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DEPOIMENTO

O aparente e o oculto: entrevista com David Bohm* * Entrevista com o prof. David Bohm, realizada pelo prof. Alberto Luiz da Rocha Barros, do Instituto de Física da USP, em 8/março/83, no Birkbeck College, University of London. (

David Bohm, Professor Emérito da Universidade de Londres (Birkbeck College), é um dos físicos teóricos mais importantes da atualidade, devido aos seus trabalhos sobre a Teoria Quântica. Por suas preocupações com os fundamentos da Física, foi levado ao amplo terreno da Teoria da Ciência, introduzindo o conceito de implicate order que, relacionado com a categoria da totalidade, deu origem ao chamado paradigma holográfico, por sua analogia com o holograma. Tais preocupações são expostas em seu livro "Wholeness and Implicate Order", Routledge and Kegan Paul, London, 1981.

Sob a orientação de Robert Oppenheimer iniciou suas atividades de pesquisa obtendo o seu PhD em 1943. A seguir, trabalhou no Radiation Laboratory no estudo teórico da ionização em um arco elétrico do fluoreto de urânio, assunto relacionado com a separação do urânio-235, do urânio-238 e que interessava ao Projeto Manhattan. Assim começou a sua preocupação com o estudo do plasma, obtendo importantes resultados. Este problema científico teve também implicações filosóficas na obra de Bohm, pois o comportamento do plasma não pode ser entendido de um ponto de vista mecanicista, tendo em vista que o relacionamento dos modos individual e coletivo de suas partículas lembra um todo orgânico e coloca o problema da relação entre o todo e suas partes sempre presente em sua Teoria da Ciência. Algum tempo depois, tornou-se professor da Universidade de Princeton, onde começou a escrever o seu livro "Quantum Theory", Prentice-Hall, 1951, hoje, um clássico no assunto.

Com o surgimento da Guerra Fria, importantes cientistas americanos, muitos dos quais tinham participado do Projeto Manhattan que construiu a primeira bomba atômica, começaram a ser perseguidos pelo Mc Carthyism, entre outros Oppenheimer, diretor deste projeto, e seu discípulo Bohm. Preocupado com a situação de Bohm, Schenberg o convida a vir à Universidade de São Paulo, onde regeu a cátedra de Física Teórica de 1951 a 1955. Do Brasil, via Israel, foi para a Inglaterra em 1957, onde permanece até hoje.

Aos interessados em maiores detalhes sobre a vida científica e cultural do prof. Bohm, recomendamos a leitura do artigo "The Development of David Bohm's Ideas from the Plasma to the Implicate Order", de autoría de B. J. Hiley, seu colaborador no Birkbeck College e de F. D. Peat, que figura no livro "Quantum Implications: essays in honour of David Bohm", edited by B. J. Hiley and F. D. Peat, Routledge and Kegan Paul, London, 1987.

Em comemoração do 50° aniversário da USP e do 70° aniversário do prof. Mário Schenberg, fizemos, por sugestão da profª Amélia Império Hamburger, a presente entrevista, cuja tradução foi feita por d. Maria Cristina Amado e revista pelo próprio prof. Bohm, que procurou relembrar seus conhecimentos da língua portuguesa.

Entrevista com David Bohm

Alberto Luiz da Rocha Barros

Rocha Barros — No ano que vem, a Universidade de São Paulo completa 50 anos. Sua estada de quatro anos na USP foi muito importante para a Física Teórica no Brasil, além de ter influenciado a Filosofia da Ciência. Qual foi o significado desse período para sua pesquisa?

D. Bohm — Quando fui para o Brasil, estava trabalhando numa nova interpretação da Teoria dos Quanta, que encerrei agora. Tendo terminado minha pesquisa sobre plasma, estava pensando em seguir mais além, pois estava muito interessado na questão filosófica. Acho que minha ida para o Brasil me deu oportunidade de prosseguir essa discussão, primeiro com Tiomno e Schiller, depois com Walter Schützer e, também, com Mário Schenberg — tudo isso me interessou muito, no sentido de ajudar a dar prosseguimento a meu trabalho.

Comecei tendo um interesse especial na causalidade. A interpretação usual da Teoria dos Quanta nega a causalidade e, tendo proposto outra interpretação que parece reafirmá-la, achava que talvez o quadro probabilístico da Mecânica Quântica pudesse ser entendido de uma forma similar à Mecânica Estatística.

Quando cheguei a São Paulo, Tiomno estava lá, e começamos a trabalhar desenvolvendo uma interpretação causai da teoria de Pauli sobre o spin1 1 ) D. Bohm, R. Schiller and J. Tiomno, Nuovo Cimento 1, Supp., 1955, p. 48. ( . Continuamos esse trabalho com Schiller. Meu interesse crescente pelas questões filosóficas me levou a discutir Filosofia com o irmão de Walter Schützer, que estava no Departamento de Filosofia. Começamos discutindo a Filosofia grega, depois passei a estudar a História da Filosofia, considerando o desenvolvimento do mecanismo, principalmente, depois de discussões com Mário Schenberg, sobre uma abordagem dialética da causalidade.

Com Walter Schützer, desenvolvi algumas idéias sobre probabilidade e escrevemos um paper ("Nuovo Cimento" — Suplemento)2 2 ) D. Bohm and W. Schützer, Nuovo Cimento 2, Supp. 4, 1955, p. 1004-1047. ( . Assim, acho que muitas de minhas idéias se desenvolveram bastante durante minha estada no Brasil — e surgiram muitas idéias novas também.

Rocha Barros — Seus livros "Quantum Theory e "The Special Theory of Relativity" são usados nos cursos da Universidade de São Paulo e muito apreciados por alunos e professores. Numa entrevista para a "New Scientist" em novembro de 1982, você disse que o "Quantum Theory" foi escrito para explicitar melhor o ponto de vista de Bohr sobre Mecânica Quântica. Você discutiu com Einstein sobre isso em Princeton. A sua crítica à Filosofia positivista inspirou muitos professores e estudantes em São Paulo. Poderia falar sobre isso?

D. Bohm — Eu sempre achei que a Teoria dos Quanta era um novo passo, muito crucial, da Física, cujo significado não estava muito claro. Eu tinha feito o curso de Teoria dos Quanta com Oppenheimer em Berkeley, Califórnia, e, inspirado nisso, comecei a dar um curso de graduação em Princeton, que acabou se transformando no livro "Quantum Theory". Nessa época, eu estava me esforçando por compreender o ponto de vista de Bohr. Eu era a favor dele, não só por causa de Oppenheimer, mas devido às discussões com Weinberg, um ardente defensor de Niels Bohr, e que achava que as idéias dele constituíam o maior desenvolvimento ocorrido desde o início da Ciência.

Podia-se entender o ponto de vista de Niels Bohr, mas as coisas não estavam muito claras. Em parte devido ao estilo de Bohr, que não fazia afirmações definitivas, positivas. Então, ao escrever "Quantum Theory", tentei torná-lo o mais claro possível para mim mesmo, mas, quando o terminei, ainda estava insatisfeito. Comecei a pensar numa idéia — que veio a ser o ponto de partida da implicate order — que era a seguinte: no processo de espalhamento, há uma onda vindo e sendo espalhada e há uma onda saindo daquela fonte que é o espaihador (A incoming wave está relacionada estatisticamente com a outcoming wave.) — a onda chegando e a onda saindo. Esse tipo de idéia se aproximaria do que mais tarde vim a chamar de enfoldment de implicate order. Eu devia ter seguido adiante nisso!

Mandei este meu livro para vários físicos, inclusive Pauli, Einstein e Bohr. Tive uma resposta rápida e entusiástica de Pauli, que gostou muito; Bohr não respondeu — mais tarde soube que ele fez comentários... Einstein leu, gostou muito e me mandou uma mensagem telefônica dizendo que gostaria de conversar comigo. Ele achou que o livro refletia o ponto de vista de Bohr, mas que ainda não estava convencido. Discutimos suas objeções, que são basicamente as que ele dá no estudo do paradoxo de Einstein-Podolsky-Rosen, mas eu diria isso de uma forma ligeiramente diferente: a teoria está incompleta, não no sentido de que uma teoria completa explicaria tudo a respeito do universo, mas no sentido de que um relógio está incompleto se uma peça importante estiver faltando... ele achava que uma peça importante da Teoria Quântica estava faltando, uma peça que a faria ter sentido...

Bem, comecei a sentir a mesma coisa; a questão com que estava começando a me defrontar, aquela da onda indo e vindo, era uma discussão sobre o real, um real independente do observador, ao passo que, do modo usual, o real ficava dependendo do observador.

Von Neumann, por exemplo, admitia isso, porém achava que, classicamente, podia-se deixar isso de lado. Haveria uma linha divisória entre o nível clássico e o da Mecânica Quântica, de modo que você poderia discutir o real num nível clássico, enquanto a Mecânica Quântica aconteceria do outro lado da parede... Pareceu-me uma idéia um pouco arbitrária, a de pôr um corte e dividir o mundo assim em duas partes.

A questão que levantei é: podemos pensar o mundo como um só, como uma única realidade? A Mecânica Quântica não faz isso. Esta diz que, primeiro, tem-se uma observação e, depois de algum tempo, outra observação que, de certo modo, anula o resultado da primeira, fornecendo um novo estado. E não diz como é que este surge, como está relacionado com o outro, a não ser por um cálculo estatístico, fornecendo uma probabilidade.

Disso tudo fica a idéia de que, no fim das contas, o real depende do físico que o observa, quer dizer, se você tiver uma função de onda que entre em colapso num e não em outro resultado, então o físico também tem que entrar em colapso. Assim, isso parece tornar necessário que o físico esteja por perto para que o universo seja real, e achei que isso estava errado. Quer dizer, achei que esta era uma interpretação positivista, aliás até mais do que positivista, era uma tendência ao idealismo atribuir à mente humana tal posição-chave num fenômeno físico. Embora eu reconheça que há uma estreita relação entre a mente e a matéria, não creio que a mente humana possa ter papel tão relevante num experimento físico típico, como o acima mencionado.

O que mais me impressionou na discussão com Einstein foi a conclusão de que era necessário ter uma visão não-positivista das coisas. Comecei a pensar numa, o que me fez esquecer por certo tempo a implicate order.

Rocha Barros — Você escreveu ensaios sobre a Criatividade e sobre as relações entre Ciência e Arte; você observava que a maioria dos seres humanos não são plenamente criativos e parecem estar num estado de sono, e que essa tendência a adormecer seria atribuível a um número enorme de pré-concepções...

D. Bohm — Comecei a me interessar especificamente por essas questões quando cheguei a Londres. Comecei a me corresponder com um artista chamado Charles Biederman, que mora nos Estados Unidos. Discutimos muito essas questões e, também, com alguns artistas aqui em Londres. Estava interessado nas relações entre Ciência e Arte, e na Criatividade, que é comum a ambas. Primeiro, tem-se que constatar que há uma grande diferença entre Ciência e Arte, e que não se pode alinhá-las segundo similaridades superficiais. Originalmente, estavam estreitamente combinadas. Em Leonardo da Vinci ainda tivemos um homem que as combinava bem, mas posteriormente, foi havendo uma crescente especialização.

Para começar, a própria palavra ciência vem de uma raiz latina (scientia) que significa cortar (a mesma, aliás, de scissors, tesoura em inglês) e, portanto, Ciência, como eu entendo, é conhecimento que usa análise. Mas, ao mesmo tempo, seu objetivo é ver o todo, não apenas dividi-lo em partes, isto é, encontrar as partes certas para ver o todo.

A Ciência foi primordialmente encarada como se desenvolvendo num mundo totalmente objetivo, mas hoje se vê que o ser humano, suas idéias, têm um papel-chave. Há uma espécie de evolução contínua de idéias. As idéias com as quais você aborda o mundo vão obviamente afetar sua maneira de ver o mundo. Sempre vemos apenas um aspecto do mundo e, portanto, nossas idéias irão não somente selecionar aquele aspecto como também, até certo ponto, criar a própria coisa que vemos, o que fica evidente na tecnologia moderna que a Ciência nos ajudou a criar.

Assim, a força da idéia é a de criar, tanto quanto a de refletir. Descobriu-se, por exemplo, que a Matemática não era constituída de verdades absolutas, mas que as pessoas poderiam considerar novos axiomas, elaborar as conseqüências e assim ter uma maneira inteiramente diferente de encará-la. Há, pois, uma evolução contínua. A Arte também teve sua evolução e ao longo dos tempos foi sendo encarada de formas diferentes, especialmente nos tempos modernos. Desenvolveu-se, houve revoluções, como a grande revolução que se deu na época de Monet e dos impressionistas. Segundo Biederman, é como se a velha maneira de fazer Arte se estivesse exaurindo, em parte porque já se teria resolvido o problema da representação realista. Não haveria mais nada de novo, seria repetitivo continuar com a representação do tipo faz-uma-pose-para-eu-pintar e, em parte, também devido ao desenvolvimento da fotografia, que estava desvendando um caminho inteiramente novo, surgindo como um novo tipo de Arte. A Arte estava em crise, fato que a maioria dos artistas sensíveis já haviam percebido em fins do século XIX. Monet é a expressão disso e o que fez foi essencialmente criar uma imagem, partindo de manchas de cor e recriando a ordem do espaço nessa ordem de cores.

Mais tarde, esta linha de desenvolvimento foi elaborada por Cézanne, que estava interessado em estruturas, por Picasso e outros. Tive uma longa correspondência com Biederman sobre isso.

Analogamente, mais ou menos na mesma época, tinha ocorrido na Ciência uma revolução nas idéias, com a Relatividade e a Teoria Quântica, que foi igualmente fundamental, se não até mais.

A Ciência, para ser construída, requer uma certa atitude mental, que eu chamaria de atitude crítica: faz a crítica de suas idéias segundo os fatos e a lógica, independente de que se goste ou não, quer dizer, não é o seu desejo que determina se o que você diz é verdadeiro. De fato, essa foi uma enorme mudança porque, na maioria das coisas humanas, o desejo é a força dominante quanto ao que as pessoas acham verdadeiro. Na religião foi certamente assim, na política também e na economia provavelmente ainda seja!

Os cientistas nem sempre conseguem fazer isto direito, permitindo às vezes que o desejo se sobreponha aos dados, o que não é a maneira correta de fazer Ciência. Tal atitude crítica seria a atitude científica, ou a disposição mental que acredito, em última instância, teria que ser levada a todas as áreas da vida, senão as coisas nunca darão certo.

A atividade artística incluiria algo dessa atitude científica. O artista deveria ser capaz de olhar para as coisas independentemente de seu desejo. A diferença é que o artista não trabalha primordialmente no campo das idéias — embora ele certamente use idéias — mas no campo do que ele pode perceber com seus sentidos, enquanto que o cientista os utiliza meramente como um teste para suas idéias e está até os substituindo por instrumentos.

Parece haver, portanto, uma grande diferença entre o artista e o cientista, que estão em dois lados diferentes do empreendimento humano. O artista, fazendo seu trabalho artístico, não tem muito controle sobre este, quer dizer, não sabe se as pessoas irão comprá-lo, colocá-lo num museu, ou fazer qualquer outra coisa.

Biederman acha que os artistas deveriam conseguir que seus trabalhos entrassem nas casas das pessoas por um preço menor.

Quanto à questão de saber o que é a Criatividade, muita gente vem falando sobre isto há muito tempo3 3 ) Vid. D. Bohm, On Creativity, Leonardo, vol. 1, pp. 137-149, Pergamon Press, 1968, Printed in Great Britain. ( . De um modo muito diferente do que no passado, algo de novo está envolvido na Criatividade, que não seria o simplesmente novo, ou seja, a novidade, que não seria, tampouco, a mera invenção, que quer dizer colocar junto as coisas de uma nova maneira, como se faz numa máquina; seria antes o envolvimento de novas totalidades. A Criatividade vai abrangendo totalidades cada vez maiores, primeiro no nível da percepção, seguida da eleboração, tal como o cientista ou o artista faz em seu trabalho. A maneira correta disso se dar envolve a sociedade. É claro, existe uma interação constante, no sentido de que você tem que olhar novamente de uma maneira criativa para o que você produziu.

Quanto às pré-concepções, que você mencionou, uma palavra melhor seria pressuposição. As pessoas têm todo tipo de pressuposições sobre o sentido da vida, sobre como devem se relacionar, agir; e a maioria das pessoas têm a pressuposição de que não são originais. Provavelmente aprenderam isso muito cedo, na maneira como são tratadas, na escola e em toda parte.

É preciso muito pouco para desviar uma criança de uma direção para outra e, uma vez desviada... — em inglês, temos um provérbio que diz: as the twig is bent, so the tree will grow — um ligeiro desvio no caule do broto dá uma grande diferença na árvore. Uma criança que for desviada, mesmo que só um pouquinho, de sua Criatividade, quando crescer estará desta totalmente afastada.

Essas pressuposições — e pressuposição significa uma conjetura antecipada — implicam olhar para uma coisa tendo suposto antes qual é a situação geral, de maneira que não se pode realmente olhar para nada novo. Isso nos leva ao que chamamos predisposição, uma atitude, que está presente antecipadamente, de abordar uma coisa segundo o que você supõe que ela seja. A predisposição tem um nível inconsciente, é uma tendência que está lá inconscientemente. Por exemplo, quando se está andando por um caminho, pressupõe-se que este seja liso, nivelado, mesmo depois da curva onde não se vê; seu corpo está predisposto ao chão liso; se, de repente, o calçamento estiver irregular, você pode tropeçar, você não estava olhando para o chão, nem predisposto ao calçamento irregular, o que aliás acontece cada vez mais freqüentemente hoje em dia. Há cada vez mais gente caindo, pensando que o calçamento é regular, quando não é. Da mesma forma, se você tem a pressuposição de que não é criativo, vai agir de acordo com essa pressuposição, apega-se àquelas coisas repetitivas ou seguras que aprendeu de outras pessoas. Isto quer dizer que você está de uma certa maneira adormecido.

Rocha Barros — Gostaríamos de ter uma idéia de sua pesquisa atual.

D. Bohm — A linha mestra do meu trabalho é a implicate order4 4 ) Á palavra inglesa implicate, como adjetivo, significa implícito e, como verbo, significa implicar, envolver, embaraçar, etc. Bohm a usa no sentido etimológico da palavra latina implicare que significa dobrar para dentro (embrulhar). A melhor tradução para a expressão implicou order talvez seja ordem implícita, pois, segundo Bohm, as dobras vão se desdobrar, vão se explicitar e a implicou order passa para a explicate order. Como ele próprio observa, exemplificando com a imagem de televisão, esta é convertida numa ordem temporal que é transportada pelas ondas hertzianas. Estas ondas transportam a imagem numa ontem implícita (implicate order). A função do receptor de TV é explicar ( explicate) ou explicitar esta ordem, isto é, desdobrá-la na forma de uma nova imagem visual. ( . Idéia que utilizo para melhor entender a Mecânica Quântica. Usei o holograma para exemplificar o que chamo de unfoldment e enfoldment5 5 ) Enfoldment é um substantivo que significa dobradura. Provém do verbo enfold ( envelopar, embrulhar dobrando, etc.). Unfoldment significa desdobramento. Provém do verbo unfotd ( desdobrar, desembrulhar, revelar, etc.). ( : em cada parte do holograma estão dobradas as ondas do objeto por inteiro, as quais são então desdobradas, quando se passa através deste holograma um feixe de raios laser, produzindo-se então uma imagem tridimensional6 6 ) Vide nota do editor. .

A função de Green descreve exatamente -esta dobradura (enfoldment) e este desdobramento (unfoldment) na Mecânica Quântica, e ilustrei isso com a idéia do movimento. Ao invés de pensarmos que os objetos estão se movendo através do espaço com identidade permanente, como no ponto de vista mecanicista, dizemos que tudo está basicamente se desdobrando. Como o holograma é estático, ele é apenas uma analogia muito limitada. O movimento real das ondas-partículas, como os elétrons, é um constante dobrar/desdobrar. A aparência de estabilidade é devida à rapidez com que isso acontece.

Isso tudo pode ser aplicado em dois níveis: num primeiro, ao elétron como partícula; num segundo, aplicado ao campo, e tem-se o que eu chamo de dois níveis de ordem implícita. Um é o que acabo de descrever, o campo constantemente se desdobrando em algo como uma partícula, que se dobra de novo em campo. O outro nível é o que eu chamo de super implicate order, que organiza a implicate order, mais ou menos como um programa de computador organiza uma imagem na televisão. Em princípio, isso poderia prosseguir, para níveis cada vez mais altos de implicate order.

Daí, decorre que as nossas idéias comuns de espaço e de tempo têm que derivar da implicate order, em vez de começarmos com elas pura e simplesmente.

Toda vez que mudamos nossas noções sobre o que é o processo físico básico, temos que modificar as propriedades do espaço e do tempo. Por exemplo, quando Einstein tomou o campo como entidade básica relativística (que é um invariante pela transformação de Lorentz), ele então teve de mudar as noções de espaço e tempo apropriadamente.

Do mesmo modo como a relatividade, tanto a especial como a geral, trata a gravitação e outras propriedades como manifestações de propriedades do espaço-tempo, expressas pelo campo, o que estou tentando afirmar é que as propriedades da Mecânica Quântica são manifestações de propriedades do espaço-tempo ainda mais profundas, que não devem ser consideradas como contínuas e mecânicas, mas que são realmente criadas, no sentido em que a matéria é constantemente criada.

Gostaria de falar também sobre o potencial quântico. Isso surgiu pela primeira vez em meu trabalho de 1951/52, quando estava explicando a Mecânica Quântica do elétron. O elétron é basicamente uma partícula, mas acompanhado de um certo campo quântico que satisfaz a equação de Schrödinger: pensava num novo tipo de campo. Este campo agia sobre a partícula por meio de um potencial quântico que tinha estranhas propriedades, e uma delas é que ele nem sempre diminuía com a distância, podia ser muito forte a grandes distâncias. Chamei a isto de não-localidade. Além do mais, o potencial quântico é uma função, não dos estados das partículas, mas determinada num espaço multidimensional a partir das propriedades do todo. As relações entre as partes derivam do todo; e o todo é, neste sentido, anterior às partes.

Quando a função de onda se decompõem em fatores, as várias partes têm um comportamento independente, porém, isto é só um aspecto contingente; de uma maneira geral, elas não são independentes e isto é fundamental em Física Clássica, onde as coisas só interagem em função de posições predeterminadas. Ora, mesmo que se tomasse um potencial de muitos corpos, com muitas partículas interagindo a longas distâncias, isto já seria um abandono parcial do mecanicismo; mas ainda não-fundamental, pois, o mecanicismo normalmente envolve interações de poucas partículas que se tornam desprezíveis a longa distância, ao passo que as interações a que estamos nos referindo envolvem muitas partículas e não se tornam desprezíveis a longa distância. Então há, aí, uma conexão muito mais forte entre coisas distantes. Mas a conexão propriamente dita, a sua forma, é determinada independentemente do estado das partículas. O que era uma idéia nova, sobre a relação entre o todo e suas partes, e muito mais dinâmica.

Em princípio, o universo inteiro determina cada uma de suas partes, o que é muito mais significativo do que na Física Clássica, na qual o efeito do universo pode ser desprezível e a forma da função entre as partículas é independente do todo.

O próximo passo foi aplicar esta idéia ao campo. Tomando-se todo o campo sobre o universo, ter-se-ia o que eu chamei de superpotencial quântico, que organizaria o campo em subtotalidades, que poderiam ser estáveis (num certo sentido, porque as equações para os campos seriam não-locais e não-lineares).

O potencial quântico, então, parece, à primeira vista, um retorno às velhas idéias clássicas e por isso foi criticado por Pauli e outros. Mas acho errado criticá-lo deste ponto de vista, pois foi necessário dar um passo atrás para dar outro à frente, pelo menos no que parecia ser um passo atrás.

Na Mecânica Quântica, da maneira como é usualmente apresentada, não sabemos do que realmente estamos falando. Para obter uma certa visão do seu significado, foi útil introduzir uma idéia que, à primeira vista, pareceu mecanicista, mas que, ao se examinar o potencial quântico e suas propriedades, na verdade nos afastava cada vez mais do mecanicismo e, em última instância, conduziu à implicate order.

Encarei isso como um movimento de idéias, da mesma forma como se considera o movimento da matéria de um estado para outro. Também o próprio pensamento tem de estar em movimento constante de uma idéia para outra. Não estou com isso pretendendo propor uma idéia que seja a grande verdade final, mas apenas dizendo que as idéias mudam. Passou-se do potencial quântico aplicado a uma partícula, depois a várias partículas, em seguida ao campo... À idéia se transformou lentamente chagando à implicate order.

Rocha Barros — E quanto à teoria dos Spinors, e à sua visão algébrica da realidade física?

D. Bohm — Isso também surgiu do meu contato com Mário Schenberg, que deu uma enorme contribuição a esse respeito. Pode-se ter uma visão da Mecânica Quântica Fermiônica e Bosônica através da Algebra, e Schenberg realizou essa ligação (outras pessoas tembém fizeram o mesmo, porém mais tarde). Para expressar a implicate order, trabalhamos numa continuação, numa extensão de idéias semelhantes. O que temos em mente não é meramente usar o spinor: estamos tentando obter uma imagem física do que o spinor significa, para compreender por que o meio-angulo é geométricamente mais significante do que o ângulo total de rotação. Também usamos a idéia de Penrose do twistor, que consideramos como um spinor expandido. O twistor é capaz não apenas de expressar rotações e transformações conformes; creio que o twistor pode nos levar às propriedades básicas do espaço, explicitando-as na forma de uma Álgebra Fermiônica.

O que está claro agora é que o twistor dá uma noção daquilo que chamei de tratamento algébrico da direção, que é fundamental e é muito mais simples do que o tratamento geométrico da trigonometría, realmente muito complicado.

A idéia da direção como propriedade algébrica linear é últil porque amarra as propriedades geométricas às propriedades quânticas. E, assim, podemos fazer a transformação de toda a Álgebra para a implicate order, de modo a dobrá-la numa estrutura que não se localizaria no espaço-tempo.

Precisamos dessa Álgebra para desenvolver nossas idéias sobre como desdobrar o espaço-tempo a partir da implicate order. Fazendo isso, podemos ter, por exemplo, um significado possível da equação de Dirac, que seria uma espécie de desvio das propriedades do espaço-tempo constituindo-se numa onda com propriedades geométricas. Seria uma espécie de tercedura (twisting) de certos elementos combinada com o movimento no espaço-tempo. Isso, talvez, elucidasse a questão da ausência ou presença da massa das partículas com a quiralidade (chirality) das mesmas.

Rocha Barros — E agora, prof. Bohm, algumas palavras em português para os amigos brasileiros e muito obrigado!

D. Bohm — Não estou acostumado a falar português, mas gosto muito. Quero mandar saudações a todos os meus muitos amigos no Brasil; dizer mais uma vez que tenho boas lembranças de meu tempo aí, e que talvez seja possível visitar o Brasil mais uma vez, no futuro.

Notas do entrevistador A. L. da Rocha Barros

(1) O holograma é formado pelo padrão de interferência produzido por dois feixes coerentes vindos de um laser, um dos quais é refletido pelo objeto A que está sendo hologramado. A imagem holográfica B é definida numa placa fotográfica, de modo que um objeto localizado não e representado por uma imagem localizada, pois qualquer porção da imagem holográfica contém em si a representação do objeto inteiro.

Neste caso, não temos a correspondência um-a-um da fotografia comum, mas uma correspondência muitos-a-um, que é adequadamente descrita por meio da junção de Green. Supondo que o objeto A é descrito pelo campo Á(x), então a estrutura local em cada ponto x do objeto A é transportada para a estrutura local da imagem B no ponto y por meio da função de Green G(x,y,) tal que

B(y) = G(x,y) A(x) d x

E, assim vemos que a contribuição para a imagem B (y) no ponto y vem da totalidade do objeto: a integral assegura que cada estrutura local da imagem contém a informação do objeto inteiro.

Vide:1) D. Bohm, "Wholeness and the Implicate Order", Routledge & Kegan Paul, London, 1981 pp. 145 e 160. 2) F. A. M. Frescura and B. J. Hiley, The Implicate Order, Algebras, and the Spinor, na revista "Foundations of Physics", vol. 10, n°s 1/2,1980, p. 9.

(2) Uma apreciação sobre o potencial quântico de Bohm na interpretação da Teoria Quântica, do ponto de vista da divulgação científica de alto nivel, pode ser encontrada nas entrevistas de Bohm e de seu colaborador Basil Hiley à BBC de Londres, publicadas pela Cambridge University Press, no livro "The Ghost in the Atom", edited by P. C. W. Davies and J. R. Brown, 1986.

(3) Um objeto possui quiralidade (em inglês,chirality ou handedness) se não é idêntico à sua imagem em um espelho plano. Por exemplo, a mão direita não coincide com a sua imagem no espelho. Pasteur, em 1848, observou que certos sais do ácido tartárico eram formados por dois tipos de cristais: um era a imagem especular do outro, e que a solução de um sal girava a luz polarizada no sentido horário e a do outro sal, no sentido anti-horário. E, na Academia Francesa de Ciências, fez uma grande conjectura: L 'Univers est dissymétrique. Uma partícula elementar, ao se mover ao longo do seu eixo do spin, adquire quiralidade. A descoberta de uma quiralidade preferencial, ou seja, da violação da paridade na Teoria das Partículas Elementares feita pelos físicos Lee e Yang, em 1956, confirma esta idéia de Pasteur.

(4) O spinor é um ente matemático que descreve a propriedade das partículas elementares denominada spin. Em termos matemáticos, é uma representação do grupo de rotações ou, de um modo mais geral, uma representação da Álgebra de Clifford. Schenberg relaciona a Álgebra de Clifford com outras álgebras geométricas, observando que a matéria, no nível atômico, ocupa o espaço de um modo muito sutil e assim fala numa Geometria Quântica com a qual procurou superar a separação, filosoficamente insatisfatória, das propriedades espaço-temporais da matéria de outras propriedades da mesma. (Vide A. L. da Rocha Barros,"Perspectiva em Física Teórica", p. 130, Edição do Instituto de Física da USP, 1987).

Alberto Luiz da Rocha Barros, professor do Instituto de Física/USP e membro do Conselho Editorial do IEA.

  • *
    Entrevista com o prof. David Bohm, realizada pelo prof. Alberto Luiz da Rocha Barros, do Instituto de Física da USP, em 8/março/83, no Birkbeck College, University of London.
    (
  • 1
    ) D. Bohm, R. Schiller and J. Tiomno, Nuovo Cimento 1, Supp., 1955, p. 48.
    (
  • 2
    ) D. Bohm and W. Schützer, Nuovo Cimento 2, Supp. 4, 1955, p. 1004-1047.
    (
  • 3
    ) Vid. D. Bohm, On Creativity, Leonardo, vol. 1, pp. 137-149, Pergamon Press, 1968, Printed in Great Britain.
    (
  • 4
    ) Á palavra inglesa
    implicate, como adjetivo, significa
    implícito e, como verbo, significa
    implicar, envolver, embaraçar, etc. Bohm a usa no sentido etimológico da palavra latina
    implicare que significa
    dobrar para dentro (embrulhar). A melhor tradução para a expressão
    implicou order talvez seja
    ordem implícita, pois, segundo Bohm, as dobras vão se desdobrar, vão se explicitar e a
    implicou order passa para a
    explicate order. Como ele próprio observa, exemplificando com a imagem de televisão, esta é convertida numa ordem temporal que é transportada pelas ondas hertzianas. Estas ondas transportam a imagem numa
    ontem implícita (implicate order). A função do receptor de TV é explicar (
    explicate) ou explicitar esta ordem, isto é, desdobrá-la na forma de uma nova imagem visual.
    (
  • 5
    )
    Enfoldment é um substantivo que significa
    dobradura. Provém do verbo
    enfold (
    envelopar, embrulhar dobrando, etc.).
    Unfoldment significa
    desdobramento. Provém do verbo
    unfotd (
    desdobrar, desembrulhar, revelar, etc.).
    (
  • 6
    ) Vide nota do editor.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Mar 2006
    • Data do Fascículo
      Abr 1990
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