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Círculos sempre crescentes

DEPOIMENTO

Círculos sempre crescentes

Crodowaldo Pavan; Marco Antônio Coelho

A cada dia aumentam as angústias da intelectualidade mundial com os avanços e as aplicações da Ciência. No Brasil, além disso, causa-nos preocupação as dificuldades da comunidade científica em obter recursos para desenvolver toda sua potencialidade na geração de conhecimentos, assim como na aplicação dos conhecimentos produzidos aqui e em outras partes do mundo.

Reconhecendo a grande importância dos avanços da Ciência, quando bem aplicados, estamos cada vez mais perplexos com os destinos da Humanidade e com a forma pela qual no futuro os cientistas irão se comportar nos laboratórios e fora deles. Como temos certeza que o Brasil, a médio e a longo prazo, poderá dar uma significativa contribuição à Ciência, é primordial orientar os jovens para um tipo de trabalho científico que realmente coloque à disposição de nosso país e de seus habitantes o melhor que a Ciência possa produzir.

Para que o trabalho científico realmente auxilie o progresso da nação brasileira é básico que, além da produção científica de primeira classe, nossos pesquisadores (ou, pelo menos, os mais qualificados para as atividades de divulgação científica) proporcionem à sociedade uma compreensão justa sobre o papel da Ciência no atual contexto do Brasil.

Como a experiência indica que, para se tentar orientar os jovens, nada é mais útil que relembrar lições extraídas do comportamento de personalidades marcantes, fazemos aqui um apanhado sobre as atividades do prof. José Reis — um brasileiro que, como poucos, pela sua notável capacidade intelectual e não menos idealismo, tem dado a várias gerações de brasileiros o que de melhor alguém pode fazer pela Ciência e pelo seu país.

A trajetória do prof. José Reis é algo invulgar entre nós, pelos múltiplos afazeres em que se envolveu desde a mocidade, como cientista, educador e servidor público. Sua qualificação como cientista foi excepcional. No Rio de Janeiro, fez o ginasial no Colégio Pedro II, onde obteve o prêmio "Pantheon", conferido aos alunos que realizavam todo o curso com distinção. Graduou-se na Faculdade Nacional de Medicina e no Instituto Oswaldo Cruz, especializando-se em microbiologia e em outras matérias básicas dos estudos de patologia, além de haver seguido cursos especiais, sendo que um deles ministrado por André Dreyfus.

Em Manguinhos, recebeu o prêmio Oswaldo Cruz. Por ter sido o primeiro classificado no Curso de Aplicação daquele centro de pesquisa, em 1929 foi convidado a trabalhar no Instituto Biológico de São Paulo, como bacteriologista. Nos anos 35 e 36, como bolsista, estagiou no Instituto Rockefeller, nos Estados Unidos, estudando ali métodos para a pesquisa de vírus.

No Biológico, desempenhou inúmeras funções como pesquisador e administrador. Ao se aposentar em 1958, foi agraciado com o título de "Servidor Emérito". Trabalhando na fase áurea do Biológico, Reis deu valiosas contribuições em diversas áreas da patologia, particularmente sobre doenças que dizimavam a avicultura. Disso resultaram notáveis publicações, como seu clássico Tratado de Ornipatologia.

Ao relembrar esse período, fazendo questão de salientar a influência de Henrique da Rocha Lima, Reis fornece elementos para se entender sua formação como cientista. "Rocha Lima ensinou-me, pelo convívio diário tanto nas horas alegres quanto nas de apreensão ou decepção, a procurar na Ciência mais do que ela pode em geral oferecer para satisfação espiritual e realização humana. Com ele aprendi a filosofia mais profunda da Ciência, sua arte e administração. Aprendi a tolerância e o desejo de, pelo respeito e cultivo de outros valores além dos científicos, buscar, na medida das minhas forças, o limiar da sabedoria. Seu exemplo convenceu-me da necessidade e do valor da comunicação na Ciência e fora dela. Dele aprendi, enfim, a viver ou procurar fazê-lo, como no verso de Rilke, 'em círculos crescentes'."

No Biológico, Reis compreendeu que não podia se limitar às pesquisas nas bancadas do laboratório, pois se viu impelido a transmitir seus conhecimentos aos agricultores e criadores. Ele nos conta "...o trabalho de divulgação foi avultando aos poucos em minha vida. A princípio era a divulgação feita em folhetos e artigos em seções de jornais, ou em revistas de agricultura de larga circulação, mas principalmente em muitas viagens, onde muitas vezes falei para japoneses recém-chegados, que precisavam de intérpretes... Corri o Estado de São Paulo inteiro, em todas as direções, de trem ou de automóvel e vi, nascentes, muitas cidades que hoje são metrópoles do interior".

De lá para cá Reis tornou-se o grande batalhador pela difusão da Ciência em nosso país. Em 1977 um levantamento indicou que ele já havia publicado mais de 5 mil artigos de divulgação científica em jornais, revistas e enciclopédias. Hoje, esse número seguramente é muito maior, porque embora adoentado Reis continua mantendo sua produção de artigos, especialmente no caderno Ciência, semanal, da "Folha de S. Paulo".

Seguindo por caminhos novos na arte de comunicação social, Reis usou desde as radionovelas até romances para crianças e jovens, bem como folhetos destinados à população rural. E abriu e manteve outro "círculo crescente" como editor e tradutor de obras científicas estrangeiras.

Virou rotina em sua vida ter contato direto com o público, especialmente com a juventude, criando e fomentando feiras e clubes de Ciência, além de incentivar iniciativas como "Cientistas de Amanhã" e os Congressos de Jovens Cientistas. E emociona a todos seu empenho em participar de qualquer evento em longínquas cidades do Interior ou na periferia da Capital de São Paulo. Deixou de ir ao México, onde deveria receber um prêmio de jornalismo, para "comparecer a uma pequena e ainda vacilante feira de Ciência na pobre cidade de Taquarituba".

Incansável, assim justifica sua irrequieta e permanente atuação como propagandista da Ciência: "a divulgação envolve para mim dois dos maiores prazeres da vida: aprender e repartir". Tudo porque, acrescentou, "não desejei ser um cientista preso ao laboratório, de janelas fechadas para a realidade...".

Em razão disso, recebeu diversas láureas, como o Prêmio Internacional Kalinga de Divulgação Científica, outorgado pela UNESCO; o Prêmio Governador de São Paulo de Jornalismo Científico e o Prêmio John R. Reitmeyer, concedido pela Sociedade Interamericana de Imprensa e pela União Panamericana de Imprensa. Igualmente por isso, o CNPq criou o Prêmio José Reis de Jornalismo Científico, concedido todos os anos aos que se destacam seguindo as lições que emergem da vida e da obra do prof. José Reis.

Outro aspecto marcante da sua trajetória é o seu trabalho para aglutinar a comunidade científica no Brasil. Elemento atuante em várias sociedades científicas, Reis foi um dos principais organizadores da SBPC, em 1948, com Maurício Rocha e Silva, Jorge Americano, Gastão Rosenfeld, Paulo Sawaya, entre outros. Agora, como um de seus presidentes de honra, Reis vê como a SBPC presta imenso serviço à Ciência e ao Brasil. Diz ele: "A Sociedade se fundou com objetivos bem definidos, que não mudaram até hoje. Queríamos congregar os cientistas do Brasil inteiro, e reunir todos os setores de pesquisa, dando à palavra Ciência uma extensão muito grande e para o cientista uma consciência do papel social da Ciência, que ele mais ou menos não tinha, e da sua responsabilidade social. Porque vivíamos isolados, cada um cuidando de seu 'brinquedo', daquilo que lhe interessava no momento, sem a noção da Ciência como um todo, do trabalho geral de interesse máximo para o País".

O que pode explicar sua atividade tão útil à Ciência e ao Brasil? Qual a razão de um trabalho tão sério, fecundo e polifacético, que verdadeiramente demanda a dedicação de equipes de pessoas, mas que resulta apenas só do esforço individual desse cientista e educador?

A resposta encontra-se em outro trecho de seu depoimento. Escreveu ele: "As palavras de Rilke que escrevi no início de meu currículo... procuraram justificar antecipadamente a aparente falta de unidade em minha carreira. Essa unidade, porém, eu sinto que existe. Não é a unidade de uma linha reta de quem segue a mesma trilha de pesquisa do começo ao fim, mas é a unidade dos círculos crescentes que me leva a procurar implicações cada vez maiores para o próprio conhecimento que vou adquirindo. Talvez tivesse feito mais seguindo outro caminho, mas tenho pelo menos a impressão de que semeei mais procedendo como procedi, sempre dentro de convicções muito arraigadas...".

Tais convicções ele as resume em três pontos: 1- ideal de serviço público; 2- ideal de objetivos nacionais, sem negar a universalidade da Ciência e dos fins da educação; e 3- ideal de mobilização, "que me impele a sempre levar ao público o resultado da pesquisa e do conhecimento que adquiro, na esperança de assim conseguir acelerar forças que por muitos motivos agem de maneira demasiadamente lenta para um país que precisa crescer e cresce".

Fazendo do amor à Ciência a razão de sua vida, José Reis é acima de tudo um humanista. Por isso alerta a todos os cientistas para estarem atentos "aos problemas criados pela má aplicação das conquistas científicas, à dominação da Ciência pelos que buscam objetivos menores do que o bem-estar coletivo, aos desequilíbrios que clamam por uma ordem internacional, proposta pelas Nações Unidas e sempre indicada pela UNESCO".

Por tudo isso o prof. José Reis indica-nos que todos devemos estar vigilantes em torno de duas questões:

Primeiro, para que a Ciência encontre crescente apoio e compreensão dos governantes e do povo, no qual aqueles se apoiam e do qual formalmente nascem.

Segundo, para que o cientista não fuja à responsabilidade fundamental que aceitou ao abraçar sua carreira num mundo cuja felicidade tanto depende dele.

Bibliografia

Memorial-currículo de José Reis, encaminhado à UNESCO para justificar a proposição de seu nome ao Prêmio Kalinga;

Texto da "Folha da Manhã", de 15/8/58, intitulado J. Reis, uma vida dedicada à divulgação da Ciência;

Texto da "Folha de S. Paulo", de 31/3/77, intitulado José Reis recebe prêmio da UNESCO; "Ciência Hoje", julho/agosto de 1982, pág. 78.

Crodowaldo Pavan é biólogo e professor emérito da USP e da Unicamp.

Marco Antônio Coelho é jornalista do IEA-USP e do CNPq.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Fev 2006
  • Data do Fascículo
    Ago 1991
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