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Entre a punição ressocializadora e o idealismo punitivo: a segurança pública nos discursos da Igreja Universal do Reino de Deus e nos de Jair Bolsonaro nas eleições de 2018

Between Resocialization and Punishment: Public security in the discourses of the Universal Church of the Kingdom of God and of Jair Bolsonaro during the 2018 elections

Resumo:

O presente artigo visa discutir comparativamente os conteúdos das emissões discursivas disseminadas pela Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) e por Jair Bolsonaro durante a campanha eleitoral de 2018 em torno da questão da segurança pública no Brasil. A pesquisa pautou-se no levantamento e análise das matérias produzidas pelo jornal Folha Universal e das postagens no site oficial da igreja, assim como aquelas compartilhadas no perfil oficial de Jair Bolsonaro no Facebook. Os elementos discursivos coletados foram analisados com base na teoria dos pacotes interpretativos proposta por William Gamson. Os resultados da pesquisa mostraram divergências entre os dois atores: enquanto Bolsonaro defendeu pautas típicas de um idealismo punitivo conservador, a IURD difundiu uma narrativa aqui denominada de punição ressocializadora.

Palavras-chave:
Igreja Universal do Reino de Deus; Jair Bolsonaro; idealismo punitivo; punição ressocializadora; eleições 2018

Abstract:

The article presents a comparative content analysis of political discourses related to the country´s public security crisis disseminated by the Universal Church of the Kingdom of God and by Jair Bolsonaro during the 2018 Brazilian presidential elections. We analyzed articles published by the Folha Universal newspaper and by the church’s official website; as well as of publications by Bolsonaro in his official Facebook page during the electoral campaign. William Gamson´s theory of interpretative packages guided our analysis of these materials. The results demonstrate that the two narratives diverge in several ways. While Bolsonaro emphasized an idealized conception of punishment, the church mobilized its Christian beliefs to defend a narrative that proposed combining punishment with the reintegration of criminals into society, what we call resocializing punishment.

Keywords:
The Universal Church of the Kingdom of God; Jair Bolsonaro; Punishment; Brazilian Elections; NeoPentecostalism

Introdução

No dia primeiro de setembro de 2019, Jair Bolsonaro desembarcou no aeroporto de Congonhas, na cidade de São Paulo. Após o desembarque, viajou de helicóptero para um prédio comercial localizado no centro da capital paulista. A região central, contudo, não era o seu destino final. A partir do prédio comercial, o presidente seguiu em comboio até o seu ponto de chegada: o Templo de Salomão. Ao adentrar a sede mundial da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), Bolsonaro foi recebido pessoalmente pelo bispo Edir Macedo, fundador e maior liderança da igreja. Acompanhados de outras lideranças da igreja e de membros do governo, realizaram uma visita guiada pelo templo. A visita terminou no salão principal, onde milhares de fiéis aguardavam o início de um culto dominical. A presença do Presidente da República transformou uma celebração ordinária em um momento marcante. Bolsonaro foi chamado ao palco. Ajoelhado, recebeu uma unção do bispo Macedo que pediu, em oração, que Deus provesse ao político a força, a sabedoria e a coragem necessárias para mudar o caminho da nação. Todos esses momentos foram registrados por uma equipe da Rede Record, emissora cujo proprietário é Edir Macedo. Na noite do mesmo dia, uma reportagem foi ao ar no programa Domingo Espetacular. Nos momentos finais da matéria foi apresentada uma entrevista com o líder da IURD. Nela, Macedo afirmou: “Estamos apostando todas as fichas no Presidente Bolsonaro. Tudo! Porque nós cremos que ele foi um escolhido de Deus para fazer o país mudar” (MACEDO, 2019MACEDO, Edir. Jair Bolsonaro visita o Templo de Salomão e é recebido por Edir Macedo. Domingo Espetacular, São Paulo: Rede Record. Programa de Televisão. 2019.). O encontro representou a espetacularização da aliança forjada no ano anterior ao longo do pleito presidencial, o qual contou com o forte alinhamento entre os evangélicos e Jair Bolsonaro.

Desde o início da década de 2010, e ainda enquanto deputado, Bolsonaro adotou um discurso3 3 O termo discurso é aqui compreendido na perspectiva de Maingueneau (1993), ou seja: “bem menos do que um ponto de vista, (o discurso) é uma organização de restrições que regulam uma atividade específica. Sua enunciação não é uma cena ilusória onde seriam ditos conteúdos elaborados em outro lugar, mas um dispositivo constitutivo da construção do sentido e dos sujeitos que aí se reconhecem” (MAINGUENEAU, 1993, p. 50). moral que o aproximou dos grupos evangélicos e católicos conservadores presentes nas instituições de poder nacionais (LACERDA, 2019LACERDA, Marina Basso. O novo conservadorismo brasileiro: de Reagan a Bolsonaro. Porto Alegre: Editora Zouk, 2019.). Por meio de uma militância contrária às pautas progressistas, o político construiu ao redor de si a imagem de defensor da família, dos bons costumes e dos valores cristãos. Tal postura lhe rendeu destaque na comunidade evangélica, que passou a ver no capitão do exército um representante de seus interesses. Tendo em vista os possíveis frutos desse alinhamento, Bolsonaro passou a fazer acenos mais evidentes para esse grupo religioso. Apesar de católico, casou-se, em 2013, em uma cerimônia evangélica. Três anos depois, passou por um ritual de batismo evangélico nas águas do Rio Jordão, em Israel. Em 2018, durante a campanha presidencial, não poupou esforços em mobilizar a imagem de “homem de Deus”, a qual havia construído ao longo dos anos que antecederam ao pleito. Em seus discursos, entrevistas e programa de governo, Bolsonaro instrumentalizou o nome de Deus para reforçar constantemente seu apoio às pautas evangélicas e ao conservadorismo moral do grupo. Seu slogan de campanha não escondeu essa prática: “Deus acima de tudo, Brasil acima de todos”. Ao longo daquele período eleitoral, os acenos do então candidato foram recebidos positivamente pelas maiores lideranças protestantes do país, que contribuíram ativamente na campanha por votos ao “capitão”. Não obstante, esse não foi o caso particular de Edir Macedo.

Embora, no ano seguinte à eleição, o bispo da Universal tenha afirmado com convicção que apostava todas as suas fichas no ex-deputado, suas declarações antes dos resultados das urnas foram comedidas. Macedo limitou-se a declarar, em curta postagem na rede social Facebook, que sua escolha para presidente naquele ano seria Bolsonaro (MACEDO, 2018MACEDO, Edir. Bolsonaro. São Paulo, 29 de setembro, 2018. Facebook: Bispo Edir Macedo.). Timidez, contudo, nunca foi característica das manifestações de apoio da Igreja Universal e de suas lideranças em momentos de eleição. A despeito de ser uma instituição religiosa, a IURD se notabiliza por exercer uma ação política contundente sobre as instituições públicas brasileiras.

Desde a década de 80, a igreja participa ativamente das eleições federais e estaduais por meio do lançamento de candidaturas oficiais para os cargos do legislativo. Em 2005, institucionalizou sua ação política por meio da criação do Partido Republicano do Brasil (PRB). Mais de uma década depois, conquistou sua maior vitória política: a eleição de Marcelo Crivella, bispo licenciado da igreja e sobrinho de Macedo, para a prefeitura da cidade do Rio de Janeiro. Embora nunca tenha lançado candidato para o cargo de chefe da nação, a Universal se envolveu em diversos pleitos presidenciais através do apoio ostensivo e explícito a certos candidatos. Apoio esse intensamente disputado durante as campanhas eleitorais, considerando a base de fiéis da igreja e o império midiático que ela detém e instrumentaliza a favor de seus aliados políticos.

Entretanto, ao longo da Nova República, a Rede Record, a despeito de ser a maior empresa de comunicação da IURD, não funcionou como o principal veículo de disseminação de seus posicionamentos políticos. Por ser uma emissora que precisa manter contratos publicitários e um alto índice de audiência, a Record não pode ser totalmente aparelhada em prol dos interesses políticos da igreja (ROTHBERG; DIAS, 2012ROTHBERG, Danilo; DIAS, Mariane Bovoloni. Religião, política e eleições na Folha Universal. Intexto, n. 27, p. 21-39, 2012.). Para o desempenho do papel de “porta-voz” da instituição, foi concebida à Folha Universal, jornal semanário distribuído gratuitamente pela IURD.

A Folha Universal, inaugurada em 1992, é publicada todo domingo e suas edições são distribuídas em templos da igreja e em espaços públicos. Seu conteúdo aborda tanto questões religiosas e ações da IURD quanto temas da esfera pública, como: política, economia, ciência e entretenimento. Diferentemente da emissora Record, o semanário é custeado inteiramente pela Universal e não visa a obtenção de lucro. Isso permite que a igreja tenha um controle completo sobre os conteúdos das matérias e reportagens publicadas. Logo, apresenta-se como o meio ideal para que a instituição religiosa dissemine suas interpretações acerca dos problemas públicos e a sua agenda política.

Nos últimos anos, todavia, um novo veículo também passou a exercer semelhante função: o site oficial da IURD. Da mesma forma que a Folha Universal, o site oficial é produzido exclusivamente pelo quadro interno de jornalistas da igreja e financiado pela instituição. Os dois veículos constituem o que é denominado por Francisco Sant’Anna (2005SANT’ANNA, Francisco Cláudio Corrêa Meyer. Mídia das fontes: o difusor do jornalismo corporativo. Brasília: Casa das Musas, 2005.; 2008)SANT’ANNA, Francisco Cláudio Corrêa Meyer. Media de source: un nouvel acteur sur la scene journalistique bresilienne. Tese (Doutorado em Informação e Comunicação). Sénat, Rennes 1, Rennes, 2008. de mídias das fontes4 4 Também denominadas de mídias coorporativas, as mídias das fontes são “mídias produzidas e gerenciadas por atores sociais que, no Brasil, são tradicionalmente percebidos como fontes de informação” (SANT’ANNA, 2008, p. 21). Isto é, são mídias mantidas por instituições sociais e políticas que antes eram apenas alvo do jornalismo dos grandes grupos midiáticos e que, por esse motivo, não conseguiam se comunicar diretamente com uma quantidade ampla de indivíduos. Foram criadas com o objetivo de visibilizar as reivindicações e os pacotes interpretativos desses grupos de interesse, para interferir na opinião pública por meio do agendamento midiático e da comunicação direta com o coletivo (SANT’ANNA, 2008). e fazem parte de um tipo específico de jornalismo: o jornalismo religioso.

Durante a campanha eleitoral de 2018, a Universal mobilizou suas mídias das fontes para divulgar a sua visão sobre o pleito e as suas interpretações acerca dos principais problemas públicos a serem levados em conta pelos eleitores. A Folha Universal, particularmente, produziu edições especiais voltadas para a discussão da disputa eleitoral, enquanto o site oficial da igreja destinou uma série de matérias aos principais temas da agenda pública no momento do pleito. Diante disso, cabe compreender de que maneira a IURD atuou discursivamente na campanha eleitoral de 2018 e de que forma a igreja mobilizou os seus recursos midiáticos para disseminar os seus posicionamentos sobre a disputa eleitoral. Para tanto, empreendeu-se uma investigação de caráter qualitativo que avaliou os conteúdos publicados pela Folha Universal e pelo site oficial da igreja ao longo do período eleitoral e os comparou analiticamente com as postagens no Facebook do então candidato à presidência, Jair Bolsonaro, no que tange a uma pauta específica: os problemas de segurança pública no Brasil.

Segundo Almeida (2019)ALMEIDA, Ronaldo de. Bolsonaro presidente: conservadorismo, evangelismo e a crise brasileira. Novos estudos CEBRAP, v. 38, n. 1, p. 185-213, 2019., a onda conservadora que ascendeu no Brasil a partir de 2013 e foi personificada na figura de Jair Bolsonaro no pleito de 2018 representou a convergência de diversas faces da direita nacional. Tal convergência caracterizou-se pelo alinhamento de quatro linhas de força: o neoliberalismo econômico; o moralismo regulador, o idealismo punitivo e a intolerância social (ALMEIDA, 2019ALMEIDA, Ronaldo de. Bolsonaro presidente: conservadorismo, evangelismo e a crise brasileira. Novos estudos CEBRAP, v. 38, n. 1, p. 185-213, 2019.). Aqui, defende-se que as três primeiras linhas apontadas por Almeida são correntes de pensamento político que apresentam uma agenda específica de reivindicações. Elas fazem referência a três pontos centrais que formavam a agenda pública em 2018: as crises econômica e política; a disputa pela moralidade pública; e a segurança pública. A intolerância social, por sua vez, representa uma metanarrativa que perpassa as três linhas de força e molda suas reivindicações.

A linha de força definida como idealismo punitivo, tão explorada nos discursos do então candidato à presidência Jair Bolsonaro, gira em torno dos problemas de segurança pública. De forma ampla, seus defensores compreendem a violência como produto de condutas desviantes e propõem a intensificação da punição de criminosos, o aumento da repressão por parte das forças de segurança do Estado e o armamento da população civil como principais soluções para o problema da violência urbana no país. Diferentemente do neoliberalismo econômico e do moralismo regulador, que foram adotados na agenda política de Bolsonaro após a década de 2010, o idealismo punitivo sempre foi parte central do discurso do ex-deputado. Como aponta Lacerda (2019)LACERDA, Marina Basso. O novo conservadorismo brasileiro: de Reagan a Bolsonaro. Porto Alegre: Editora Zouk, 2019., os primeiros anos da carreira parlamentar do capitão reformado foram marcados por um grande foco em temas militares e de segurança. Seus interesses políticos giravam em torno das demandas coorporativas dos agentes das forças armadas, como pensão para família, reforma da previdência e reivindicações salariais; e das pautas punitivas, como a redução da maioridade penal, a ampliação do encarceramento e o armamento da população (LACERDA, 2019LACERDA, Marina Basso. O novo conservadorismo brasileiro: de Reagan a Bolsonaro. Porto Alegre: Editora Zouk, 2019.).

No entanto, durante a campanha eleitoral de 2018, a postura punitiva e agressiva do capitão reformado foi alvo de duras críticas por parte de seus opositores. Ela foi descrita como um sinal contraditório em relação a figura que o então deputado procurou construir ao redor de si. Afinal, como era possível um indivíduo que se declara um “homem de Deus” e que afirma lutar pela perpetuação dos valores do cristianismo defender o extermínio de criminosos? Mais ainda, como era possível que líderes cristãos apoiassem um projeto político favorável a essas pautas? Esses questionamentos em torno dessa suposta contradição são expressões das complexidades do entrelaçamento entre pentecostalismo, segurança pública e criminalidade. No âmbito institucional, esse entrelaçamento se configura pela relação de apoio existente entre a Frente Parlamentar Evangélica (FPE) e a chamada Bancada da Bala (QUADROS; MADEIRA, 2018QUADROS, Marcos Paulo dos Reis; MADEIRA, Rafael Machado. Fim da direita envergonhada? Atuação da bancada evangélica e da bancada da bala e os caminhos da representação do conservadorismo no Brasil. Opinião Pública, v. 24, p. 486-522, 2018.; LACERDA, 2019LACERDA, Marina Basso. O novo conservadorismo brasileiro: de Reagan a Bolsonaro. Porto Alegre: Editora Zouk, 2019.). Em um contexto mais amplo, essa relação se dá pelo fato de as igrejas evangélicas terem se tornado espaços relevantes nas periferias do país, capazes de mediar a realidade conflitiva experienciada pela população dessas regiões. Vital da Cunha (2018)CUNHA, Christina Vital da. Pentecostal cultures in urban peripheries: a socio-anthropological analysis of Pentecostalism in arts, grammars, crime and morality. Vibrant: Virtual Brazilian Anthropology, v. 15, n. 1, p.1-23, 2018. [online]., por meio de um estudo etnográfico em uma periferia do Rio de Janeiro, aponta como a ascensão de igrejas evangélicas na região e a conversão de membros do crime organizado desenvolveram uma “gramática pentecostal” que transformou diversas esferas dessa zona urbana. Carly Machado (2014)MACHADO, Carly Barboza. Pentecostalismo e o sofrimento do (ex-) bandido: testemunhos, mediações, modos de subjetivação e projetos de cidadania nas periferias. Horizontes antropológicos, a. 20, n. 42, p. 153-180, 2014., por sua vez, demonstra como igrejas evangélicas são espaços de acolhimento que oferecem dispositivos simbólicos eficazes para que ex-criminosos lidem com o sofrimento causado pelas experiências passadas na vida do crime e encontrem alternativas à criminalidade.

Todavia, pouco se sabe sobre os discursos oficiais das instituições evangélicas sobre a questão da segurança enquanto um problema público. Esse tópico é relevante na medida em que tais instituições tornaram-se atores importantes na constituição do conservadorismo nacional. Para tratar do discurso da Igreja Universal em torno desse tema e de outras questões, o artigo desenvolverá seu argumento em mais três seções. Primeiramente, será feita uma breve exposição sobre os procedimentos metodológicos que pautaram a análise; posteriormente, serão apresentados os resultados encontrados; por fim, conclui-se com a seção de considerações finais sobre os temas debatidos e sugestões de agenda de pesquisa.

Procedimentos metodológicos

O marco teórico adotado para a análise foi a teoria dos pacotes interpretativos proposta por William Gamson (GAMSON; LASCH, 1981GAMSON, William A.; LASCH, Kathryn E. The political culture of social welfare policy. Center for research on Social Organization, n. 242, p. 1-23, 1981.; GAMSON; MODIGLIANI, 1989GAMSON, William; MODIGLIANI, Andre. Media discourse as a symbolic contest: a constructionist approach. American Journal of Sociology, v. 95, n. 1, p. 1-37. 1989.). Inserida dentro do paradigma do enquadramento dos estudos comunicacionais, a teoria dos pacotes interpretativos propõe uma metodologia de estudo que permite a análise de discursos por meio da investigação dos dispositivos linguísticos empregados por seus autores. Dispositivos esses que são denominados por Gamson e Lasch (1981)GAMSON, William A.; LASCH, Kathryn E. The political culture of social welfare policy. Center for research on Social Organization, n. 242, p. 1-23, 1981. como dispositivos de assinatura. Tal perspectiva tem, como ponto de partida, o conceito de enquadramento. Dentro dos estudos comunicacionais, o conceito de enquadramento faz referência ao modo como as mídias constroem uma narrativa em cima do fato que buscam relatar.5 5 Segundo Entman, “enquadrar é selecionar aspectos da realidade e torná-los mais salientes em um texto de maneira a apontar determinado problema, gerar uma interpretação causal, avaliação moral ou recomendação de tratamento para o evento descrito” (ENTMAN, 1993, p. 52). Deriva dessa definição a constatação de que um mesmo fato pode ser relatado de diversas maneiras com o objetivo de apontar aspectos específicos e influenciar o julgamento e a interpretação dos receptores. Dessa forma, o paradigma do enquadramento questiona diretamente o paradigma da objetividade jornalística. Propõe que é preciso ir além das partes superficiais da notícia e entender o que não está explícito, mas funciona como uma ideia central (TANKARD, 2001). Nesse contexto, as chaves conceituais oferecidas aos indivíduos pelos jornais são atreladas ao modo como o fato relatado foi enquadrado no processo de produção da notícia. Por conseguinte, não basta analisar somente quais fatos estão disseminados pela mídia. É necessário avaliar também a narrativa criada ao redor desses fatos.

De acordo com Gamson e Lasch (1981)GAMSON, William A.; LASCH, Kathryn E. The political culture of social welfare policy. Center for research on Social Organization, n. 242, p. 1-23, 1981., ao redor dos problemas que compõem a agenda existem diversos conceitos e interpretações que fornecem as chaves teóricas através das quais os indivíduos compreendem os fenômenos sociais. Contudo, esses conceitos não são autônomos. Para que possam proporcionar um sentido satisfatório a um problema público, é necessário que sejam agrupados com outras ideias a fim de formar uma narrativa harmoniosa que explique adequadamente todos os aspectos da questão. Uma vez conectadas, tais ideias se reforçam mutuamente e traçam uma linha de pensamento que apresenta causas, consequências e soluções relacionadas ao problema a que fazem referência. Gamson e Lasch (1981)GAMSON, William A.; LASCH, Kathryn E. The political culture of social welfare policy. Center for research on Social Organization, n. 242, p. 1-23, 1981. definem esses agrupamentos como pacotes interpretativos. A cultura de um problema corresponde ao conjunto de pacotes interpretativos que circulam de forma efetiva na esfera pública e participam ativamente da disputa política em torno de uma questão social. Um pacote interpretativo possui três partes constituintes: o enquadramento, as justificativas e a assinatura. O primeiro corresponde à ideia central defendida pelo pacote. O segundo representa as soluções propostas para o problema público e as conexões causais estabelecidas na narrativa (GAMSON; LASCH, 1981GAMSON, William A.; LASCH, Kathryn E. The political culture of social welfare policy. Center for research on Social Organization, n. 242, p. 1-23, 1981.; GAMSON; MIDIGLIANI, 1989GAMSON, William; MODIGLIANI, Andre. Media discourse as a symbolic contest: a constructionist approach. American Journal of Sociology, v. 95, n. 1, p. 1-37. 1989.).6 6 Enquanto ideia central, o enquadramento cria um padrão de organização dos conceitos que formam o pacote interpretativo. Já as justificativas dizem respeito ao posicionamento fornecido pelo pacote interpretativo em relação ao problema público. Elas são os mecanismos conectores da narrativa que estabelecem relações entre as motivações de um acontecimento e os seus efeitos. As soluções propostas pelos pacotes interpretativos estão alicerçadas nessas relações. Dessa forma, as justificativas são recursos conectores que ligam partes distintas da narrativa e a direcionam para a apresentação de soluções possíveis para o distúrbio social. A assinatura, por fim, é composta por um conjunto de dispositivos textuais que evidenciam o enquadramento e o posicionamento de um determinado pacote. Os dispositivos funcionam como símbolos condensados das principais ideias e soluções defendidas pela narrativa e podem ser elencados em uma matriz de assinatura (GAMSON; LASCH, 1981GAMSON, William A.; LASCH, Kathryn E. The political culture of social welfare policy. Center for research on Social Organization, n. 242, p. 1-23, 1981.). A matriz de assinatura é uma tabela que apresenta os pacotes interpretativos e seus respectivos dispositivos de enquadramento e de justificativa.

Assim sendo, a pesquisa focou em elaborar e comparar as matrizes de assinatura dos pacotes interpretativos disseminados pela IURD e por Jair Bolsonaro ao longo da campanha eleitoral de 2018 em torno do problema da segurança pública nacional. Para a análise do corpus e coleta dos dispositivos de assinatura, optou-se por utilizar a Análise de Conteúdo como principal técnica de pesquisa. O momento inicial da análise correspondeu ao período de coleta e organização do corpus. Após a análise inicial, seguiu-se para a exploração do material, que foi conduzida por meio do software MaxQDA. A base da análise foi o processo de categorização. O estudo do corpus, em cruzamento com a análise bibliográfica conduzida ao longo da pesquisa, permitiu a identificação dos dispositivos de enquadramento e de justificativa. Os dispositivos foram considerados como categorias discursivas que englobam diferentes ideais presentes no texto (BARDIN, 1977BARDIN, Lawrence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977.). Em face disso, conduziu-se um processo de codificação em que passagens do corpus foram classificadas com base no conjunto de categorias previamente elencadas; isto é, com base nos dispositivos de assinatura identificados. Após a codificação, seguiu-se para a elaboração das matrizes de assinatura. Por meio das matrizes, foi possível analisar os discursos propagados pelos textos que formaram o corpus. Ao colocar as narrativas propagadas pela IURD sobre o tema em perspectiva com os discursos disseminados por Bolsonaro em sua página oficial no Facebook, foi possível avaliar em que medida houve aproximações, divergências e arranjos possíveis entre os discursos dos dois atores.

Entre o idealismo punitivo de Bolsonaro e a punição ressocializadora da Igreja Universal

A segurança pública no Brasil foi um tópico pouco abordado pelas mídias das fontes da Universal ao longo do período analisado, embora o tema tenha sido matéria de capa da edição da Folha Universal lançada em 16 de setembro. Fora essa reportagem, nenhum outro artigo ou publicação feitos pelo semanário ou pelo site oficial da igreja tiveram o tópico da segurança como foco principal. As outras menções à violência identificadas nos textos analisados foram elaboradas de forma breve e com o objetivo de fortalecer a narrativa de que o país enfrentava uma crise geral no período eleitoral e que a população vivia em estado constante de insatisfação com a realidade violenta do Brasil. De outro lado, a segurança pública foi o segundo tema mais abordado nas postagens de Bolsonaro em sua página oficial no Facebook durante a campanha. Com efeito, das 180 publicações analisadas, 35 postagens tinham como tema principal a expansão da violência no Brasil.7 7 O tema mais abordado pelo então candidato foi a crise política, que ocupou a posição de tópico central em 109 postagens.

As matrizes de assinatura formadas com base na análise desse corpus são ilustradas pela tabela comparativa abaixo, a qual apresenta os dispositivos de assinatura identificados nas publicações de ambos atores. Existem dois tipos de dispositivos de assinatura: os dispositivos de enquadramento e os dispositivos de justificativa (GAMSON; LASCH, 1981GAMSON, William A.; LASCH, Kathryn E. The political culture of social welfare policy. Center for research on Social Organization, n. 242, p. 1-23, 1981.). Os primeiros são formados por elementos do texto capazes de evidenciar o enquadramento. Gamson e Lasch (1981)GAMSON, William A.; LASCH, Kathryn E. The political culture of social welfare policy. Center for research on Social Organization, n. 242, p. 1-23, 1981. apontam cinco dispositivos textuais dentro dessa categoria: metáforas, exemplos, bordões, representações e imagens. O segundo tipo de dispositivo representa os elementos textuais capazes de evidenciar o posicionamento do pacote. São representados pelos conectores da narrativa que estabelecem as relações de motivação e efeito. Dessa forma, são definidos como dispositivos de justificativa. Três são os dispositivos inseridos nessa categoria: as causas, as consequências e os apelos a princípios (GAMSON; LASCH, 1981GAMSON, William A.; LASCH, Kathryn E. The political culture of social welfare policy. Center for research on Social Organization, n. 242, p. 1-23, 1981.).8 8 Uma análise aprofundada sobre a teoria dos pacotes interpretativos e sobre as definições e aplicações metodológicas dos dispositivos de assinatura propostos por esse marco teórico pode ser encontrada na dissertação de mestrado “Deus acima de tudo: a atuação política da Igreja Universal do Reino de Deus nas eleições de 2018”. Ver em: PAULA (2022).

Quadro 1.
Matrizes de assinatura dos pacotes interpretativos da IURD e de Bolsonaro em relação a segurança pública brasileira

O Quadro 1 apresenta diferenças relevantes entre o pacote interpretativo defendido pela Universal em relação ao tema da segurança pública e aquele expresso nos discursos de Jair Bolsonaro. Todavia, as narrativas defendidas pelo então candidato e pela igreja também apresentaram uma série de convergências. A primeira delas é a concepção de que em todo território nacional configurava-se um cenário de guerra no momento das eleições. Na referida matéria de capa da Folha Universal, é ressaltado que mesmo as cidades menores deixaram de ser locais pacatos e foram tomadas pela criminalidade. Em consequência, toda a população vivia em um constante estado de medo, sendo esse um dos principais problemas a ser debatido nas disputas eleitorais. Em seu discurso, a IURD definiu como inaceitável o estado de violência que atingiu o país e assinalou a imensa insatisfação da população com as altas taxas de crime.

De forma semelhante, Bolsonaro descreveu o Brasil ao longo de sua campanha como uma nação tomada pela criminalidade. Na visão do então deputado, no momento do pleito, o país era um “barco que afundava em violência”. Em suas postagens, retratou as grandes cidades como zonas de guerra, nas quais a população estava sendo massacrada pelos bandidos. Ainda afirmou que tal situação transformava os cidadãos em reféns da criminalidade, visto que o medo da violência impedia os habitantes dos grandes centros de circularem tranquilamente pelos espaços urbanos. Outra convergência entre a narrativa da Universal e a de Bolsonaro foi a correlação estabelecida entre os problemas de segurança pública do país e a má administração dos governos petistas. A ausência de investimentos nas forças de segurança por parte dos governos do PT foi apontada tanto pela igreja quanto pelo então deputado como uma das principais causas do alto grau de criminalidade no momento da eleição. De acordo com as narrativas desses dois atores, além dos recursos serem escassos, eles foram mal administrados e desviados por esquemas de corrupção existentes nas instituições estatais.

Embora observem-se aproximações entre as duas narrativas, as distinções discursivas entre a IURD e Bolsonaro no campo da segurança pública são ainda mais relevantes. A principal divergência é que a Universal nega os preceitos e as preposições que pautam o idealismo punitivo e assume a punição ressocializadora como o seu pacote interpretativo. Vejamos, a seguir, como ambos os pacotes se configuram no discurso desses dois atores sociais.

Jair Bolsonaro e a violência urbana: o idealismo punitivo e a negação da sociedade

Partindo da premissa de que o país enfrentava um cenário de guerra, Bolsonaro apresentou-se na campanha eleitoral de 2018 enquanto um candidato que “pegaria firme contra a bandidagem”. Enfatizou que os seus inimigos eram bandidos e que a sua prioridade era a defesa dos denominados “cidadãos de bem”. Em publicação feita no dia 10 de setembro em seu perfil oficial no Facebook, afirmou: “Nossa preocupação e prioridade são as pessoas de bem. Falo desde sempre, prefiro uma cadeia lotada de criminosos do que um cemitério lotado de inocentes. Se faltar espaço, a gente constrói mais” (BOLSONARO, 2018aBOLSONARO, Jair (Jair Messias Bolsonaro). Nossa preocupação e prioridade são as pessoas de bem. Brasília, 10 set. 2018a. Facebook: Jair Messias Bolsonaro. ). O fundamento de sua postura repressiva é a noção de lei e ordem, a qual defende a força como necessária para fazer cumprir a lei e manter a paz na sociedade (LACERDA, 2019LACERDA, Marina Basso. O novo conservadorismo brasileiro: de Reagan a Bolsonaro. Porto Alegre: Editora Zouk, 2019.). Derivam dessa premissa propostas como a militarização das polícias e das forças de segurança, a legitimação jurídica da violência policial e o agravamento das penas. Dentro de tal perspectiva, as ações de segurança pública do Estado devem ser pautadas por uma política de tolerância zero. O assassinato e o encarceramento perpétuo são vistos enquanto atitudes legítimas de combate à criminalidade. Para o criminoso, não caberia perdão, piedade e nem ressocialização, somente a punição mais severa possível. A ideia central desse pacote interpretativo é expressa de forma objetiva pelo slogan: “Bandido bom é bandido morto”.

Com base nessa visão, as propostas de Bolsonaro para a segurança pública partiram do princípio de que “bandido” não possui direitos e deve ser atacado agressivamente pelas forças de segurança. Tal negação dos direitos dos criminosos deriva de um posicionamento contrário aos Direitos Humanos, que são entendidos como instrumentos que impedem a aplicação das medidas de punição adequadas e coíbem o combate à criminalidade. Está-se na presença de uma visão dicotômica da realidade social, a qual divide a sociedade entre o “cidadão de bem” e o “bandido”. O primeiro é descrito como o indivíduo honesto que cumpre com suas obrigações legais; já o segundo é retratado como o fora da lei, que constantemente coloca em risco a vida e a paz de seus pares. Com base nessa concepção, a narrativa do idealismo punitivo afirma que há uma inversão de valores no Brasil atual: enquanto o “cidadão de bem” vive em constante risco de ser vítima da criminalidade, os bandidos seguem impunes.

Apesar da noção de lei e ordem partir do princípio de que as forças de segurança do Estado são as principais responsáveis pelo combate da violência, Bolsonaro e os demais defensores do idealismo punitivo enfatizam que os indivíduos possuem o direito à proteção pessoal. O armamentismo particular e a legalidade de empresas de segurança privada são pautas centrais desse pacote interpretativo. Bolsonaro difundiu insistentemente durante a campanha a narrativa de que as armas, quando nas mãos dos “cidadãos de bem”, não representam uma ameaça à sociedade. Essa ideia foi expressa pelo slogan: “Flores não geram paz e armas não geram violência”. Tal discurso armamentista está ligado, de um lado, a certo padrão de masculinidade constantemente reproduzido por Bolsonaro e seus apoiadores. A narrativa do “cidadão de bem” que faz uso de armas de fogo para combater o “bandido” reproduz o arquétipo masculino do “guerreiro justo” que combate o mau por meio da violência (LUCENA; ALBUQUERQUE, 2021LUCENA, Mariana Barrêto Nóbrega; ALBUQUERQUE, Laura Gigante. Masculinidade hegemônica e os riscos da facilitação do acesso a armas de fogo no Brasil: a emergência de um patriarcado armado? In: MARTINS, F.; GOULART, D.; RODRIGUES, C. Gênero, violência e tecnologias de resistência. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2021. p 76-94.). De outro lado, a narrativa dualista que separa o bandido do “cidadão de bem” é ainda mobilizada para construir a imagem de um inimigo interno na sociedade. Imagem essa que é centrada em um aspecto fundamental do conservadorismo da extrema-direita brasileira e do discurso político bolsonarista: a intolerância social.

A intolerância social diz respeito ao modo como os partidários do discurso da extrema-direita no Brasil enxergam seus opositores e aqueles que não compactuam com o seu discurso político. Seu princípio básico é simples: o “outro” é enxergado como inimigo e deve ser tratado com ódio. Estrutura-se, assim, uma interpretação da realidade pautada por códigos binários. Tal divisão cria uma visão simplificada das relações sociais e fornece uma série de categorias que englobam os indivíduos em estereótipos administráveis (ALONSO, 2019ALONSO, Angela. A comunidade moral bolsonarista. In: ABRANCHES, S. H. et al. Democracia em risco. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. p. 52-70.). A noção do conflito entre “nós” e “eles” ativa afetos coletivos de alta intensidade, como o medo, o ódio e a raiva. A partir disso, há uma radicalização do posicionamento político. O ultraconservador enxerga nas relações políticas um conflito constante que ameaça a sua comunidade moral e a ordem social. Combater os seus inimigos é o que fornece a motivação para que ele permaneça engajado nas disputas públicas. Como destaca Alonso: “Em guerra, a violência é um recurso legítimo, como símbolo e ato” (ALONSO, 2019ALONSO, Angela. A comunidade moral bolsonarista. In: ABRANCHES, S. H. et al. Democracia em risco. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. p. 52-70., p. 53). A aplicação de métodos violentos física ou simbolicamente é compreendida como uma maneira válida de proteger a comunidade moral e a ordem da sociedade. No contexto da segurança pública, a figura estereotipada do bandido representa o “outro”, que está em guerra contra a comunidade moral formada pelos “cidadãos de bem”. O criminoso é compreendido como uma ameaça constante à paz social, de modo que a intolerância e o combate violento são justificados.

Além de imperdoável, o bandido é também descrito como incorrigível. Na lógica do idealismo punitivo defendida por Bolsonaro, a criminalidade não é explicada por fatores sociais. O indivíduo que se engaja em práticas criminosas o faz por possuir um desvio de caráter que não pode ser alterado. Parte-se do princípio neoliberal de que não há sociedade, somente indivíduos agindo de acordo com a moral e o mercado (BROWN, 2019BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Editora Politéia, 2019.). Explicações que apontam a criminalidade como resultado de estruturas desiguais são descartadas. Da mesma forma, as políticas sociais ou as ações de ressocialização são consideradas ineficientes para solucionar a crise da segurança pública. Nesse contexto argumentativo, os progressistas que defendem os Direitos Humanos e anseiam por políticas sociais no combate à violência são vistos como indivíduos que agem para proteger os “fora da lei”. Descritos como inimigos do “cidadão de bem”, os defensores dessas causas são taxados pejorativamente de “turminha dos direitos humanos” e acusados de “proteger vagabundo” pelos grupos ultraconservadores. Para Bolsonaro, além de impedir os criminosos de receberem a punição adequada, os Direitos Humanos são uma forma de legitimar a ação criminosa. Protegido das punições, o bandido continuaria a cometer crimes e perpetuaria a violência social. A impunidade, portanto, geraria um ciclo de violência que tem como resultado o aumento do crime. Nessa linha interpretativa, o maior punido seria o “cidadão de bem”, que sofre continuamente com assaltos, latrocínios e homicídios. Para sustentar sua retórica, Bolsonaro publicou diversas vezes o dado de que o Brasil possuía uma média de 60 mil homicídios por ano. Por fim, o discurso punitivo também é aplicado no âmbito político. Em tal contexto, a figura do bandido é substituída pela figura do corrupto ou do progressista. A intolerância contra esses grupos é entendida como um código de identificação ética entre as forças do bem.

Outro elemento insistentemente apontado como causa da violência pública foi a corrupção, que, no discurso de Bolsonaro, é descrita como intrínseca aos governos petistas. Segundo Bolsonaro (2018), “um governo corrupto incentiva a corrupção em todas as esferas sociais”. A impunidade nas instituições políticas seria um reforço para os criminosos, ao permitir que as suas ações não fossem exemplarmente penalizadas. Ademais, afirmou que o desvio de verbas por parte dos governos petistas resultou na falta de recursos para a melhoria das forças de segurança e do policiamento nos grandes centros urbanos. O candidato à presidência defendeu em suas publicações a tese de que o PT promoveu um recuo do Estado na guerra contra a criminalidade. Esse recuo é descrito por ele como o “espírito de cordeiro”. Além de proteger os bandidos através dos Direitos Humanos, o PT teria enfraquecido as forças policiais e desvalorizado os trabalhadores da segurança.

A desvalorização das forças de segurança brasileiras também foi outro problema afirmado com frequência pelo político de extrema-direita em sua campanha. Durante os meses eleitorais, Bolsonaro retratou policiais como heróis e alimentou o discurso de que eles não são devidamente reconhecidos pela população e nem pelos governos. Da mesma forma, criticou os discursos de esquerda, que colocam o agente de segurança como o vilão em situações de repressão violenta ao crime. Para ele, além de ser legítima a brutalidade policial, os agentes da polícia que “abatem” bandidos para proteger a vida dos “cidadãos de bem” deveriam ser “condecorados e homenageados”. Assim, diferentemente dos mandatos de Dilma e Lula, a segurança pública em seu governo seria pautada pela lógica do combate e da destruição do inimigo. Tal visão é ilustrada por uma postagem sua feita no dia 29 de outubro. De acordo com o então candidato:

A violência no Brasil já passou da linha do absurdo há muito tempo e quanto mais recuamos, mais a bandidagem avança. Quando adotamos o espírito de cordeiro na esperança de misericórdia, o criminoso na realidade entende que pode tudo e que é o senhor da sua vida. Isso vai acabar! (BOLSONARO, 2018bBOLSONARO, Jair (Jair Messias Bolsonaro). A violência no Brasil já passou da linha do absurdo há muito tempo. Brasília, 29 out. 2018b. Facebook: Jair Messias Bolsonaro.).

A IURD e a violência urbana: batalha espiritual e punição ressocializadora

A Universal faz parte do grupo de igrejas que compõem o Neopentecostalismo, categoria que representa a terceira onda de igrejas pentecostais no Brasil (FRESTON, 1993FRESTON, Paul. Protestantes e política no Brasil: da constituinte ao impeachment. Tese (Doutorado em Sociologia). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1993.; MARIANO, 1999MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 1999.).9 9 Existiram três ondas distintas do pentecostalismo no Brasil, ao longo do século XX, cujas igrejas perduram até os dias de hoje (FRESTON, 1993; MARIANO, 1999). A primeira onda é intitulada de Pentecostalismo Clássico e representada pelas primeiras igrejas pentecostais que chegaram no país no início do século. A segunda onda é denominada de Deuteropentecostalismo (MARIANO, 1999) e teve início na década de 50. Por fim, a terceira onda foi definida como Neopentecostalismo e se iniciou nos anos finais da década de 70. Dentro do protestantismo, as igrejas pentecostais se singularizam pela crença no poder imanente do espírito santo e em sua capacidade de possuir aqueles que acreditam em Deus. A crença na contemporaneidade do espírito santo e em sua ação imanente criou uma cosmologia cristã-pentecostal singular dentro do cristianismo. Dessa cosmologia deriva uma percepção da realidade em que não separa o natural do sobrenatural. Na doutrina Pentecostal, espíritos e humanos compartilham os mesmos espaços imanentes e são mutuamente influenciáveis, de modo que “tudo, absolutamente tudo, está virtualmente impregnado pela presença do espírito santo e/ou de agências espirituais” (CORRÊA, 2020CORRÊA, Diogo Silva. O divino no humano e o humano no divino: esboço de uma cosmologia cristã-pentecostal. Religião & Sociedade, v. 40, n. 2, p. 147-170, 2020., p. 151). Nessa lógica, todos os eventos, por menores que sejam, são compreendidos como consequências de fatos espirituais. Assim, resulta da cosmologia cristã-pentecostal uma ontologia regulada por um espiritualismo-materialista (CORRÊA, 2020CORRÊA, Diogo Silva. O divino no humano e o humano no divino: esboço de uma cosmologia cristã-pentecostal. Religião & Sociedade, v. 40, n. 2, p. 147-170, 2020.). Nessa ontologia, eventos sobrenaturais são banalizados e o indivíduo está em constante relação com entidades não-humanas, sejam elas boas ou más. Acima de tudo, a cosmologia cristã-pentecostal é dualista, visto que separa as entidades espirituais em bondosas e malignas. Essa dualidade é representada pela oposição entre Deus e o diabo, que, na perspectiva pentecostal, são entidades que estão em constante combate pelo domínio do mundo terreno.

A oposição entre Deus e o diabo é um dos pilares da estrutura teológica da Igreja Universal. A igreja se caracteriza historicamente pela exacerbação da narrativa da batalha espiritual entre espíritos divinos e espíritos malignos. O discurso teológico da IURD assume que todos os acontecimentos do mundo imanente são resultados diretos da guerra travada entre as forças de Deus e as forças demoníacas (MARIANO, 1999MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 1999.). Nessa perspectiva, a condição imanente dos sujeitos é condicionada pelo seu posicionamento nesse embate (CORRÊA, 2020CORRÊA, Diogo Silva. O divino no humano e o humano no divino: esboço de uma cosmologia cristã-pentecostal. Religião & Sociedade, v. 40, n. 2, p. 147-170, 2020.). Indivíduos que são crentes em Deus e exercem sua fé com dedicação e constância estão próximos dos espíritos divinos. Já aqueles que vivem uma vida de pecado e não creem no poder de Deus estão condenados a sofrer com as ações das entidades malignas. A exacerbação da batalha espiritual faz com que a figura do diabo e a ideia de condicionamento da vida imanente exerçam uma função central na constituição teológica e na organização ritual da IURD. Dentro dessa perspectiva, todos os males que afligem a humanidade e a vida dos indivíduos são concebidos como ações demoníacas que podem ser afastadas pela fé, pelo exercício frequente de práticas religiosas e pelo exorcismo. A Universal oferece aos seus fiéis um discurso capaz de dar sentido a todos acontecimentos de sua vida e de apresentar uma solução acessível: a crença em Deus (SILVA, 2014SILVA, Janete Rodrigues da. Movimento neopentecostal, renovação carismática católica e a reformulação da teodiceia cristã na contemporaneidade. Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade de Brasília, Brasília, 2014.). O indivíduo que enfrenta problemas em sua vida encontra no discurso da IURD uma explicação causal para suas angústias e pode buscar a igreja em busca das soluções mágicas que ela oferece.

A oferta de uma explicação totalizante e de soluções mágicas para problemas terrenos atrai uma pluralidade de indivíduos, que buscam uma vida melhor e livre de sofrimento. A Universal não faz nenhum tipo de distinção entre as pessoas que a procuram em busca de seus serviços espirituais. Como o discurso da igreja concebe todos os males enquanto resultados da ação de entidades malignas, os indivíduos que frequentam os seus cultos a procura de uma nova vida não sofrem qualquer tipo de julgamento. Usuários de drogas, alcoólatras, criminosos ou praticantes de religiões mediúnicas são recebidos como iguais nos templos da IURD. Afinal, todos esses indivíduos são apenas vítimas do mal espiritual que lhes aflige e não são diretamente responsáveis por seus pecados. Pouco se fala na Universal sobre livre-arbítrio, visto que os seres humanos não são enxergados como completamente autônomos. Em consequência, não há uma responsabilização ética dos indivíduos por seus atos pecaminosos e problemas terrenos (MARIANO, 1999MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 1999.; CÔRTES, 2017CÔRTES, Mariana. Diabo e fluoxetina: pentecostalismo e psiquiatria na gestão da diferença. Curitiba: Appris, 2017. ).

Neste sentido e, de acordo com os seus preceitos religiosos, a Universal construiu um pacote interpretativo acerca da segurança pública que não compactuou integralmente com o idealismo punitivo bolsonarista. O primeiro ponto de desacordo entre esses atores sociais encontra-se na concepção do idealismo punitivo de que a população é uma vítima de criminosos. Ainda que a igreja também tenha disseminado a visão de que as cidades brasileiras enfrentam cenários de guerra, a Universal defende que a população é igualmente responsável pela violência urbana. A IURD afirma que, ao agir de forma corrupta em seu cotidiano e se engajar em atividades ilegais, os cidadãos comuns contribuem para a perpetuação da criminalidade. O uso de drogas é o principal exemplo utilizado para ilustrar tal afirmativa. Com base nesse argumento, a Universal propaga um discurso moral que incentiva os cidadãos a se manterem afastados de práticas desonestas e critica duramente os usuários de drogas por contribuírem para a violência que tanto prejudica o país. Os que assim o fazem, na visão da igreja, são tão merecedores de punição quanto os que cometem os crimes.

Nesse ponto, cumpre ressaltar que a ideia de punição é central no discurso da IURD. A igreja defende que os criminosos devem ser devidamente punidos pelos seus atos e realizar o cumprimento rígido da pena que lhes foi imposta. Contudo, diferentemente de Bolsonaro, a Universal não adota um discurso de punição que estigmatiza o bandido ou defende o seu extermínio. Para a igreja, o processo punitivo imposto ao criminoso condenado deve ser, acima de tudo, um processo capaz de promover a sua reinserção na sociedade. O discurso disseminado pela instituição religiosa não compartilha do ódio ao criminoso e nem do idealismo punitivo de Bolsonaro. Diferentemente dos atores de extrema-direita no Brasil, a IURD não enxerga a prática de crimes como resultado de um desvio de caráter incorrigível. O bandido é, para a igreja, uma vítima de entidades diabólicas que podem ser afastadas por meio do poder de Deus. Dessa forma, o criminoso não deve ser punido de forma agressiva ou exterminado pelas forças de segurança do Estado. Na linha argumentativa da Universal, o criminoso tem responsabilidade judicial sobre seus atos, mas não-responsabilidade ética. Igualmente, não deve ser tratado como uma pessoa sem direitos. Afinal, dentro da perspectiva teológica da igreja, suas atitudes não foram resultantes de seu livre-arbítrio, mas do poder do diabo. Antes de mais nada, trata-se de um filho de Deus que tem o direito às promessas de Cristo desde que professe a sua fé. Tanto os criminosos quanto os presidiários são vistos como pessoas que podem ser perdoadas e salvas por meio da conversão ao cristianismo. A Universal prega que é função da comunidade cristã na terra trabalhar para converter esses indivíduos e reinseri-los na sociedade como uma pessoa fiel a Deus e ao evangelho.

A defesa do perdão, da conversão ao cristianismo e da reinserção social dos criminosos é materializada em um dos principais projetos sociais da igreja: o Universal nos Presídios. O projeto conduz atividades sociais e religiosas dentro de unidades prisionais de todo o país. Também promove a doação de materiais e recursos que não são fornecidos aos detentos dentro das cadeias, como produtos de higiene pessoal, livros e revistas. Segundo o site do projeto, seu principal objetivo é ajudar os indivíduos encarcerados a retornarem à sociedade com uma nova perspectiva de vida. Para isso, realiza cultos que visam converter os detentos, assim como cursos e oficinas que procuram ensinar novas atividades de trabalho, que podem ser empregadas após o fim da pena. O projeto é embasado também na visão negativa que a IURD possui sobre as cadeias no Brasil. Tal perspectiva mostra-se clara numa matéria de capa da Folha Universal, do dia 16 de setembro de 2018, em que foi apresentado o testemunho de uma ex-detenta, não-identificada, com o objetivo de mostrar os malefícios das prisões brasileiras. A partir desse relato, a reportagem defende que as condições desumanas dos presídios do país são também uma das causas das altas taxas de violência em seu território. Ao longo da entrevista, a ex-detenta argumenta que os detentos são tratados de forma desrespeitosa e não têm acesso a qualquer iniciativa que permita a sua reinserção na sociedade. A consequência é a transformação das cadeias em “escolas do crime”. Entretanto, a matéria reforça a ideia de que a “cadeia não é spa” e defende que os criminosos condenados devam cumprir a punição sem restrições. Pondera, porém, que não há motivos para que eles sejam desrespeitados ou vivam em condições precárias dentro dos presídios. A solução da crise de segurança proposta pela Universal passa, portanto, por um processo nacional de humanização do sistema presidiário. Por fim, a igreja aponta os problemas educacionais do país como um dos principais causadores das altas taxas criminais. Não obstante, o faz de forma tímida. No corpus analisado, não foi realizado nenhum debate aprofundado sobre a relação entre a má qualidade do ensino público e a violência nas cidades.

As reportagens analisadas também apontam para a desvalorização dos trabalhadores da segurança pública como uma das causas das altas taxas de violência no país. Contudo, o discurso da Universal não propagou a narrativa de Bolsonaro, que coloca os policiais na condição de heróis. O foco da igreja, ao tratar da desvalorização desse grupo profissional, foi o de ressaltar as condições precárias de trabalho que os funcionários da segurança pública enfrentam e as suas consequências para o combate à criminalidade. Na referida matéria de capa do semanário, uma seção inteira é dedicada à reprodução da fala de um policial que visa evidenciar as dificuldades existentes em sua rotina de trabalho. O entrevistado, que não teve sua identidade revelada, afirmou que todos os setores da polícia no Brasil são mal remunerados e que os policiais não têm acesso aos equipamentos adequados para conduzirem de forma efetiva as suas missões. A ausência de equipamentos é descrita como fruto da falta de investimento do Estado no setor e isso representa uma das principais formas de desvalorização do trabalho realizado pelos agentes. O entrevistado alude ainda para uma desvalorização interna nas corporações policiais, a qual atinge principalmente os funcionários de baixa patente. Segundo ele, tal desvalorização é resultado de um problema histórico e estrutural derivado da hierarquia rígida existente dentro das instituições de segurança pública. O conjunto desses fatores resultaria num sentimento constante de fragilidade por parte dos trabalhadores da área. Sentimento esse que os leva a adentrar em esquemas de corrupção que facilitam o funcionamento do crime.

A desvalorização dos agentes da segurança pública também ocorreria por parte da mídia. Na entrevista, a igreja mobiliza as falas do entrevistado para afirmar que os programas de televisão e matérias de jornal destacam apenas os acontecimentos ruins e os resultados fracassados das ações policiais. Tal foco propaga a ideia de que os policiais são incompetentes em suas tarefas. Diante disso, a IURD defende que os jornalistas deveriam salientar as ações positivas das forças de segurança. Isso contribuiria para a valorização social da profissão e para o maior reconhecimento do serviço que prestam à sociedade.

Além da precariedade do trabalho, a Universal arrola, em seu discurso, que a crise de segurança é também intensificada pela desarticulação entre as instituições públicas no combate à criminalidade. A igreja ressalta em suas publicações que não há no Brasil uma articulação entre os poderes executivo, legislativo e judiciário na luta contra a violência. A ausência desse concerto também ocorre entre as forças estatais de segurança. A narrativa da igreja direciona-se para a afirmação de que não há no Brasil uma coordenação mútua entre a polícia civil, a polícia militar e o Ministério Público. Disso resulta o trabalho pouco eficaz de tais instituições no combate à criminalidade.

Além dos aspectos presentes no discurso da IURD sobre a segurança pública, cabe apontar uma ausência importante: no corpus analisado, não há menções sobre o debate em torno do armamento da população. A ausência desse tema na narrativa da Universal se destaca na medida em que a defesa do acesso a armas de fogo por parte da população civil foi um dos principais tópicos da campanha bolsonarista e uma questão pública relevante no pleito. Todavia, o discurso ressocializador e a condenação da punição agressiva de criminosos apontam para um desacordo entre a visão da igreja e a dos defensores do armamento da população. Esse indício é reforçado pelo fato de a Universal problematizar o padrão de masculinidade que acompanha o discurso armamentista (GUTIERREZ, 2017GUTIERREZ, Carlos Andrade Rivas. A reflexividade evangélica a partir da produção crítica e construção de projetos de vida na Igreja Universal do Reino de Deus. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas. 2017.). Apesar de considerar os aspectos da dominação e da brutalidade como inerentes ao gênero masculino, a Igreja defende que o homem evangélico deve ser capaz de domar esses impulsos naturais e performar sua masculinidade de acordo com os valores cristãos. Tal performance se configura na fidelidade ao casamento, no bom relacionamento com a esposa e os filhos, na disciplina, no autocontrole e no cuidado de si (GUTIERREZ, 2017GUTIERREZ, Carlos Andrade Rivas. A reflexividade evangélica a partir da produção crítica e construção de projetos de vida na Igreja Universal do Reino de Deus. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas. 2017.).10 10 Esse padrão de masculinidade é disseminado na igreja principalmente pelo projeto Intellimen. Liderado pelo bispo Renato Cardoso, o Intellimen visa formar o “homem inteligente”. Tal categoria existe em contraste à ideia do “macho”, que representa o homem incapaz de controlar seus impulsos naturais de brutalidade, preguiça e desejos sexuais. O “homem inteligente” se diferencia do “macho” por sua habilidade de disciplinar esses impulsos (GUTIERREZ, 2017). Sua inteligência é expressa pela sua capacidade de reprimir sua violência natural, ser educado com as pessoas, e cuidar de si e de sua família.

O discurso da IURD descrito até aqui representa o pacote interpretativo denominado de Punição Ressocializadora. Tal pacote afasta-se de forma considerável do idealismo punitivo que caracteriza o discurso político de Bolsonaro e da extrema-direita que ascendeu no Brasil ao longo da última década. Primeiramente, por não defender a ampliação da punição e o combate agressivo da criminalidade. Segundo, por apresentar uma perspectiva sobre o tema que leva em consideração, mesmo que de forma tímida, as inequidades estruturais da sociedade brasileira.

De modo geral, a cosmologia cristã-pentecostal, ao estabelecer uma relação de causalidade entre os acontecimentos terrenos e o mundo espiritual, gera uma percepção da realidade que não relaciona os acontecimentos sociais às desigualdades estruturais da sociedade. Ao colocar todos os eventos terrenos na posição de consequência de acontecimentos que ocorrem no âmbito espiritual, impede a problematização sociológica dos fenômenos sociais. Dito de outra forma, tal cosmologia proporciona uma percepção ontológica que não admite causas sociais para fenômenos cotidianos. Ora, mesmo na abordagem da segurança pública, como já dito, o aspecto espiritual é mobilizado para explicar a violência. Contudo, ele não é tratado como a única causa. No pacote interpretativo disseminado pela IURD, as péssimas condições do sistema penitenciário, a desvalorização policial e a ausência de um sistema educacional eficiente são também apontadas como causas autônomas desse problema público. A IURD elabora, portanto, em termos de sua compreensão acerca da violência social, um pacote interpretativo de natureza ressocializante e não-punitiva.

Considerações finais

A avaliação comparativa dos pacotes interpretativos propagados pela IURD e por Jair Bolsonaro sobre o tema da segurança pública nas eleições de 2018 mostra aproximações, divergências e arranjos conciliatórios. No que tange as aproximações, evidenciaram-se semelhanças na forma como a IURD e Bolsonaro enquadraram o problema da violência no país. Ambos convergiram na visão de que o Brasil vivia em 2018 um cenário de guerra no que tange à violência. Também compartilharam a visão de que a má administração, a corrupção e o baixo investimento dos governos do PT foram as principais causas das altas taxas de criminalidade em todo o território. Por fim, defenderam a narrativa de que a figura do policial é desvalorizada e que merece maior reconhecimento da sociedade e das autoridades. A despeito dessas afinidades, as narrativas seguem direções distintas ao tratarem do problema da criminalidade. Nesse aspecto, as divergências são mais consideráveis do que as aproximações.

A Universal não compartilha da intolerância contra a figura do criminoso presente no discurso de Bolsonaro. Enquanto o capitão reformado defendeu em suas publicações uma política de tolerância zero que combatesse o crime por meio da repressão violenta e da punição máxima aos criminosos, a igreja disseminou a perspectiva de que toda punição deve ser acompanhada de um processo de ressocialização. Essa diferença carrega uma série de concepções distintas sobre o tema. A guerra ao crime proposta por Bolsonaro é alicerçada numa crítica severa aos direitos humanos e na negação do status de cidadania aos criminosos condenados. Tal visão enxerga a criminalidade enquanto consequência de um desvio incorrigível de caráter e nega qualquer interpretação que aponte causas sociais para os problemas de segurança pública. Resulta disso a certeza de que o criminoso não pode ser reinserido na sociedade e que a punição amplamente aplicada e severamente expressa nas penas seria inibidora de novos crimes. Nesse discurso, punição engloba tanto o encarceramento em massa quanto o assassinato de criminosos. A concepção de que “bandido bom, é bandido morto” justifica tanto o assassinato promovido pela ação policial quanto a morte causada por cidadãos comuns. Em contrapartida, o discurso da Universal demonstra uma perspectiva mais abrangente sobre o problema da violência. Embora aponte causas espirituais para o envolvimento dos indivíduos com o crime, a igreja mostra em seu discurso a compreensão de que fatores sociais amplos estimulam o aumento da criminalidade.

As críticas ao sistema carcerário brasileiro por parte da instituição religiosa também mostram divergências em relação ao discurso bolsonarista. A despeito da Universal defender a punição dos criminosos, ela o faz sem negar os diretos básicos da pessoa punida. A IURD aponta ainda para a precariedade das cadeias no país e defende um processo de humanização dos presídios que contribua para a ressocialização dos punidos. Essa visão humanizada da segurança pública, contudo, não representa uma adesão aos ideais dos Direitos Humanos. Ao longo do corpus em análise, a igreja não cita tal modalidade judicial e ética. O fundamento de sua concepção são os seus próprios valores religiosos. Acima de tudo, a ressocialização e a humanização da punição devem ocorrer pelo fato do indivíduo ser um filho de Deus. O fundamento básico dessa concepção, portanto, não está em postulado seculares, mas sim no ideal religioso de que todos os indivíduos são iguais perante a divindade.

A análise das emissões discursivas da Igreja Universal e as de Jair Bolsonaro em relação ao tema da segurança pública na campanha eleitoral de 2018 assinala uma série de considerações. A primeira é a de que a aliança entre a instituição liderada por Edir Macedo e o então candidato do PSL seguiu o padrão histórico da igreja em adotar um pragmatismo político sem abrir mão de seus valores. Cabe lembrar que, no início da campanha eleitoral do referido pleito, a IURD havia declarado apoio ao candidato do PSDB, Geraldo Alckmin (NASCIMENTO, 2020NASCIMENTO, Gilberto. O reino: a história de Edir Macedo e uma radiografia da Igreja Universal. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.). O então PRB, partido vinculado à instituição, fez parte da coligação oficial do tucano. Tal aliança prévia explica o motivo de Edir Macedo ter declarado o voto em Bolsonaro apenas uma semana antes do primeiro turno da eleição, assim como a discrição com que o bispo o fez. Neste ponto da disputa, a candidatura de Alckmin já havia derretido e as pesquisas apontavam para um segundo turno entre Fernando Haddad e Jair Bolsonaro. O abandono da campanha de Alckmin e a declaração de apoio ao candidato que liderava as pesquisas naquele momento foi, mais uma vez, uma demonstração do recorrente pragmatismo político da IURD.11 11 Cumpre apontar que, a partir da declaração de voto de Edir Macedo na plataforma digital Facebook, a Universal passou a mobilizar suas ferramentas midiáticas em prol da campanha do capitão reformado. Alguns dias após o bispo afirmar que votaria em Bolsonaro, foi transmitida pela Rede Record uma entrevista exclusiva com o então candidato do PSL. A entrevista foi transmitida simultaneamente ao debate presidencial da Rede Globo, ao qual Bolsonaro não compareceu, utilizando-se da justificativa de que não tinha condições médicas para participar do evento, devido ao atentado à faca que sofreu em setembro de 2018. A entrevista foi ao ar três dias antes do primeiro turno e foi caracterizado pelos adversários de Bolsonaro como um comício televisionado. Tal pragmatismo, porém, não é facilmente reconhecido, devido à aproximação moral entre Bolsonaro e os grupos evangélicos. De fato, o entrelaçamento entre a instituição de Macedo e o capitão reformado possui uma característica que não estava presente nas alianças anteriores construídas pela IURD: um forte ponto de contato religioso. Como foi apontado, o político mobilizou a narrativa de que era um indivíduo que compartilhava dos valores cristãos e que lutava para disseminá-los na sociedade brasileira ao longo da campanha. Apesar disso, o exame dos pacotes interpretativos dos dois atores em relação à segurança pública mostra que não há entre eles uma união absoluta no que diz respeito aos valores políticos. O exame do corpus mostra que, após a costura da aliança com o então candidato do PSL, a Universal não fez qualquer endosso ou sinalização de apoio ao idealismo punitivo de Bolsonaro. Não abriu mão, portanto, de seus ideais religiosos para fortalecer o alinhamento com o político. Igualmente, Bolsonaro não moderou seu posicionamento em relação à segurança pública a fim de garantir o apoio da instituição religiosa. Ambos os atores, portanto, agiram estrategicamente por meio de um arranjo conciliatório, o qual revela um pragmatismo político que lhe garante benesses e dividendos nas disputas por poder.

Outro fator relevante dos discursos da IURD e de Bolsonaro sobre a questão da segurança pública é a inserção de pautas morais e religiosas no debate público. Como aponta Brown (2019)BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Editora Politéia, 2019., o processo de moralização de pautas políticas leva ao esvaziamento da política como um todo ao contribuir para o fortalecimento da narrativa de negação da sociedade, comum ao discurso neoliberal; e para a destruição do senso de coletividade. A negação da sociedade conduz a uma narrativa que culpabiliza indivíduos e grupos específicos pelos problemas sociais existentes e impede a construção de um imaginário democrático pautado no bem-comum.

Apesar de sinalizar problemas sociais que contribuem para a criminalidade, como a falta de investimento em educação e a precariedade do sistema carcerário brasileiro, o discurso da Universal pauta-se na não-problematização dos aspectos histórico-sociológicos que os causam. Ao mobilizar seus preceitos religiosos para afirmar a não-responsabilização ética dos criminosos e defender o direito à ressocialização, a igreja deixa de problematizar as causas sociais do crime. Na mesma intensidade, nega-se a abordar questões relacionadas aos direitos humanos universais e às condições que garantem aos cidadãos direitos inalienáveis. Essa característica está ainda mais presente no discurso de Bolsonaro. Ao tratar criminosos como indivíduos com desvios incorrigíveis de caráter, o político ignora completamente a causalidade de fatores sociais no que tange à criminalidade. O idealismo punitivo da extrema-direita responsabiliza integralmente o bandido pela ação criminosa e se recusa a sinalizar problemas sociais que podem contribuir para a criminalidade. A individualização da culpa resulta na certeza de que a eliminação dos indivíduos desviantes é a solução para a criminalidade.

Dito isso, cabe questionar de que outras formas a Universal insere os seus preceitos morais no seu discurso político, assim como a maneira como tal inserção contribui para a popularização dos ideais conservadores radicais entre seus fiéis. Em meio à conjuntura política que se desenvolveu no Brasil nos últimos anos, tal indagação faz-se relevante na medida em que se questiona a associação entre a religião e o conservadorismo num contexto de crise das instituições políticas. Igualmente, é relevante continuar observando de que forma os discursos de Bolsonaro e de outros atores da extrema-direita moralizam o debate público a fim de propagar discursos políticos pautados pela não-problematização de questões sociais.

É essencial, diante do que foi discutido, manter as investigações sobre as ações políticas da igreja e sobre as suas narrativas em relação aos problemas públicos nacionais. Esse esforço deve levar em conta tanto os momentos eleitorais como os momentos não-eleitorais. Nesse aspecto, tanto a Folha Universal quanto o site oficial da igreja são veículos importantes. Igualmente, é fundamental manter as investigações ao redor do discurso político de Jair Bolsonaro e da forma como o político de extrema-direita utiliza plataformas digitais para propagá-los. Mais ainda, é essencial analisar como a relação desses dois atores se desenvolveu após as eleições de 2018. Outras investigações devem levar em conta a conjuntura política nacional, os posicionamentos do político e como eles dialogam ou divergem dos valores religiosos defendidos pela igreja. É possível que a imagem que Bolsonaro alimenta de si mesmo, enquanto um escolhido de Deus que age para combater a imoralidade dos grupos de esquerda, tenha criado na população fiel um forte vínculo político e religioso com o ex-deputado. É válido questionar, assim, em que medida o capitão reformado tornou-se um símbolo político para os evangélicos e de que forma isso afeta ou não a construção da identidade religiosa desse grupo. Dito de outra forma, questiona-se em que medida a população fiel associa o ato de ser evangélico com o alinhamento aos ideais conservadores do político de extrema-direita. A relação entre o bolsonarismo e o neopentecostalismo acrescenta um novo elemento ao pragmatismo político da igreja, visto que um rompimento político com Bolsonaro poderia representar uma quebra com os ideais dos fiéis da instituição que enxergam a identidade evangélica como algo indissociável da crença em ideais políticos conservadores.

Referências

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  • 3
    O termo discurso é aqui compreendido na perspectiva de Maingueneau (1993)MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. Campinas: Pontes Editores, 1993., ou seja: “bem menos do que um ponto de vista, (o discurso) é uma organização de restrições que regulam uma atividade específica. Sua enunciação não é uma cena ilusória onde seriam ditos conteúdos elaborados em outro lugar, mas um dispositivo constitutivo da construção do sentido e dos sujeitos que aí se reconhecem” (MAINGUENEAU, 1993MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. Campinas: Pontes Editores, 1993., p. 50).
  • 4
    Também denominadas de mídias coorporativas, as mídias das fontes são “mídias produzidas e gerenciadas por atores sociais que, no Brasil, são tradicionalmente percebidos como fontes de informação” (SANT’ANNA, 2008SANT’ANNA, Francisco Cláudio Corrêa Meyer. Media de source: un nouvel acteur sur la scene journalistique bresilienne. Tese (Doutorado em Informação e Comunicação). Sénat, Rennes 1, Rennes, 2008., p. 21). Isto é, são mídias mantidas por instituições sociais e políticas que antes eram apenas alvo do jornalismo dos grandes grupos midiáticos e que, por esse motivo, não conseguiam se comunicar diretamente com uma quantidade ampla de indivíduos. Foram criadas com o objetivo de visibilizar as reivindicações e os pacotes interpretativos desses grupos de interesse, para interferir na opinião pública por meio do agendamento midiático e da comunicação direta com o coletivo (SANT’ANNA, 2008SANT’ANNA, Francisco Cláudio Corrêa Meyer. Media de source: un nouvel acteur sur la scene journalistique bresilienne. Tese (Doutorado em Informação e Comunicação). Sénat, Rennes 1, Rennes, 2008.).
  • 5
    Segundo Entman, “enquadrar é selecionar aspectos da realidade e torná-los mais salientes em um texto de maneira a apontar determinado problema, gerar uma interpretação causal, avaliação moral ou recomendação de tratamento para o evento descrito” (ENTMAN, 1993ENTMAN, Robert M. Framing: toward clarification of a fractured paradigm. Journal of communication, v. 43, n. 4, p. 51-58, 1993., p. 52). Deriva dessa definição a constatação de que um mesmo fato pode ser relatado de diversas maneiras com o objetivo de apontar aspectos específicos e influenciar o julgamento e a interpretação dos receptores. Dessa forma, o paradigma do enquadramento questiona diretamente o paradigma da objetividade jornalística. Propõe que é preciso ir além das partes superficiais da notícia e entender o que não está explícito, mas funciona como uma ideia central (TANKARD, 2001TANKARD, James T. Jr. The empirical aproach to to study of media framing. In: REESE, S. D.; GANDY JR, Oscar H.; GRANT, A. E. (orgs.). Framing public life: Perspectives on media and our understanding of the social world. London: Routledge, 2001.).
  • 6
    Enquanto ideia central, o enquadramento cria um padrão de organização dos conceitos que formam o pacote interpretativo. Já as justificativas dizem respeito ao posicionamento fornecido pelo pacote interpretativo em relação ao problema público. Elas são os mecanismos conectores da narrativa que estabelecem relações entre as motivações de um acontecimento e os seus efeitos. As soluções propostas pelos pacotes interpretativos estão alicerçadas nessas relações. Dessa forma, as justificativas são recursos conectores que ligam partes distintas da narrativa e a direcionam para a apresentação de soluções possíveis para o distúrbio social.
  • 7
    O tema mais abordado pelo então candidato foi a crise política, que ocupou a posição de tópico central em 109 postagens.
  • 8
    Uma análise aprofundada sobre a teoria dos pacotes interpretativos e sobre as definições e aplicações metodológicas dos dispositivos de assinatura propostos por esse marco teórico pode ser encontrada na dissertação de mestrado “Deus acima de tudo: a atuação política da Igreja Universal do Reino de Deus nas eleições de 2018”. Ver em: PAULA (2022)PAULA, Tiago Franco de. Deus acima de tudo: a atuação política da Igreja Universal do Reino de Deus nas eleições presidenciais de 2018. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Universidade de Brasília, Brasília, 2022..
  • 9
    Existiram três ondas distintas do pentecostalismo no Brasil, ao longo do século XX, cujas igrejas perduram até os dias de hoje (FRESTON, 1993FRESTON, Paul. Protestantes e política no Brasil: da constituinte ao impeachment. Tese (Doutorado em Sociologia). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1993.; MARIANO, 1999MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 1999.). A primeira onda é intitulada de Pentecostalismo Clássico e representada pelas primeiras igrejas pentecostais que chegaram no país no início do século. A segunda onda é denominada de Deuteropentecostalismo (MARIANO, 1999MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 1999.) e teve início na década de 50. Por fim, a terceira onda foi definida como Neopentecostalismo e se iniciou nos anos finais da década de 70.
  • 10
    Esse padrão de masculinidade é disseminado na igreja principalmente pelo projeto Intellimen. Liderado pelo bispo Renato Cardoso, o Intellimen visa formar o “homem inteligente”. Tal categoria existe em contraste à ideia do “macho”, que representa o homem incapaz de controlar seus impulsos naturais de brutalidade, preguiça e desejos sexuais. O “homem inteligente” se diferencia do “macho” por sua habilidade de disciplinar esses impulsos (GUTIERREZ, 2017GUTIERREZ, Carlos Andrade Rivas. A reflexividade evangélica a partir da produção crítica e construção de projetos de vida na Igreja Universal do Reino de Deus. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas. 2017.). Sua inteligência é expressa pela sua capacidade de reprimir sua violência natural, ser educado com as pessoas, e cuidar de si e de sua família.
  • 11
    Cumpre apontar que, a partir da declaração de voto de Edir Macedo na plataforma digital Facebook, a Universal passou a mobilizar suas ferramentas midiáticas em prol da campanha do capitão reformado. Alguns dias após o bispo afirmar que votaria em Bolsonaro, foi transmitida pela Rede Record uma entrevista exclusiva com o então candidato do PSL. A entrevista foi transmitida simultaneamente ao debate presidencial da Rede Globo, ao qual Bolsonaro não compareceu, utilizando-se da justificativa de que não tinha condições médicas para participar do evento, devido ao atentado à faca que sofreu em setembro de 2018. A entrevista foi ao ar três dias antes do primeiro turno e foi caracterizado pelos adversários de Bolsonaro como um comício televisionado.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    25 Nov 2022
  • Aceito
    17 Maio 2023
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