Acessibilidade / Reportar erro

Coerção e consenso na política

ARTIGOS ASSINADOS

Coerção e consenso na política

Jacob Gorender

O Pensamento Revolucionário: da burguesia ao proletariado

O pensamento revolucionário burguês, a partir do século XV até o século XIX, se desdobra em ampla e diversificada frente de disciplinas, de regiões do trabalho intelectual. Na frente da Filosofia, afirma a primazia da Razão diante da Fé, o direito à dúvida metódica, à pesquisa, o afastamento de quaisquer limites de natureza sobrenatural para a esfera do conhecimento. Na frente do Direito, com o jusnaturalismo, afirma os direitos naturais do homem, que nenhuma instituição social pode retirar.

Na frente da teoria do Estado - que é explicada de várias maneiras, mas unânime na idéia de que não pode haver um Estado sobre-humano, de origem divina — o novo pensamento burguês declara que o Estado nasce da sociedade, por conseguinte, deve ter tais ou quais compromissos com a própria sociedade. Este processo discursivo vai terminar, como se sabe, na teoria do contrato social, de Rousseau, depois de passar por Locke, Spinoza, Hobbes e outros. É a afirmação, portanto, de um direito igualitário dos cidadãos, em oposição aos diretos dos estamentos e dos privilégios estamentais. Cria-se o conceito moderno de cidadão, separa-se a ordem privada da ordem pública.

No terreno da Ética, a burguesia apresenta uma nova teoria das relações sociais, justamente a ética do indivíduo, que nela tem o seu centro e soberano. Sob a nova perspectiva, os interesses individuais, ao invés de conflitantes, tendem a se complementar. Desta harmonização dos interesses individuais deveria surgir a própria harmonia social.

E finalmente a Economia Política, criada por esse pensamento revolucionário burguês. Uma teoria econômica que veio para se afirmar contra a velha ordem feudal dos privilégios, dos monopólios, dos regulamentos e das prescrições restritivas. Por isto mesmo, proclama, como a mais natural e conveniente para os homens, a liberdade da atividade econômica, a soberania do mercado, a tendência espontânea do mercado de regular os diferentes interesses individuais dos vários produtores. Para a burguesia, que então afirmava sua supremacia, os diversos tipos de coação extra-econômica já eram dispensáveis. Tanto para ela, como para a classe dos trabalhadores — os operários que já estavam nas manufaturas e iriam entrar nas fábricas com a Revolução Industrial — bastava a coação meramente econômica. O fato dos trabalhadores estarem despossuídos dos meios de produção e de subsistência os forçaria, pela própria necessidade, pelo hábito criado com o passar das gerações, pela obrigação desde a infância, a procurar as fábricas e a considerar natural a circunstância de viver de um salário. Salário que seria regulado, no final das contas, pela existência do exército industrial de reserva, combinado com a procura e a oferta de mão-de-obra no mercado.

Em face disso, o que deveria ser o Estado para a burguesia revolucionária? Um Estado liberal, apenas com a função de fazer cumprir as regras do jogo de mercado, porém não intervindo neste. Um Estado que puniria aqueles que infringissem as regras, aqueles que violassem justamente esta ordem burguesa, sinônimo de ordem pública. O Estado burguês não teria função econômica direta. Não faria como o Estado absolutista, promovendo fábricas, concedendo monopólios e privilégios.

Destoa desse pensamento, é claro, o próprio Hegel. Na sua Filosofia do Direito, o que ele apresenta é o Estado constitucional, mas não liberal, uma vez que escrevia como filósofo de um Estado ainda atrasado — naquele momento — sob o aspecto da revolução burguesa.

Estas são as frentes principais do pensamento revolucionário burguês. Talvez eu tenha omitido alguma delas, mas acredito que apresentei as mais importantes.

Em que frentes se desenvolve o pensamento revolucionário proletário no final do século XVIII — quando emerge a Revolução Francesa — e no transcurso do século XIX, chegando aos nossos dias?

Passada a fase das utopias — que constróem idealmente sociedades coletivistas autogestionárias — e entrando na obra dos fundadores do socialismo científico, de Marx e Engels, podemos observar que o pensamento do proletariado revolucionário e sua elaboração teórica se apresentarão também de maneira esquemática nos seguintes terrenos:

Em primeiro lugar, na crítica da Economia Política. Esta é a primeira frente, a principal, à qual se dedicará o grande fundador do pensamento revolucionário do proletariado: Marx, com a colaboração de Engels. Pela própria sistemática da sua concepção geral do materialismo histórico, que confere a instância fundamental ao que chamamos de fator econômico, Marx considerou que devia atacar primeiramente a Economia Política burguesa, que deveria criticá-la. Desta crítica surge o desvelamento das contradições do capitalismo, surge uma nova teoria econômica do sistema capitalista, em que se demonstra que este sistema não pertence à natureza da espécie humana, e, por conseqüência, é histórico. O capitalismo é um sistema que surge em determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas do próprio homem. Por conseguinte é transitório e deve desembocar — pelo desenvolvimento das contradições internas — na substituição por outro sistema, que seria o sistema socialista.

O pensamento do proletariado se apresenta, portanto, em primeiro lugar através da crítica da Economia Política burguesa e de uma teoria econômica oposta a ela. É a crítica principalmente de Adam Smith e de Ricardo, que vai servir de base para o desenvolvimento das teorias econômicas posteriores: Kaustsky, Rosa Luxemburg, Lenin, Hilferding, Bukharin e os contemporâneos. O pensamento econômico marxista assumiu, portanto, um lugar central na elaboração de uma concepção revolucionária do proletariado. Apoiados no terreno preparado pelo idealismo clássico alemão e já atuando como intelectuais orgânicos dentro do movimento operário, Marx e Engels puderam lançar os fundamentos da dialética materialista e de uma teoria geral da sociedade. Concepções necessárias à edificação de um pensamento revolucionário que se propunha a ganhar o aval de ciência.

No entanto, é sintomático que Marx se concentrasse nos trabalhos de Economia Política e só desenvolvesse a teoria do materialismo dialético e histórico no corpo das obras econômicas e historiográficas. Já se disse que O Capital é a Lógica de Marx. Em parte, e somente em parte, Engels procurou suprir esta lacuna.

Daí que a segunda frente mais importante no desenvolvimento do pensamento do proletariado viesse a ser a teoria da revolução. É que, neste terreno, as indagações vinham com a imposição da urgência: o que era a revolução na época das contradições do capitalismo? Qual a sua trajetória previsível? Que papel teria nela o proletariado em face das outras forças sociais?

Tais indagações vão constituir tema de constante polêmica no movimento comunista até os dias de hoje.

Desdobrando-se da teoria da revolução, vem a teoria do partido revolucionário. Esta ainda não tem lugar elaborado em Marx e Engels. Mas, em seguida, com a II Internacional, assume lugar proeminente. São sobretudo os teóricos russos, com Lenin à frente, que vão erguer o corpus da teoria do partido revolucionário. Teoria que, nas suas origens, ficou marcada pelas condições peculiares da luta revolucionária na Rússia czarista e, mais tarde, da construção do socialismo na União Soviética.

A teoria do Estado se segue em ordem de importância no pensamento revolucionário do proletariado. Contudo, não podemos deixar de concordar com Norberto Bobbio que esta é uma frente insuficientemente abordada e menos avançada do que as outras. A tal ponto que, ainda segundo Bobbio, não existiria uma teoria do Estado no universo marxista.

Mas o próprio pensador italiano reconhece que se Marx não se dedicou à teoria política com tanto afinco quanto à teoria econômica, o que nos legou já é suficiente para lhe dar um lugar eminente, o lugar de um verdadeiro marco na evolução das idéias políticas. Pois é de Marx a tese de que o Estado não é uma instituição para o bem comum, acima das classes sociais, conforme idéia generalizada no pensamento político anterior. Marx foi o primeiro a declarar que o Estado é o Estado de uma classe particular. Esta ligação orgânica do Estado com uma determinada classe, com a classe dominante, é essencial no pensamento político marxista, é a contribuição específica mais importante de Marx. O fundador do socialismo científico inverte a relação de Hegel, de Estado-sociedade civil, do Estado criador da sociedade civil, para a sociedade civil-Estado. A sociedade civil, como o reino em que os indivíduos realizam suas necessidades materiais, suas necessidades econômicas, é que será a criadora do Estado, a base do Estado. No entanto, Marx, como Engels, assim como Lenin, irão dar ênfase sobretudo ao Estado como instrumento de coerção — o Estado é a coerção legítima. Daí poder funcionar como regulador dos conflitos sociais entre as várias classes, porém como um regulador que age de maneira a preservar a ordem existente e o modo de produção em vigência, assim como a formação social que confere supremacia à classe dominante. No caso, a classe dominante burguesa.

Mesmo liberal, este Estado não se ausenta da vida econômica. Sua ausência é uma ilusão ideológica, pois o Estado liberal intervém na ordem econômica ainda que evite a gestão direta de empresas.

Marx dá novo sentido à palavra ditadura, ao falar em ditadura de classe. Originalmente, o termo ditadura vem da antiga Roma, designando um governo necessariamente provisório, admitido em situações conflitivas, convulsivas, que deveria pôr ordem na vida pública, mas por um prazo determinado, retirando-se em seguida. O termo foi adotado na literatura política, com esta acepção de transitoriedade, até Marx. Para Marx, ditadura de classe será sinônimo de dominação de classe, designando uma situação duradoura.

Por que a classe dominante exerce dominação de maneira discricionária, como uma ditadura? Porque ela faz o que lhe interessa e para isso não há limite real na lei. As leis obedecem aos interesses da classe dominante e se violam também no interesse da classe dominante. Mas a ditadura, por sua vez, pode ser exercida sob diferentes formas políticas. No caso da burguesia, tanto se exerce sob a forma de um regime plenamente discricionário, como através da república democrática, através de governos representativos e que, na linguagem usual, seriam aparentemente o oposto da ditadura.

Em virtude de semelhante ambigüidade, o termo ditadura dá origem a numerosas confusões. O fato de, na linguagem mais usual, nós só o empregarmos como expressivo de governos discricionários, não nos permite compreender que, na terminologia de Marx, ele tem sentido de discricionário para a dominação burguesa geral, não se restringindo à forma que esta assume nos governos autoritários. A ditadura de classe pode se apresentar também sob a forma de governos parlamentares representativos e constitucionais, obedientes à legalidade.

Com relação ao novo Estado socialista, a teoria política foi pouco elaborada, tanto por Marx e Engels, como por Lenin. Salienta-se, aí, a idéia da destruição do aparelho do Estado burguês, e a sua substituição por um novo aparelho de Estado. Em seguida a idéia de deperecimento do Estado, ou seja, da sua extinção gradual. O que significa, de um lado, a recusa da concepção reformista de que o Estado burguês pudesse adaptar-se às necessidades da futura dominação do proletariado. E, por outro lado, a recusa do princípio do anarquismo, segundo o qual o Estado deve ser extinto de uma vez de maneira imediata, assim que for derrubada a burguesia. Segundo os teóricos marxistas, sendo a revolução um ato autoritário por excelência, o proletariado, que se apossa do poder, não dispensará o Estado como instrumento de afirmação desse mesmo poder. O proletariado tem necessidade do Estado, o qual não pode desaparecer exatamente no momento da revolução. Trata-se de um novo tipo de Estado, que necessariamente deve atravessar uma transição: a da extinção gradual. Talvez pela previsão de que o Estado do proletariado fosse necessário, mas transitório, destinado a se extinguir, é que não se teorizasse sobre o que seria este Estado.

Esta seria uma razão de ordem teórica. Existem também motivos de ordem histórica, pela forma como ocorreram as revoluções, primeiro na URSS, depois em outros países do Leste Europeu, na China, em Cuba etc. Neste ponto, eu dou razão a Norberto Bobbio. O que aconteceu, na realidade, em todos esses países, é que o Estado, ao invés de realizar um processo de deperecimento, iniciou um processo de expansão. Porque, ao contrário do previsto por Marx e Engels, o Estado assumiu os bens de produção em nome da sociedade. Com isso, adquiriu um poder que nunca teve antes em nenhuma sociedade burguesa. O Estado se expandiu mais do que se poderia prever. O processo de sua extinção não se iniciou ainda em nenhuma sociedade do chamado socialismo real e uma teorização a respeito ainda está por ser feita.

Estado — Coerção e Consenso

Vamos deter-nos, agora, na contribuição especial de Antônio Gramsci.

Em Marx, Engels e Lenin, foi dada ênfase sobretudo à face coercitiva do Estado, o Estado-coerção. As formas consensuais de dominação de classe não mereceram tanto esforço teórico. Não que se omitisse o problema da ideologia. Marx falou dela e declarou que a ideologia da classe dominante é a ideologia dominante. Neste sentido, os teóricos marxistas estudaram as diversas ideologias da burguesia, com algumas incursões no terreno da Filosofia. Estudou-se a Religião, até certo ponto a Arte, muitíssimo pouco a Ética. Neste ponto, não se pode dizer que há uma teoria da Ética socialista ou algo que mereça este nome. Há certas contribuições, mas não possuem nível teórico à altura do que o marxismo elaborou no terreno da economia, na teoria da revolução e na teoria política do partido.

Tanto Engels como Lenin notaram a submissão ideológica do proletariado inglês à burguesia inglesa. Mas Lenin, em particular, atribuiu isso ao fato de o imperialismo inglês ter a disponibilidade de oferecer migalhas, do que saqueava do seu império, ao proletariado inglês. Subornava, corrompia o proletariado inglês. Mas o estudo dos processos ideológicos que tornavam essa submissão consolidada, que davam a ela estabilidade, um prolongado grau de duração, isto não foi objeto de estudo por parte de nenhum daqueles grandes teóricos.

É com Gramsci que irão ser estudados os processos consensuais de direção e de dominação. Ele ressaltou a complexidade das funções do Estado. O Estado com sua força legitimada, o Exército, a Polícia, a Administração Publica, os Tribunais etc., órgãos depositários da função de coerção. Esta é uma face. A outra face é a extensão do Estado, que ele chamou de Sociedade Civil, num sentido diferente de Marx. A Sociedade Civil seria o âmbito em que se moveriam as instituições destinadas a obter o consenso das outras classes sociais que formam com a classe dominante aquele bloco histórico, que dá estabilidade à formação social. Aqui entram a Igreja, os Partidos Políticos, os Sindicatos, as Escolas, obviamente a Universidade, a Imprensa (hoje se incluiriam o rádio e a televisão, com sua tremenda força de comunicação), a Alta Cultura, o Senso Comum — a chamada sabedoria popular, com os provérbios, o folclore etc. Este seria o terreno onde se formariam as consciências que aceitariam a ordem vigente. Mas, aceitação, aqui, não signiñca submissão passiva e resignação ou ilusão de uma ordem ideal. Uma classe subalterna pode aceitar determinada ordem social, mesmo vendo-a injusta. Porém, ao considerá-la eterna, impossível de mudar, adquire a confiança de que poderá melhorar sua posição, conquistar reformas. Nesse sentido, ela dá o seu consenso, sua adesão e apoio à existência dessa ordem social. E a isto que Gramsci chama de hegemonia de uma classe dirigente. Uma classe é hegemônica, é dirigente, na medida em que consegue obter o consenso das classes subalternas, na medida em que supera a visão corporativa, em que não pensa apenas nos seus interesses imediatos e consegue interpretar os interesses das outras classes sob o enfoque do seu domínio, da sua posição de supremacia. Se a classe dominante consegue fazê-lo, obtém o consenso. Se ela se restringir a uma visão corporativa, a interesses imediatos, então perde o consenso.

A burguesia conseguiu o consenso da classe operária e de outras camadas de trabalhadores com seu vasto trabalho, ideológico e multissecular. No processo de formação de sua hegemonia, ganharam a adesão dos camponeses e do operariado industrial nascente e puderam realizar assim a sua tarefa revolucionária.

É indispensável a função de dominação, a função de coerção, mas a função de direção pode precedê-la. Gramsci dizia que uma classe pode ser dirigente, antes de ser dominante. Nesse terreno, é que também o pensamento de Gramsci se voltou para o papel dos intelectuais e nenhum outro teórico marxista deu contribuição tão criativa para o estudo do papel dos intelectuais. Porque são os intelectuais, exatamente, os funcionários do consenso. São eles que trabalham como ideólogos para a obtenção do consenso como homens da Igreja, como dirigentes de sindicatos, de partidos políticos, como jornalistas, produtores da alta cultura, produtores de arte, seja a grande arte ou a arte popular etc.

Mas basta ter o consenso para ter a dominação? Aqui a divergência é muito grande entre os intérpretes de Gramsci. A obra de Gramsci, como todos sabem, foi escrita no cárcere em condições muito penosas, obrigando-o a disfarçar o que escrevia, pois estava sob vigilância constante dos carcereiros. Trata-se de uma obra escrita durante cerca de dez anos, na forma de anotações, sem nenhuma pretensão de publicação. Assim, esta obra fragmentária tem contradições, ziguezagues, voltas e reviravoltas. A propósito do assunto, aqui tratado, uma das interpretações é a de que, para Gramsci, a classe que se torna dirigente, que obtém o consenso, já pode se tomar dominante exatamente por isso. Semelhante interpretação omite o momento da ruptura, que é o momento revolucionário. Penso que Gramsci não via as coisas desta maneira reformista. Pelo conjunto do que escreveu e por certas passagens muito incisivas, sua idéia era a de que o consenso preparava a dominação. A conquista da hegemonia prepara a ruptura revolucionária, que é necessariamente violenta e não dispensa a coerção, quer dizer, a função coercitiva do Estado não pode ser dispensada pelo próprio fato de que facilita a obtenção do consenso.

Consenso e coerção fazem um jogo, em que um elemento aumenta à custa do outro, em certas conjunturas, mas, em nenhum momento, qualquer dos dois desaparece. Para fundamentar esta teorização, Gramsci se apoiou na historiografia das revoluções Francesa e Italiana. Duas revoluções, uma muito radical e vinda de baixo, que foi a Revolução Francesa, e outra, uma revolução de cima, passiva, que foi a Revolução Italiana, realizada mais por um ato da classe burguesa, através de um Estado italiano, o de Piemonte, e, por conseguinte, com uma iniciativa vinda de cima.

Quero acrescentar que dou razão, sob este aspecto, a Perry Anderson. Não a tudo o que escreveu sobre Gramsci, porque conclui que ele foi um reformista. Na minha opinião, Gramsci foi um revolucionário. Mas creio que Anderson tem razão quando afirma que o próprio Estado — considerado à parte da sociedade civil — já é consenso, ou pode prefigurar também o consenso. Nem sempre ele é somente coerção. O Estado representativo parlamentar pode ter caráter consensual. Por seu próprio mecanismo, apela para o consenso das classes subalternas, porque lhes oferece um jogo do qual elas podem participar: a periodicidade das eleições, a liberdade de organização de partidos originários das classes subalternas, com a possibilidade legal desses partidos chegarem ao poder, desde que aceitem as regras do jogo do Estado representativo. Assim, não só o que Gramsci chamava de sociedade civil pode ser consensual, também o Estado como tal pode sê-lo. Eu acrescentaria que o consenso, necessariamente, nem sempre é democrático, também pode ser despótico. Ou seja, também pode existir um despotismo consensual. Nos dias atuais, o fundamentalismo xiita não oferece no Irã um consenso ao despotismo do aiatolá Khomeini?

A obtenção do consenso nem sempre se traduz através de canais ou de formas representativas e democráticas, mas pode ter, em alguns casos, manifestação através de formas despóticas. O que varia é a correlação entre coerção e consenso.

Num Estado parlamentar democrático, a coerção é predominantemente latente, manifestando-se ostensivamente de maneira tópica, nos casos em que a ordem pública é violentada. Essa coerção se mantém num sentido mais geral, como ameaça, uma ameaça legítima, porém, que não deixa de existir, e a área do consenso é deixada, por assim dizer, livre: a imprensa é livre, não há censura, os partidos se organizam legalmente e competem livremente nas eleições, embora em condições desiguais, pois os recursos de uns e outros não são os mesmos. Os sindicatos também são livres: fazem-se greves, até certo ponto admitidas, embora a repressão policial, em alguns casos, pratique agressões e até assassinatos a líderes sindicais. A própria vida universitária recupera a sua autonomia, funciona com um grau de liberdade consentâneo com a competição entre as várias idéias. Aproximadamente, esta é a situação atual do Brasil.

Eu diria que nos Estados fascistas ou nas ditaduras militares sul-americanas, como a que tivemos no Brasil até poucos anos atrás, a coerção atinge um máximo, invadindo a área da sociedade civil onde se processa o consenso. Nestes casos, não só a coerção se torna exposta — intervindo em tudo, generalizadamente, sem recuar diante dos processos mais Korpes, a exemplo da tortura — como invade a área do consenso. Então, a Imprensa é censurada, os Partidos, como ocorreu na Argentina, são suprimidos ou só se permitem dois Partidos, um da situação e outro da oposição. Foi o que se fez no Brasil. Os Sindicatos são controlados de maneira rigorosa, as greves proibidas, as publicações submetidas à censura, o mesmo ocorrendo com o cinema, o teatro, as diversas formas de manifestação artística. A Universidade é mutilada: determinadas correntes de pensamento são impedidas de se manifestarem dentro dela etc.

Assim, temos duas situações típicas extremas: um mínimo ou um máximo de coerção com a contrapartida de um máximo ou um mínimo de consenso.

Do Populismo ao Golpe Militar

Partindo desse universo conceitual, vou fazer algumas considerações sobre a nossa História recente, referindo-me primeiramente ao que se denomina em nossa literatura sociológica e historiográfica como populismo. Via de regra, este termo tem sido entendido como manipulação por parte de uma liderança carismática de massas recém-urbanizadas, que vieram de áreas rurais ou pequenas cidades, ainda destituídas de uma consciência autônoma no universo das grandes cidades.

Os aspectos da manipulação e da liderança carismática existem, porém não são o fundamental do fenômeno. O essencial — e aqui desejo restringir-me ao caso brasileiro, visto ser este um fenômeno internacional — é que o populismo foi um processo de hegemonia consensual da burguesia ascendente, a partir dos anos 30, para obter a colaboração do nascente proletariado com vistas à construção da nação burguesa. Foi exatamente uma política do próprio Estado, tendo no seu leme o primeiro e o maior dos populistas — Getúlio Vargas. Getúlio acreditava que o populismo seria benéfico tanto para os trabalhadores como para a burguesia. Nos anos 30, dá-se início ao processo de transição da liderança da burguesia agrário-exportadora — de orientação antiindustrializante — para a liderança de uma burguesia industrial, que vai se afirmar já nos anos 30 e que irá crescer celeremente nos anos 40, até adquirir o domínio pleno nos anos 50, sobretudo no qüinqüênio de Juscelino Kubitschek.

Esta burguesia industrial, com seus políticos e estadistas populistas, conseguiu ganhar o consenso em grau elevado dos trabalhadores urbanos para o projeto de uma nação burguesa independente, através da industrialização. Assim, o populismo está essencialmente associado ao projeto da industrialização burguesa no Brasil. É o primeiro projeto político de hegemonia da burguesia brasileira. Hoje um projeto abandonado, mas que serviu durante três décadas, dos anos 30 até o começo dos anos 60. O populismo tanto pôde operar no regime autoritário do Estado Novo, como no regime liberal da Constituição de 1946, portanto, sob as condições de um regime parlamentar representativo.

E o que oferecia o populismo aos operários? O paternalismo estatal, nas suas relações conflitivas com o patronato. Os operários ganhavam uma legislação, que lhes permitia defender alguns direitos perante os tribunais da Justiça do Trabalho. Os trabalhadores deixavam de ser desamparados, mas, em troca, os Sindicatos ficavam atrelados ao Ministério do Trabalho, e eram considerados órgãos de colaboração com o poder estatal. Os Sindicatos perdiam assim a sua autonomia. Os operários ganharam outras concessões: salário mínimo, previdência social, conjuntos habitacionais, assistência médica etc. Tudo isso não deixou de facilitar a obtenção do consenso dos trabalhadores, em relação ao Estado, inicialmente à revelia da burguesia industrial que estava crescendo. Nesse sentido, Getúlio Vargas tinha uma visão mais avançada do que os próprios industriais, em sua grande maioria, com a exceção de homens como Roberto Simonsen e poucos outros.

A título de referência pessoal, eu me recordo que, ainda jovem, entrando no movimento antifascista, e logo depois no movimento comunista, eu tinha aversão a Getúlio Vargas, que personificava o Estado Novo. E me espantei depois, em 1945, ao notar que Getúlio era popular, que dispunha de enorme prestígio entre os trabalhadores. O movimento queremista de 1945 mostrava isto e, depois, a própria eleição espetacular do ex-ditador. Quer dizer, o ditador odiado era um homem popular. Ele não havia sido somente um ditador e exercido apenas a função da coerção, mas havia exercido também a função do consenso. Havia conseguido o consenso de grandes massas trabalhadoras, por ele arregimentadas para o Partido Trabalhista Brasileiro, que chegou a ser o segundo maior partido brasileiro antes do golpe de 1964.

Getúlio inicia a industrialização nos anos 40, com a fundação de grandes empresas estatais. É com ele que começa o setor estatal da economia com a indústria de base. São os seus sucessores que vão levar esta industrialização adiante. O segundo governo de Getúlio foi um prólogo do governo de Juscelino. Os grandes objetivos dos planos de metas de Juscelino, como hoje se sabe, já haviam sido previamente formulados por Getúlio, só que eram uma formulação precoce, numa época em que ainda não estavam maduras as condições para que o País pudesse interna e externamente implementar uma industrialização acelerada. Ainda não haviam recursos internos suficientes e, do lado de fora, os países capitalistas desenvolvidos — vindo em primeiro lugar os Estados Unidos — não tinham a disposição de fazer pesados investimentos na indústria brasileira. Os Estados Unidos eram francamente contrários à industrialização acelerada do Brasil e a Europa ainda estava se recuperando da n Guerra Mundial. Contudo, o Brasil já possuía um mercado interno atraente para o capital dos países da Europa Ocidental e do Japão. O capital desses países investiu no Brasil e obrigou o capital americano a mudar de posição e vir disputar uma posição no investimento industrial dentro do Brasil. Com isso, o qüinqüênio Juscelino pôde realizar aquele salto industrializante que, induscutivelmente, mudou a qualidade da economia brasileira, e deu supremacia à indústria, já acoplada com setores mais modernos -condizentes com os seus interesses — no comércio e nas finanças.

O governo de Juscelino fez a industrialização de tal forma, que legou aos seus sucessores um elenco de problemas cruciais. O Estado interveio na industrialização com inversões maciças, que apelaram para a inflação, para a emissão de papel-moeda, o que, no fundo, constituiu um imposto forçado, oneroso principalmente para a população mais pobre. Ao mesmo tempo, as inversões de capital estrangeiro sob a forma de empréstimos expandiram a dívida externa.

O governo sucessivo de Jânio se viu a braços com os problemas imperiosos da inflação, da dívida externa, da dificuldade de importação de bens essenciais, do déficit orçamentário etc. Jânio tentou enfrentar tais problemas com uma renúncia, que, no fundo, era uma manobra para obter maiores poderes em detrimento do Congresso. Esta manobra fracassou e o poder veio ter às mãos de João Goulart, discípulo direto de Getúlio e o último dos presidentes populistas.

No governo Goulart, há todo um jogo atropelado para deter e anular o populismo, jogo no qual o próprio Jango se compromete para dar uma saída - dentro do modelo recessivo do FMI — à situação de crise cíclica em que entrava a economia brasileira. A partir de 1962, a economia começa a apresentar índices mais baixos de crescimento. 1963 é um ano em que o produto per capita decresce. A economia entra num período depressivo, que vai se prolongar até o ano de 1967. Ao mesmo tempo em que a economia se debate em agudas dificuldades, o populismo já não constitui uma receita adequada para a classe dominante, porque ela não pode mais fazer concessões aos trabalhadores. Já estes, diante da erosão do seu poder aquisitivo, fazem reivindicações cada vez maiores, ao mesmo tempo que ganham experiência e consciência política. Os trabalhadores começam a apresentar reivindicações que ultrapassam o universo populista. Assim, o populismo vai sendo superado pela classe operária e pelos trabalhadores em geral. Ao mesmo tempo, o populismo já era uma política desvantajosa e inconveniente para a classe burguesa. O populismo devia por isso mesmo ser descartado por uns e por outros.

Este é o drama, o dilema do governo João Goulart, que vai ter um desenlace extremamente infeliz, porque ao mesmo tempo em que o governo se debate com esses problemas, dá-se um impetuoso crescimento do movimento pelas reformas de base. Não aprofundarei aqui o que significou o movimento pelas reformas de base, hoje depreciado pelos analistas porque terminou em derrota e não se costumam valorizar as derrotas. Apesar de que, na História, há derrotas mais fecundas do que certas vitórias.

O movimento pelas reformas de base pôs em xeque a classe dominante em três pontos fundamentais:

Em primeiro lugar, questionou o princípio da propriedade privada. O movimento incentivou, pela sua própria dinâmica, um grande número de invasões de terras pelos camponeses despossuídos ou despejados de suas terras, em conseqüência do desenvolvimento do capitalismo no campo. Quem estudar aqueles anos, poderá assinalar centenas de casos de invasões de terras de Norte a Sul do País. Os camponeses entraram impetuosamente no movimento social com as ligas camponesas e, logo em seguida, com os Sindicatos Rurais, que se disseminaram por todo o País. Daí se originou a luta pela reforma constitucional, de maneira que se tornasse viável a desapropriação de terras para a realização da reforma agrária. É o intocável princípio da propriedade privada da terra que é posto em xeque.

Em segundo lugar, o domínio das multinacionais, o domínio do imperialismo. Neste particular, o fato que considero mais significativo é a aprovação pelo Congresso da lei de remessa de lucros em 1962. Foi uma lei que restringiu em 10% a remessa anual de lucros pelo capital estrangeiro, considerando capital estrangeiro somente aquele que efetivamente entrou no País. O capital estrangeiro reinvestido, originário de lucros obtidos dentro do País, não contaria para as remessas de lucros e para os dividendos. Isto seria limitar drasticamente a remessa de lucros. Não conheço nenhum país capitalista em que uma lei tão radical houvesse sido aprovada. João Goulart, por isto mesmo — porque estava no jogo de adaptação com seus adversários, em que ele próprio procurava frear o populismo —, não sancionou a lei, deixando que ela o fosse pelo Congresso. Tampouco regulamentou esta lei, depois de aprovada, impedindo assim que ela entrasse em vigor. Jango só irá regulamentar a lei em janeiro de 1964, mais de um ano após sua aprovação. Além disso, o movimento pelas reformas de base reivindicava a encampação de refinarias particulares, das concessionárias estrangeiras de serviços públicos, porque, naquela época, principalmente a eletricidade era dominada por duas grandes concessionárias estrangeiras, a Light and Power e a Amforp.

Em terceiro lugar, porque foi posto em xeque o poder coercitivo do Estado. Surgiram, entrosados com a luta pelas reformas de base, os movimentos dos sargentos das três Armas e também de algumas Polícias Militares estaduais que acintosamente desrespeitavam os regulamentos disciplinares. Seus representantes falavam em público nas assembléias de estudantes, nos Sindicatos e adotavam os pontos de vista nacionalistas e democrático-radicais. E mais o movimento dos marinheiros e fuzileiros navais, que fundaram uma associação considerada ilegal pelo Ministério da Marinha. Marujos e fuzileiros navais também apresentavam reivindicações de caráter profissional e de caráter político. Esta indisciplina, inusitada durante dois anos ou mais, aprofundou-se dentro das Forças Armadas e abalou o poder coercitivo máximo do próprio Estado. Além da atuação, que não se pode deixar de mencionar, da oficialidade nacionalista, incluindo almirantes e generais, ostensivamente ao lado do movimento pelas reformas de base.

Isto, é claro, provocou uma reação autopreservadora nas Forças Armadas, porque, como instituição total, elas tendem à autopreservação, baseada nos princípios da disciplina rígida e da hierarquia, da subordinação incondicional dos graus mais baixos aos graus mais altos dentro da escala profissional.

Nessas condições, não é preciso dizer que o golpe militar de 1964 foi vitorioso, pois todos já sabem. O que é importante assinalar aqui é a mudança de orientação política fundamental, então ocorrida. O significado da ditadura militar, iniciada após o golpe, foi a eliminação definitiva do populismo consensual e o realce do elemento de força, de coerção do Estado. A coerção exacerbou-se e chegou a um ponto extremo, ficando o consenso como um resíduo. No processo de avanço da ditadura, da vitória golpista de 1964 até o AI-5 de 1969, a Imprensa foi submetida à Censura, os jornais oposicionistas foram calados ou deixaram de circular. A Universidade foi invadida, mutilada, aleijada, numerosos professores foram compulsoriamente aposentados e coagidos a saírem do País. Artistas foram coibidos e também obrigados a saírem do País. Cerca de dez mil funcionários públicos civis e militares foram alijados por processos administrativos, IPMs ou suspensão de direitos políticos. Parlamentares eleitos pelo voto popular também sofreram este processo de expurgo. Governadores perderam os mandatos nos seus estados. Enfim, dá-se a coerção discricionária, sem limites, pois, desde 1964, inicia-se a prática do terrorismo de Estado, com as prisões arbitrárias e torturas. Assim, se estabelece no País uma ditadura militar sem que isto fosse previsto por muitos dos protagonistas do golpe. Porque, não é correto dizer, que todos os participantes ou os principais participantes do golpe militar quisessem desde o início uma ditadura militar duradoura. Alguns deles nem pensaram nisso, e concordoram inicialmente que as Forças Armadas assumissem o poder, mas pensavam num poder ditatorial no seu exato sentido filológico, ou seja, de breve duração. Imaginavam que, depois de feita a limpeza do terreno, as Forças Armadas revertessem o poder aos civis, com a realização de eleições presidenciais. Assim pensavam, pelo menos, Carlos Lacerda, Adhemar de Barros e Magalhães Pinto, protagonistas do golpe. Mas aconteceu algo diferente. Mesmo dentro das Forças Armadas não era intenção, ao menos de um estadista como Castelo Branco, que se precisasse de uma ditadura de longa duração. Mas o que aconteceu foi exatamente isso. Não fomos com ela até o ano 2000, como pretendeu prof. Alfredo Buzaid. Não tivemos uma ditadura militar com duração tão prolongada mas, assim mesmo, durou 21 anos. Para isso, ela recebeu toda uma doutrinação, da qual a matriz principal veio na doutrina da Segurança Nacional elaborada na Escola Superior de Guerra. Esta doutrina forneceu o simulacro de legitimação para a sua vigência. A ditadura militar não foi, no entanto, regressiva, e sim modernizadora, como havia sido o Estado Novo. Ela seguiu aquilo que se chamou de modernização conservadora, termo cunhado por Barrington Moore. De um lado, o arrocho salarial, como pedra de toque da política econômica, junto a toda uma série de outras medidas, com a correção monetária, que ensejou o nascimento do mercado de capitais, bem como novas fontes de financiamento estatal, permitindo ao Estado voltar a ser um grande investidor. Por outro lado, a reversão do ciclo econômico, com os anos do chamado "milagre brasileiro", como o apelidou a Imprensa internacional.

Estes cinco ou seis anos de "milagre brasileiro", de altíssimas taxas de crescimento econômico, constituíram uma característica específica da ditadura militar brasileira na América do Sul. Foi uma fase de alta conjuntural, que não ocorreu na Argentina, nem no Chile e no Uruguai. Não quero me referir ao Paraguai, porque ali há uma ditadura tradicional e não, por assim dizer, eventual.

Este "milagre econômico" tirou toda ou quase toda a base social da esquerda armada daquela época. A vitória do golpe militar de 64 não encontrou resistência, porque o presidente João Goulart evitou a luta e capitulou, por temer que a ela se radicalizasse e ele perdesse o controle, o que poderia colocar a ordem burguesa em situação precária. Uma vez que as esquerdas confiaram na liderança de João Goulart, o que houve foi inação.

As esquerdas, em sua grande parte, entenderam que deveriam reagir com a ditadura já consolidada, com as Forças Armadas expurgadas de seus elementos rebeldes. Sem o movimento dos sargentos, dos marinheiros, dos generais e oficiais nacionalistas, e com a coerção já estabelecida no seu grau máximo.

Em tais circunstâncias, a tese da violência revolucionária incondicionada, da violência não-submetida às determinações históricas, ganhou grande parte da consciência das esquerdas, fazendo com que mergulhassem na luta armada. Primeiramente na guerrilha urbana, depois na rural e em condições tão desfavoráveis que dificilmente seria admissível e viável uma vitória.

É claro, dizemos isto depois que tudo ocorreu, já fazendo parte da História. Quem entrou na luta pensava na vitória e tinha confiança nela, teorizava sobre a grande possibilidade dessa vitória e empenhou a vida para que ela se concretizasse. Mas hoje nos cabe examinar as coisas com uma visão crítica que procura as raízes daqueles fatos, sucedidos dentro de determinado contexto político, econômico e ideológico.

Perspectivas Presentes

Devo dizer, agora, alguma coisa do que está se passando atualmente. Assim, passarei por cima de toda a fase do regime militar, porque não estarei informando nada de novo sobre o fato de que, em certo momento, o último general-presidente foi substituído por um civil na Presidência da República Civil que, por sinal, foi um dos políticos mais eminentes do próprio regime militar. Hoje vemos que, após a recessão de 1981 a 1984, em que a economia brasileira submergiu numa fase de índices negativos, passamos à recuperação de 1985-86 e em 1987 voltamos a uma nova fase recessiva. O que, sem dúvida, traz uma conotação de dificuldades, de contradições e de prenúncios críticos.

O que é que podemos sentir das reações das diversas classes sociais neste momento, dentro da temática que aqui procurei desenvolver?

Da parte da classe dominante burguesa, é incontestável que ela não pretende, de forma alguma, voltar a qualquer tipo de política populista; o populismo pertence ao passado. Tanto assim, que o último dos populistas, Leonel Brizola, é um homem malsinado, que deve ser isolado e mantido numa espécie de gueto político, com um pequeno partido, sem possibilidade de atingir aquele objetivo em que teimosamente se fixa, que é chegar à Presidência da República. Por quê? Será que Leonel Brizola por si mesmo seria um inimigo? Nem tanto, penso eu, porque se examinarmos hoje o discurso de Brizóla, vamos notar dilatadas mudanças com relação ao seu discurso pré-64. Naquela época, Brizola foi um homem que desapropriou — quando governador do Rio Grande do Sul — duas companhias concessionárias de serviços públicos norte-americanos, a ITT e a subsidiária da Amforp. O que levou a uma reação drástica do Congresso norte-americano. A linha de comunicação de Brizola com o seu público era radical, era uma pregação antiimperialista e antilatifundiária radical. E hoje, o que prega Leonel Brizola? Ele prega um programa cujo primeiro item é o leite das criancinhas, ou seja, a construção de CIEPEs para tirar as crianças das ruas e lhes dar alimentação durante o dia inteiro, educação etc. Trata-se de um objetivo que não podemos reprovar, porém não deve ser isolado de objetivos que têm em vista transformações estruturais da sociedade. Sem tais transformações, o leite das criancinhas será algo episódico e muito limitado.

O que temem as classes dominantes com Brizóla na Presidência da República é o que viria após. Porque, depois de um populista, o que poderá vir? Só poderá ser alguém mais radical. Mesmo um populista atenuadíssimo, como é Brizóla, se fracassar na contenção das massas, teria que dar lugar a uma composição social que levasse o País por um caminho de transformação política e social avançada. Assim, o populismo é uma opção descartada para as classes dominantes. O que elas têm em vista, na situação atual, é o projeto de sociedade em que os trabalhadores aceitassem — e aqui entra o consenso — o capitalismo, de tal maneira que eles se considerassem sócios dos empresários. Os empresários terão sua parte — sob a forma de lucros — como empresários e os trabalhadores terão sua parte — sob a forma de salários — como trabalhadores. É o que tem sido chamado de sindicalismo de negócios ou de resultados, em que os trabalhadores disputam seu quinhão, desde que não se proponham a uma política de transformação social. Pode ser a política dos sindicatos norte-americanos, como pode ser a política da social-democracia européia.

Do ponto de vista da estrutura fundiária, da estrutura de propriedade agrária, o que se vê é que a classe dominante não pretende fazer absolutamente nenhuma concessão. Hoje, o que há de legislação agrária, no governo Sarney, encontra-se atrás do Estatuto da Terra, aprovado como lei pelo general Castelo Branco, o primeiro dos generais-presidentes da fase ditatorial. O que vemos, neste particular, por parte de setores expressivos dos proprietários de terra, é o propósito de abolição dos mínimos direitos dos trabalhadores rurais.

O processo eleitoral, como sabemos, deu origem a uma Constituinte de maioria conservadora. Esta Constituinte tem realizado seus trabalhos em meio a uma mobilização dos vários estratos sociais como não houve em nenhum caso das outras constituintes de nossa história. Neste sentido, recordo que a Constituinte de 1946 foi centro dos debates políticos e os temas discutidos nas comissões e no plenário recebiam repercussão na imprensa. Em poucos casos, todavia, houve mobilização de entidades populares, mobilização realmente expressiva. Não existia ainda, naquela época, esta rede, já significativa, de entidades de base, de bairro, sindicais, eclesiais, e de várias outras correntes que se formaram nestes últimos anos no País. Empresários urbanos e proprietários de terras, muitas vezes os mesmos do ponto de vista das firmas ou pessoas jurídicas, já não confiam somente nos políticos e nos seus Partidos, que eles ajudaram a eleger, e encarregam entidades corporativas de representá-los no plano político. Assim, no caso dos proprietários de terras, sobressaem a Sociedade Rural Brasileira e a União Democrática Ruralista, surgida exatamente em tempos recentes, com uma atuação extremamente agressiva, na defesa da intocabilidade de todos os privilégios da propriedade rural. No caso dos empresários propriamente urbanos da indústria e dos setores comerciais bancários, financeiros etc., criou-se a União Brasileira dos Empresários, como sua principal e mais autêntica representante, não só no plano corporativo, mas também no próprio plano político. Se levarmos em conta o início de um ciclo recessivo agora, as enormes dificuldades do governo Sarney para conter os efeitos do início de recessão, como, por exemplo, o processo inflacionário recrudescente e o agravamento da questão da dívida externa, os atritos com os interesses imperialistas norte-americanos e a própria falência política e moral, se considerarmos todos estes fatores, estaremos dentro de um quadro em que possibilidade de um novo golpe militar se torna objeto de conjectura. Aí está para confirmá-lo a revivescência da direita, que volta a se mobilizar e que afrontosamente se manifesta, não nos conciliábulos secretos, mas nas associações registradas em cartório de entidades velhas e novas com figuras também velhas e novas.

Isso seria uma demonstração da incapacidade da classe dominante burguesa de governar senão pela coerção extremada? Da sua incapacidade de governar através de um regime que permita margem consensual ampliada, um regime democrático, em que as classes subalternas também possam competir e disputar ideologicamente com a classe dominante?

Esta é uma pergunta que apenas lanço, porque não pretendo ter a resposta para ela. Não penso, tampouco, que estejamos diante de desenlaces inevitáveis, mas diante de um leque de probabilidades. Creio que o que há de mais perspicaz na classe dominante — seus políticos mais clarividentes — compreende a temeridade que seria a reversão para a coerção extremada por uma segunda vez, neste final do século XX. Porque a ditadura militar instaurada em 1964 pôde se retirar do proscênio através de uma transição que não eliminou a tutela militar e que não arranhou a imagem das Forças Armadas, não lhes tirou nenhuma das prerrogativas adquiridas, exceto a de se apresentarem como patronos ostensivos do País. Os políticos mais perspicazes da classe dominante consideram a reversão uma solução temerária. Consideram que a solução mais condizente com seus próprios interesses seria a de prosseguir no processo da democracia representativa, com uma Constituição conservadora. Um conservadorismo que chamarei de moderado, porém que permitirá certo grau de competição ideológica entre a classe dominante e as classes subalternas, nos quadros democrático-burgueses.

Não há duvida, fica a indagação de qual a perspectiva que, no final das contas, prevalecerá. De qualquer forma, a única coisa que posso prefigurar, ou desejar que assim seja, é a de que a esquerda, se tiver de enfrentar futuros ciclones, futuras reversões coercitivas, saia deste processo, não enfraquecida como saiu em 1985, consideravelmente enfraquecida pela derrota em 1964 e pela derrota da luta armada de 1968 a 1974. Pelo próprio processo social dos últimos anos, pelo amadurecimento de suas lideranças, pelo aprendizado com as derrotas históricas, pois as derrotas servem para ensinar, esta esquerda poderá sair fortalecida, e capaz de iniciar um processo realmente profundo de transformação social.

Jacob Gorender é jornalista, historiador autodidata e professor-visitante do IEA em 1989.

Eu diria que nos Estados fascistas ou nas ditaduras militares sul-americanas, como a que tivemos no Brasil até poucos anos atrás, a coerção atinge um máximo, invadindo a área da sociedade civil onde se processa o consenso.

O significado da ditadura militar, iniciada após o golpe, foi a eliminação definitiva do populismo consensual e o realce do elemento de força, de coerção do Estado.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Mar 2006
  • Data do Fascículo
    Dez 1988
Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo Rua da Reitoria,109 - Cidade Universitária, 05508-900 São Paulo SP - Brasil, Tel: (55 11) 3091-1675/3091-1676, Fax: (55 11) 3091-4306 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: estudosavancados@usp.br