquer parti pris (vale o trocadilho) da autora, o leitor encontrará na obra uma série de questionamentos analíticos bem informados em torno das “mutações do PT”. Mas por ângulos até então pouco explorados pela literatura e orientados por um ceticismo frente às abordagens institucionalistas e macropolíticas, com as quais a autora em nenhum momento deixa de dialogar.2 2 Chama a atenção, aliás, o controle da autora sobre o estado da arte da literatura sobre o PT e sua mobilização constante, com destaque aos trabalhos clássicos de Meneguello (1989) e Amaral (2010). Assim, à questão da institucionalização do partido, de sua adaptação ao sistema político e às exigências colocadas pelo “teste do poder”, a pesquisadora responde com o exame cuidadoso dos itinerários de militantes e aderentes de carne e osso. Como Goirand aponta (2019, p. 52), “a institucionalização da organização foi [...] abordada a partir dos indivíduos e grupos que a compõem, pela observação das mudanças progressivas de suas posições, de suas identidades sociais, de suas representações do partido, de suas competências, de seus interesses pessoais e profissionais”.

Mas se engana quem imagina encontrar no livro mera coleção de depoimentos biográficos a partir dos quais se pretenderia reconstituir a “história do PT”, ou um trabalho basicamente subjetivista. Um dos principais méritos da pesquisa está exatamente na capacidade de mobilizar variado material biográfico e etnográfico - por meio de um campo intenso e de longa duração - cuja inteligibilidade é buscada em diferentes níveis da realidade. As opções analíticas da autora colocam em primeiro plano as relações entre, de um lado, diferentes condições históricas e políticas mais gerais do país, incluindo o momento institucional do partido, e, de outro lado, as condições palpáveis de engajamento e militância oferecidas a indivíduos social e culturalmente heterogêneos. O acúmulo de recursos pelo partido e sua ascensão eleitoral são notados, por exemplo, na complexificação das competências políticas e da competição interna colocada aos indivíduos, como a maior exigência em tarefas de mediação entre distintas esferas de atuação e a necessária compatibilização de diferentes lógicas, vocabulário e modos de ação. O ponto central da investigação está, assim, nas interações entre os percursos dos militantes (dirigentes incluídos) e as muitas mudanças conhecidas pela instituição PT desde as origens em movimentos sociais (contestação) até sua consolidação (exercício do poder).

É indispensável apontar aqui que a perspectiva de instituição mobilizada pela autora se afasta em boa medida daquela predominante nas vertentes do (neo) institucionalismo, com consequências importantes no rendimento da análise. Sem dúvida tributária de uma série de rupturas operada pela Sociologia Política e por parte da Ciência Política francesas3 3 A obra de referência aqui é Sociologie de l’institution, organizada por Jacques Lagroye e Michel Offerlé (2011). Uma resenha muito útil do livro foi publicada no Brasil por Igor Grill (2012). , essa perspectiva conjuga elementos processuais, construtivistas e disposicionais. A construção e a existência objetiva das instituições, nessa linha, é um processo nunca acabado de invenção e reinvenção realizado pelo trabalho político dos agentes. Estes, por seu turno, são tomados ao mesmo tempo como produto e produtores das instituições, pois sofrem os efeitos de socialização e os enquadramentos normativos da instituição na qual investem de modo desigual segundo as oportunidades ofertadas e seus interesses. É portanto central nessa abordagem uma visão de partido como espaço de concorrência entre agentes que empreendem com diferentes intensidade e recursos, interagindo de modo diferenciado com os dispositivos de inculcação de normas, valores, crenças, papéis e práticas tidas como legítimas. Fica assim acentuada a ideia de que a relação entre militantes e instituição deve ser tomada como um processo indissociável das disputas de sentido (sobre modelos de militância, sobre o partido e seus propósitos, por exemplo) e de diferentes expectativas de retribuição individual e coletiva. Ausente da vasta maioria dos estudos sobre o PT e demais partidos no Brasil4 4 Entre as exceções está o trabalho de Daniela Rocha (2009), fruto de tese de doutorado defendida na França em 2007; o livro de Mauro Gaglietti (2003), originado de dissertação de Mestrado de 1998; e a recente tese de Roberto Paludo (2017). Esses dois últimos não são citados na obra de Goirand (2019). , note-se que a questão tabu das retribuições da militância é aqui uma dimensão central.

A esse viés da Sociologia das Instituições, Goirand associa - a meu ver, com muito acerto - contribuições da Sociologia do Engajamento Militante.5 5 Sobre essa abordagem, ver em especial o artigo de Sawicki; Siméant (2011), além do trabalho de Silva (2016). Sugeriria também consulta à coletânea Penser les mouvements sociaux (AGRIKOLIANSKY; SOMMIER; FILLIEULE, 2010), sobre a qual produzi uma resenha (Seidl, 2011). Tal opção favorece a apreensão do processo de produção do partido em conexão direta com uma miríade de processos de engajamento individual - com flutuações - cuja manutenção no tempo garantiu a permanência e evolução da instituição. Se antes de tudo ela evita um tratamento substancialista do partido e do militante, seu ganho principal está em trazer ao primeiro plano as (variadas) dinâmicas reais das relações entre militantes e instituição. É por esse caminho, afinal, que a análise dá conta das muitas transformações conhecidas pelo PT e por seus quadros de profissionais e de apoiadores/as. São portanto diferentes origens sociais e diferentes socializações, formas de adesão, de investimento e expectativas sobre o partido, variados modos de vivenciar a política e a militância e de vocalizá-las, entre outras tantas dimensões, que a análise consegue capturar ao tomá-las na interação com uma instituição política que mudou muito ao longo do tempo: passagem de um movimento social a um grande partido dominante e com muitos recursos, diminuição dos mecanismos deliberativos, centralização administrativa e questionamentos da “democracia interna”, apagamento do discurso de classe, distanciamento de estratégias de luta e ambiguidade frente a movimentos sociais de base, agudização das disputas internas etc.

Assim, durante seus primeiros anos de existência, quando os principais recursos do partido (de oposição) repousavam principalmente na mobilização de seus aderentes, o “engajamento era uma verdadeira doação pessoal, acompanhada por uma entrada em um mundo militante soldado por um forte interconhecimento e uma sociabilidade própria” (GOIRAND, 2019, p. 378). Por sua vez, o aumento dos recursos do partido e a centralização do poder em seu interior - característica de um fortalecimento institucional nos anos 1990 acompanhado por mudanças de posição de dirigentes partidários - traduziram-se “numa reconfiguração das práticas militantes e numa bifurcação dos percursos militantes, entre distanciamento e profissionalização, defecção e lealdade” (GOIRAND, 2019, p. 376). A partir do início dos anos 2000, segue a autora, “o pertencimento ao partido se tornou menos exigente, com uma militância mais distanciada e intermitente, com frequência associada a dúvidas, ao lado de direções partidárias profissionalizadas, em uma organização que tomou as rédeas do poder tanto no Recife quanto em Brasília e em outros lugares” (GOIRAND, 2019, p. 376). E conclui que, “entre o cansaço e as dúvidas de alguns, de um lado, e as perspectivas de carreira daqueles que permanecem, de outro lado, são diferentes facetas das mutações da organização que percebemos” (GOIRAND, 2019, p. 376).

São de fato ricas e numerosas as demonstrações das mutações do Partido dos Trabalhadores que o livro oferece ao leitor ou leitora. A farta exposição do material pela autora é muito bem-sucedida em recuperar a heterogeneidade das modalidades de militância petista. E ela é potente em revelar tantos os dramas quanto a manutenção da crença experimentados por indivíduos e grupos com características e percursos distintos. Por um lado, as clássicas decepções de militantes mais antigos ou “tradicionais”, revoltados sobretudo com a “centralização” e “burocratização” do partido, sua “perda de rumo” e um “afastamento das origens”. Isto é, sentindo-se afrontados e mesmo traídos pela desvalorização de suas competências militantes, além de desiludidos com as opções do PT “quando governo”. Ou então, o sofrimento gerado pelas ambivalências que uma profissionalização militante (inevitavelmente) mais pragmática e cínica que define parte importante dos quadros partidários mais recentes, ou de quadros mais antigos que não se afastaram do espaço de poder no partido. Por outro lado, são também retratadas as estratégias de manutenção da adesão de militantes de longa data, cimentadas pelo compartilhamento de uma memória de lutas e da confiança na possibilidade de mudança social pela ação política.

Fora do terreno normativo e das querelas acadêmicas e semiacadêmicas em torno do PT, o livro de Camille Goirand é exemplar no tratamento científico que uma instituição de tamanha importância social e sociológica merece. Além de revelar muito sobre a realidade do partido e das engrenagens da política brasileira, a obra tem o mérito de oferecer grande quantidade de indicações para uma renovação do campo de estudos dos partidos e da militância no Brasil. Uma tradução para o português seria mais do que bem-vinda.

Referências

  • AGRIKOLIANSKY, Éric; SOMMIER, Isabelle; FILLIEULE, Olivier (orgs.). Penser les mouvements sociaux: conflits et contestations dans les sociétés contemporaines. Paris: La Découverte, 2010.
  • AMARAL. Oswaldo M. E. do. As transformações na organização interna do Partido dos Trabalhadores entre 1995 e 2009. Tese (Doutorado em Ciência Política). Programa de Pós-Graduação em Ciência Política, UNICAMP, Campinas, 2010.
  • GAGLIETTI, Mauro. PT: Ambivalências de uma militância. 2 ed. Porto Alegre: Palmarinca, 2003.
  • GOIRAND, Camille. Movimentos sociais na América Latina: elementos para uma abordagem comparada. Estudos Históricos, v. 22, n. 44, p. 323-354, 2009.
  • GOIRAND, Camille. Pensar las movilizaciones y la participacíon: continuidad de las perspectivas e imbricación de las posiciones. In: COMBES, Hélène; TAMAYO, Sergio; VOEGTLI, Michael (coords.). Pensar y mirar la protesta. Mexico: UAM, 2015. p. 93-135.
  • GOIRAND, Camille. Pensar los movimientos sociales en América Latina. Perspectivas sobre las movilizaciones a partir de los años setenta. Revista de Antropología y Sociología: Virajes, v. 15, n. 1, p. 21-52, jun. 2013.
  • GRILL, Igor G. Por uma sociologia da institucionalização. Sociologias, Porto Alegre, v. 14, n. 31, p. 300-308, set./dez. 2012.
  • LAGROYE, Jacques; OFFERLÉ, Michel (orgs.). Sociologie de l’institution. Paris: Belin, 2011.
  • MENEGUELLO, Rachel. PT: a formação de um partido (1979-1982). São Paulo: Paz & Terra, 1989.
  • PALUDO, Roberto. Participação de alta intensidade e militantismo dos filiados de base do PT no Brasil. 2017. Tese (Doutorado em Sociologia Política). CFH, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2017.
  • ROCHA, Daniela C. Militantismo partidário e experiência de poder: o caso do PT no Distrito Federal. Antropolítica, v. 23, p. 67-95, 2009.
  • SAWICKI, Frédéric; SIMÉANT, Johanna. Inventário da sociologia do engajamento militante: nota crítica sobre algumas tendências recentes dos trabalhos franceses. Sociologias, v. 13, n. 28, 2011.
  • SEIDL, Ernesto. (Re)pensar os movimentos sociais. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 26, n. 75, p. 178-181, 2011.
  • SILVA, Marcelo K. Condições e mecanismos do engajamento militante: um modelo de análise. Revista Brasileira de Ciência Política, v. 21, p. 189-228, 2016.
  • 2
    Chama a atenção, aliás, o controle da autora sobre o estado da arte da literatura sobre o PT e sua mobilização constante, com destaque aos trabalhos clássicos de Meneguello (1989)MENEGUELLO, Rachel. PT: a formação de um partido (1979-1982). São Paulo: Paz & Terra, 1989. e Amaral (2010)AMARAL. Oswaldo M. E. do. As transformações na organização interna do Partido dos Trabalhadores entre 1995 e 2009. Tese (Doutorado em Ciência Política). Programa de Pós-Graduação em Ciência Política, UNICAMP, Campinas, 2010. .
  • 3
    A obra de referência aqui é Sociologie de l’institution, organizada por Jacques Lagroye e Michel Offerlé (2011)LAGROYE, Jacques; OFFERLÉ, Michel (orgs.). Sociologie de l’institution. Paris: Belin, 2011.. Uma resenha muito útil do livro foi publicada no Brasil por Igor Grill (2012)GRILL, Igor G. Por uma sociologia da institucionalização. Sociologias, Porto Alegre, v. 14, n. 31, p. 300-308, set./dez. 2012..
  • 4
    Entre as exceções está o trabalho de Daniela Rocha (2009)ROCHA, Daniela C. Militantismo partidário e experiência de poder: o caso do PT no Distrito Federal. Antropolítica, v. 23, p. 67-95, 2009., fruto de tese de doutorado defendida na França em 2007; o livro de Mauro Gaglietti (2003)GAGLIETTI, Mauro. PT: Ambivalências de uma militância. 2 ed. Porto Alegre: Palmarinca, 2003., originado de dissertação de Mestrado de 1998; e a recente tese de Roberto Paludo (2017)PALUDO, Roberto. Participação de alta intensidade e militantismo dos filiados de base do PT no Brasil. 2017. Tese (Doutorado em Sociologia Política). CFH, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2017.. Esses dois últimos não são citados na obra de Goirand (2019).
  • 5
    Sobre essa abordagem, ver em especial o artigo de Sawicki; Siméant (2011)SAWICKI, Frédéric; SIMÉANT, Johanna. Inventário da sociologia do engajamento militante: nota crítica sobre algumas tendências recentes dos trabalhos franceses. Sociologias, v. 13, n. 28, 2011., além do trabalho de Silva (2016)SILVA, Marcelo K. Condições e mecanismos do engajamento militante: um modelo de análise. Revista Brasileira de Ciência Política, v. 21, p. 189-228, 2016.. Sugeriria também consulta à coletânea Penser les mouvements sociaux (AGRIKOLIANSKY; SOMMIER; FILLIEULE, 2010AGRIKOLIANSKY, Éric; SOMMIER, Isabelle; FILLIEULE, Olivier (orgs.). Penser les mouvements sociaux: conflits et contestations dans les sociétés contemporaines. Paris: La Découverte, 2010.), sobre a qual produzi uma resenha (Seidl, 2011SEIDL, Ernesto. (Re)pensar os movimentos sociais. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 26, n. 75, p. 178-181, 2011.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    16 Maio 2022
  • Aceito
    25 Jun 2022
Universidade de Brasília. Instituto de Ciência Política Instituto de Ciência Política, Universidade de Brasília, Campus Universitário Darcy Ribeiro - Gleba A Asa Norte, 70904-970 Brasília - DF Brasil, Tel.: (55 61) 3107-0777 , Cel.: (55 61) 3107 0780 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: rbcp@unb.br