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Em memória de Lívio Teixeira

PERFIS DE MESTRES

Em memória de Lívio Teixeira

Bento Prado Junior

Depois do choque, mas ainda perplexo, que pode o antigo aluno senão buscar, na estante, os livros? Com a obscura sensação de um desencontro (o telefonema que anuncia a morte e cancela, para sempre, a visita planejada), abro a Doutrina dos Modos de Percepção e o Conceito de Abstração na Filosofia de Espinosa, o livro mais manuseado e anotado, o principal instrumento de trabalho no curso sobre Espinosa, naquele ano de 1957. Em seguida, o Ensaio sobre a Moral de Descartes, lido mais tarde, ao mesmo tempo que o Descartes selon l´ Ordre des Raisons de Martial Guéroult, com quem trabalhara Lívio Teixeira (1902-1975). É outro livro que se abre à leitura renovada, como se o desaparecimento do Autor modificasse sua natureza. Antecipo em mim a leitura que será dos outros, dos que não chegarão a ele através ou depois da palavra viva do Professor. Não que minha leitura anterior fosse melhor, por poder continuar, fora do texto, na presença — ela era diferente e talvez mesmo menos completa, porque afetada por uma excessiva proximidade. O discurso do mestre era mais da ordem do horizonte ou da atmosfera e só agora se cristaliza, para mim, como obra. Com esta mudança não se apaga todavia, imagino, para os novos leitores o perfil de Lívio Teixeira, para aqueles que não tiveram a oportunidade de vê-lo ou de ouvi-lo. Paradoxalmente, ele se torna tanto mais nítido quanto mais se dissimula, discreto, no rigor de sua prosa. Não será justamente essa qualidade — do estilo e do homem — que começa a seduzir as novas gerações de estudantes de filosofia? O leitor não encontra aqui nenhum traço do estilo elevado ou sibilino tão na moda, dessa proliferação de imagens que passam por conceitos e que é preciso atravessar penosamente; nada do narcisismo de uma linguagem que se enrola sobre si mesma para dizer a qualidade do autor.

O que aparece como austeridade da linguagem logo denuncia algo mais profundo, que envolve a própria idéia da filosofia. A recusa do jargão, de toda e qualquer cumplicidade com as modas intelectuais dominantes (por que não dizê-lo? com a ideologia), tal é o nervo da obra. É esta recusa, esta concepção essencialmente crítica da filosofia que explica o privilégio atribuído à história dos sistemas filosóficos na estratégia geral do pensamento. Tudo se passa como se, por uma feliz convergência, Lívio Teixeira estivesse desde sempre preparado para receber a influência de Martial Guéroult que, quando de sua estada em São Paulo, oferecia o mais alto modelo de uma historiografia filosófica rigorosa. Com esse encontro, era uma tradição que se criava em São Paulo e que, felizmente, perdura até hoje no trabalho dos mais jovens. Que não se veja nesse privilégio atribuído à História algo como o esquecimento da natureza própria da Filosofia. A isto, pode-se responder dando a palavra a Lívio Teixeira: Il est certainement difficile d' accéder a l'objectivité en histoire de la Philosophie. Beaucoup d'historiens n 'ont fait que philosopher sur la philosophie d'nutres philosophes, ce qui est tout à fait acceptable, mais ne constitue pas une histoire de la philosophie. En vérité, comme l'historien doit avoir un esprit philosophique pour bien comprendre les philosophes, il passe facilement de la compréhension à l'interpretation. Et l'histoire de la philosophie ne vaut pas une heure de peine si elle ne nous conduit pas à la réflexion personnelle. Cela dit, l'historien doit rester fidèle au philosophe qu'il étudie (La Philosophie au Brésil, in Études d 'Histoire de la Philosophie, en Hommage à Martial Guéroult", Lib. Fischbacher, p. 210). Só o projeto delirante de uma Ciência Absoluta pode levar a considerar a abordagem tecnológica dos sistemas filosóficos como uma forma de renúncia à filosofia — e a tarefa da crítica não é justamente a de mostrar a falácia desse projeto?

O bom leitor não se equivoca e descobre já nas análises propriamente técnicas das obras de Descartes e de Espinosa algo que transcende imediatamente à pura tecnologia. O fascínio pelo Grande Racionalismo não é aqui o efeito de uma simples opção intelectualista. Arrisquemos uma fórmula — o que interessa a Lívio Teixeira é aquele momento, tensão máxima, em que o racionalismo toca seu próprio limite, ou desmente sua imagem corrente. O limite da razão não aparece como álibi de uma Revelação qualquer e a preocupação moral nada tem de moralismo — de qualquer modo, o que se busca são os signos do concreto (no caso de Descartes, para além do rigor da metafísica da distinção entre as substâncias, o reconhecimento do fato da união substancial e da promiscuidade entre o corpo e a alma) ou do investimento histórico da razão (no caso de Espinosa, a verdade política da reflexão metafísicomoral). A busca do sentido da beatitude nas obras de Descartes e de Espinosa é particularmente significativa sob a pena do antigo Pastor. Quer na sua versão estóica, quer na sua versão epicúria, é a idéia de contentamento que dá conteúdo à idéia de beatitude, depurada enfim de seu horizonte místico ou teológico. Comparemos as últimas linhas das duas teses. Uma termina por um texto do escólio final da Ética, no qual Espinosa diz: "O ignorante, além de ser de muitos modos agitado pelas causas exteriores e de não possuir nunca o verdadeiro contentamento interior, vive em quase completa inconsciência de si mesmo, de Deus e das coisas, e cessando de sofrer, cessa também de existir. O sábio, ao contrário, não conhece perturbação interior, mas tendo consciência de si mesmo, de Deus e das coisas, por uma certa necessidade interna, não cessa jamais de existir e de possuir o verdadeiro contentamento". A outra termina por uma fórmula breve que define o telos da reflexão moral cartesiana: "... vimos que o exercício da virtude tem para Descartes uma incontestável finalidade que é a de alcançarmos a beatitude. Eis-nos agora diante de Epicuro. Em suma, razão e vontade unidas na virtude, em busca do maior contentamento que é possível na vida — eis a moral de Descartes, que é, sem dúvida, uma forma de eudemonismo".

Beatitude natural, portanto, ou terrestre e que se exprime de maneira forte na idéia cartesiana de generosidade. Remédio contra as paixões, a generosidade implica em conhecimento — ao menos esse tipo de conhecimento que, sem atingir embora a clareza e a distinção, é sempre possível no campo da união substancial entre o corpo e a alma. Mas esse remédio é também uma paixão. Beatitude natural porque para Descartes como para Espinosa, a virtude não se opõe de maneira absoluta à paixão, ou porque é possível um bom uso das paixões. Guardamos particularmente aqui a idéia da generosidade, a saber essa paixão particular, a "firme e constante resolução de executar tudo quanto a razão aconselha à firmeza dessa resolução", porque ela nos conduz a algo que — isto sim — a obra não pode dizer. Ela nos leva para além da história da filosofia, e nos mergulha numa história mais próxima e mais recente; ela situa Lívio Teixeira de uma maneira que as gerações mais recentes talvez ignorem e devem conhecer. Penso aqui na crise que atravessando a Universidade, nos últimos anos do magistério de Lívio Teixeira, desafiou e impôs ao Professor responsabilidades mais do que acadêmicas. Há dez anos atrás, aquela firmeza inabalável ou a paixão da generosidade mostrava que esse exemplar trabalhador da filosofia era muito mais do que um scholar. O que explica a força de minha admiração e de meu respeito e — sobretudo agora — minha sensação de perda e desamparo.

Bento Prado Júnior é professor da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal de São Carlos.

Texto extraído do v. 5, número 6 da revista Discurso (FFLCH-USP, São Paulo 1975 p 5-7).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Nov 2005
  • Data do Fascículo
    Dez 1994
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