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Ciência e tecnologia: o problema da criação de capacidade no terceiro mundo

DOSSIÊ CIÊNCIA E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

Ciência e tecnologia: o problema da criação de capacidade no terceiro mundo

Roberto Leal Lobo e Silva Filho

Instituto de Física e Química da USP de São Carlos, Brasil

O hiato tecnológico entre os países desenvolvidos e os chamados em desenvolvimento, longe de diminuir, como se esperava alguns anos atrás, parece estar constantemente aumentando. A continuar essa tendência, os países em desenvolvimento permanecerão como uma promessa não realizada por muitas décadas ou mesmo séculos. Talvez, em poucos anos, seja mais realista voltar a usar velhos termos — países desenvolvidos e subdesenvolvidos — e o sonho de uma melhor distribuição planetária de riqueza pode transformar-se em autêntico pesadelo para a humanidade.

Um mundo dividido, com um contingente de pessoas ricas cercadas de uma multidão de seres miseráveis não é, certamente, o tipo de sociedade aceitável por qualquer um de nós como futuro para a vida humana neste planeta. Esta sociedade seria precária e instável e, talvez, como conseqüência uma nova idade das trevas cairia sobre nossas cabeças, desenvolvidas ou não.

Atualmente, o acesso à tecnologia parece ser a chave que abre as portas para o crescimento econômico. Apenas através da criação e absorção de novas tecnologias parece ser possível, para os países menos desenvolvidos, evitar a trilha divergente que os conduz por caminhos cada vez mais distantes daqueles trilhados pelo Primeiro Mundo.

Para criar uma base tecnológica sólida, pelo menos dois requisitos nos parecem fundamentais: a existência de um sistema educacional forte e uma provisão de recursos financeiros para a manutenção e estímulo das pesquisas em C&T. E evidente que, em países carentes de recursos, investimentos em pesquisa têm de competir com outras prioridades que parecem ser ainda mais dramáticas: educação básica, saúde, transportes, habitação etc. A despeito da competição entre essas prioridades, é preciso entender-se ser a prioridade da pesquisa também dramática, e talvez mais dramática a longo prazo que as demais. E fundamental, por isso, a compreensão de que a tecnologia é uma das condições necessárias para o desenvolvimento e que é da responsabilidade dos governantes encontrar formas de estimular o fluxo de fundos públicos e privados para as atividades de pesquisa, incentivando a ação conjunta dos dois segmentos de acordo com um planejamento estratégico nacional.

Acho importante, neste ponto, mencionar outra dificuldade que países como o Brasil estão encontrando não apenas em criar, mas mesmo em absorver tecnologias correntes. Em alguns casos extremos, chega-se a proibir a países irresponsáveis a utilização de materiais considerados intocáveis pelos detentores da tecnologia. E notório algumas tecnologias sofisticadas serem protegidas pelos países mais desenvolvidos, que usam como argumento a não-confiabilidade de governos de países do Terceiro Mundo. Não pretendo me aprofundar nesse tema, que considero um parêntese neste texto. Como reitor de uma universidade brasileira, no entanto, confrontei-me com tal realidade. Acho mesmo que as razões usadas para justificar essa política possam ter sido razoáveis em poucos casos específicos, mas elas correm o perigo de se tornarem mera proteção comercial da tecnologia, levando a um oligopólio do conhecimento que viola claramente os princípios do mercado livre — princípio que nos é apresentado pelos países desenvolvidos como a principal exigência da modernidade!

Além das dificuldades advindas de um excesso de prioridades, da carência de capital e de acesso ao denominado de tecnologias sensíveis, o Terceiro Mundo sofre também de doenças geradas internamente. Aqui, devo falar de minha própria experiência no Brasil, um país grande que gasta em educação uma quantia per capita comparável (embora menor), à dispendida por países mais desenvolvidos, mas investe em ciência e tecnologia um valor per capita de apenas um oitavo do dispendido por esses mesmos países. Dessa pequena alocação, cerca de 80% vêm de fontes governamentais (sejam federais ou estaduais). Como regra, as grandes indústrias brasileiras, independentemente de terem ou não capital nacional, compram tecnologia externa. Isso é compreensível, em parte, devido a que, com o alto nível da inflação brasileira, investimentos de longo prazo não são compensadores. E mais fácil, mais prático e mais rentável investir no mercado financeiro com altas taxas de juros e liquidez garantida pelo governo. Além disso, a comunidade científica brasileira não apresenta um currículo suficientemente forte em termos de conquistas tecnológicas e, assim, existe pouca confiança no que diz respeito ao retorno dos investimentos em P&D. Mas, mesmo considerando todos os argumentos altamente razoáveis dados acima, os investimentos em pesquisa feitos pelas grandes indústrias no Brasil são desapontadoramente baixos. Precisamos, de alguma forma, interromper esse ciclo vicioso: falta de investimento inibindo a produção de C&T e falta de produção inibindo os investimentos.

Por outro lado, as universidade e os centros de pesquisa, os geradores de conhecimento em ciência e tecnologia, ainda se .debatem em torno de questões ideológicas relacionadas, muitas vezes, mais com interesses político-partidários do que propriamente com a qualidade acadêmica ou com as novas missões das universidades na época atual. Muitas vezes, a discussão é levada a seu limite assintótico, gerando um maniqueísmo perverso: a universidade deve fazer pesquisa básica ou aplicada? Deve ser um elemento crítico de transformação social ou trabalhar junto às empresas nacionais? Estou certo de serem estes conflitos mais retóricos do que reais. O futuro vai nos impor — como o presente já impõe — que as universidades não somente aprimorem seu gerenciamento mas abram definitivamente suas portas à sociedade, através de programas que coloquem lado a lado, como parceiros reais, as universidades e os mais diferentes segmentos da sociedade, de forma coordenada e sem preconceitos.

Para vencer a enorme distancia que os separa do Primeiro Mundo, algumas estratégias devem ser implementadas nos países do Terceiro Mundo, como é o caso do Brasil, para ajudar a acelerar o esforço tecnológico para o desenvolvimento. Na Universidade de São Paulo, por exemplo, um programa chamado Disque-tecnologia, foi iniciado há dois anos com o objetivo de colaborar com pequenos e médios empresários em todas as áreas nas quais a Universidade tivesse alguma capacitação. Hoje, são cerca de 4000 os professores cadastrados no programa na qualidade de consultores e mais de 3000 empresas já se beneficiaram dele. Além disso, muitas empresas-júnior criadas por estudantes de graduação também vêm dando apoio ao programa quando o problema cai dentro de sua área de competência. Disque tecnologia, foi estendido a outros estados brasileiros com o apoio do SEBRAE e está sendo implementado, a partir do modelo USP, na Costa Rica e no Uruguai. O exemplo mostra um dos possíveis modos de ação para universidades de países em desenvolvimento, que pode ser muito eficiente para criar uma base tecnológica nacional, gerar empregos e desenvolver a confiança mútua entre as universidades e a indústria. Outras relevantes iniciativas em distintos países não são difíceis de ser identificadas. O levantamento de iniciativas bem-sucedidas poderia ser o ponto inicial para um projeto nacional de desenvolvimento.

Acredito também que a escassez de recursos impõe um planejamento de médio prazo na formação de recursos humanos na área de C&T. Os programas de bolsas e auxílios devem levar em conta não somente a qualidade acadêmica dos candidatos, mas também as necessidades do País com relação à formação de especialistas em áreas básicas para o desenvolvimento. E claro que não se deve inibir a formação de pessoas talentosas em outras áreas de conhecimento, mas países pobres não podem se dar ao luxo de estimular muitas delas em áreas por demais distantes da realidade nacional. A pesquisa fundamental dispendiosa deve se restringir a áreas nas quais o país tenha tradição e massa crítica mínimas. Outras, podem ser levadas adiante através de cooperação com centros mais desenvolvidos em países ou centros internacionais com maiores condições de investimento e de seu retorno mais imediato.

Por fim, penso que seria conveniente criar um fundo de investimentos em pesquisas tecnológicas, oriundo dos processos de aquisição de tecnologia do exterior, através da cobrança de uma sobretaxa específica. Esta deveria ser cuidadosamente estabelecida para evitar o desestímulo aos projetos de aquisição de tecnologia internacional, e aplicada para financiar pesquisas nos países em desenvolvimento que se mostrassem dispostos a aumentar a competitividade de suas empresas com o apoio das universidades e centros de pesquisa. Essa proposta não é nova. Para reforçar tal programa, seria muito bem-vinda a criação de um fundo internacional devotado a suplementar os fundos locais. Uma agência — ou banco internacional — poderia ser usada com esse propósito, o que certamente contribuiria para diminuir o hiato tecnológico entre os dois mundos e evitar o pesadelo que nos ameaça.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Dez 2005
  • Data do Fascículo
    Abr 1994
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