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As ciências biomédicas básicas na solução de problemas de saúde

DOSSIÊ CIÊNCIA E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

As ciências biomédicas básicas na solução de problemas de saúde

Gerhard Malnic

Instituto de Ciências Biomédicas da USP, São Paulo, Brasil

A contribuição da ciência moderna para áreas aplicadas como Medicina e Agricultura é reconhecida amplamente. Particularmente, a Biologia Molecular tem contribuído de forma relevante à solução de um grande conjunto de questões, constituindo área de trabalho que se mostrou particularmente produtiva em resolver problemas que atingem a sociedade de uma maneira geral. Neste trabalho, limitarei a discussão a alguns aspectos de pesquisa básica nas Ciências Biomédicas que trouxeram importante progresso à área da Saúde, abordando questões anteriormente sem perspectivas de solução. Tratarei de algumas questões mais ligadas a minha área de trabalho, isto é, a pesquisa sobre mecanismos de transporte em membranas celulares e em epitélios. Nesta área, modernas metodologias de espectroscopia celular, eletrofisiologia de canais unitários e particularmente biologia molecular de canais e de transportadores de membrana conseguiram empurrar os limites do conhecimento para o domínio molecular, levando a considerável ampliação da compreensão dos processos que determinam a função celular. Neste trabalho, serão analisados dois exemplos do papel da pesquisa básica moderna, que levaram ao embasamento científico da atual terapia da cólera, em um dos casos, e à compreensão da fisiopatologia da fibrose cística e à perspectiva de futura intervenção nesta doença, no outro.

A primeira área de pesquisa a ser abordada é aquela relacionada ao papel da toxina da cólera no transporte epitelial, que levou à melhor compreensão da fisiopatologia da cólera, ou seja, a respeito de como o Vibrio cholerae induz a doença que tem seu nome. A cólera é caracterizada por violenta diarréia, que causa intensa desidratação, isto é, depleção de fluido extracelular, que pode levar à morte do paciente. Foi demonstrado que esta diarréia é causada pela ação de toxina da cólera sobre a mucosa intestinal, liberando adenosina monofosfato cíclico (cAMP) no interior das células da mucosa. Este agente é um segundo mensageiro de ação hormonal que .estimula a secreção de sal e água. Assim, a diarréia não é devida à inibição da absorção do conteúdo intestinal, mas ao estímulo anormal da secreção de fluido pelo epitélio intestinal. O mecanismo detalhado deste processo tem sido definido por pesquisas in vivo e in vitro, demonstrando não haver propriamente lesão do epitélio, ser a infecção microbiana em geral vencida pelas defesas naturais do organismo, desde que este sobrevida à intensa desidratação, e evitar-se a morte do paciente compensando as perdas de fluido por reidratação oral ou parenteral. Estudos sobre os mecanismos íntimos do transporte de solutos, água e sal pelo epitélio intestinal, mostraram a presença de um cotransportador sódio/glicose, responsável pela absorção acoplada de glicose e sal, e não é afetado pela toxina da cólera. Portanto, o estímulo deste processo de transporte pela administração oral de uma solução contendo sal (cloreto de sódio) e glicose ativa a absorção intestinal de fluido, compensando a secreção exagerada e evitando a desidratação do organismo. Dessa forma, mostrou-se que um método barato e simples, a reidratação oral, é capaz de evitar a violenta desidratação característica da cólera, assim garantindo a sobrevida do paciente até que o próprio organismo destrua as bactérias invasoras.

Pesquisas utilizando a tecnologia da biologia molecular levaram à clonagem do gene da bactéria responsável pela biossíntese da toxina da cólera, com a finalidade de produzir bactérias isentas deste gene e portanto inócuas, que poderiam ser usadas para a imunização de populações submetidas ao risco de infecção. Estes estudos levaram à observação de que indivíduos infectados com a bactéria atenuada ainda apresentavam certos sintomas como diarréia leve e dores abdominais, levando à descoberta de que, ao lado da toxina conhecida da cólera havia outras duas, acessórias: a toxina de zona occludens — ZOT — que age abrindo as zônulas de oclusão entre as células epiteliais, e a enterotoxina acessória da cólera — ACE — que causa elevação moderada da secreção de fluido pela mucosa intestinal. Bactérias atenuadas deverão ser, portanto, isentas também dos genes para estas toxinas acessórias para poderem ser usadas na vacinação humana.

Outro exemplo de aplicação de ciência básica moderna a um importante problema de saúde é constituído pelos estudos sobre a fibrose cística, moléstia respiratória de origem genética que afeta recém-nascidos e crianças, mortal por afetar a produção de secreções da árvore respiratória, levando a infecções secundárias recorrentes. Pesquisas a respeito da fisiopatologia da doença mostraram que a causa da deficiência da produção dessas secreções era a modificação ou ausência do canal para íons cloreto de epitélios em geral. Essa modificação afeta a produção de suor, reduzindo a reabsorção de sal a partir do mesmo, elevando assim sua concentração em cloreto de sódio. Em conseqüência, a determinação da concentração de sai no suor constitui importante método diagnóstico para caracterizar a doença. Esta deficiência afeta também a secreção pancreática, mas seu aspecto mais importante é a modificação das secreções respiratórias, o que eleva a viscosidade das mesmas dificultando a adequada limpeza das vias respiratórias. Através da aplicação de técnicas de biologia molecular foi possível clonar o gene responsável pela geração destes canais de cloreto, expressá-los em membranas modelo e caracterizar suas propriedades. Assim, verificou-se que a falta de um único amino-ácido do total de 1480 da molécula do canal, o resíduo de fenilalanina na posição 508, era responsável por cerca de 70% dos casos da moléstia.

A solução terapêutica para esta moléstia é muito mais complicada que aquela para a cólera. Envolve correção do gene defeituoso a fim de possibilitar a biossíntese de moléculas normais do canal de cloreto e sua inserção nas membranas das células do epitélio respiratório ou, então, infectar a árvore respiratória da criança afetada com este vírus. Esta infecção introduziria o genoma do vírus, junto com o gene do canal, no genoma das células do epitélio respiratório, induzindo estas a produzir o canal correto. Esta metodologia terapêutica ainda está em fase absolutamente experimental, mas representa uma promessa altamente interessante para o tratamento desta e de outras moléstias de origem genética. Em todo caso, a definição precisa da alteração genética que está subjacente a uma moléstia deste tipo é um passo essencial para qualquer tentativa de abordagem do problema.

Tais exemplos demonstram claramente que uma abordagem científica moderna em nível molecular será capaz de resolver muitos dos atuais problemas de saúde, ainda insolúveis, e somente a aplicação de técnicas de investigação básica poderá levar à resolução dos mais espinhosos problemas da área médica que ainda afetam a humanidade. Por outro lado, é importante notar que países como o nosso não podem depender exclusivamente da ciência desenvolvida em países avançados na esperança de que estes resolvam nossos problemas. As grandes empresas farmacêuticas, por exemplo, dificilmente interessar-se-ão pela criação de uma vacina contra a Leishmaniose cutânea, doença que aflige populações pouco numerosas e extremamente pobres da Amazônia, já que estas dificilmente teriam a capacidade econômica para tornar o empreendimento lucrativo. Daí a importância de se contar, aqui mesmo, com uma estrutura científica eficiente e moderna, o que inclui capacidade inclusive na área da ciência básica, a fim de podermos abordar os problemas práticos do país.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Dez 2005
  • Data do Fascículo
    Abr 1994
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