Acessibilidade / Reportar erro

A vanguarda enraizada: o marxismo vivo de Mariátegui

ARTIGOS ASSINADOS

A vanguarda enraizada

O marxismo vivo de Mariátegui

Alfredo Bosi

No decurso de 1990, precisamente em 16 de abril, lembramos os sessenta anos da morte de José Carlos Mariátegui.

Urna vida breve; ele partiu "nel mezzo del cammin di nostra vita", como Dante figura o trigésimo quinto ano da viagem humana. E vida truncada em plena maturidade como a de outros socialistas da sua geração, Gobetti, Gramsci, Valleja, Simone Weil, que partilharam nos anos 20 as esperanças que a Revolução de Outubro despertou do Velho ao Novo Mundo.

Falar dos ideais políticos de Mariátegui nos dias de hoje, em tempos de perestroika e glasnost, e em vias de encerrar-se (ou quase) o escuro ciclo das ditaduras do Leste europeu, deixa na boca um sabor agridoce de ambivalência.

As generosas crenças dos marxistas de entreguerras ressoam em nós melancólicamente. Muitos lutaram e alguns morreram certos de que a revolução soviética multiplicada em nível planetário não tardaria a mudar, de uma vez por todas, as relações entre os homens, abolindo as disparidades econômicas, as distâncias sociais, os graus de poder e status, apagando enfim os estigmas de injustiças milenares.

É bem verdade que à intuição de Mariátegui não escapou o caráter difusamente religioso da fé na passagem fatal do capitalismo ao socialismo, deste ao comunismo e à sociedade sem Estado. O leitor apaixonado de Bergson e de Sorel, o admirador de Tolstoi e de Gandhi e o poeta místico da primeira juventude compunham uma identidade cultural capaz de desentranhar o veio mítico que alimenta a vontade revolucionária e lhe dá seiva para atravessar aquelas horas em que mais árida se faz a jornada do militante.

Alguns destes juízos, tão próximos das "Reflexões sobre a violência" de Georges Sorel, dão a medida justa das convicções do fundador de "Amauta":

"A burguesia já não tem mito algum. Tornou-se incrédula, cética e niilista. O mito liberal renascentista envelheceu demasiadamente. O proletariado tem um mito: a revolução social. Em direção a esse mito move-se com uma fé veemente e ativa. A burguesia nega; o proletariado afirma. A inteligência burguesa entretém-se numa crítica racionalista do método, da teoria e da técnica dos revolucionários. Que incompreensão! A força dos revolucionários não está na sua ciência; está na sua fé, na sua paixão, na sua vontade. E uma força religiosa, mística, espiritual. É a força do Mito. A emoção revolucionária, como afirmei em um artigo sobre Gandhi, é uma emoção religiosa. Os motivos religiosos deslocaram-se do céu para a terra. Não são divinos; são humanos, são sociais" (MARIÁTEGUI, 1925a).

Não se veja nessas palavras uma concessão às modas irracionalistas do primeiro quartel do século. As duras críticas de Mariátegui à mitologia fascista (que atraía não poucos sorelianos...) revelam, ao contrário, um estudioso de história política formado no humanismo severo de Benedetto Croce que lhe ensinou a pôr em evidência o teor prático-racional do socialismo, enquanto ramo dialético das Luzes, dos movimentos liberais radicais e das doutrinas evolucionistas do século XIX. Era deste quadro de referência que Mariátegui extraía a tese geral de que há vínculos obrigados entre ciência, progresso, liberdade e socialismo; mas era afinal também desse mesmo solo ideológico que brotavam aquelas certezas íntimas que faziam do militante um apóstolo, e da literatura de esquerda um discurso leigo de tons apologéticos. Até onde a paixão, admitida sem rebuços no texto citado, não estaria preformando aquele esquema tão bem travado de um socialismo científico nascido como superação lógica da economia burguesa?

Passado mais de meio século, podemos identificar um ou outro acento demasiado otimista na sua posição, agora, já sem receio de que zelotes da ortodoxia nos venham alinhar entre os "críticos reacionários do marxismo". Hoje sabemos com o sabor de cinza da experiência que não há conexão orgânica entre "pleno desenvolvimento das forças produtivas" e socialismo (pelo menos nas formas que este assumiu até agora), nem, muito menos, entre liberdade e Estado de partido único. Sabemos que as esquerdas no poder se comportam de diferentes modos em distintos lugares e tempos conforme o grau de complexidade cultural e de sabedoria política dos grupos que empunham as rédeas dos governos. E aprendemos que os valores ditos formais do regime democrático não devem ser suspensos pro tempore, sob o pretexto de que é preciso tomar o poder a qualquer preço para realizar, aqui e agora, o que parece ser a melhor fórmula da ordenação social. Os frutos de ações arbitrárias, gestados em delírios de onipotência, caem envenenados sobre vencidos e vencedores. Daí a melancolia, talvez expressão da pietas histórica, que nos invade ao ler certas passagens de Mariátegui onde se reitera, com o aval do materialismo dialético, a profecia de uma vanguarda portadora da salvação universal. O desdém pelo socialismo europeu — los domesticados reformistas del parlamento, dizia sarcástico — e a adesão às idéias de princípio classista e unidade proletária iriam, na prática, desembocar em rígidos blocos sectários que, por sua vez, se apresentariam como os únicos representantes dos trabalhadores. Como afirmava na mensagem ao II Congresso Operário de Lima "a massa segue sempre os espíritos criadores, realistas, seguros, heróicos" (MARIÁTEGUI, 1927).

Nesse momento crescia em Mariátegui a sedução do modelo leninista da ditadura do proletariado, e as suas páginas contrapõem, veementes, a falência burguesa ao porvir comunista: "Se na época capitalista prevaleceram ambições e interesses materiais, a época proletária, suas modalidades e instituições se inspirarão em interesses e ideais éticos" (MARIÁTEGUI, 1924).

Mas a nossa imagem do pensador peruano não se contrói apenas com aquelas suas expectativas que o socialismo real em parte frustrou. A sua memória é acre, repito, mas também doce. Relendo os "Sete ensaios" e outros textos de crítica ideológica, vê-se o quanto se exerceu a sua inteligência em função de problemas ainda hoje básicos para o marxismo e para a vida pública latino-americana.

São temas de ordens e alcances diversos.

Começo pelo debate crucial sobre a verdade do marxismo. É o assunto da série "Defensa del marxismo", dezesseis artigos publicados a partir de julho de 1928 em "Variedades" e em "Mundial", periódicos limenhos para os quais escrevia regularmente.

O estimulo próximo foi-lhe dado pela leitura da obra polêmica do ex-socialista belga, Henri de Man, "Para além do marxismo". O título, que não seria propriamente original se aparecesse hoje, tampouco soava como novidade no decênio de 20. "O marxismo", lembra Mariátegui na abertura da "Defensa", "vem sofrendo desde fins do século XIX — isto é, desde antes que se iniciasse a reação contra as características desse século racionalista, entre as quais o classificam — as investidas, mais ou menos documentadas ou instintivas, de professores universitários, herdeiros da ciência oficial contra Marx e Engels, e de militantes heterodoxos, desgostados com o formalismo da doutrina do partido".

As revisões ou liquidações do marxismo se empreenderam nem bem morto Marx. Mariátegui cita os nomes de Masarjk e de Bernstein (que fez, aliás, observações de mordente atualidade) como exemplos no âmbito do reformismo social-democrático. Quanto a Georges Sorel, para quem vão, no entanto, as suas simpatias, se situa em outro ângulo, voluntarista e antiparlamentar, mas também descrente da cientificidade pura do materialismo histórico.

O que é original e fecundo na resposta que dá Mariátegui a essas críticas, afinal substantivas? Procurando, em última instância, ressalvar a força política do marxismo, ele tende a ver na doutrina a forma plásticas de uma linguagem-de-ação progressista.

Marx teria produzido menos uma teoria, na acepção clássica e sistêmica do termo, do que um cânon empírico de interpretação da Economia liberal-burguesa, para retomar a formulação de Croce, interessado na validade tópica das análises de "O capital", mas esquivo às filosofias da história que estariam no bojo da pregação socialista.

Calaram fundo em Mariátegui as arremetidas de Croce, repensadas por Gramsci, contra o que lhe parecia ser lastro de certo evolucionismo linear pesando sobre a vulgata marxista. Mas, desonerada desse fardo, a linguagem revolucionária perderia em dureza teórica o que ganharia em ductilidade prática. No limite, o método de análises das classes antagônicas valeria principalmente como aguilhão para conceber estratégias de luta. Nesse contexto entende-se o relevo dado a Lenin enquanto figura do arquiteto por excelência de um marxismo em construção. "A revolução russa constitui, aceitem-no ou não os reformistas, o acontecimento dominante do socialismo contemporâneo. É nesse acontecimento, cujo alcance histórico não se pode medir ainda, que se deve buscar a nova etapa marxista" (MARIÁTEGUI, 1959, p.22).

O pressuposto funda-se na ordem da ação eficiente: o certo é o que deu certo; a revolução soviética, então em pleno ímpeto, seria "a expressão culminante do marxismo teórico e prático".

Os grandes alvos que Lenin mirou são repostos em circulação servindo como trunfos na réplica ao livro de Man. Os monopólios, os imperialismos britânico e yankee, o gangsterismo da alta finança, a função parasitária dos rentistas, a impotência dos parlamentos liberais: tudo é revolvido para injetar na doutrina o sangue da contemporaneidade. O nome do líder preencheria a cadeia genealógica que Paul Valéry deixara sem o último elo na sua frase paródica: " E este foi Kant que engendrou a Hegel, o qual engendrou a Marx, o qual engendrou a..." (id. ibid., p. 39).

Seria de esperar que a coerência com essa filiação, eleita como principal, pudesse trazer em si um compromisso mais estreito com Hegel (de quem Lenin foi leitor atento), daí sobrevindo uma crítica interna ao viés pragmático se não ativista que a "Defensa" parece adotar na sua argumentação. Se assim fosse, teríamos um momento de contradição no discurso de Mariátegui entre a ratio hegeliano-marxista e o voluntarismo heróico soreliano. Não é o que acontece, porém: a tônica dos textos acaba recaindo sobre o valor maior de uma política prática para a qual a racionalidade não está dada uma vez por todas:

"Marx, em primeiro lugar, jamais se propôs elaborar um sistema filosófico de interpretação histórica, destinado a servir de instrumento para a atuação de sua idéia política e revolucionária" (id. ibid., p. 40).

Na esteira desta afirmação drástica, o pensador peruano afasta, como imaginários, os dois pontos de ataque visados pela crítica de Henri de Man: a tese de que haveria, absolutamente, uma teoria marxista pura, dotada de estatuto científico; e, seu apêndice, a hipótese de que a mesma doutrina conteria em si, já pronta, uma filosofia da História.

A argumentação da "Defensa" é historicista e crociana: "A crítica marxista estuda concretamente a sociedade capitalista. Enquanto o capitalismo não tiver sido completamente ultrapassado, o cânon marxista continuará sendo válido" (id. ibid.).

Trata-se de uma validade condicionada pelas balizas do sistema. Nada de ciência marxista, de estilo positivo, provada nos laboratórios da sociologia; e nada de ontologia ou teleologia — esta é a mensagem patente no discurso de Mariátegui.

Nem o plano de atingir a verdade por via especulativa faria parte do legado de Marx, nem o filósofo da praxis teria fundado uma ética abstrata, una moral de teorizantes, que convém, antes, às filosofias de cunho idealista. A eticidade do marxismo é a do homem que, solidário com a sua classe, combate em conjunto com outros homens para superar a iniqüidade e a opressão. Sentimentos de justiça, como a indignação, nutrem essa ética agonística, que não se configura, porém, como uma pauta de valores e comportamentos predefinidos.

O pragmatismo e o vitalismo do primeiro pós-guerra estavam concebendo uma atitude política paraexistencialista que ganharia forma nos anos 40, quando a resistência ao nazi-fascismo daria um conteúdo de esquerda à moral nietzscheana da vontade e da ação. Será a ética do projeto — desesperado mas necessário — de Sartre e Camus. Mas nos anos 20 ainda se fala e se crê na função pedagógica da luta sindical e da convivência fabril capazes de motivar nos operários as virtudes propriamente socialistas da energia, da disciplina, da lealdade e da perseverança. Um texto de Piero Gobetti, que resume impressões de sua visita à Fiat de Turim, é endossado por Mariátegui para ilustrar o capítulo sobre ética e socialismo. Do mesmo Gobetti transcreve uma reflexão sobre a espiritualidade peculiar ao socialismo que, filtrando as riquezas que o sujeito moderno recebeu do longo processo de interiorização cristã, orientaria a consciência do militante para um humanismo público e terreno (O idealismo materialista).

A flexibilidade com que Mariátegui trabalhava a herança marxiana dava-lhe uma amplitude de olhar político absolutamente rara para o seu tempo. Ele percebeu, desde o início da sua carreira de organizador partidário, que não há um método único para corrigir o vale-tudo do mercado capitalista. É a história de cada formação social que irá inspirar as táticas de compensação. O atraso da Rússia czarista exigiu um movimento de enorme violência, o terromoto de outubro, que aparece como evento-limite da revolução contemporânea. Mas há outras experiências nacionais.

Na Inglaterra desenvolveu-se o trade unionism que, por sua vez, desaguou no trabalhismo, ambos imunes às obsessões teóricas da esquerda continental. As ações tópicas, ainda corporativas, dos sindicatos do século XIX acabaram-se integrando em um programa partidário mais amplo visando ao controle da economia em âmbito nacional. A sua meta, uma distribuição de renda mais equitativa, nortearia o futuro Welfare State. A liderança sindical inglesa aliou-se a políticos de formação doutrinária aberta e distante de qualquer dogmatismo principista. É um brinde à inteligência ver que o mesmo Mariátegui admirador de Lenin não é menos simpático às conquistas graduais da vertente democrática representada pelo Labour Party.

Prova ainda maior (e mais arriscada) dessa plasticidade, ele a deu quando enfrentou a espinhosa questão de uma reforma agrária socialista no Peru.

O binômio terra-índio deveria ser o eixo de toda política renovadora. Como resolvê-lo em termos ortodoxos, leninistas, que propõem reforçar taticamente o capitalismo, se, a rigor, a exploração do índio serrano ainda se fazia em ritmo de servidão da gleba? Como se sabe, Mariátegui e a sua geração usavam sem rodeios a expressão "economia feudal" para qualificar o sistema de produção agrícola nos Andes.

Por outro lado, a palavra sumária de ordem — "nacionalizar a terra!" — se entendida apenas como estatizar o latifúndio, "em princípio, em nenhum caso, basta por si mesma". Então, como sair do impasse mercado x estatização?

Seria necessário, como primeiro passo, conhecer a fundo as tradições quichuas de vida rural comunitária que a conquista espanhola entorpeceu quando não estancou. Mariátegui acreditava na possibilidade de recuperar a função do ayllu, comunidade de terra e de produção:

"O ayluu, célula do Estado incaico, sobrevivente até agora, apesar dos ataques da feudalidade e do gamonalismo, acusa ainda vitalidade bastante para converter-se gradualmente na célula de um Estado socialista moderno" (MARIÁTEGUI, 1927)11) Trata-se de um artigo que complementa o capítulo "O problema da terra" dos Sete Ensaios de Interpretação da Realidade Peruana, com tradução em português pela Ed. Alfa-Ômega (São Paulo, 1975). (.

Esta sua tese custou-lhe a acusação de populista, na velha acepção russa do termo. Mas o exame atento do contexto não autoriza a ver no resgate do ayllu conotações de arcaísmo ou saudosismo que a proposta talvez suscite a uma primeira leitura:

"A ação do Estado, como acertadamente propõe Castro Pozo, deve dirigir-se para a transformação das comunidades agrícolas em cooperativas de produção e consumo. (...) O Banco Agrícola Nacional daria preferência às operações das cooperativas, as quais, por outro lado, seriam ajudadas por corpos técnicos e educativos do Estado para melhor trabalho de suas terras e para a instrução industrial dos seus membros" (id. ibid.).

O que ele queria ressalvar era a tradição e o espírito da mincca ou minga (aproximadamente, o nosso mutirão sertanejo), que animava os índios durante as tarefas do plantio e da colheita e na partilha dos bens agrícolas e pecuários.

As bases sociológicas da proposta, Mariátegui foi buscá-las na obra fundamental de Hildebrando Castro Pozo, "Nuestra Comunidad Indígena" (1924), que serviu de canteiro documental ao clássico "Del Ayllu al Cooperativismo Socialista", do mesmo autor. Publicado em 1936, com prefacio do antropólogo peruano Julio Tello, o livro não pôde ser lido por Mariátegui, que nas suas páginas eruditas teria confirmado as hipóteses sobre as afinidades entre antigas práticas comunitárias dos incas e os novos ideais de socialização da terra e dos frutos do trabalho camponês.

Segundo Castro Pozo, que foi um dos fundadores do Partido Socialista do Peru, o cooperativismo poderia alcançar maior êxito entre as comunidades quichuas da serra do que nos meios urbanos, onde faltaria não só a experiência da posse comum de bens como o costume do labor coletivo fundado na ajuda mútua. Dessa convicção nasceu o projeto de robustecer com a vivência do ayllu os planos de uma reforma agrária nacional.

A questão do nacional

Reforma ou revolução, alfabetização, ensino técnico, crédito rural, desenvolvimento das forças produtivas, eis a pauta moderna de Mariátegui na qual, porém, era preciso que entrasse um figurante sofrido e amado, o índio. E com o índio entra, de cheio, a questão do específico, a questão da realidade peruana.

Na frondosa literatura sobre a vigência de identidades nacionais, tema recorrente no discurso latino-americano, raro é encontrar um pensamento tão denso e tão bem articulado como o de José Carlos Mariátegui.

Tento aqui reconstruí-lo nas suas linhas de força.

Em primeiro lugar, a limpeza do terreno. Mariátegui corta pela raiz qualquer vínculo entre o significado da presença indígena no Peru e o conceito de raça. Para um intelectual latino-americano que nasceu no fim do século XIX, essa atitude metodológica é um tento.

Não há sombra do chamado darwinismo social nos seus textos. E qual a gênese deste convicto anti-racismo? A superação dos preconceitos científicos nessa matéria já se vinha dando na Europa pela ação de duas vertentes que às vezes parecem cruzar-se, embora corram em leitos políticos paralelos.

Entre alguns discípulos mais ou menos próximos de Auguste Comte, como Émile Durkheim, Célestin Bougle e Vilfredo Pareto, levou-se adiante a tese positivista de que o nível social não se confunde com o orgânico, ainda que repouse neste a sua condição de existência. A Sociologia, a nova ciência que, na lição de Comte, deveria coroar todo o processo do conhecimento, tinha um objeto próprio, o sistema de fatos sociais, cujas leis internas, inferidas pela ciência histórica, não eram ditadas pelo sangue nem pelos gens. Mariátegui cita e encampa as especulações de Pareto, cujo "Trattato di Sociologia Generale" serviu de guia a gerações de estudiosos sociais pré-marxistas até os anos 30.

Seja dito, de passagem, os positivistas brasileiros mais ortodoxos, reunidos em torno do Apostolado de Teixeira Mendes e Miguel Lemos, sempre recusaram a argumentação racista usada para justificar a escravidão negra. Quando topamos com escritores com laivos preconceituosos, como Sílvio Romero e Euclides da Cunha, podemos desconfiar de que neles prevaleceu uma visão evolucionista (mas não positivista, em senso estrito) da nossa mestiçagem.

Mariátegui transcreve, como peça de autoridade, um longo trecho do Tratado de Pareto em "El problema de las razas en la América Latina", escrito em 1929. Aí acusa a hipocrisia da idéia de raça, tal como a manipularam os estados imperialistas na sua expansão ao longo do século XIX.

Na verdade, pensava ele, teria chegado o momento de inverter a relação causal que via no atraso dos países andinos o peso negativo do legado pré-colombiano. Foi a colonização que teve "efeitos retardatários e deprimentes na vida das raças indígenas. Povos como o quíchua e o asteca retrocederam, sob o regime colonial, à condição de dispersas tribos agrícolas. O que, nas comunidades indígenas do Peru, subsiste de elementos de civilização é, principalmente, o que sobrevive da antiga organização autóctone. No campo feudalizado, a civilização branca não criou focos da vida urbana, nem significou sempre sequer industrialização e mecanização; no latifúndio serrano, com exceção de certas estâncias de gado, o domínio do branco não apresenta, nem mesmo tecnologicamente, progresso algum em face da cultura aborígene" (MARIÁTEGUI, 1974, p. 25).

Mas há ainda uma outra fonte em que Mariátegui bebeu para apartar, de vez, o discurso racial da interpretação da vida peruana: a corrente que ele próprio denominava sociologia marxista, nela incluindo o texto didático de Bukharin, citado em francês, "La théorie du materialisme historique", que relativiza o papel do biológico puro na dinâmica social.

Assim, apesar de suas bases epistemológicas distintas, a sociologia positivista e o marxismo confluem na tese do caráter próprio do social. O contacto de ambas as linhas em certo momento da inteligência latino-americana talvez possa causar estranheza aos historiadores de Filosofia que se impacientam ao ver sinais de ecletismo. A resultante ideológica, porém, foi humanizadora enquanto varreu preconceitos que o principio liberal da concorrência entre os mais fortes espalhara por três ou quatro gerações.

Para um Mariátegui, assim como para um Fernando Ortiz, o conhecimento de obras positivistas, marxistas e crocianas (ambos viveram alguns anos na Itália) não foi propriamente um convite à confusão: deu-lhes o gosto do estudo das suas sociedades de origem, peruana e cubana, onde iriam, de torna-viagem, militar repuxando o ensaísmo para o lado do progresso e da transformação de velhas estruturas coloniais.

Os ventos da crise do primeiro pós-guerra sopravam de todos os quadrantes criando um clima propício às vanguardas; o que ajudou Mariátegui a deslocar o eixo da questão nacional para os contrastes estruturais da América andina vistos em conexão com a economia e a política internacional. Nesse contexto, os discursos raciais perdiam peso e interesse.

Os efeitos saudáveis dessa largueza de vistas logo se fizeram sentir na obra de Mariátegui. Simetricamente: de um lado, o antiimperialismo; de outro, a antixenofobia.

O primeiro lhe permitiu compreender o lugar e o valor do índio no processo civilizatório peruano. Entronca-se na linha-mestra da antropologia indigenista de Julio Tello e Luis Valcárcel, que definiram os pontos nodais do resgate das culturas quichua e mestiça. O seu raio de ação teve longo alcance tocando a obra narrativa e os ensaios etnológicos de José María Arguedas (1975)22) A seleção e o prólogo são de Angel Rama. e enfermando mais de um argumento da teologia da libertação de Gustavo Gutiérrez. O indigenismo foi, no Peru, o que se poderia chamar, sem temor ao paradoxo, uma vanguarda enraizada.

O segundo efeito do esvaziamento da linguagem racista corrigiu tudo quanto a exaltação do índio serrano poderia render em termos de nacionalismo retórico. Mariátegui é incisivo:

"Do preconceito da inferioridade da raça indígena começa a passar-se ao extremo oposto: o de que a criação de uma nova cultura americana será essencialmente obra das forças raciais autóctones. Subscrever essa tese é cair no mais ingênuo e absurdo misticismo. Ao racismo dos que desprezam o índio, porque crêem na superioridade absoluta e permanente da raça branca, seria insensato e perigoso opor o racismo dos que sobrestimam o índio, com fé messiânica na sua missão como raça no renascimento americano.

As possibilidades de que o índio se eleve material e intelectualmente dependem da mudança das condições econômico-sociais. Não estão determinadas pela raça, mas pela economia e pela política. A raça, por si só, não despertou nem despertaria o entendimento de uma idéia emancipadora.

Sobretudo, não adquiriria nunca o poder de impô-la e realizá-la. O que assegura sua emancipação é o dinamismo de uma economia e de uma cultura que trazem em suas entranhas o germe do socialismo. A raça índia não foi vencida, na guerra da conquista, por uma raça superior étnica ou qualitativamente; mas foi vencida por sua técnica que estava muito acima da técnica dos aborígenes. A pólvora, o ferro, a cavalaria, não eram vantagens raciais; eram vantagens técnicas" (MARIÁTEGUI, 1974, p. 31).

Em "El problema de las razas" o autor faz uma síntese feliz de um processo considerado em geral como simples conflito de raças diferentes. Mariátegui retifica esse ponto de vista:

"Os espanhóis chegaram a estas paragens distantes porque dispunham de meios de navegação que lhes consentiam atravessar os oceanos. A navegação e o comércio lhes permitiram mais tarde a exploração de alguns recursos naturais de suas colônias. O feudalismo espanhol se sobrepôs ao agrarismo indígena, respeitando em parte suas formas comunitárias; mas esta mesma adaptação criava uma ordem estática, um sistema econômico cujos fatores de estagnação eram a melhor garantia da servidão indígena. A indústria capitalista rompe este equilíbrio, interrompe este estancamente, criando novas forças produtivas e novas relações de produção. O proletariado cresce gradualmente às expensas do artesanato e da servidão. (...) Em tudo isto, a influencia do fator raça se revela evidentemente insignificante ao lado da influência do fator economia — produção, técnica, ciência, etc".

Admiráveis o equilíbrio e a coerência de todo o ensaio. Se o critério de raça é impertinente, o pensador mata dois coelhos de uma só cajadada. Liberta-se do eurocentrismo que desdenha o índio porque não é branco. E liberta-se do nativismo que acusa o europeu (ou o estrangeiro) porque não é índio (nacional).

A limpeza do terreno perfaz-se inteiramente e dá espaço para que o pensamento avance na elaboração de uma hipótese de identidade nacional mais complexa e menos rígida.

Se a nação não se constitui por força de uma presumida substância étnica, índia ou branca, então em que solo poderia enraizar-se? No sistema social peruano? Na sua estrutura econômica? No seu regime político? No seu processo cultural?

Em nenhum desses níveis Mariátegui reconhece a vigência de uma unidade forte que poderia traduzir-se em termos de nação. Ao contrário, todos padecem de cisões profundas. O Peru, fraturado em regiões bem diferenciadas (a Costa, a Serra, a Selva), mal consegue costurar áreas de produção e consumo separadas não só pelos seus nichos ecológicos como por tempos e ritmos históricos peculiares.

Não haveria, pois, uma "Nação Peruana", ao menos no sentido tradicional da palavra, que se manifesta em expressões como "Nação Inglesa", "Nação Francesa", "Nação Espanhola".

A vida cultural de Lima, com sua burguesia altamente europeizada, o que poderia ter em comum, nos anos 20, com as práticas e os valores das comunidades andinas? As línguas são diversas, o espanhol e o quíchua; diversos, os códigos em que se reproduz o cotidiano. A memória social não é comum, já que não vem compartilhada pelos grupos que habitam o território assumido juridicamente pelo estado oficial do Peru. E há mais do que peças justapostas de um mosaico; há antagonismos que cortam situações de classe e de poder dolorosamente assimétricas.

Desse baixo grau de coesão, Mariátegui depreende a sua tese mais cortante: o Peru, seu contemporâneo, é uma formação nacional incompleta, um esboço de nação.

O conceito era novo e rico de conseqüências. A mais importante, do ponto de vista da ação política, relega à condição de ideologias sem Futuro tanto o nacionalismo dos senhores da terra, arcaizante e 'neocolonial, fixado nas "Tradiciones Peruanas" de Ricardo Palma, quanto o nacionalismo inquieto da pequena burguesia ressentida com o imperialismo central, mas, na prática, sem outro projeto senão o de sobreviver aliando-se aos donos do mercado ou fruindo as modestas (porém seguras) regalias de um Estado cartorial.

Em lugar de uma nação bem estruturada, o pensador vê no Peru e em outros países andinos um processo pelo qual forças sociais particulares se denominam a si mesmas nacionais por excelência e, em nome dessa bandeira unificadora, lutam para atingir determinados fins econômicos e políticos.

Mariátegui teve a rara lucidez de opor-se às crenças de muitos intelectuais apristas, de resto bem intencionados, que apostavam na missão revolucionária do nacionalismo burguês. A imagem de um Kuo Min Tang latino-americano capaz de derrotar o imperialismo sempre lhe pareceu incerta, e o exemplo chinês lhe daria razões de sobejo. Os ardores patrióticos da burguesia são efêmeros, e o seu destino já está selado pela tendência que arrasta os parceiros débeis a gravitar na órbita dos mais fortes.

Mas essas reflexões são, em Mariátegui, dialetizadas, não se esgotando no seu momento negativo. Ao recusar certas ilusões de setores políticos de esquerda, ele não pretendia apagar com palavras a relação histórica entre projetos de libertação popular e reações localizadas ao imperialismo europeu ou yankee; reações que dificilmente deixam de provocar nas ex-colônias sentimentos de defesa topicamente nacionalistas. O importante era ver claro no meio das paixões, e não abolir, sem mais, toda paixão.

Ao falar do indigenismo peruano, que crescia como corrente de cultura nessa fase de crise internacional, Mariátegui desatava mais um nó ideológico:

"Os indigenistas revolucionários, em lugar de um platônico amor ao passado incaico, manifestam uma ativa e concreta solidariedade com o índio de hoje.

Este indigenismo não sonha com utópicas restaurações. Sente o passado como uma raiz, mas não como um programa. A sua concepção da história e de seus fenômenos e realista e moderna. Não ignora nem esquece nenhum dos fatos históricos que, nestes quatro séculos, modificaram, junto com a realidade do Peru, a realidade do mundo" (MARIÁTEGUI, 1925).

A distinção entre raiz e programa opera a dialética de passado e futuro. Ó projeto ultrapassa a herança e mostra que a gênese de uma situação social não implica a sua determinação desde e para todo o sempre.

O Peru não pode ser dado como um absoluto — daí, a falácia de um peruanismo em si — na suposição de que a velha cultura incaica ou, em outro registro ideológico, a forte presença hispânica, bastariam por si sós para fundar a realidade nacional. Como projeto coletivo, sim, teria sentido a expressão optativa peruanicemos al Perú, que supõe a formação de uma sociedade civil mais integrada e justa, onde o índio tenderia a desaparecer enquanto marca discriminante, para surgir, em lugar desta, a sua qualidade de cidadão livre convivendo em um regime de direito que lhe facultasse o acesso aos bens da civilização,a qual inclui evidentemente as riquezas da sua própria história:

"Por onde, sólo concibiendo a la nación como una realidad estática se puede suponer un espíritu y una inspiración más nacionales en los repetidores y rapsodos de un arte viejo que en los creadores o inventores de un arte nuevo.

La nación vive en los precursores de su porvenir mucho más que en los supérstites de su pasado" (MARIÁTEGUI, 1925).

Referências Bibliográficas

ARGUEDAS, J. M. 1975. Formación de una Cultura Nacional Indoamericana. México, Siglo Ventiuno.

MARIÁTEGUI, J. C. 1924. Trostsky. In:__________. Variedades. Lima, 19 de abril.

__________. 1925. El Hombre y el Mito. In:__________. Mundial. Lima, 16 de janeiro.

__________. 1925. Nacionalismo y vanguardismo.In:__________.Mundial. Lima, 27 de novembro.

__________. 1927. Mensage al II Congreso Obrero de Lima.In:__________. Amauta. Lima, 5, janeiro.

__________. 1957. Principios de Política Agraria Nacional.In:__________. Mundial Lima, 1° de julho.

__________. 1959. Defensa del Marxismo. Polémica Revolucionaria. In:__________. Amanta. Lima.

__________. 1974. El Problema de las Razas en la America Launa.In:__________. Amauta. Lima, 5.

Alfredo Bosi, professor de Literatura Brasileira da USP e vice-diretor do IEA.

Mariátegui corta pela raiz qualquer vínculo entre o significado da presença indígena no Peru e o conceito de raça. Para um intelectual latino-americano que nasceu no fim do século XIX, essa atitude metodológica é um tento.

Não haveria, pois, uma "Nação Peruana", aomenos no sentido tradicional da palavra ...

(

  • 1
    ) Trata-se de um artigo que complementa o capítulo "O problema da terra" dos
    Sete Ensaios de Interpretação da Realidade Peruana, com tradução em português pela Ed. Alfa-Ômega (São Paulo, 1975).
    (
  • 2
    ) A seleção e o prólogo são de Angel Rama.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Mar 2006
    • Data do Fascículo
      Abr 1990
    Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo Rua da Reitoria,109 - Cidade Universitária, 05508-900 São Paulo SP - Brasil, Tel: (55 11) 3091-1675/3091-1676, Fax: (55 11) 3091-4306 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: estudosavancados@usp.br