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Maurer, Salum e a Romanística: pioneirismo, sabedoria e humildade

PERFIS DE MESTRES

Maurer, Salum e a Romanística: pioneirismo, sabedoria e humildade

Izidoro Blikstein

Parece haver unanimidade quanto ao indiscutível papel de ciência piloto que a lingüística desempenha no âmbito das ciências humanas: com efeito, ao desvendar o funcionamento da linguagem, a lingüística oferece um eficaz aparelho teórico metodológico para a análise do discurso, com fecundos desdobramentos para as mais variadas áreas como ensino de línguas, literatura, poética, comunicação, antropologia, filosofia, psicologia etc. Pois bem, se lembrarmos que os introdutores da ciência lingüística na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (a antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, lá da saudosa rua Maria Antonia), foram os professores Theodoro Henrique Maurer Jr. e Isaac Nicolau Salum, já teremos falado um pouco da importância destes dois grandes mestres para a Universidade de São Paulo. O papel de Maurer ou de Salum, porém, vai além: as suas presenças e atuações na docência, pesquisa, publicações e formação de especialistas foram muito mais largas e abrangentes, à medida em que a área de atuação dos mestres — Filologia Românica, ou melhor, a Lingüística Românica, ou melhor ainda, a Romanística — tem sido um dos pilares do curso de Letras.

E tudo começou em 1947, quando o professor Maurer — ao retornar da Universidade de Yale, onde, como bolsista da Rockfeller Foundation, realizou estudos de Lingüísticas Indo-Européia, Sánscrito e Hitita, tendo sido aluno de eminentes lingüistas como Bloomfield e Sturtevant — foi contratado para reger a cadeira de Filologia Románica em nossa Faculdade, tendo como assistente o professor Salum. A essa altura, ambos já tinham uma respeitável experiência de ensino de línguas românicas e clássicas em faculdades, cursos de teologia e na escola secundária. Cabe observar que além do latim, do grego e das línguas românicas, Maurer e Salum eram profundos conhecedores da Bíblia e da língua hebraica, devido à sua formação religiosa de orientação presbiteriana. Tais qualidades, aliadas à cultura e à erudição (com sólidos conhecimentos da história e da geografia do mundo românico) explicam a consistência e a abrangência da Filologia Românica que, nas mãos de Maurer e Salum, não se restringiram ao estudo dos textos antigos (filó-logo, nunca é demais lembrar, é o amigo do texto), mas ampliaram a sua perspectiva, à medida em que, com a utilização de método histórico-comparativo, passaram a analisar e a descrever a estrutura e a evolução das línguas românicas a partir do latim vulgar. Além da Filologia (o que não era pouco), os alunos praticavam a Lingüistica Românica que, como explicação mais ampla e satisfatória dos fatos lingüísticos, exigiu a contribuição de outras áreas, como a literatura, a história, a geografia, a sociologia etc. A Lingüística Românica tornou-se uma Romanística, isto é, uma ciência geral do mundo românico, sendo o método histórico-comparativo a sua ferramenta básica. O entusiasmo com o método, levou o professor Maurer a criar (sem ônus para a Universidade) o curso de Lingüística Indo-Européia, que consistia na descrição da estrutura e da evolução das línguas indo-européias (grego, latim, sânscrito etc.). A partir daí, foi apenas um salto para a Lingüística Geral, antes mesmo que essa disciplina se tornasse obrigatória no currículo mínimo de Letras. O pioneirismo de Maurer e Salum aparece também na própria concepção do objeto de seu ensino: a sua visão dinâmica e culturalista da linguagem, levou-os a conceituar o latim vulgar — contrariamente a toda a tradição européia — como o latim plebeu e rústico, falado pelas classes que latinizaram o Império Romano (soldados, colonos, mercadores etc.), um latim dinâmico, e não um latim estático, falado por classes médias. Tal concepção mudava e ampliava muito a perspectiva de análise, exigindo uma abordagem socio-lingüística, o que era um avanço para os anos 50: um desdobramento dessa percepção mais arejada, foi a necessidade do estudo de uma língua Românica meio esquecida pelos europeus, a saber, o romeno.

As idéias pioneiras de Maurer e Salum, além, naturalmente, de suas monumentais cultura e erudição, estão registradas num alentado conjunto de publicações, entre livros, artigos, teses dentre os quais, citaríamos

  • de Theodoro Henrique Maurer Jr.:

    A unidade da România ocidental. São Paulo, 1951

    (Boletim nº 118 da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP);

    Gramática do latim vulgar. Rio, Liv. Acadêmica, 1959.

    O problema do latim vulgar. Rio, Liv. Acadêmica, 1962.

  • de Isaac Nicolau Salum:

    A problemática da nomenclatura semanal românica. São Paulo, FFLCH/USP, 1968.

Cabe também assinalar que nossos mestres desenvolveram atividades e publicações em várias outras áreas, como traduções e comentários de textos bíblicos, trabalhos de análise textual e literária — caso das abordagens sintático-estilísticas de textos literários, uma notável e perspicaz operação de engenharia textual elaborada pelo professor Salum — além de importante atuação social no campo do cooperativismo.

O professor Maurer tornou-se catedrático de Filologia Românica em 1952, aposentado-se em 1967, quando o sucedeu o professor Salum, que permaneceu como titular da área até a aposentadoria, em 1983. Ambos, infelizmente, já faleceram, mas deixaram a sua marca indelével de cultura de erudição e... sobretudo de humanismo e de humildade.

Izidoro Blikstein é professor do Departamento de Lingüística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Nov 2005
  • Data do Fascículo
    Dez 1994
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