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Espaço fechado, palavra aberta

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Espaço fechado, palavra aberta* * Discurso de abertura do Coloquio The Plantation system colloquium na Universidade do Estado da Luisiânia, 27 de abril de 1989.

Edouard Glissant

Tradução: Diva Bárbaro Damato

O objetivo deste Colóquio não é estudar detalhadamente a organização do sistema da plantagem1 1 O termo "plantagem" foi proposto por Jacob Gorender em O escravismo colonial para designar o -que em inglês se chama, plantation. (N.T.) . Tal projeto seria inesgotável. Numerosos ensaios, obras básicas, reuniões internacionais se dedicaram a este aspecto das coisas e presto aqui minha homenagem aos dois simpósios organizados em 1983 e 1986, pelo Colégio de Agricultura da Louisiana State University.

Nossa intenção é mais sintetizante, levada pela ambição de esboçar aproximações que poderiam vir a esclarecer a análise. Inicialmente, repetindo o que tantos já disseram, o sistema da plantagem estendeu-se, com os mesmos princípios estruturais, pelo sul dos Estados Unidos, pelo Caribe, pela costa caribenha da América Latina e pelo nordeste do Brasil. Cobriu países, no oceano indico, por exemplo, que pertencem ao chamado território da crioulidade. É possível compreender por que, em regiões lingüísticamente tão diferenciadas, comprometidas com dinâmicas políticas tão divergentes, a mesma organização esconde a produção econômica e funda um estilo de vida? Isto quanto ao espaço.

No que se refere ao tempo, ou se quiserem, à nossa percepção das histórias que convergiram nestes espaços, duas outras perguntas nos questionam. A primeira diz respeito ao futuro do sistema: por que em lugar nenhum ele teve continuidade como construção social organicamente dele derivada, com ressonâncias coerentes ou contraditórias, inscritas numa certa duração da sociedade? Por toda a parte o sistema da plantagem, quer de forma brutal quer progressiva, desmoronou sem ter engendrado algo que o superasse. A outra pergunta é ainda mais surpreendente: como um sistema socialmente tão frágil pode engendrar, paradoxalmente, o que acreditamos serem vetores modernos de civilização no sentido não-intolerante que esta palavra tem atualmente para nós?

Tentemos resumir em várias fórmulas que se articulem entre si o essencial do que sabemos sobre a plantagem . É uma organização socialmente piramidal, confinada num espaço fechado, funcionando aparentemente como autarcia e cujo modo técnico de produção é não-evolutivo porque é baseado numa estrutura escravagista.

Uma organização piramidal: a massa dos escravos e mais tarde dos trabalhadores é sempre de origem africana, ou hindu — no Caribe — após 1848; os quadros médios são trabalhadores contratados de origem européia; no alto da pirâmide, os donos de plantagem , colonizadores ou békés — é assim que eles são chamados nas Antilhas — tentam construir uma pseudoaristocracia branca. Digo uma pseudo, pois estas tentativas de fundar uma tradição quase nunca foram sancionadas pela caução do tempo nem pela legitimidade de uma filiação absoluta. A plantagem que secreta hábitos e costumes dos quais culturas duráveis irão emanar não estabelece, entretanto, uma tradição que deixa marcas.

Um espaço fechado: cada plantagem é designada por limites dos quais é rigorosamente proibido sair, salvo quando se tem autorização escrita ou exceções rituais, como na época do carnaval o autorizam. Capela ou igreja, barracão para distribuição de gêneros alimentícios ou mais tarde vendinha, hospício ou hospital, tudo é tratado em círculo fechado.

O que é preciso compreender é o seguinte: como séries de autarcia de um extremo ao outro do espaço em questão, da Luisiânia à Martinica, podem ser aparentáveis? Se considerarmos cada plantagem como uma unidade isolada, qual é o princípio que as leva, todas, a funcionar de um modo similar?

Finalmente, a realidade da escravidão. Certamente ela é responsável pela estagnação das técnicas de produção. Daí, uma tendência irresistível à irresponsabilidade técnica, principalmente entre os proprietários de escravos. E quando as inovações técnicas, a mecanização e a industrialização intervierem, como no sul dos Estados Unidos, por exemplo, já será tarde demais. Quanto aos escravos ou seus descendentes próximos, eles escaparão da irresponsabilidade técnica pela necessidade em que se encontram de garantir, à margem do sistema, sua sobrevivência cotidiana. A generalização dos pequenos ofícios, do que se costuma chamar nas Antilhas djobs, e o hábito de uma economia parcelar de subsistência caracterizam este esforço. Irresponsabilidade técnica de um lado, parcialidade técnica de outro, o imobilismo e a fragmentação estão no cerne do sistema e o corroem.

Consultemos, entretanto, estas ruínas cujo testemunho é incerto, cujos monumentos foram tão frágeis, cujos arquivos são freqüentemente tão incompletos, escondidos ou ambíguos. Descobrimos neles o que já sugeri: a plantagem é um dos lugares focais onde se elaboraram alguns dos modos atuais da relação entre culturas. Neste universo de dominação e opressão, de desumanização surda, várias humanidades vêm resistindo vigorosamente. Neste espaço obsoleto, à margem de toda dinâmica, esboçam-se os vetores de nossa modernidade. É para identificar tais contradições que quero inicialmente convidá-los.

Uma destas contradições opõe a nítida composição de um universo como esse, onde a hierarquia social se superpõe com tanta precisão a uma hierarquia racial impiedosamente mantida, às complexidades e ambigüidades que, por outro lado, dele decorrem.

É verdade que a separação total parece ser a regra na plantagem . Não só uma separação social, mas também uma cisão irrecuperável entre formas da sensibilidade que se alteram reciprocamente. Saint-John Perse e Faulkner, dois autores secretados pelo universo da plantagem , fornecem-nos a ocasião de apreciar esta diferença. Nós nos lembramos da famosa descrição, se é que é descrição, em Éloges: "Mais pour longtemps encore j'ai mémoire des faces insonores, couleur de papaye et d'ennui, qui s'arrêtaient derrière nos chaises comme des astres morts"2 2 Mas durante muito tempo ainda lembro-me das faces insonoras, cor de papaia e de tédio que se imobilizavam atrás de nossas cadeiras como astros mortos". .

Esta papaia e este tédio — a rigor uma coisificação — não revelam tanto a indiferença do poeta mas, mais precisamente, sublinham a radical separação, este apartheid impossível que preside à vida sensível da "plantagem". Notei igualmente que Faulkner, que tanto falou dos negros, nunca se propõe, quando se trata deles, a fazer um destes monólogos interiores, nos quais ele é um poderoso mestre, enquanto que se aventurou neste campo com alguns personagens mulatos de sua obra e até mesmo, proeza que se tornou clássica, com o idiota Benjy no início do romance O Som e a Fúria. Assim o personagem negro Lucas, que é, entretanto, o herói principal do romance O Intruso, nunca é interiorizado por Faulkner; ele é descrito, nas suas posturas e gestos, como uma silhueta que se esboça num certo horizonte. O Intruso não é o romance de uma essência, mas sim de uma descrição fenomenológica. Aliás, Faulkner escreve neste mesmo romance, a propósito do negro do sul dos Estados Unidos: "Eu não o conheço nem um pouco e na medida em que posso supor, nenhum branco o conhece...". Como se o genial romancista, cujo fato de ter sido rejeitado pelos de sua classe e ao mesmo tempo desconhecido pelos negros americanos que puderam ter acesso à sua obra não surpreende, tivesse pressentido aí uma impossibilidade urdida pela história. O corte se manifesta aqui.

Um espaço fechado: cada plantagem é designada por limites dos quais é rigorosamente proibido sair, salvo quando se tem autorização escrita ou exceções rituais, como na época do carnaval...

Mas o corte não determinou territórios definidos onde as diversas camadas da população se teriam enclausurado por toda a eternidade. A pretensão ao estranhamento recíproco não impediu as contaminações mútuas inevitáveis no enclausuramento da plantagem . Tão friamente cruel quanto se revela, por exemplo, o pensamento do Padre Labat, este cronista das Antilhas do século XVII, é possível adivinhar, lá no fundo, uma curiosidade fria, inquieta e obsessiva, cada vez que se trata destes escravos que ele se empenha tanto em manter tranqüilos.

O medo, os fantasmas e, talvez, cumplicidades ligeiramente esboçadas correm sob as revoltas e as repressões. O longo martirológio é também uma lenta mestiçagem, involuntária ou decidida.

Uma segunda contradição opõe a vontade de autarcia da plantagem à sua real dependência em relação ao mundo exterior. As relações que ela mantém com este mundo se fazem no modo elementar da troca de bens, na maioria das vezes com prejuízo. Os acertos se fazem em espécie ou pelo equivalente em valor de troca, o que não leva a nenhuma acumulação, nem de experiência, nem de capital. Em lugar algum, os donos das plantagens conseguem constituir organismos suficientemente sólidos e autônomos que lhes tenham aberto o controle de um mercado, de modos de transportes internacionais, de uma representação efetiva e específica nas praças estrangeiras. As plantagens , estas entidades voltadas para si mesmas, apresentam paradoxalmente todos os sintomas da extroversão. Elas são, por natureza, dependentes do exterior.

Na sua prática da importação-exportação, a política imposta não é decidida no seu seio. Na verdade diríamos que a plantagem não é socialmente o produto de uma política, mas a emanação de um fantasma.

E se nos aproximarmos cada vez mais deste lugar fechado, este Locus Solus, se procurarmos imaginar o que se trama nele, se procurarmos auscultar, de seu interior, sua memória, ou seu ventre, então as contradições se tornam loucura. Não tentarei fazer aqui nenhuma descrição. Todo este ano não seria suficiente para isso. E vocês estão familiarizados com os inumeráveis romances e filmes suscitados por este universo para saber que, do Norte ao Sul, do Leste ao Oeste, as mesmas condições de vida aí se reproduzem. Abordarei de preferência um outro aspecto de síntese, ou seja, a expressão oral ou escrita, ou melhor dizendo, a literatura que dele se originou diretamente.

A Produção Literária

Qualquer que seja a regra considerada, entre as compreendidas pelo sistema, reconstitui-se o mesmo percurso e quase as mesmas modalidades desta expressão. Três momentos poderiam assim ser circunscritos: produção literária inicialmente como ato de sobrevivência, em seguida como engodo e finalmente como esforço de memória.

O ato de sobrevivência em primeiro lugar. No universo mudo da plantagem a expressão oral, a única possível para os escravos, se organiza de modo não-contínuo. O aparecimento de contos, provérbios, ditados, canções, tanto no mundo da língua crioula quanto em outros lugares, está marcado pelo signo deste descontínuo. Os textos parecem omitir o essencial do que foi tão bem trilhado pelo realismo no Ocidente: as paisagens, os cenários, os costumes, a descrição motivada das personagens. Quase nunca se encontra aí a relação concreta dos fatos e gestos quotidianos mas é possível, por outro lado, identificar aí a evocação simbólica das situações. Como se estes textos se esforçassem para disfarçar sob o símbolo, e para dizer não dizendo.

As plantagens , estas entidades voltadas para si mesmas, apresentam paradoxalmente todos os sintomas da extroversão. Elas são, por natureza, dependentes do exterior. No universo mudo da plantagem a expressão oral, a única possível para os escravos, se organiza de modo não-contínuo.

É o que chamei, em outra ocasião, de prática do desvio, e é aí que o descontínuo se empenha; o mesmo que será posto em prática pelo outro desvio que é a marronagem3 3 Marronagem é o ato pelo qual os escravos abandonavam o trabalho para ir viver em liberdade. Tem hoje também o sentido de "resistência à cultura dominante". (N.T.) .

Trata-se aí de uma forma de literatura que, procurando, portanto, exprimir o que é proibido designar, encontra, contra esta censura orgânica, meios cada vez mais arriscados. A literatura oral da plantagem se aparenta cada vez mais com outras técnicas de conservação — de subsistência — implantadas pelos escravos e seus descendentes imediatos. A perpétua obrigação de contornar a lei do silêncio faz dela, por toda parte, uma literatura que não tem naturalmente uma continuidade, se é que se pode dizê-lo desta forma, mas que irrompe através de fragmentos. O contador de histórias é um biscateiro da alma coletiva.

Se o fenômeno é generalizado no sistema, é entretanto no espaço da língua crioula que ele se evidencia mais claramente. Isto se explica pelo fato de que a língua crioula acrescenta a esta obrigação de contornar, uma outra obrigação que lhe é interna: a de se refazer todas as vezes a partir de uma série de esquecimentos. Esquecimento, isto é, integração daquilo sobre a qual ela se baseia: a multiplicidade das línguas africanas de um lado e das européias de outro, a nostalgia da herança caribenha. O movimento lingüístico de crioulização se realizou pelo processo de decantações sucessivas destas contribuições e a síntese subseqüente nunca foi fixa nos seus termos, embora tenha afirmado desde o início sua perenidade nas estruturas. Ou seja, o texto crioulo jamais se propôs como um édito decisivo, a partir do qual teria sido possível encontrar os vestígios de um caminhar literário, com um outro texto completando o precedente e assim por diante. Não sei se esta difração onde, talvez, o multilingüismo está realmente em ação, por uma das primeiras vezes nas histórias da humanidade, é característica de todas as línguas que se formam — seria preciso, por exemplo, interrogar neste caso a Idade Média européia — ou se ela é totalmente imputavel à situação particular da plantagem no Caribe.

O engodo em seguida. A esta literatura oral e popular se opõe uma outra, elitista e escrita. Os colonizadores e os donos das plantagens , assim como os viajantes que os visitam, estão completamente tomados pela necessidade lancinante de justificar o sistema. É o fantasma da legitimidade. E é a razão pela qual a descrição do real, contrariamente ao que ocorreu nos textos populares orais, lhes aparecerá como indispensável — e irrefutável em seus termos. Trata-se aqui, é verdade, de um real ainda fantasmado, que resultaria mais em apologia disfarçada do que em realismo austero. Uma das condições da operação será de levar ao extremo a convenção da paisagem, sua suavidade, sua beleza, sobretudo nas ilhas do Caribe. Existe algo de Parnaso nos romances e libelos dos colonizadores de São Domingos e da Martinica, a mesma vontade de apagar, sob o esplendor convencionado do cenário, o frêmito da vida, isto é, as realidades turbulentas da plantagem.

Uma outra convenção fornece a ocasião de uma forma especial de pseu-doliteratura. A suposta lascívia dos escravos, mulatas e mestiços e a selvageria animal que atribuem aos africanos contribuem largamente para uma literatura erótica próspera nas ilhas, do século XVII ao fim do XVIII.

É desta forma que, através de uma seqüência sistemática de ocultamentos, constitui-se uma literatura de engodo que, aliás, em alguns momentos, não deixa de ter um certo charme, um certa graça leve e emotiva. Um grande repórter, que é também um grande escritor, Lafcadio Hearn, vindo da Luisiânia para as Antilhas na virada deste século, transmite-nos delas uma ressonância tão magnificada.

A memória, enfim. Após o desmoronamento do sistema da plantagem , as literaturas que se afirmaram no Caribe ou no sul dos Estados Unidos, no oceano Índico ou no continente sul-americano, procedem em grande parte das características gerais que indiquei tão sumariamente.

Assim, as literaturas do Caribe, quer sejam de língua inglesa, espanhola ou francesa, introduzem habitualmente densidades e fraturas — como outros tantos desvios — na matéria de que tratam, pondo em prática, como no conto da plantagem, os mesmos procedimentos de redobro de fôlego curto, de parênteses, a mesma imersão do psicológico no drama do futuro comum. Nelas a simbólica das situações prevalece sobre o refinamento dos realismos, o que quer dizer que ela o engloba, o ultrapassa e o esclarece. Isto é igualmente verdadeiro e claro, tanto para um escritor em língua crioula como o haitiano Franketienne, como também para uma romancista como Toni Morrison dos Estados Unidos.

Assim, contra a convenção de uma paisagem-cenário falsamente legitimadora, as obras produzidas nestes países concebem inicialmente a paisagem como implicada numa história e se transformando, ela também, em personagem falante.

Desta forma, enfim, a marronagem histórica exerceu e reforçou uma marronagem criadora, o que faz com que estas literaturas não possam mais ser consideradas como apêndices das literaturas francesas, espanholas e inglesas, entrando assim, total e subitamente, na relação mundial das culturas.

Mas a bem dizer, sua preocupação, seu motor e seu obscuro objetivo é o funcionamento delirante da memória que, com o imaginário, decide sobre nossa maneira de domesticar o tempo.

Em que, pois, nossa memória e nosso tempo foram tumultuados pela plantagem ? Na diferença que ela instaurava, o emaranhado sempre multilíngüe e freqüentemente multirracial uniu de maneira inextricável o tecido das filiações e quebrou a organização clara e linear à qual as idéias do Ocidente tinham dado tanto brilho. Aqui ainda Alejo Carpentier encontra Faulkner, Edward Kamau Braithwaite encontra Lezama Lima, eu me reconheço em Derek Walcott, nós nos regozijamos todos, envolvidos pelo tempo no século de solidão de Garcia Márquez. A plantagem destruída atingiu, ao seu redor, as culturas das Américas.

E seja qual for o mérito dos esclarecimentos ou da publicidade trazidos para o assunto por Alex Halley com seu livro Raízes, sentimos perfeitamente que esta filiação clara demais que ele evoca, não é adequada ao talento para manejar a palavra, próprio de nossas regiões. A memória nas obras não é a do calendário; nossa vivência do tempo não pratica somente as cadências do ano e do mês, ela se exaspera também com esse aniquilamento de que a plantagem parecia ter marcado o término definitivo; nossas gerações se enredam na família extensa onde nossas cepas se multiplicaram e onde cada um pode receber de todos seu apelido, duplo essencial de todo nome oficial. E quando, enfim, tudo mudar, ou melhor, desmoronar, quando o movimento irreprimível tiver despovoado o espaço fechado para amontoar sua população nas margens das cidades, o que permanece é o obscuro desta memória impossível, que fala mais alto e mais longe do que todos os anais e todos os recenseamentos.

Quando examinamos os procedimentos da palavra neste universo da plantagem , observamos que ela se enuncia de várias formas que parecem ser codificadas.

Pode-se, é verdade, seguir os vestígios deixados pelo esfacelamento do sistema. As castas dos donos das plantagens quase em toda a parte se reduziram a uma representação fixa, onde a memória, como outrora a paisagem, só funciona como um cenário. Os antigos trabalhadores contratados formaram, aqui e ali, grupos chamados de petits blancs4 4 Nome que se dá aos brancos pobres. (N.T.) que alimentaram as ideologias do terror racista. No Caribe, na América Latina, a enorme disseminação das favelas atraiu as massas dos desfavorecidos e mudou o ritmo de suas vozes. Camponeses, negros ou indianos, travaram combate nas ilhas contra o arbitrário e a pobreza absoluta. Os negros do sul dos Estados Unidos subiram para o Norte, ao longo do metrô, em direção às cidades presas de uma violenta desumanização e onde, entretanto, os escritores do Harlem, por exemplo, escreveram nas paredes da solidão, seu renascimento. Uma literatura urbana apareceu pois no Rio, em New York, em Jacmel ou em Fort-de-France. A área da plantagem , mantendo-se unida nas superfícies infinitas da fazenda ou do latifúndio, disseminou-se, para acabar nestes labirintos de zinco e de concreto onde nosso futuro comum, entretanto, corre grande risco. Mas é com esta segunda matriz da plantagem , após a do navio negreiro, que se deve relacionar os vestígios de nossas origens difíceis e opacas.

Não existe apenas a literatura. Quando examinamos os procedimentos da palavra neste universo da plantagem , observamos que ela se enuncia de várias formas que parecem ser codificadas. Há a palavra direta, elementar, que articula os rudimentos da linguagem necessários à execução do trabalho; a palavra aviltada que responde à mudez deste mundo onde é proibido saber ler e escrever; há a palavra adiada, ou disfarçada, sob a qual o homem e a mulher amordaçados escondem o que gostariam realmente de dizer.

Compreende-se então que esse é um universo onde qualquer grito é um acontecimento. A noite nas senzalas gerou este outro enorme silêncio onde a música, incontornável, a princípio sussurrada, explode finalmente neste longo grito. Esta música é espiritualidade contida, onde o corpo se exprime. De um extremo a outro deste mundo, a melopéia, sincopada, cortada pelos interditos, liberada pelo impulso dos corpos, tece sua linguagem. Estas músicas que nasceram do silêncio — negro spirituals e blues —, que continuaram nos vilarejos e nas cidades em expansão — jazz, biguines e calipsos —, que explodiram nos bairros e favelas — salsa e reggaes —, sintetizam numa palavra diversificada o que era rudemente direto, dolorosamente aviltado, pacientemente adiado. Estas músicas são o grito da plantagem , transfiguradas em palavra do mundo.

Pois a coerção três vezes secular pesou tanto que, quando esta palavra finalmente se instaurou, ela entrou diretamente na modernidade, ou seja, ela se levantou para todos. Só pode haver universalidade de um único modo: quando, do enclave particular, a voz profunda grita.

Cultura: uma necessidade para a sobrevivência

Deveríamos reunir tudo isso e olhá-lo de todos os ângulos possíveis. Aqui a análise só pode ser recriação. A história, a lingüística, o pensamento filosófico são, nesse caso, tão preciosos para o debate quanto a literatura ou as artes para a expressão e a sobrevivência.

Pode-se bem ver aqui o que explica negativamente a unicidade do sistema: o impacto decisivo do povoamento africano a partir do tráfico negreiro, a imobilidade voraz do princípio escravagista, a dependência que cada uma das plantagens partilha com seus semelhantes em relação ao mundo exterior.

Mas compreende-se também em que este gigantesco aborto feito de tantas esterilidades solitárias marcou positivamente uma parte das histórias contemporâneas. E em que, me perguntarão? Como podem pretender que uma tal anomalia tenha podido entrar como parte constituinte daquilo que chamam de modernidade? Creio ter respondido à questão ou pelo menos ter deixado entrever as respostas necessárias.

É na plantagem que, como num laboratório, vemos com a maior evidência agirem, confrontadas, as forças do oral e do escrito, uma das problemáticas mais decisivas do nosso mundo. É aí que o multilingüismo, essa dimensão ameaçada do nosso universo, por uma das primeiras vezes se faz e se desfaz de maneira inteiramente orgânica e imediatamente perceptível. É ainda na plantagem que o encontro das culturas se manifestou com a maior acuidade que se possa diretamente perceber, embora nenhuma das pessoas que nela moraram tenha tido a mínima suspeita de que ocorria aí um verdadeiro choque de culturas. Da mestiçagem cultural que nos ocupa a todos, podemos aqui neste espaço perceber algumas de suas leis de formação.

Foi nos prolongamentos da plantagem , no que ela gerou no próprio momento em que desaparecia como entidade funcional, que se impôs a busca da historicidade, esta conjunção da preocupação com a identidade e da obsessão do tempo, que é uma das ambições da literatura contemporânea. E nestes mesmos prolongamentos foi que se forjou, com o máximo calor, a palavra barroca, inspirada em todas as palavras possíveis, que é um dos ventres do mundo, não o único, um entre tantos outros, mas que apresenta a vantagem de poder ser examinado com a máxima precisão possível. Assim, o limite que era sua fraqueza estrutural torna-se para nós uma vantagem. O espaço era fechado mas a palavra que dele emanou permanece aberta. Ela é uma parte limitada, mas por si só suficiente, da lição do mundo.

Edouard Glissant é romancista, poeta, teatrólogo, crítico literário e de arte martinicano, é atualmente é diretor do Centro de Estudos Franceses e Francófonos da Universidade de Luisiânia, nos Estados Unidos.

  • *
    Discurso de abertura do Coloquio
    The Plantation system colloquium na Universidade do Estado da Luisiânia, 27 de abril de 1989.
  • 1
    O termo "plantagem" foi proposto por Jacob Gorender em
    O escravismo colonial para designar o -que em inglês se chama,
    plantation. (N.T.)
  • 2
    Mas durante muito tempo ainda lembro-me das faces insonoras, cor de papaia e de tédio que se imobilizavam atrás de nossas cadeiras como astros mortos".
  • 3
    Marronagem é o ato pelo qual os escravos abandonavam o trabalho para ir viver em liberdade. Tem hoje também o sentido de "resistência à cultura dominante". (N.T.)
  • 4
    Nome que se dá aos brancos pobres. (N.T.)
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Mar 2006
    • Data do Fascículo
      Dez 1989
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