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Criação/Poesia

CRIAÇÃO/POESIA

Ponteio

Alcides Villaça

Os olhos tocam primeiro,

mas as palavras por fim.

Mas as palavras repousam,

e os olhos devem seguir.

Os olhos sabem primeiro,

mas as palavras recolhem.

Mas as palavras não colhem

do campo o que os olhos colhem.

Os olhos querem o tempo,

mas as palavras já têm.

Mas nas palavras não cabe

dos olhos esse não caber.

Os olhos olham as palavras,

mas as palavras entoam.

Mas as palavras retornam,

e os olhos nascem além.

Entre olhos e palavras

não fique ânsia ou vagar:

distâncias mudas e cegas

tocam-se, para ver cantar.

para Milton

Nascimento

Alcides Villaça

Todo som é alto toda água sobe nasce já subindo todo corpo é clímax sempre na vertente todo bico é pássaro nas últimas folhas todo amor perdura no alto do galho toda luz é sempre nasce já incêndio todo sopro dura na vida na chama toda brasa queima sua luz minéria toda mina guarda seu plural no fundo todo nome sabe seu fundo no corpo toda face é faca nasce já cortando todo mel é sumo de madura chama

Alcides Villaça, professor de Literatura Brasileira da USP, publicou o livro de poemas Viagem de Trem, 1989.

Escaravelho

Carlos Felipe Moisés

As patas são seis,

às vezes se encolhem no fim da tarde,

somem de vez em noites de luar.

Enquanto os cornos vibram

minúsculos pulmões se inflamam.

É uma bola de fogo

imaculadamente

branca.

Em volta,

os párias apertam o cerco

em busca das placas multicoloridas

que se soltam da carcaça

ainda quente.

As patas são seis

e escavam aflitas.

Soluça até raiar o dia

e reinicia a escavação.

Não sabe onde esconder

o arco-íris

cravado

no dorso que nunca verá.

Joana D'arc

Carlos Felipe Moisés

Olhar sem malícia

corpo sem pecado

a alma sonha blandícia

coração enlutado.

Na alta fogueira jaz

nada mais a move

espera o que não quer

desespera do que sabe.

Sabe? O fogo incendeia

tudo em redor

e uma chama azul abriga

o coração em flor mudado.

Olhar sem malícia,

corpo sem pecado,

a alma não sonha:

é blandícia

e um coração alado

tinge de azul

(é manhã)

o mundo carbonizado.

Carlos Felipe Moisés, professor de Literatura Portuguesa da USP, publicou, entre outros, os seguintes livros de poesia: Poemas reunidos, 1974; Círculo imperfeito, 1978.

Les chercheuses de poux

Arthur Rimbaud

Quand le front de l'enfant, plein de rouges tourmentes,

Implore l'essaim blanc des rêves indistincts,

Il vient près de sont lit deux grandes soeurs charmantes

Avec leurs frêles doigts aux ongles argentins.

Elles assoient l'enfant auprès d'une croisée

Grande ouverte où Pair bleu baigne un fouillis de fleurs,

Et dans ses lourds cheveux où tombe la rosée

Promènent leurs doigts fins, terribles et charmeurs.

Il écoute chanter leurs haleines craintives

Qui fleurent des longs miels végétaux et rosés,

Et qu'interrompt parfois un sifflement, salives

Reprises sur la lèvre ou désirs de baisers.

Il entend leurs cils noirs battant sous les silences

Parfumés; e leurs doigts électriques et doux

Font crépiter parmi ses grises indolences

Sous leurs ongles royaux la mort des petits poux.

Voilà que monte en lui le vin de la Paresse,

Soupir d'harmonica qui pourrait délirer;

L'enfant se sent, selon la lenteur des caresses,

Sourdre et mourir sans cesse un désir de pleurer.

As catadoras de piolho

Arthur Rimbaud

Contrabandeado e traduzido por

Rubens Rodrigues Torres Fº

"A poética fora de moda desempenhava, um bom papel em minha alquimia do verbo."

Tradução: Ledo Ivo e Francisco Alves

Quando a fronte do infante, vermelha das tormentas,

Só implora o enxame branco dos sonhos sem perfil,

Se acercam de sua cama duas grandes irmãs atentas,

Trazendo dedos frágeis, com unhas de ar gentil.

Fazem sentar o infante ao pé de uma janela

Aberta (onde o ar azul banha uma confusão de flores)

E em seus cabelos densos que o orvalho gela

Passeiam os dedos finos, terríveis e encantadores.

Ele escuta cantar o hálito dessas divas

Temerosas, que rescende a longos méis vegetais,

Às vezes sincopado de um silvar: salivas

Chupadas para os lábios — ou vontades de beijar?

Ouve o bater de suas negras pestanas, sob silêncios

Perfumados; e aqueles dedos elétricos, mansinhos,

A fazer crepitar, em meio a cinzas indolências,

Sob suas regias unhas, a morte dos piolhinhos.

Eis que sobe por ele o vinho da Preguiça,

Suspiro de acordeom capaz de delirar;

E nasce nele, conforme a lentidão das carícias,

Um exato querer-e-não-querer chorar.

Intimidade

Rubens Rodrigues Torres Filho

Por tudo isso que se esvazia e se corrompe minha

amizade é profunda. Calo

dentro de mim vazios e intermitências

e ainda, no mesmo gênero, toda espécie de claridades.

Não lhes dou voz. Em troca

são mansos, não dão trabalho

e às vezes quando assim assediados revelam finalmente

seu lado cúmplice. É sempre assim.

Rubens Rodrigues Torres Filho, professor de Filosofia Clássica Alemã da USP, publicou os seguintes livros de poesia: Investigação do olhar, 1963; O vôo circunflexo, 1981; A letra descalça, 1985 e Figura, 1987.

Eurípedes: Medéia* * Cf. Euripedes — Medea. The text edited with introduction and commentary bv Denvs L. Page. Oxford, Clarendon, 1985.

(Episódio Final)

Tradução de Jaa Torrano

Medéia Amigas, decidiu-se a ação o mais rápido:
que eu mate os filhos e parta do país
para que com a demora não dê os filhos
para outra mão inimiga massacrá-los. 1236

É de todo necessário que morram; assim,

nós os massacraremos, que os criamos.

Eia! Às armas! Coragem! Por que não iremos

fazer os terríveis e necessários males?

Vamos! Ó minha mísera mão, pega a espada!

1240 Pega! Corre para a meta triste da vida!
Não te aviltes, nem te recordes de filhos
amadíssimos, que geravas; mas por este
breve dia, esquece-te de teus filhos.
Depois, pranteia! Ainda que os mates, 1245 foram queridos e eu mulher de má sorte. 1250

Coro de

mulheres Ió! Terra e onibrilhante
raio de Sol, contemplai, vede esta
funesta mulher, antes que lance
fatal mão homicida sobre os filhos. EST.

Floriu de tua áurea progênie

e o derrame do sangue de Deus

por homens é pavoroso.

Ó Luz nascida de Zeus, segura-a,

dá-lhe pausa, expulsa de casa a mísera

1255 homicida que é Erínis sem-latência. 1260 Vãs foram as fadigas dos filhos, ANT. vã foi a geração querida que geraste,
ó tu, transeunte da inóspita foz
das negras pedras Simplégadas! Ó coitada, por que te cai
grave cólera e malévolo
massacre se permuta?
Áspera para mortais é a consangüínea
poluição da terra. Uníssonas com o crime, 1265 as aflições caem dos Deuses sobre a casa. 1270 Filhos (Dentro do palácio:) Ió moi! Coro Ouves grito, ouves grito de crianças? EST.1273 Ió! Mísera mulher de má sorte! 1274 Filho Oimoi! Que fazer? Onde fugir da mão materna? 1271 Filho Não sei, irmão querido, estamos morrendo. 1272 C. Entrar no palácio? Decido impedir
o massacre das crianças. 1275 Filhos

Pelos Deuses, impedi, pois é preciso!

Tão próximos estamos das redes da espada.

C. Mísera, tu eras pedra ou ferro? Tu, que matas com homicida sorte
a lavoura de filhos que geraste? 1280 Ouvi falar que uma mulher outrora
lançou a mão sobre os filhos queridos:
Ino, louca pelos Deuses, quando a esposa ANT. de Zeus baniu-a de casa a vaguear.
Essa coitada cai no mar, pelo malpio
massacre das crianças,
ao estender o pé sobre o alcantil;
morta com os dois filhos, perece. 1285 Que aconteceria ainda terrível?
O leito de mulheres, multifatigado,
quantos males já fizeste aos mortais! 1290 Jasão Mulheres, que estais diante do palácio,
Medéia, que fez o terrível, ainda está em casa, ou mudou-se para o exílio?
Ela deve ocultar-se debaixo da terra,
ou com asas erguer-se no céu profundo,
se não dará paga ao palácio dos tiranos.
Confiaria que ao matar os donos do país, 1295 pudesse evadir-se impune deste palácio?
Mas ela não me preocupa com os filhos.
Os que ela maltratou a maltratarão,
mas vim salvar a vida dos meus filhos,
que não lhes façam algo os familiares, 1300

C.

J.

C.

ao punirem o ímpio massacre da mãe.
Ó coitado, não sabes onde foste na ruína,
Jasão, pois não dirias essas palavras.
Que é? Ela até a mim quer matar?
Teus filhos, mortos pela mão da mãe. 1305 J.
C.
J.
C.
J. Oimoi! Que dizes? Destruíste-me, mulher.
Não cuides mais de teus filhos vivos.
Onde os matou? Dentro ou fora de casa?
Abre a porta e verás a morte de teus filhos.
Tirai traves o mais rápido, ó fâmulos, 1310 M. Soltai trancas, para eu ver o duplo mal
e fazer justiça a meus mortos e a ela.
Por que moves e removes esta porta
em busca de mortos e de mim que os matei?
Cessa essa fadiga! Se precisas de mim, 1315
J. diz, se queres algo, mas não porás a mão!
O Sol, pai do pai, nos dá tal veiculo,
um baluarte contra a mão inimiga.
Ó poluição máxima, ó mulher a mais odiosa
aos Deuses, a mim e a todo o gênero humano, 1320 tu ousaste lançar a espada nos filhos
que pariste e sem-filho me destruíste!
Ainda assim tendo feito, contemplas o Sol
e Terra, após ousar ação a mais ímpia? Morras!
Eu agora estou lúcido, antes não, 1325 quando de casa e da terra bárbara
conduzi-te a um lar grego, ó grande mal,
traidora do pai e da terra que te criou.
Deuses me enviaram teu Nume sem-latência.
Tu mataste o teu irmão em teu lar 1330 e embarcaste em Argos de bela proa,
principiaste assim. Quando desposada,
junto deste marido e mãe de meus filhos,
por causa da cama, tu os destruíste.
Não há mulher grega que ousou isso! 1335 A tais mulheres, eu preferi desposar-te
aliada e inimiga funesta para mim,
leoa, não mulher, com uma natureza
mais selvagem que a tirrênia Cila.
Nem com miríades de vitupérios 1340 eu te magoaria, tal ousadia tens.
Some, ó malfeitora sangrenta dos filhos!
Pertence-me prantear o meu Nume.
Eu nem fruirei as novas núpcias,
nem posso interpelar vivos os filhos 1345 M. que gerei e criei; contudo, pereci.
Longamente eu me estenderia contra tuas
palavras, se Zeus pai não conhecesse
o que de mim sofreste e o que fizeste.
Tu, por desonrar meu leito, não devias 1350 passar a vida prazenteira a rir de mim,
nem a tirana, nem quem te deu a noiva,
Creonte, impune banir-me desta terra.
Ademais, se queres, chama ainda leoa
e Cila que habita a planície tirrênia. 1355 J.
M.
J.
M. Contragolpeei teu coração como é preciso.
Participas tu dos dolorosos males.
Bem sabe: rende a dor, se tu não rias.
Ó crianças, que maligna mãe tivestes!
Ó filhos, que vos perdestes por mal paterno! 1360 J.
M.
J.
M.
J. Não minha destra, porém, destruiu-vos.
Mas o ultraje e as tuas novas núpcias.
Ao leito deste o valor de seu massacre?
Parece-te que para a mulher é uma dor leve?
Para a prudente. Tu tens todos os males. 1365 M.
J.
M.
J.
M. Estes não vivem mais, isto te magoará.
Eles vivem, poluidores de tua cabeça.
Deuses sabem quem principiou o mal.
Sabem sim de teu odioso espírito.
Odeia! Detesto tua palavra amarga. 1370 J.
M.
J.
M. E eu a tua: é fácil o afastamento.
Então? Que fazer? Quero muito também.
Deixa-me sepultar os mortos e pranteá-los.
Não, porque os sepultarei com esta mão,
no templo da Deusa Hera Promontória 1375 para que nenhum inimigo os ultraje
revolvendo a tumba. Na terra de Sísifo,
darei a veneranda festa e as cerimônias
doravante, por este malpio massacre.
Eu mesma irei à terra de Erecteu 1380

J. para casar com Egeu filho de Pandíon.
Tu, vil, terás morte vil como convém,
golpeado no crânio pela relíquia do Argos,
ciente das amargas cerimônias de minhas núpcias.
Destrua-te Erínis, ó homicida 1385 M.

J.
M. dos filhos. Destrua-te Justiça.
Que Deus ou Nume te ouve,
ó perjúrio lesivo a seus hóspedes?
Pheû pheû! Tu, poluente infanticida!
Vá ao palácio e sepulta a esposa. 1390 J.
M.
J.
M.
J.
M.
J. Vou, sem o quinhão dos dois filhos.
Assim pranteia, espera até a velhice.
O filhos queridos!
Pela mãe, não por ti!
Tu os mataste!
Para te punir.
Omoi! Preciso da boca querida 1395 M.

J.

M. dos filhos, mísero, para beijar.
Agora os invocas, agora os abraças,
antes repelias.
Dá-me, pelos Deuses,
tocar a meiga pele de meus filhos!
Não pode. Vã palavra foi proferida. 1400 J. Ó Zeus, ouves que somos repelidos
e o que sofremos desta poluente
leoa massacradora de crianças?
Mas quanto é possível e assim posso
pranteio-os e apelo aos Deuses 1405 pedindo testemunho de Numes:
tu, infanticida, me impedes
de tocar e sepultá-los mortos.
Nunca eu os houvesse gerado
para vê-los destruídos por ti! 1410 C.

Muitos são os dons de Zeus Olímpio,

muitos os inesperados atos dos Deuses

e assim os esperados não se cumprem,

Deus acha passagem para o inesperado.

Assim acabou este drama aqui.

1415

Odysseia

Jaa Torrano

Pesam meus dias os remoinhos de Posídon

vigílias em terras inimigas e os caminhos úmidos.

Paz em Ítaca que ainda não tive

deve ser algo terrível.

Como suportaria a paz pré-tumular em meu lar

banido do convívio com o inimigo

e exilado das regiões que meus olhos jamais viram?

Ainda que a Deusa me desse ambrosia

e vida imortal para eu gozar o seu amor

no umbigo do mar,

que alegria eu teria

se não mais visse

o Dia que até o ver o desconhecia?

Jaa Torrano, professor de Língua e Literatura Grega da USP, autor dos seguintes livros: Ésquilo — Prometeu Prisioneiro, 1985; O sentido de Zeus. O mito do mundo e o modo mítico de m no mundo, 1988 e Hesíodo — Teogonia. A origem dos deuses, 1989.

Aos meus filhos

José Jeremias

Que vôo provisório as andorinhas ensaiam

nos telhados desta casa?

O inverno se aproxima com seus ventres falantes

E elas vão ensaiando as montanhas distantes.

Vão lembrando o futuro

Exercitando as asas.

Voltarão sempre cada vez mais longe.

Até que não encontrem esta casa branca

sinalizando o nevoeiro.

O espelho

José Jeremias

Quem olha, quem imagina,

São duas metades uma

Por detrás da pele fina.

Só que a pele dos espelhos

Em matéria de retina,

Despida a pessoalidade,

Enxerga o que se lhe ensina.

José Jeremias, professor de Metodologia das Ciências Sociais da USP, escreveu os livros Incompetência do só (seleção de Álvaro Moreyra); Cantigas do mágico entediado; Dedo mindinho; Maria (poema-livro) e Poemas (inédito).

  • *
    Cf. Euripedes —
    Medea. The text edited with introduction and commentary bv Denvs L. Page. Oxford, Clarendon, 1985.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Mar 2006
    • Data do Fascículo
      Abr 1990
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