Acessibilidade / Reportar erro

Ernesto Giesbrecht: o desenvolvimento do ensino da Química

DEPOIMENTOS

Ernesto Giesbrecht: o desenvolvimento do ensino da Química

Estudos Avançados — Como foi o seu ingresso na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras? Por que nela fez o curso de Química?

Ernesto Giesbrecht — Iniciei o curso secundário em Curitiba, mas completei o ginásio em São Paulo, no Liceu Coração de Jesus, onde também fiz o pré-politécnico — curso de dois anos preparatório para ingressar na Escola Politécnica. O liceu localizava-se na alameda Glete, próximo à minha residência e ao laboratório de História Natural e de Química da Faculdade de Filosofia. Por meio de amigos e conhecidos, soube que o curso de Química iniciava-se no Brasil, e que a profissão de químico possibilitava uma carreira muito promissora. Um dado aumentou meu interesse: o fato de o curso ser ministrado por professores estrangeiros, formados na Alemanha. Todavia, conheci o professor Heinrich Rheinboidt apenas no vestibular.

No curso secundário, tinha uma certa facilidade para o estudo de ciências — Física, Química e Matemática. Assim, surgindo essa oportunidade de fazer um curso novo, concluí que seria muito útil ingressar na nova faculdade, embora não compreendesse, então, a potencialidade do curso. No fundo, o que desejava era rapidamente me formar, o que ocorre com a maioria dos jovens, e o curso de Química era só de três anos.

Prestei o vestibular em 1941 e em fins de 1943 recebi o título de bacharel em ciências. As aulas eram ministradas em um casarão na alameda Glete, esquina com a rua Guaianases. Assim entrei na USP, da qual nunca mais saí. Fui aposentado compulsoriamente em 1981, ao completar 70 anos de idade. Porém, continuo com as minhas atividades no Instituto de Química. Fora deste Instituto, mas na USP, desempenhei outras funções — vice-diretor da Escola de Comunicações e Artes (ECA); diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto; e vice-diretor no exercício de diretor do Instituto de Biociências. Por que atuei nesses cargos que nada têm a ver com a Química? Simplesmente porque, quando da instalação dessas unidades, elas não possuíam o número necessário de professores titulares para a composição das listas sêxtuplas, dentro das quais a Reitoria escolhe os diretores e vice-diretores das unidades.

O modelo das universidades alemas

EA — Todos assinalam que a vinda dos professores Rheinboldt e Hauptmann foi de extraordinária importância para a evolução da Química no Brasil e para a formação de pesquisadores nessa área da Ciência. Por que isso, professor?

EG — O professor Rheinboldt, antes de vir para a USP, era docente na Universidade de Bonn. Quando o nazismo foi implantado na Alemanha, ele não se sentia bem em seu país natal. Por isso, quando o professor Teodoro Ramos lhe transmitiu o convite para trabalhar aqui, aceitou a oferta. Rheinboldt veio para a Faculdade de Filosofia a fim de organizar a subseção de Química, nos moldes da tradição universitária alemã, mas com o objetivo básico de formar professores de Química para escolas secundárias.

Ele tinha aquela produção meticulosa, de aulas experimentais, fazendo quase tudo no laboratório. Note-se que ele trouxe para o Brasil a experiência universitária alemã de ensino e pesquisa em Química. Nessa área a Alemanha estava muito à frente dos outros países europeus e dos Estados Unidos, pois sua indústria química era a mais desenvolvida do mundo.

As aulas do professor Rheinboldt eram brilhantes, revelando uma didática extraordinária. Cativava e prendia a atenção dos alunos. Suas aulas eram de Química Geral e Inorgânica, mas nos dava uma visão completa da disciplina. Possuía uma vasta cultura humanista e com sua personalidade marcante influenciava a todos.

Inicialmente, suas aulas eram em francês, contudo, logo aprendeu nosso idioma, que falava com um carregado sotaque. Começava as aulas às 10 horas e estas se estendiam até às 13 horas. As aulas eram bem-preparadas por ele e por uma técnica — dona Elvira Bauer. Esta tinha o maior capricho com as experiências. Note-se que o objetivo do curso era sobretudo formar professores, porque, então, nos ginásios as aulas de Química eram dadas por farmacêuticos, médicos, engenheiros — autodidatas nessa matéria. As experiências no laboratório da alameda Glete eram feitas numa grande mesa e ali repetiam-se os processos utilizados na indústria e em todas as etapas da fabricação de uma substância.

EA — Como eram as turmas de alunos e quais foram os primeiros assistentes do professor Rheinboldt?

EG — Nos primeiros tempos da Faculdade as turmas eram muito pequenas. Paulatinamente, o curso do professor Rheinboldt sobressaiu-se, atraindo um número maior de estudantes. Na primeira turma, contava com apenas quatros alunos: Paschoal Senise, Simão Mathias, Luciano Barzaghi e Jandira França. Já na minha turma éramos onze. Senise e Mathias logo se tornaram assistentes e fizeram uma brilhante trajetória na USP. Jandira continuou algum tempo na Faculdade como assistente do professor Hauptmann. Barzaghi, formado, foi trabalhar no IPT, na área de cerâmica, sendo considerado um notável especialista nesse campo. Posteriormente, trabalhou em indústrias, como a Cerâmica São Caetano e a de Porto Ferreira. Os que se formaram nas primeiras turmas rapidamente conseguiram boas colocações em institutos — Adolfo Lutz, IPT etc. — bem como na iniciativa privada.

Naquele tempo, os cargos de assistente eram em comissão, depois de um processo longo de indicação e nomeação. Todo o curso prático de laboratório era acompanhado por um assistente. Senise foi o assistente de minha turma. Simão Mathias também se tornou assistente.

A carreira universitária

EA — Como foi sua carreira como docente e pesquisador?

EG — Prestei o vestibular em 1941 e, três anos mais tarde, graduei-me. Continuei na Faculdade porque, já no fim do curso, o professor Rheinboltd convidou-me para ser um de seus assistentes. Comecei a fazer pesquisas como aluno e tinha um estreito contato com os professores. Nos laboratórios vivíamos um clima de constantes seminários e debates, sempre dirigidos pelos professores Rheinboldt e Hauptmann. Preciso ressaltar aqui dois nomes importantes: o do professor Heinrich Hauptmann, que havia sido da Universidade de Breslau, ministrou Química Orgânica e posteriormente de Química Biológica — hoje denominada Bioquímica, e o do professor Giorgio Renato Levi, italiano, que trabalhou muito tempo nas indústrias Matarazzo. Levi formou-se na Universidade de Pavia e ministrou aqui aulas de Físico-Química. Pertenceu ao grupo de professores estrangeiros que exerceu significativa influência na Faculdade. Na minha turma, como colega, destacou-se, entre outros, o professor Giuseppe Cilento, que, posteriormente, foi catedrático de Bioquímica na USP.

Doutorei-me em 1947 e, em 1952, apresentei a minha tese para a livre-docência. Quando obtive o título, Rheinboldt achou conveniente que eu fosse para o exterior. Com uma bolsa de estudos do CNPq, fiz estágio por um ano no Instituto de Química da Universidade de Zurique, pesquisando a separação de alcalóides do curare. Trabalhei, então, com o professor Paul Karrer, que pouco antes havia recebido o Prêmio Nobel por seus trabalhos em Química Orgânica.

Voltei ao Brasil em 1954 e, no ano seguinte, com o falecimento do professor Rheinboldt, a cátedra teve de ser reequacionada. Haupt-mann julgou oportuno que fossem criadas duas disciplinas: Senise ficou com a de Química Analítica, e eu, interinamente, com a de Química Inorgânica. Logo depois, obtive da Fundação Rockefeller uma bolsa de um ano na Universidade de Illinois, onde trabalhei com o professor Audrieth, estudando terras raras. Em 1962, fiz o concurso para professor catedrático e fui nomeado.

EA - Que outras atividades o senhor desenvolveu no intercâmbio científico com o Exterior?

EG — Em 1969, durante três meses, visitei diversas universidades alemãs, a convite de seu Serviço de Intercâmbio Acadêmico. Em 1976, lecionei durante um semestre na Universidade de Minnesota, nos Estados Unidos, no seu pequeno campus em Duluth, perto da fronteira com o Canadá. Na minha longa carreira, viajei diversas vezes para o exterior, a fim de participar de congressos, reuniões científicas e tive a oportunidade de prestar serviços à Organização dos Estados Americanos, como diretor de um programa interamericano de Química. Esse programa destinava-se à compra de equipamentos, contratação de docentes, promoção de intercâmbio científico, organização de cursos de pós-graduação etc. Posteriormente estive nos Estados Unidos para observar os novos programas de ensino de Química. Aliás, agora esse é o meu maior interesse — o desenvolvimento do ensino de Química.

EA — A subseção de Química da FFCL dispunha de equipamentos, de recursos, para os laboratórios? Tem fundamento a afirmação de que a Faculdade de Filosofia iniciou uma nova fase das atividades científicas no Brasil porque fez a junção do ensino com o trabalho de pesquisa?

EG — Sim, essa afirmação tem fundamento, pois, no caso da Química, pela tradição que trouxeram da Europa, os professores estrangeiros eram mestres no ensino experimental e mestres na pesquisa. Senise, Mathias e eu fizemos o doutoramento com Rheinboldt e este incutiu em todos os seus discípulos a dedicação à pesquisa, imprimindo caráter fortemente experimental aos nossos trabalhos. Seus alunos continuaram com esse sistema. Antes, o ensino era livresco, pois não tínhamos a tradição de pesquisa em nosso país. Com o exemplo da Faculdade de Filosofia o quadro se alterou, daí afirmar-se que deve-se a ela um empurrão para superar-se, no Brasil, o ensino livresco nas áreas científicas.

Depois de 1970, com a instalação dos cursos de pós-graduação, outras universidades brasileiras mandaram para cá seus alunos, que levaram essa compreensão para suas escolas. Então, nossa faculdade foi o fermento dessa evolução.

O laboratório da alameda Glete era acanhado e não tinha sequer o tamanho de um dos blocos do prédio em que hoje trabalhamos no Instituto de Química da USP. Os recursos financeiros eram precários, dificultando a realização de experiências. Além disso, não tínhamos o suporte de uma boa biblioteca, o que era lamentável, pois o ensino experimental não é feito só nos laboratórios.

EA — Como era, o contato, o relacionamento, com os professores estrangeiros? Um aluno da subseção de Química assistia às aulas dos professores das outras áreas científicas?

EG — Faziam parte do currículo do curso aulas de Física, Matemática, História Natural (Biologia). Por isso eu assistia às aulas de Wataghin, Occhialini, Markus, Rawitscher, Fantappié, Albanese etc. Eles ministravam aulas magníficas, que nos influenciaram muito pois eram realmente pessoas com uma profunda formação científica. Com os professores Rheinboldt e Hauptmann, naturalmente, o contato era permanente. Hauptmann era muito comunicativo e Rheinboldt, mais fechado.

A relação com outras ciências

EA — O que acha do atual ensino de Química no Brasil?

EG — De modo geral o ensino brasileiro, a começar do primário, é pouco evoluído, pois não existe a compreensão da importância da educação para a formação do indivíduo, do cidadão brasileiro. Não conseguimos resolver o problema do analfabetismo, e sequer o de saúde da população. Temos alguns bons cursos de Química, mas, comparados com os de outros países, estamos algo atrasados, porque os recursos são limitados, os docentes são poucos e geralmente mal preparados e mal pagos. No ensino secundário, poucas escolas ministram aulas de Química enfatizando a parte experimental. Então, a Química não é ensinada desde o começo, como deveria ser. Percebemos esse fato nos alunos que chegam à universidade. Em outras palavras, sua formação é incompleta.

EA - Professor, a Ciência avançou muito nas ultimas décadas. Como vê o surgimento de outras disciplinas e as interfaces, o relacionamento, entre elas?

EG — Esse relacionamento é essencial. Ensinamos agora Bioquímica para os estudantes de Biologia, ensinamos Química para os de Física, de Geociências e assim por diante. Por exemplo, supõe-se que Química Inorgânica seja exclusivamente dedicada ao estudo da formação de material sólido. Mas hoje existe uma disciplina chamada Química Bio-inorgânica, que estuda os demais elementos alem do carbono. Porque a Química Orgânica, muitas vezes, é definida como a Química do carbono, quando na realidade o carbono forma o esqueleto das moléculas orgânicas, mas não existiria vida se não existissem nitrogênio, enxofre, fósforo, magnesio, ferro etc. Todos elementos — a exemplo de boro, cloro, flúor etc — são fundamentais na formação das moléculas. Tudo isso determina a criação de disciplinas que mantêm interfaces, umas com as outras. O leigo não pode avaliar o quanto existe de comum — e de importância — naquilo que é estudado ao mesmo tempo nas disciplinas de Física, Química e Biologia. A Química não depende da Física, mas nos seus fundamentos intersecciona-se com a Física, e vice-versa.

Uma recomendação

EA — Professor, se estivesse dando uma aula magna, o que diria par a os jovens químicos que se iniciam na docência e na pesquisa.

EG — Percebe-se nos exames vestibulares que a procura pela Química não é grande, não atrai muito a juventude embora seja uma ciência fascinante e haja carência de químicos. Acredito que uma das razões de a Química ser pouco atraente entre os jovens decorre de um fato: o de a Química ser responsabilizada por alguns erros e certos equívocos, particularmente por desastres ecológicos. A opinião pública não esquece fatos como o ocorrido em Bopal, na Índia (muita gente morreu quando houve vazamento de isocianato em uma fábrica), além de outros absurdos freqüentemente assinalados pela imprensa, como o vasamento de ácido sulfúrico em córregos e rios, a talidomida etc. Enfim, vários fatos ligam a Química a drogas prejudiciais. Dessa forma, essa imagem precisa ser revista e essa revisão cabe, em primeiro lugar, aos próprios químicos. Essa é a nossa responsabilidade. Se nos laboratórios são fabricadas drogas até milagrosas, se neles são preparados pródutos novos de imensa utilidade — como os semicondutores, os novos materiais etc — de outro lado também lançam produtos altamente prejudiciais à saúde e ao meio ambiente.

Recentemente, estive nos Estados Unidos para receber um prêmio internacional de educação de Química, da American Chemical Society. Na solenidade falei sobre a Química como ciência universal. Assinalei que, inicialmente, o jovem fica entusiasmado com as realizações da Química, com suas aplicações notáveis, mas não percebe, muitas vezes, a importância social da Química. Por isso tratei da imagem da Química, apontando a ganância das fábricas e dos governos que lançam produtos sem terem a certeza de que não provocarão desastres ambientais e não prejudicarão a saúde dos seres humanos. Portanto, respondendo a sua pergunta, numa aula magna, sobretudo acentuaria a responsabilidade social dos químicos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Nov 2005
  • Data do Fascículo
    Dez 1994
Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo Rua da Reitoria,109 - Cidade Universitária, 05508-900 São Paulo SP - Brasil, Tel: (55 11) 3091-1675/3091-1676, Fax: (55 11) 3091-4306 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: estudosavancados@usp.br