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Nem Princeton, nem Maputo

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Nem Princeton, nem Maputo

Carlos Guilherme Mota

Desde a abertura política, a Universidade de São Paulo vem criando um modelo brasileiro de ensino e pesquisa

Leitores de diversos quadrantes escrevem indagando sobre o Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo: o que faz, o que pretende, o que publica? Ou, como perguntava dois anos atrás o professor emérito Florestan Fernandes, ao pisar pela vez primeira em sua vida a Sala do Conselho da Universidade, da qual fora cassado em 1969, para a Conferência do Mês: "Avançado em quê é este Instituto?" No decorrer de sua exposição sobre os limites da revolução burguesa no Brasil, entendemos o sentido profundo do nosso DBA: representa ele um espaço aberto, uma fissura no modelo autocrático-burguês ainda em vigência no país.

A realidade é que o IEA-USP, inaugurado a 25 de agosto de 1986, tornou-se um fato irrecusável na vida nacional — e não só universitária. É um ponto de encontro de pesquisadores, jornalistas, políticos, intelectuais em geral, muito mais aberto que seus congêneres nacionais. E deve muito à iniciativa entusiasmada do físico e reitor José Goldemberg que, com visão de estadista, a 20 de fevereiro de 1986, logo após sua eleição, que significou a derrocada de toda uma concepção corporativa de universidade, constituiu uma comissão interdisciplinar de estudos para a criação de um Instituto de alto nível no seio da USP, recuperando o espírito da velha Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, mas adequando-o aos novos (nem tanto) tempos. Responsabilidade enorme, de vez que, em geral, todos os pesquisadores universitários cultivam uma escola ideal, avançada, em seu imaginário, quando não em seu próprio currículo (cf. debate com o historiador José Honorio Rodrigues em 1978, publicado em Tempo e Sociedade, Vozes, 1986, p. 159). Demais, não se deve esquecer que o Institute for Advanced Study de Princeton foi criado para receber o exilado Albert Einstein, assim como o Colégio de México para absorver notáveis intelectuais escapados da Guerra Civil.

Ocorre que toda escola tem sua própria história. A oligárquica USP, após anos de trevas e, antes da posse do reitor Goldemberg, de uma estranha queima de arquivos, saindo de uma época em que muitos de seus professores ajudaram a gerar o AI-5, a ideologia e as técnicas do milagre econômico, começou a abrir lentamente e a se reerguer. Nesse redescobrimento difícil, que passa pela avaliação e autocrítica, vários descompassos se revelaram entre os diversos setores: nas Humanidades, por exemplo, registra-se uma grave evasão escolar de nada menos de 40%, que obriga a uma revisão de todo o sistema universitário.

Mas também se descobre, ainda que dispersa e magoada, uma mentalidade universitária extremamente crítica e bem formada, embora muito mal paga, nos quadros da geração intermediária. Daí a evolução da idéia de um Instituto da USP: se, no fim dos anos 70, a proposta era a de criação de um organismo para necontratar os mestres cassados pela ditadura, já agora, após a anistia, o projeto se enriquece com o aproveitamento — sim — de ex-cassados fatigados pela burocracia universitária, porém ao lado de personalidades que jamais — por "falta de títulos" — puderam apresentar os frutos de seu labor intelectual, de seus saberes e fazeres nos quadros da Universidade. Muito menos em atividades trans ou multidisciplinares. Assim é que, ao lado de um sociólogo e escritor, Octavio Ianni, passou-se a encontrar na USP personalidades como o historiador Jacob Gorender, o jurista Raymundo Faoro ou o crítico e poeta José Paulo Paes — intelectuais de notável saber que nunca participaram da titulocracia imperante na Universidade brasileira, reduto dileto da pequena nobreza estamental-burocrática.

A necessidade de uma instituição ágil e desburocratizada que, no coração da USP, pudesse estimular essa nova respiração ganhou significativos e decisivos adeptos em todos os graus da hierarquia e também fora da Universidade. E assim a comissão de criação do DBA acolheu as várias sugestões críticas que, elaboradas, conduziram ao atual modelo uspeano.

Qual modelo? Nem tanto Princeton, nem só Maputo, nem muito Escola de Altos Estudos de Paris. Talvez o modelo de Berlim, banhado no estilo da Casa de Las Américas e do Wilson Center... Um modelo paulistano, enfim. Defendendo a escola pública (fornecendo subsídios para nossos constituintes), combatendo a titulocracia e oferecendo melhores condições de trabalho para os pesquisadores convidados, o IEA não promove cursos nem dá títulos (mestre, doutor). Por meio de convites a pesquisadores e professores de notável saber, nacionais e internacionais, o Instituto vem adensando algumas áreas escolhidas como prioritárias: "Biologia molecular" (coordenador: Gerhard Malnic), "Economia e política" (coordenador: Paul Singer), "História, ideologia, mentalidades" (coordenadores: Alfredo Bosi e Carlos Guilherme Mota) e "Ciências ambientais" (coordenadores: J. Tundisi e Aziz Ab'Saber). Essas as ênfases principais que determinam as linhas básicas de atuação, definidas pelo Conselho Diretor Interdisciplinar, composto de seis membros (dois escolhidos pelo reitor, dois pelo Conselho Universitário e dois pelo próprio Conselho Diretor do IEA; um a dois membros devem ser externos à USP).

Também os Grupos de Estudos são importantes, pois alimentam a discussão substantiva do Instituto, acolhendo visitantes internacionais e nacionais e ajudando a fixar o horizonte intelectual dos cerca de oitenta pesquisadores de alto nível que hoje compõem o que denominamos de "Senado invisível" — entidade não-regulamentada mas que, com altíssimo poder de crítica, seleção e auto-avaliação, define os caminhos do IEA. Entre tais Grupos de Estudos, destaquem-se, a título de exemplo, os de "Política científica e tecnológica" (coordenador: Gerhard Malnic), "Biotecnologia" (coordenador: Hernán Chaimovich), "O psíquico nos campos do social" (coordenador: Norberto Abreu e Silva Neto, orientador: Bento Prado Júnior) e sobre "A questão urbana" (coordenadores: Nestor Goulart, Celso Lamparelli e Milton Santos). E registrem-se grupos conjunturais de trabalho, como "A Constituinte e o ensino público no Brasil" (coordenador: Alfredo Bosi) e "Museus e coleções da USP" (coordenadora: Ana Mae Barbosa).

O objetivo geral é o de estimular pesquisas e atividades que intensifiquem contatos de pesquisadores docentes e alunos da Universidade com as correntes intelectuais mais significativas de nosso tempo, do País e do Exterior. E que propiciem maior ligação da Universidade com a sociedade. Para tanto, convidam-se personalidades como John K. Galbraith, ou Raymundo Faoro (que, apresentado por Antonio Cândido, pronunciou a conferência inaugural, mais do que simbólica), Paulo Autran ou Leopoldo de Meis, para falarem à comunidade sobre suas especialidades, na sala do Conselho Universitário — até então fechado ao público em geral.

O Instituto oferece estágios, junto aos seus Grupos de Pesquisa, por período determinado, a pesquisadores e docentes da USP e outros produtores culturais do Brasil e do Exterior, para a realização de atividades que resultem em obra original. A versão recente em português de poesias de William Carlos Williams, produzida pelo poeta José Paulo Paes é exemplo disso, bem como as reflexões do físico Bernard Feld sobre a energia nuclear, ou as do matemático Jean-Louis Koszul sobre o Grupo Bourbaki, ou as do instigante Hans Joaquim Koellreutter sobre música contemporânea. Ao lado das conferências de Antônio Cândido, Franginals, Ferro, Galbraith, Goldemberg, Hill, Morse, Vovelle, entre outros — todas gravadas em vídeo — o IEA publica a revista estudos AVANÇADOS (já em seu número 4) e promove uma série de simpósios, como o "Democratizando a economia: discursos e praxis", com o Wilson Center, de Washington; ou "Interpretações contemporâneas da América Latina", organizado pelo prof. Octavio Ianni; ou "USP: conceito de universidade", sobre a avaliação, necessária e polêmica. Dentro em breve, realizar-se-ão dois seminários importantes: um sobre "Os militares e a questão nacional" e outro sobre "O Brasil e a ordem econômica internacional".

Como a inserção no mundo contemporâneo — a preocupação com a nossa modernidade perdida — é fundamental, o Instituto participa de convênios com a École des Hautes Études (Paris), com a Casa de las Américas (Havana) e com o Woodrow Wilson Center, entre outros, e faz parte, por intermédio do vice-diretor e biólogo Gerhard Malnic, da Federação Internacional de Institutos de Estudos Avançados.

Ressalte-se, finalmente, que o IEA procura não duplicar funções já existentes no interior da USP. Combina, em seus programas, não só experiências de disciplinas diversas, mas também de pesquisadores de gerações distintas — independentemente de títulos. O único título requerido é o talento, e alguma preocupação com o papel dos intelectuais e da universidade na construção de uma nova sociedade civil democrática neste país.

O Instituto não possui grandes bibliotecas, laboratórios ou orquestra. Uma sólida porém modesta biblioteca de referência vem sendo criada pelo prof. Aziz Ab'Saber, e um bem-cuidado Gabinete de Leitura José Honório Rodrigues, voltado para o estudo da Questão Nacional, está sendo instalado na Praça Central da USP, na sede do IEA, aberta a todos.

No mais, no desenvolvimento de nossas atividades, cultivamos as palavras (além da ironia) de Machado de Assis: "A dispersão não lhes tira a unidade, nem a inquietude e constância".

Transcrito, com permissão do autor, do Jornal do Brasil, Caderno B/Especial de 25/9/88.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Mar 2006
  • Data do Fascículo
    Dez 1988
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