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A Alegoria em Matemática

Resumos

A caracterização do estilo no texto matemático e a similaridade dos papéis desempenhados por Metáforas, Alegorias e Modelos no estabelecimento de pontes entre diferentes campos semânticos são o ponto de partida para o exame da presença de construções alegóricas no ensino de Matemática. Diversos exemplos são analisados, sugerindo-se a essencialidade do recurso a tais construções e concluindo-se que a permanente transição entre os sentidos literal e figurado é o motor dos processos criativos nas Ciências e na Matemática, como na Língua.


The characterization of style in mathematical texts and the similarity of functions performed by metaphors, allegories and models as links between distinct semantic fields are the start point in examining the presence of allegoric constructions in mathematical teaching. Several examples are analysed, suggesting the essentiality of making use of such constructions and concluding that the permanent transition between the literal and the figurative senses is the motor of creative processes in Science and Mathematics, as in Language.


ARTIGOS

A Alegoria em Matemática

Nílson José Machado

RESUMO

A caracterização do estilo no texto matemático e a similaridade dos papéis desempenhados por Metáforas, Alegorias e Modelos no estabelecimento de pontes entre diferentes campos semânticos são o ponto de partida para o exame da presença de construções alegóricas no ensino de Matemática. Diversos exemplos são analisados, sugerindo-se a essencialidade do recurso a tais construções e concluindo-se que a permanente transição entre os sentidos literal e figurado é o motor dos processos criativos nas Ciências e na Matemática, como na Língua.

ABSTRACT

The characterization of style in mathematical texts and the similarity of functions performed by metaphors, allegories and models as links between distinct semantic fields are the start point in examining the presence of allegoric constructions in mathematical teaching. Several examples are analysed, suggesting the essentiality of making use of such constructions and concluding that the permanent transition between the literal and the figurative senses is the motor of creative processes in Science and Mathematics, as in Language.

É muito freqüente, em relação à Matemática, associar-se à sua linguagem características putativas como as de exatidão e monossemia, bem como uma ausência ou minimização nas conotações ou de valores de estilo. Essas características seriam, então, elementos fundamentais para uma diferenciação categórica entre a linguagem matemática e a língua corrente, onde pululam ambigüidades, é permanente a ingerência do contexto sobre o texto e são determinantes as qualidades de estilo.

Apesar da aparente hegemonia, há muito mais adesões acríticas a tais pontos de vista do que uma franca discussão a esse respeito. Aqui e ali se encontram trabalhos diretamente relacionados ao tema, como são Filosofia do Estilo, de Gilles-Gaston Granger (Granger, 1974) ou Introducción al estilo matemático, de Javier de Lorenzo (Lorenzo, 1989). No primeiro, após uma série de considerações sobre uma estilística geral, com o estabelecimento das bases de urna estilística da prática científica, o autor examina o papel do estilo na construção do objeto matemático. Assim, são examinados sucessivamente o Estilo Euclidiano, o Estilo Cartesiano, o Estilo Arguesiano, o Estilo Vetoriai, e a percuciência das análises não deixa margem a dúvidas quanto à pertinência das questões tratadas. No segundo, após um exame cuidadoso das características da linguagem matemática, são também identificadas certas categorias de estilo como o Estilo Operacional, o Estilo Formal, ou o Estilo dos Indivisíveis. Em ambos os casos, a Matemática é tratada de uma forma não estereotipada, com o delineamento de suas características básicas sem um atrelamento compulsório de idéias preconcebidas como as inicialmente citadas.

Neste trabalho, examinaremos uma questão que tangencia temas como os acima referidos, estando neles presente, ainda que em forma potencial: trata-se de evidenciar que a Metáfora, uma figura de retórica que predomina na linguagem poética, mas que é importante, de uma maneira geral, na caracterização do Estilo, é um instrumento essencial aos que se dedicam à Matemática, sobretudo ao seu ensino. Incluindo as Alegorias, enquanto Metáforas continuadas ou como cadeias de Metáforas, mostraremos que a presença do sentido figurado em contextos matemáticos, se não é a regra, nem de longe constitui exceção, podendo exercer relevantes funções no desempenho de tarefas docentes. Nossa expectativa é a de que, ao final da leitura, mais do que alertados para a importância da Alegoria, estejamos motivados para a exploração deste recurso da retórica como instrumento para o ensino de Matemática.

Metáforas, Alegorias, Modelos

É quase impossível começar a discorrer sobre a Metáfora sem ter Aristóteles como ponto de partida. Para o estagirita, a Metáfora consiste em dar a uma coisa o nome de outra coisa, produzindo-se como que uma transferência de significados, com base na analogia ou na semelhança. E o que ocorre quando afirmamos que o jogador X é um leão, que a secretária, do senhor Y é um doce, ou que o governo fechou as torneiras do Banco Central. Etimológicamente, a palavra Metáfora deriva das palavras gregas metá (trans, além de) e phérein (levar, transportar).

Outras concepções podem contribuir para a compreensão do significado e da função desempenhados pela Metáfora no discurso. Segundo o lingüista Richards, co-autor, juntamente com Ogden, de um texto clássico sobre o significado (Ogden/Richards, 1938),

"A metáfora é fundamentalmente um préstimo mútuo entre pensamentos, uma transação entre contextos, uma cooperação entre idéias".

O escritor argentino Jorge Luís Borges tenta traduzir metaforicamente o significado da Metáfora, quando afirma que ela é

"uma simpatia secreta entre conceitos" (Borges, 1974).

De um modo um pouco mais técnico, ainda que igualmente esclarecedor, Herbert Read apresenta a Metáfora como

"a síntese de várias unidades de observação em uma imagem dominante; é a expressão de uma idéia complexa não pela análise ou por formulações abstratas, mas por uma percepção repentina de uma relação objetiva" (Apud Waldron, 1979).

Sem dúvida, o valor da Metáfora enquanto instrumento literário é amplamente reconhecido, sendo inteiramente dispensáveis ou impertinentes considerações a respeito, sobretudo oriundas de um professor interessado no ensino de Matemática. Não resistimos, porém, à transcrição de um pequeno poema de Orides Ponteia (Ponteia, 1988), onde a utilização desse instrumento se faz com notável maestria:

É, no entanto, fora do âmbito literário que nos interessa evidenciar a relevância da Metáfora e, mais particularmente ainda, a função que pode desempenhar no seio do pensamento matemático.

Com relação ao desenvolvimento do raciocínio, à concatenação de idéias nas pessoas em geral, Marvin Minsky, professor e pesquisador do MIT nas áreas de Teoria Matemática da Computação, Inteligência Artificial e Robótica, afirma em seu instigante livro A sociedade da mente (Minsky, 1989):

"Nossas melhores idéias são, quase sempre, aquelas que transpõem dois mundos diversos"

ou, complementarmente:

"Muitas das boas idéias são, na realidade, duas idéias numa só — o que forma uma ponte entre duas esferas do pensamento ou diferentes pontos de vista"

ou ainda:

"Entre nossas mais poderosas maneiras de raciocinar encontram-se aquelas que nos permitem juntar coisas que aprendemos em diferentes contextos".

Ora, é precisamente no estabelecimento de pontes entre diferentes contextos, na iluminação de relações estruturais que subjazem, a despeito da diversidade dos campos semânticos, que a Metáfora afigura-se como instrumento fundamental.

Especialmente quando se trata de aproximar dois contextos, um dos quais se apresenta mais familiar, em termos de percepção das relações constitutivas, enquanto o outro afigura-se como o novo, onde se busca o estabelecimento de relações germinais, ou o inacessível à experiência direta, onde as relações precisam ser instauradas pela imaginação, a Metáfora emerge como um poderoso instrumento para a construção analógica de pontes entre os temas considerados. Nesse sentido, a Metáfora ocupa lugar de destaque no discurso religioso, através das parábolas; no discurso da propaganda, através da exploração de relações analógicas convenientes; na imprensa escrita, em momentos onde há a emergência do novo; na poesia, onde a palavra é essencialmente fundadora e as imagens são fundamentais. No mesmo sentido parece caminhar a Matemática, na medida em que seus objetos constituem talvez as pontes mais radicais entre os contextos mais díspares: entre 3 abacaxis, 3 aviões ou 3x, transita o número 3; analogamente, o conceito de anel estabelece fecundas e significativas pontes entre coleções tão distintas quanto o conjunto dos números inteiros, o conjunto dos polinômios ou o conjunto das matrizes quadradas; é ainda do mesmo tipo a identificação do conjunto das soluções de uma equação diferencial linear de 2ª ordem com um espaço vetorial de dimensão 2.

Poder-se-ia contrapor, neste ponto, a estabilidade de tais construções matemáticas com a aparente volubilidade das pontes metafóricas. Afinal, as Metáforas, mesmo as mais eficazes, iluminam com a fugacidade de um relâmpago, enquanto os objetos matemáticos, mesmo os mais modestos, operam com a constância ou a tenacidade de uma lâmpada ou uma vela. Esta questão, sem dúvida pertinente, será deixada para um outro momento, para que não nos desviemos demais das metas que perseguimos. A este respeito, no entanto, tendemos a concordar com Octavio Paz quando, em O monogramático (Paz, 1988), ao indagar sobre o sentido da linguagem, sobre o jogo de correspondências entre idéia e verbo, palavras e percepções, afirma peremptório: "a fixidez é sempre momentânea".

Na ante-sala de questões como as que acabamos de citar, continuemos com a construção do quadro de referência a partir do qual discutiremos a função da Alegoria na compreensão da Matemática e em seu ensino.

A Alegoria é uma construção que tem Metáforas como tijolos. Etimológicamente, a palavra é derivada das palavras gregas allós (outro) e agourein (falar). Numa fórmula sintética, "a alegoria diz b para significar a" (Hansen, 1986). Trata-se, portanto, do engendramento de uma significação figurada, densa em relações, mas com as características básicas de uma Metáfora continuada ou de uma cadeia de Metáforas.

Tecnicamente, seria necessário distinguir as Alegorias das Fábulas, das Parábolas ou dos Mitos, na medida em que, cada qual a seu modo, todos apresentam como característica básica o sentido figurado em contraposição ao literal, as comparações implícitas tendo por base analogias ou relações estruturais. Não nos alongaremos a esse respeito, assim como não o fizemos na caracterização da Metáfora, que também comportaria uma abordagem técnica na distinção de seus parentes próximos como são a Metonímia, a Sinédoque, a Hipérbole ou a Catacrese, entre outros. Em todos os casos citados, o que permanece em tela como conteúdo relevante para a discussão que pretendemos é a contraposição entre os sentidos literal e metafórico, com a explicitação da importância do segundo na linguagem matemática ou no ensino de Matemática.

A despeito da publicação, em tempos recentes, de trabalhos matemáticos como os de P. J. FREYD e A. SCEDROV (Categories, Allegories, Amsterdam, North-Holland, 1990) onde a noção de Alegoria é desenvolvida de uma maneira técnica, enquanto objeto matemático, tal associação a muitos ainda pode parecer insólita. Outras conotações parecem sedimentar a noção de Modelo, quando nos restringimos ao seu uso mais comum. A associação quase automática entre as palavras modelo e matemático, ou entre modelo e teórico são sintomas da caracterização de uma aura mais técnica ou de uma maior respeitabilidade científica para os Modelos. Em seu Modelos y metáforas (Black, 1966), Max Black, no entanto, aproxima decisivamente as duas noções, transformando-se em referência obrigatória para todos os que perquirem tais terrenos. Segundo Black,

"Falar de 'modelos' em relação a uma teoria científica tem já certo sabor de metáfora: se nos fosse pedido apresentar um exemplo perfeitamente claro e indiscutível de modelo no sentido literal desta palavra, nenhum de nós, segundo me parece, pensaria em falar do modelo atômico de Bohr, nem do keynesiano de um sistema econômico".

No mesmo sentido também caminha Petrie, em Metaphor and learning (Pétrie, 1979), quando afirma que:

"Analogias, modelos e soluções de problemas exemplares também desempenham algumas vezes funções muito similares às da metáfora".

Corroborando tais pontos de vista, Turbayne afirma em El mito de la metáfora (Turbayne, 1974):

"As metáforas podem apoiar-se em sistemas de deduções especialmente construídas, assim como em lugares comuns aceitos; nesse caso, chamam-se modelos".

Neste ponto, no entanto, urge que estabeleçamos algumas distinções mínimas, para que o quadro de referência esboçado não resulte em mero amálgama de manchas. Recorrendo ainda a Turbayne, destacamos que, embora a Fábula, a Parábola, a Alegoria sejam, como o Modelo, Metáforas estendidas, continuadas, não sendo exatamente o que aparentam,

"Diferentemente do modelo, a fábula, a parábola e a alegoria estão destinadas a inculcar um comportamento melhor. Diferentemente do mito, que cresce como uma árvore, a fábula, a parábola e a alegoria são invenções deliberadas".

Complementarmente,

"no caso da fábula, o autor explicitamente revela a presença da metáfora, em uma declaração de um tipo superior, que pode surgir repentinamente no final. Nos outros casos, o usual é deixar que o público dê sua própria interpretação. No mito, esta se deixa para a posteridade".

Além disso, as Fábulas estão usualmente associadas a discursos morais, enquanto as Alegorias podem extrapolar o discurso argumentativo ou os limites do verbal, assumindo formas múltiplas como a pintura, a escultura ou a pantomima.

Resumidamente, no entanto, enfeixaremos nossas considerações sobre a presença e a importância do sentido figurado em Matemática, destacando genericamente a Alegoria como elemento mais abrangente nesse quadro de referência. Embora os Modelos não se situem muito distantes das questões ou dos exemplos discutidos, deixaremos tal aproximação para um outro momento, remetendo o leitor para o livro de Max Black, anteriormente referido.

Passemos, então, a explicitar a presença do pensamento figurado em Matemática, sob a forma de iluminadoras Metáforas ou de sugestivas Alegorias, tendo em vista o relevante papel que tais instrumentos podem desempenhar no exercício da função docente.

Alegorias no ensino de Matemática

1 Uso alegórico de expressões matemáticas

Na utilização cotidiana da língua corrente, termos ou expressões da linguagem matemática são freqüentemente utilizados em sentido figurado. Em uma discussão pode-se, por exemplo, concitar as partes a chegar a um "denominador comum". Fala-se com naturalidade de "perdas incalculáveis", em "sair pela tangente", em "retidão de caráter" , em "ver de um outro ângulo", no "x da questão", ou ainda, na enigmática expressão "provar por a+b".

Por outro lado, ao empregar ferramentas matemáticas em outras áreas do conhecimento, como, por exemplo, na Psicologia, são comuns e inevitáveis os sentidos metafóricos. Em seu Princípios de psicologia topológica (Lewin, 1973), Kurt Lewin refere-se seguidamente ao "espaço vital", a "regiões do inconsciente", com destaque para suas "fronteiras" ou para as que são "abertas" em sentido topológico. Mais recentemente, encontram-se em Lacan seguidas referências ao "plano projetivo", ou aos "nós borromeanos", além de estarem presentes o "toro" ou a "faixa de Möebius", sempre representando relações de natureza psicológica. Também Lévi-Strauss, em A oleira ciumenta (São Paulo, Brasiliense, 1986) fala de "mitos em garrafas de Klein".

Não pretendemos, aqui, examinar a presença das Metáforas envolvendo objetos matemáticos nos dois sentidos anteriormente referidos, mas sim no caso em que elas são concebidas e as Alegorias arquitetadas tendo em vista a compreensão ou o ensino da própria Matemática.

2 A Função como uma Máquina

É o que ocorre, por exemplo, quando imaginamos que uma função y = f(x) é uma máquina onde os elementos x são transformados nas imagens correspondentes f(x); o processo de transformação é determinado pela lei de correspondência.

Tal modo metafórico de conceber-se uma função pode-se constituir em interessante recurso para uma compreensão efetiva da determinação da função inversa de uma dada função y = f (x), em vez das técnicas usuais onde o y é substituído por x (e vice-versa), sendo depois explicitado. Em vez disso, pode-se imaginar a função g(x), inversa de f(x), como sendo uma máquina que executa as operações inversas das correspondentes em f (x), na seqüência inversa, quer dizer, de trás para diante.

Também no caso da composição de funções, a imagem da associação de máquinas pode resultar significativa e esclarecedora. Para destacar o fato de que tais recursos não podem ser considerados apenas eventualmente apropriados para uma abordagem do tema com crianças ou adolescentes, reproduzimos a seguir a página relativa ao tema extraído de um texto didático destinado ao ensino universitário (Bishir/Drewes, 1970):

"Still another way of visualizing a function is as a machine or system which accepts elements of D(f) as inputs and which produces corresponding elements of R(f) as outputs. If we insert an element a Î D(f) into the system, the corresponding value f(a) comes out. If another element c ÎD(f) is inserted, we obtain another (not necessarily different) value f(c). If we try to insert something not contained in the domain of f, it is rejected, for f operates only on elements belonging to its domain. Interpreting a function in this way makes clear the distinction between a function (the machine) and its values (outputs of the machine). A function should no more be confused with its values than a vending machine should be confused with a soft drink".

Assim, independentemente do nível de tratamento, a fecundidade da associação função-máquina subsiste intacta. Um indício interessante dessa fecundidade é a própria metametáfora que se apresenta na última frase do texto do exemplo supra-referido.

3 O Hotel Natural

Examinemos agora um outro exemplo onde pensar-se o conjunto dos números naturais como um hotel engendra uma Alegoria que pode contribuir significativamente para que as idéias de Cantor (1845-1918) sobre uma aritmética transfinita resultem mais accessíveis a quem nelas se inicia. A história que se segue é devida ao matemático David Hubert (1862-1943), um dos expoentes do Formalismo, uma das três grandes correntes do pensamento matemático a partir da segunda metade do século XIX. Ela é descrita por Hans Freudenthal, um matemático holandês, em seu livro Perspectivas da matemática (Freudenthal, 1975).

"Certo hotel tem uma infinidade de quartos numerados: 1, 2, 3, ... Esse hotel está hoje completamente cheio. No fim da tarde, chega mais um hóspede. — Lotado — diz o porteiro. — Não importa — diz o gerente — o hóspede do quarto 1 passa para o 2, este do 2 vai para o 3, o do 3 para o 4 e assim por diante, de modo que o novo hóspede pode entrar no quarto 1, vazio.

Mais tarde, porém, chegam outros 1.000 novos hóspedes. — Lotado — diz o porteiro. — Não importa — diz o gerente — o hóspede do quarto 1 vai para o 1001, o do 2 para o 1002, e assim por diante e os novos hóspedes podem entrar livremente nos quartos de 1 a 1000.

Subitamente, aparecem pessoas em número infinito: senhores A1, A2, A3,... — Lotado — diz o porteiro. — Não importa — diz o gerente — nós mandamos o hóspede do quarto 1 para o quarto 2, o do quarto 2 para o 4, o do 3 para o 6, cada um para o quarto com o número dobrado, e então as pessoas A1, A2, A3... podem ser acomodadas como hóspedes nos quartos 1, 3, 5,..."

Naturalmente, com algumas adaptações, essa história pode ser utilizada para a compreensão do fato de o conjunto dos números racionais ser enumerável, como poderia sê-lo para a percepção da nao-enumerabilidade do conjunto dos números reais. É difícil negar-se seu valor no que se refere à dimensão retórica da linguagem. Dela, no entanto, não se pode afirmar: "é pura retórica!". Nela, a lógica e a retórica parecem caminhar harmoniosamente juntas.

4 A Cabra-Cega e os Irracionais

Ainda com relação à cardinalidade dos conjuntos dos racionais e dos irracionais, uma situação concreta, estruturada a partir de uma brincadeira infantil bastante conhecida — a cabra-cega — pode lançar um facho decisivo na comparação que se intenta.

Como se sabe, é muito maior a presença dos racionais nas atividades cotidianas, mesmo as escolares, onde os números irracionais surgem como casos excepcionais. Dentre eles, os transcendentes não parecem passar de três ou quatro exóticos exemplos. Assim, é natural que, a despeito das demonstrações formais de enumerabilidade ou não-enumerabilidade, estabeleça-se uma forte impressão de abundância dos racionais e de escassez de irracionais. Isso pode ser amplamente corrigido com o recurso à cabra-cega.

Imaginemos a reta real estendendo-se como um varal esticado horizontalmente, à altura de nossos olhos. Munidos de uma agulha de ponta bem fina e com os olhos vendados, espetemos um número ao acaso; terá sido ele racional ou irracional? Qual a probabilidade de ser racional? Qual a probabilidade de ser irracional? Explorando-se adequadamente tal "experiência de pensamento" ("gedanken-experiment", na expressão de Einstein), é possível construir-se uma ponte conseqüente que conduza da expectativa inicial da abundância dos racionais, a uma espécie de equilíbrio (instável) entre as duas cardinalidades, passando-se ao fato de que a probabilidade de o número na ponta da agulha ser irracional deve ser muito maior do que a de ser racional, e aportando-se, finalmente, na verdade inexorável: a probabilidade de o número espetado ser racional é zero; a probabilidade de ele ser irracional é um! Naturalmente, isso não significa que o número na agulha será sempre irracional, nunca racional; inferências desse tipo são válidas em espaços amostrais finitos mas não subsistem em quaisquer espaços. De fato, em linguagem comum, o que se pode afirmar é que quase sempre o número na agulha será irracional, quase nunca será racional.

Antes de continuar, destaquemos que os números irracionais podem ser algébricos ou transcendentes. Os irracionais algébricos têm, apesar de tudo, uma "boa origem", na medida em que são sempre raízes de alguma equação algébrica onde todos os coeficientes são números inteiros. Já no caso de um irracional transcendente, não existe equação algébrica com coeficientes inteiros que o tenha como raiz. São números "estranhos", como o O ou o O , ou alguns outros menos conhecidos e, de um modo geral, parecem constituir exceções no universo real.

Prosseguindo-se com a "experiência", imaginemos agora que, de olhos vendados, espetamos um número ao acaso e um observador externo informa-nos que esse número é irracional; será ele algébrico ou transcendente? Qual a probabilidade de o número irracional na agulha ser algébrico? Qual a probabilidade de ele ser transcendente? Novamente aqui, a despeito da aparente rarefação dos transcendentes, a resposta correta é: probabilidade zero para a ocorrência de um irracional algébrico; probabilidade um para a ocorrência de um irracional transcendente.

Assim, a experiência da cabra-cega pode, alegoricamente, servir de mote para a compreensão de um fato fundamental a respeito dos números reais, amplamente conhecido, mas freqüentemente situado bem longe da consciência imediata: apesar de, ao longo de toda a vida escolar, não termos contato senão com alguns poucos números transcendentes, quase todos os números reais são irracionais e quase todos os números irracionais são transcendentes.

5 Um quase-contra-exemplo: o Mágico Logarítmico

Em O poder da Matemática (Dienes, 1975), o Prof. Zoltan P. Dienes, bastante conhecido pelas transposições para a sala de aula de Matemática das idéias de Piaget sobre a psicogênese do conhecimento, explora intensamente as Alegorias como recurso pedagógico. Os princípios da "expressão múltipla" e do "contraste", que Dienes formula inicialmente, servem de base para a construção ao longo do texto de inúmeras "experiências de pensamento", muitas delas de natureza alegórica. Examinemos uns de seus exemplos: o do "Mágico Logarítmico":

"Um mágico habita um palácio circular no meio de uma cidade, que ele controla inteiramente. Pelos seus poderes mágicos ele supre todo o dinheiro que acha que as pessoas deveriam ter. Elas vivem em casas ao longo de avenidas que partem radialmente do palácio circular. As pessoas que habitam uma mesma casa recebem sempre a mesma quantia de dinheiro, de modo que tenham o mesmo padrão de vida e não fiquem com inveja umas das outras. Ao longo do lado direito das avenidas (vistas do palácio) há casas; há anexos pertencentes às casas ao longo do lado esquerdo; as avenidas são numeradas, como em Nova Iorque, 1ª Avenida, 2ª Avenida, 3ª Avenida, e assim por diante, aumentando os números das avenidas no sentido anti-horário, a partir da lª Avenida. As pessoas ricas moram de um lado da cidade — suas avenidas ocupam somente a metade da cidade, isto é, irradiam a partir somente da metade do palácio. No outro lado da cidade moram as pessoas mais pobres. As avenidas deste lado são numeradas com os mesmos números, sendo estas avenidas continuação da 2ª, 3ª, e outras avenidas do outro lado do palácio. Naturalmente há também uma primeira avenida na parte pobre, que é uma continuação da primeira avenida da parte rica.

Em cada avenida as pessoas das casas mais próximas ao palácio ganham diariamente uma quantia de 1 libra. Suas casas têm marcado sobre a porta o numeral zero, isto é, 0. Estas casas formam um círculo ao redor do palácio. As outras casas são numeradas 1, 2, 3, 4..., etc. à medida que se distanciam do palácio. Todas as outras pessoas nas casas da Primeira Avenida, quer na parte rica quer na pobre, também ganham uma quantia de 1 libra diariamente. Mas na Segunda Avenida, na parte rica, à medida que se distanciam do palácio, os ocupantes de cada casa ganham exatamente duas vezes tanto quanto os ocupantes da casa anterior. Portanto, o morador da casa n° 4 ganhará duas vezes a quantia daqueles que moram na casa nº 3. Na Terceira Avenida da parte rica as casas são ainda numeradas 1, 2, 3, 4..., etc. à medida que se afastam do palácio, mas desta vez cada ocupante de uma casa ganha três vezes o que ganha um ocupante da casa anterior. Na Avenida, os ocupantes das casas recebem quatro vezes tanto quanto os ocupantes da casa anterior e assim por diante para todas as avenidas.

Do lado pobre as casas sao numeradas com números negativos. A casa seguinte à casa-zero tem o número -1 em cada uma das avenidas, a casa seguinte é sempre -2, e assim por diante. Na Segunda Avenida, no lado pobre, à medida que alguém se afasta do palácio, os ocupantes das casas ganham metade daquilo que os ocupantes das casas anteriores obtiveram; na Terceira Avenida, um terço e assim por diante.

A todas as pessoas é atribuído um trabalho, e os olhos do mágico estão em toda parte durante o tempo todo, de modo que ele sabe se alguém executou devidamente ou não o trabalho do dia. O bom trabalho é recompensado, o mau trabalho é punido. Ele tem um sistema de rádio de modo que pode comunicar-se com qualquer pessoa em sua casa tão logo ela retorne do trabalho. Simplesmente tem que pronunciar as palavras mágicas e a recompensa ou punição instantaneamente acontece. Isto sempre toma a forma de uma alteração na quantia diária de dinheiro. Por exemplo:

Hocus 1 na 2ª Avenida significa dobrar a quantia

Hocus 2 na 2ª Avenida significa quadruplicar a quantia

Hocus 3 na 2ª Avenida significa multiplicar a quantia por 8

Hocus 4 na 2ª Avenida significa multiplicar a quantia por 16

Por outro lado:

Pocus 1 na 2ª Avenida significa a metade da quantia

Pocus 2 na 2ª Avenida significa dividir por 4 a quantia

e assim por diante.

De acordo com as regras da cidade, qualquer um que tenha sido sujeito a um 'hocus' ou a um 'pocus' tem que se mudar para outra casa na Avenida onde as pessoas estão ganhando a mesma quantidade de dinheiro.

Logo, tornar-se-á claro que no lado rico 'hocus x' significa que você se distancia x casas do palácio, enquanto 'pocus x' significa que você se move x casas em direção ao palácio. Portanto 'hocus' é uma recompensa e 'pocus' uma punição.

No lado pobre, por outro lado, um 'hocus' envolve movimento em direção ao palácio; e um 'pocus' leva o recebedor para longe do palácio. (Estas são contrapartes na estória das muito importantes relações matemáticas, e como as crianças trabalham através de estórias, devem tornar-se conscientes destas relações, primeiro como propriedades da estória e mais tarde como relações matemáticas puras.)

Incidentalmente, mesmo para alguém no lado rico, uma punição 'pocus' pesada poderia colocá-lo no lado pobre".

Este formidável exemplo desenvolve-se, pleno de pormenores, ao longo de pelo menos quinze páginas do texto de Dienes. A meta é a compreensão das propriedades operatórias com potências e logaritmos. Nesse caso, no entanto, muitas outras concepções são introjetadas, configurando uma situação onde os efeitos colaterais — negativos, no exemplo, sobrepujam os resultados pretendidos.

De fato, examinando com mais vagar a textura da Alegoria proposta, percebemos que a forma como a realidade concreta é apresentada traduz um modo bastante discutível de concebê-la, oscilando entre uma abordagem ingênua e um pensar ideologicamente comprometido.

Postula-se que existem ricos e existem pobres. A todos é atribuído um trabalho. E o desempenho que justifica a ascensão de uns, a queda de outros, desempenho este julgado pelo mágico, onipotente, onisciente, detentor do critério de verdade absoluta, capaz de manipular a realidade ao seu bel-prazer, instituindo regras, postulando novas exigências e mantendo o controle total de tudo e de todos, com "seus olhos que estão em toda parte". O dinheiro aparece como algo obtido por se ter agradado ao mágico, ou então de forma mágica, não se relacionando com o que se produz, com o seu significado econômico mais prosaico, como se sugere no trecho seguinte:

"Suponhamos agora que o mágico invente outra espécie de mágica. Decide chamá-la DIFERUS. Funciona da seguinte maneira: DIFERUS 1/2 significa que, esteja onde você estiver na Avenida 2 1/2, você se muda para a Terceira Avenida... Você não vai morar lá, apenas verificar quanto as pessoas daquela casa estão recebendo a mais que você. Então, tome duas vezes a diferença e este será o seu aumento de pagamento...".

Mesmo aos mais recalcitrantes à inserção da dimensão política no discurso matemático, não parece natural a caracterização da realidade da forma que o texto deixa transparecer, totalmente dependente dos caprichos de um mágico todo-poderoso.

Poder-se-ia argumentar que tais preocupações com efeitos colaterais indesejáveis assemelham-se a uma perquirição de chifres em cabeça de cavalo. O próprio Black, em Modelos e metáforas (ja citado anteriormente), ressalva que

"As metáforas subordinadas que uma metáfora implica são como os harmônicos de um acorde musical: conceder-lhes demasiado peso é o mesmo que fazer com que soem tão fortemente quanto as notas principais e igualmente desatinado".

É necessário, no entanto, que no engendramento da Alegoria o autor não dê margem a que as notas principais soem tão baixo- que corram o risco de serem confundidas, desatinadamente, com alguns harmônicos secundários, ou que alguns desses harmônicos possam soar tão alto que só prestemos atenção neles.

Alegorias sobre o Ensino de Matemática

Uma outra via através da qual o pensamento figurado pode servir de recurso pedagógico no ensino de Matemática é a das Parábolas, que se destinam a sugerir modificação global no comportamento, nas atitudes, nas concepções gerais relativas ao tema. Ainda que de passagem, examinemos dois exemplos.

1 A Parábola Cocotológica

Amor y pedagogia, é o título de uma interessante novela escrita na Espanha, no final do século XIX, por Miguel de Unamuno (Unamuno, 1989). Numa arguta reação a um Positivismo exacerbado que então grassava, superdimensionando a importância da Ciência, concebida em sentido demasiadamente estrito, o autor apresenta um personagem que resolve pautar sua vida "cientificamente" ; namora "cientificamente", casa "cientificamente", tem um filho "cientificamente", educa-o "cientificamente" etc., etc., etc. As conseqüências são previsíveis demais para que nos alonguemos em minúcias, ficando apenas registrado aqui o convite à leitura da obra de Unamuno. Nosso interesse na referência é decorrente do fato de que a referida novela apresenta um apêndice, com o título Apuntes para, um tratado de Cocotologia, cuja importância para o ensino de Matemática parece-nos extraordinária. Nele, o autor estabelece as bases de uma nova Ciência — a Cocotologia —, tratando com pormenores de seu estatuto, seus objetivos, seus métodos, das relações com as outras Ciências etc. A linguagem utilizada é cuidadosamente formal, pretensamente precisa, impregnada de termos técnicos, bem definidos e, após a leitura de umas poucas páginas, sedimenta-se uma sensação muito forte de respeitabilidade pelo tema, uma aparência de erudição, uma posição de reverência pela nova Ciência que se instaura.

Literalmente, a Cocotologia é a "Ciência" que trata da construção de passarinhos de papel, sempre a partir de um quadrado. Etimológicamente, a palavra é derivada de cocotte, palavra francesa com que as crianças se referem às aves em geral. Na construção dos cocottes, que podem ser machos, fêmeas, hermafroditas ou neutros, percorremos um caminho lingüístico que inclui "conceitos" como os de "óvulo quadrado papiráceo", "blastotetrágono", "endodermo", "ectodermo", "gástrula papirácea ", "núcleo tangrâmicof', "endocerco ", "mesocerco", "metacerco", "protópode", "mesópode", "metápode", "protocéfaio", "metacéfalo" etc.

Em sentido figurado, a Cocotologia é a "Ciência" que trata da transformação de uma banalidade em coisa de aparência séria, sobretudo através de uma sofisticação artificial e desnecessária da linguagem.

A construção da Cocotologia pode ter, para professores de Matemática, o significado de uma Parábola muito fecunda. De fato, os exageros na utilização de uma linguagem pretensamente técnica, supostamente precisa, exageradamente formal soem apresentar-se como uma efetiva fonte de dificuldades no ensino de Matemática. Quantas vezes já se terá insistido com crianças que apenas se iniciam nas idéias matemáticas na distinção precisa entre número e numeral, entre polígono e região poligonal? Quantas vezes já se terá tentado caracterizar nessa faixa etária uma relação de equivalência a partir das propriedades reflexiva, simétrica e transitiva, e não a partir de classificações onde, acacianamente equivaler quer dizer ter o mesmo valor? Quanta energia já se terá dispendido na distinção entre congruência e igualdade, na referência a segmentos, ângulos ou triângulos?

A nosso ver, nesses casos, o preço que se paga pela filigrana de precisão terminológica inclui um distanciamento muito além do desejável entre a língua corrente e a linguagem matemática. Corre-se o risco, em alguns casos, de tornar os termos utilizados em Matemática tão artificialmente sofisticados quanto os da linguagem cocotológica da construção de passarinhos de papel.

2 Os Fantasmas Axiomáticos

Para chamar a atenção com relação ao fato de que o tratamento matemático de um tema não se limita apenas à reapresentação do mesmo em linguagem matemática nem transforma automaticamente este tema em Matemática, examinaremos agora uma construção alegórica que pode ser explorada didaticamente como uma fecunda Parábola: trata-se da Teoria Axiomática dos fantasmas. Com a intenção acima referida, tal exemplo é apresentado por Mário Bunge, em La investigación científica (Bunge, 1983).

Teoria axiomática dos fantasmas

Noções primitivas

U é um conjunto de fantasmas; E é a energia fantasmal; d é a densidade ectoplasmática; t é a idade do fantasma; N é o número de perversidades realizadas pelo fantasma até o tempo t.

Axiomas

A1: Para todo x de U, a energia de x é diretamente proporcional à densidade do ectoplasma de x e inversamente proporcional à idade de x:

(t > 0, k1 = constante > 0)

A2: Para todo x de U, a densidade do ectoplasma de x é uma função do 1° grau do número de perversidades que x já realizou:

d = K2N + do

A3: Para todo x de U, o número médio de perversidades realizadas até o tempo t é constante:

Nmédio = K3

Teoremas mais interessantes

T1: De A1 e A2, pode-se concluir que

T2: De A3, segue que

N = K3t

T3: De T1 e T2, segue que

T4: De T3, pode-se concluir que quando t se aproxima do infinito, a energia tende a uma constante:

A partir de uma teoria assim apresentada, rapidamente muitos problemas podem ser formulados, ora sendo dados os valores de t, d, e N e pedido o valor de E, ora sendo dados t, d e E e pedido o valor de N etc. Pode-se pedir ainda, a partir de condições iniciais bem definidas, o valor da energia fantasmal no infinito, bem como o gráfico de E em função de t, e outras tecnicidades mais.

Pode-se perceber facilmente, no entanto, que o conhecimento a respeito de fantasmas não avançou um milímetro sequer, em decorrência de tal formulação teórica. Também parece claro que nem mesmo a resolução de uma extensa lista de exercícios relativos ao tema dará ao mesmo um sentido prático. De pouco adiantaria, ainda, apresentar previamente aos alunos um filme sobre fantasmas, como material concreto para ilustrar a aula. O tratamento dos fantasmas de modo axiomático, a despeito de matematicamente correto, permanece completamente vazio em termos de significado concreto. Tal como um bom número de temas, tratados em aulas de Matemática, nos diversos graus do Ensino.

Conclusão: o círculo literal-figurado

Nosso ponto de partida foi a contraposição muito freqüente entre a linguagem matemática, com o predomínio da denotação, da monossemia, do sentido literal, e a língua corrente, com as conotações, a polissemia, os sentidos figurados.

A meta pretendida era alertar para a importância das Metáforas, das Alegorias e, de uma maneira geral, dos sentidos figurados no Ensino de Matemática.

Intencionalmente, deixamos de lado tanto a utilização de termos ou expressões matemáticas na linguagem ordinária em sentido figurado, quanto o emprego de expressões do mesmo tipo em outras áreas do conhecimento, como a Psicologia, onde necessariamente estariam presentes os sentidos metafóricos.

Tratamos, então, exclusivamente, de apresentar exemplos de situações concebidas para o ensino da própria Matemática e examinamos tanto a utilização de Metáforas ou Alegorias arquitetadas para facilitar a aproximação de determinados assuntos quanto Parábolas destinadas a servir de alerta com relação a certos desvios na docência que conduzem a abusos no formalismo ou na linguagem. Especialmente se nos abríssemos às Ciências em geral, os exemplos poderiam ser facilmente multiplicados: o Paradoxo de Russell, o Demônio de Maxwell, o Gato de Schrõendinger, a Função de Sísifo, a Razão Áurea etc.

O próprio terreno da Epistemologia revela-se especialmente fecundo para a semente metafórica. Quando Granger, em Filosofia do Estilo, compara os estilos cartesiano e arguesiano, examinando as linguagens utilizadas por Descartes e Desargues em seus trabalhos sobre Geometria — escritos no mesmo país, na mesma época, submetidos, portanto, a influências externas razoavelmente similares —, ele caracteriza a linguagem cartesiana como direta, literal, enquanto a arguesiana seria impregnada de Metáforas. Não há referências, na arguta análise grangeriana, a um fato notável, que nos parece decisivo para uma apreciação adequada da ausência de Metáforas no texto cartesiano: a Geometria cartesiana é um dos três apêndices de O Discurso do Método, em que o autor visava a uma ilustração de seu método para " bem conduzir a própria razão e procurar a verdade nas ciências". Quando, no entanto, examinamos o texto de O Discurso, encontramos, apenas nas dez páginas iniciais, mais de trinta Metáforas, algumas delas absolutamente fundamentais na obra cartesiana. Considerando-se, portanto, O Discurso e seu apêndice conjuntamente, as Metáforas não seriam características distintivas entre Descartes e Desargues. Uma análise mais cuidadosa desse ponto mereceria todo um ensaio e não apenas algumas linhas. Fica aqui apenas o registro de um indício de uma possível inevitabilidade do recurso à Metáfora, mesmo em textos que intencionalmente procuram evitá-la.

Ainda no que se refere à justificação do conhecimento, o denso trabalho de K. R. Poper, Conhecimento objetivo, (São Paulo, EDUSP, 1975), fornece novos indícios da inevitabilidade do recurso à Metáfora: a despeito do teor da obra, algumas de suas páginas mais brilhantes têm como título "De nuvens e relógios" e tratam, metaforicamente, da racionalidade e da liberdade do homem.

Para continuar nessa direção, no entanto, seria necessário que examinássemos com mais vagar o caráter essencial — e sem trocadilhos —, a função e os limites do pensamento figurado no ensino de Matemática e nas Ciências. Seria necessário aprofundar, então, a caracterização do pensamento figurado como o protocientífico, a caminho do científico, ou situá-lo na linha de frente da Pesquisa, como o recurso fundamental para a compreensão do novo. Naturalmente, o ou acima não é exclusivo. Quando Max Black afirma que

"Talvez toda ciência tenha que começar com metáforas e terminar com álgebra; e é possível que sem a metáfora nunca houvesse existido 'álgebra alguma'" (Black, 1966),

não se pode inferir daí que a construção do conhecimento segue uma via de mão única que conduz da Metáfora à álgebra, do sentido figurado ao literal. Na verdade, o pensamento algébrico, ainda quando literal no sentido literal, engendra legítimas Metáforas sistêmicas, não-tópicas, pôssibilitando fecundas transferências globais de significados entre contextos bastante diversos. No interior da própria Matemática, o literal e o figurado interagem continuamente, numa ação recíproca cuja representação aproxima-se muito mais de um círculo do que de um vetor. Nesse sentido é que se podem compreender proposições matematicamente corretas como são as que afirmam ser o conjunto das soluções de uma equação diferencial linear ordinária de 2ª ordem um "espaço vetorial de dimensão 2".

Analogamente, no que se refere ao Ensino de Matemática, é notável e sintomática a utilização que Van-Hiele faz da moderna Teoria das Categorias, no seio da Álgebra Homológica, para caracterizar os níveis de conhecimentos e os processos de aprendizagem: cada nível seria uma Categoria; o processo que conduz de um nível até outro não passaria de um Funtor... (Van-Hiele, 1986).

Numa palavra, a permanente transação entre os sentidos literal e figurado é o motor dos processos criativos, das iniciativas diante do novo, das transcendências da imaginação. Em tais situações, tão freqüentes na construção do conhecimento como nos processos de ensino, a primeira como a última palavra parece estar sempre com a Metáfora, com a imaginação.

Bibliografia

Nílson José Machado é professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Fev 2006
  • Data do Fascículo
    Dez 1991
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